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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 5 a 11 de abril de 2021

 

“Sylvie e Bruno”, de Lewis Carroll, publicado em 1889-93, (trad. portuguesa, Relógio d’Água, 2003) foi o último e o menos conhecido dos livros do autor de “Alice no País das Maravilhas”, mas talvez o mais fascinante…

LITERATURA E ECONOMIA
A história tem todos os ingredientes conhecidos de Carroll e é protagonizado por duas crianças e pelas suas inesperadas reflexões. O autor explica no prefácio o que o anima nesta obra. “Uma vez que percebamos qual é o verdadeiro objetivo na vida — que não é prazer, nem conhecimento, nem sequer a fama(…) — mas que é o desenvolvimento do caráter, a subida a um mais elevado, mais nobre, mais puro estandarte, a construção do homem perfeito — e então, enquanto sentirmos que isso continua, e vai (confiamos) para sempre continuar, a morte não tem para nós nenhum terror; não é uma sombra, mas uma luz; não é um fim, mas um começo!”. Recordamos a obra, a propósito da relação entre Literatura e Economia invocada no último ensaio de Lord Maynard Keynes no livro, já por nós referido, “Ensaios em Persuasão” (Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018) – “Possibilidades Económicas para os nossos netos”… Lorde Keynes, o maior economista do século XX e um dos grandes génios de sempre, refletiu sobre a literatura e a economia no referido ensaio sobre o futuro, no qual chama à colação Lewis Carroll, lembrando o negócio que a Rainha Branca fez com Alice sobre uma compota, mas também o estranho entendimento de um Professor e de um Alfaiate relatado em “Sylvie e Bruno”… E se falamos dessa relação, devemos começar (antes de tudo) por ler o Sermão da Terceira Quarta Feira da Quaresma, de 1669, do nosso Padre António Vieira para percebermos a importância do fenómeno económico, no que às letras escritas diz respeito. Afinal, a economia tem a ver com a “regra da casa” e com o modo como as necessidades humanas são satisfeitas. Eis por que estamos na essência da literatura. E cite-se a passagem de Vieira, em que num subtil jogo de palavras relaciona a adequação entre a utilidade dos bens e as responsabilidades de cada qual. “Quem fez o que devia devia o que fez e ninguém espera paga de pagar o que deve. Se servi, se pelejei, se trabalhei, se venci, fiz o que me devia a mim mesmo; e quem se desempenha de tamanhas dívidas não há de esperar outra paga”. Entre a obrigação e o direito, entre o dever e a paga, entre o serviço e a responsabilidade, temos a essência do que hoje designamos como sustentabilidade – que é a palavra tecnocrática para exprimir o que é natura, enquanto equilíbrio entre a necessidade e o custo.


PROCURA DE EQUILÍBRIO
A economia é exatamente a procura desse equilíbrio – que, mais do que a riqueza, obriga à criação de valor. E como o que tem mais valor é o que não tem preço, estamos na essência das Humanidades, da comunicação entre as pessoas e das Artes como elementos criadores por excelência. Por isso, o Padre Vieira diz-nos que “quem fez o que devia devia o que fez” – do mesmo modo que “ninguém espera paga de pagar o que deve” O barroco jogo de palavras vem exprimir uma ordem simples do que é a capacidade criadora. Pagar o que cada um deve, fazer o que cada um pode, é no fundo, representar a vida como uma relação permanente de cada um com o outro e de todos nas relações que estabelecem entre si. Voltando a Keynes, este lembrava que Alice não gostava da compota que a Rainha lhe queria dar. Mas esta descobriu o estratagema para que a compota fosse recebida, apenas como um valor futuro. De facto, o pensamento económico comporta sempre consideração sobre o futuro. “O homem ‘determinado’, dizia Maynard, está sempre a tentar garantir uma imortalidade falsa e ilusória para os seus atos, empurrando o seu interesse por eles para a frente no tempo”. Eis a chave da narrativa: ligar o tempo presente e o passado ao futuro – como faz Xerazade nas “Mil e Uma Noites”. O que importa para Xerazade é conseguir mais uma noite de vida, estendendo as possibilidades da existência para além do imediato. E estamos aí na essência da narrativa e da literatura. Que é a literatura senão a criação de valor pela compreensão do tempo e da vida. O “homo economicus” de Keynes, que ele considera ‘determinado’ – “não gosta do seu gato, mas dos filhos do seu gato; bem, na verdade, nem dos filhos do seu gato, mas apenas dos filhos dos filhos do seu gato, e assim sucessivamente para todo o sempre até ao fim do reino dos gatos”… E regressando a Lewis Carroll. Para a Rainha “compota não é compota, a não ser que se trate de um caso de compota amanhã: nunca compota hoje”. Como Alice não gosta de compota, a Rainha oferece dois dinheiros por semana e compota dia sim, dia não. Portanto, falamos de compota amanhã ou de compota ontem, mas nunca de compota hoje. E como hoje não é nem ontem nem amanhã, nem sim, nem não, hoje é sempre hoje – nunca há compota hoje. E assim se cria a ficção. Do mesmo modo, como o paradoxo de Zenão, no romance “Sylvie e Bruno”, o alfaiate nunca vai receber a dívida do professor porque o montante da dívida vai sempre duplicar em cada ano – até morrer. E ele vai esperar, porque vale sempre a pena esperar mais um ano para obter o dobro do dinheiro. A lógica, a economia e a literatura digladiam-se e têm sempre um amanhã, como Xerazade e o professor ardentemente desejam, iludindo o alfaiate e o Sultão…


