CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ
1. LEVE-LEVE
1. Segundo a teoria mais plausível, João de Santarém e Pêro Escobar encontraram a ilha de São Tomé em 21 de dezembro de 1470, a que deram o nome do santo do dia, pelo costume então vigente. A 17 de janeiro de 1471 chegaram à ilha do Príncipe, no dia de Santo Antão ou Santo António Abade (nome inicial), a que foi dado, posteriormente, o nome atual, no reinado de D. João II, em honra ao herdeiro da coroa.
Por mim, foi no dia de São Martinho, em agraciamento a outro santo bem popular, que cheguei, pela primeira vez, à ilha de São Tomé.
Espera pesarosa, das malas, no aeroporto, em espaço improvisado e inadequado, da autoria, ao que me constou, da cooperação chinesa. Mesmo assim, para melhor, dizia-se.
Uma demora a pedir paciência, lentidão, uma espécie de leve-leve, devagar-devagar, como lema do país, que os são-tomenses parecem usar e abusar. Por tudo e por nada?
Há quem o pense, referindo a regularidade das falhas de eletricidade, a ausência ou lacunas da internet, as estradas esburacadas, arrastamento no atendimento e serviços, a falta de investimento, o desemprego, o saciar a fome sem esforço, tudo a associar-se para abrandar o ritmo do segundo país mais pequeno de África, a seguir às Seicheles. O que não invalida posicionar-se, de momento, acima da média dos países africanos nos índices de grau de desenvolvimento humano, à frente de Angola, Moçambique e da Guiné-Bissau, por exemplo.
Há que tentar compreender o que é, na sua autenticidade, o leve-leve de São Tomé (e da ilha do Príncipe), como filosofia de vida e marca de identidade do seu povo.
2. No poema de Alda Espírito Santo, cantado por Kalú Mendes, pode ler-se:
“Leve-Leve
Não é sabotagem, nem malandragem
(…) Não é máxima velocidade, sem fazer travagem
(…) É guiar com acerto, sem desacerto
(…) Não é andar na paródia, noite e dia, dia e noite, parado
E entrar na repartição, com relógio na mão, à hora que Deus quer
Leve-leve não é isso.
(…) É providência que traz sempre prudência, com muita conveniência
(…) É fazer sacrifício e entrar no liceu a hora
(…) Não é barafunda, no país que afunda, deixando estar como está, para ver como fica
(…) É não correr à toa, como tudo o que voa
Leve-leve
É andar com passo certo, para conhecer felicidade”.
Leve-leve é uma maneira de ser e estar na vida, conveniente, frugal, pacífica, prudente, responsável, serena e simples, “não é máxima velocidade, sem fazer travagem”, mas sim “guiar com acerto, sem desacerto”, “andar com passo certo” para conhecer a felicidade. É o não esperar por amanhã para gozar ou usufruir o que se pode ter ou fazer hoje. O que não exclui caminhar ou desacelerar num passeio ou mergulhar numa praia deserta de água morna que se avizinha da estrada.
Não é um assunto de pontuação, andar muito depressa, a toda a velocidade, é aprender a socializar e a viver com esforço, trabalhando com acerto, prudência e sacrifício. É procurar a felicidade, não achar que é só um direito e não uma aspiração.
Há quem diga que a felicidade está nas pequenas coisas: no nascer e pôr do sol, no aroma e florir das flores, no cheiro do cacau e do café matinal. Tem que ser mais que isso, dado ser mais que um estado de espírito, sendo essencialmente uma atividade, em que só é possível sermos felizes esforçando-nos pela felicidade e trabalhando-a sem desacerto, sem ficar parado, sem atraso, sem correr à toa, sem barafunda, não deixando estar como está, para ver como fica, o país que afunda.
Se o leve-leve é esta mensagem de resiliência, de apelo e de confiança nas capacidades dos são-tomenses, plasmada num belo poema e embalada numa suave melodia africana, contrariando as adversidades do dia a dia, há que divulgá-la e adaptá-la aos tempos atuais, preservando o que tem de bom e expurgando o seu lado pejorativo.
3. Há a ideia, quiçá predominante, de que o leve-leve é o culto do ir devagar-devagar, devagarinho, do deixa andar, do culto da preguiça, da indolência, da inação, de o que é censurável ser aceitável nas relações são-tomenses, incluindo atrasos, incumprimentos, quebras de palavra e compromissos, com reflexos sociais e culturais a todos os níveis, desde a ausência de infraestruturas básicas, à educação, habitação, saúde, etc. Facilitando amiguismos, além do mais.
É um leve-leve tido como socialmente paralisante, gerando a necessidade de estabelecer uma fronteira entre o que é aceitável e inaceitável. É inadmissível, por exemplo, que o injustificável se justifique, ao sabor da conveniência, com um: “é o leve-leve”.
E a vida do povo de São Tomé não é leve, por maioria de razão leve-leve, no sentido literal do termo. É uma vida pesada, onde não se deve aceitar, como atendível e normal, a apatia e a pobreza. Há quem lhe chame uma morfina social que alivia, mas onde tudo falta e ninguém é responsável.
Tem de ser combatido o lado depreciativo do leve-leve, que apela a uma interpretação literal e simplista da sua autenticidade, dado que o que importa é o que alia a alegria, a serenidade, a paz, o caminhar e guiar com acerto, com a preservação e a adaptação de um leve-leve sem stresse aos valores da modernidade, longe do trekking à máxima velocidade, sem fazer travagem. A fazer jus ao poema aqui escrito (e cantado).
O que também implica não aceitar estradas, ruas e arruamentos com buracos (e que buracos, alguns!), faltas regulares de eletricidade, falhas da internet, como o testemunhei no percurso e chegada ao hotel, no primeiro dia, com reiterações diárias, o que é incompatível, em qualquer circunstância, com um desculpável e condescendente leve-leve. Leve-leve não é isso, não é fazer-se “pequeno” num encolher de ombros resignado, é caminhar com passo certo para conhecer a felicidade.
04.10.24
Joaquim M. M. Patrício