QUE OPORTUNIDADE?
Isabel I de Inglaterra talvez não se tenha apercebido de tudo quando investiu na expedição de Francis Drake da “Corça Dourada”, mas tomou a decisão certa. De facto, cada libra que Drake trouxe para casa em 1580, transformou-se hoje em 100 mil libras, pelo poder dos juros compostos. Mas será que o futuro repetirá o passado? O tempo nunca se repete – e a ilusão do alfaiate, se é a fonte da literatura, vai deparar-se com mil fatores complexos e aleatórios. “O ritmo a que poderemos alcançar (…) o destino da felicidade económica será definido (diz Keynes) por quatro elementos: a nossa capacidade de controlar a população, a nossa resolução de evitar guerras e conflitos internos, a nossa disponibilidade para confiar à ciência a orientação das questões que são do domínio da ciência, e a taxa de acumulação fixada pela margem entre a produção e o consumo. Destes quatro elementos, o último cuidará facilmente de si mesmo, se os três primeiros forem cumpridos”. E eis aqui a chave de todos os mistérios. É que apenas a imaginação e a literatura, por um lado, a inteligência e a capacidade de sermos prudentes a encarar o futuro, por outro, poderão permitir que um destino de felicidade não se torne uma realidade vã…   

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

Alice no pais das maravilhas.jpg

 

"ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS" de LEWIS CARROLL (XXVIII)


“As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” é uma novela de 1865 escrita por Charles Lutwidge Dogson (1832-1898), sob o pseudónimo de Lewis Carroll. Apesar do autor sempre tê-lo negado, a personagem parece identificar-se com Alice Pleasance Lidell (1852-1934), jovem que o autor largamente retratou, filha do Decano de Christ Church da Universidade de Oxford, Henry Lidell.

Trata-se de uma narrativa fantasiosa, com figuras antropomórficas, em que prevalece o raciocínio lógico e a sua crítica, típicos de um professor de matemática. Nesse sentido, a popularidade do livro, nas suas duas partes (“País das Maravilhas” e “Do Outro Lado do Espelho”) deveu-se ao alcance multifacetado dos episódios que relata, que podem ser apreendidos por crianças e adultos, já que o humor pode ser visto na simplicidade infantil ou na apresentação de paradoxos lógicos só compreensíveis por leitores maduros. Trata-se, porém, de um exemplo que reúne o “non-sense”, a fantasia, o absurdo, o cómico e os jogos da lógica, ao alcance de todos… Lewis Carroll foi diácono anglicano, professor, fotógrafo, matemático e escritor, tendo-se celebrizado sobretudo pelo romance de Alice, mas igualmente pelas suas descobertas no campo da lógica matemática.

Alice, num passeio em 4 de julho de 1862, começa por seguir um estranho coelho branco de colete e relógio de bolso para a sua toca e cai num poço cheio de prateleiras com objetos estranhos e livros. No fundo, descobre uma chave dourada sobre uma mesa de vidro, que abre uma porta que dá para um belo jardim, demasiado pequena para que Alice possa entrar. Encontra uma pequena garrafa com uma etiqueta “Bebe-me”. Alice cumpre o pedido, diminui de tamanho e consegue entrar. Mas esquece-se de trazer consigo a chave e o que a salva é um bolo, que a convida a comê-lo, o que lhe permite crescer. O encadeamento das peripécias não pára. Alice chora porque cresceu de mais e cria um lago de lágrimas. O coelho deixa cair as luvas e o leque e Alice consegue diminuir de tamanho ao refrescar-se com o leque, mas cai no lago cheio pelas suas próprias lágrimas, mas um rato ajuda-a a não se afogar e a atravessar o lago… Tudo é, porém, demasiado complicado. Um bizarro dodô (caricatura do autor, Dogson) promove uma corrida eleitoral, em que todos ganham. Alice volta a crescer desmesuradamente. Há os conselhos da lagarta-azul. O Gato Chessire revela o seu misterioso sorriso. E os números matemáticos podem ser vistos como são: duas ou três maçãs ou os algarismos 2 e 3, considerados em abstrato, da mesma maneira que o sorriso do gato, que a certa altura, deixa de fazer parte dele… E chegamos ao Chá dos Loucos, com a Lebre de Março e o Chapeleiro, condenado a beber sempre chá porque o seu relógio ficou parado nas seis horas, “post meridium”. E Carroll tem razão ao falar da loucura como doença profissional dos chapeleiros – pela inalação dos gases do mercúrio, indispensáveis na fabricação dos chapéus de feltro. E nesse mundo perturbado, encontramos referência à mais assisada das lições de Lógica: «afinal, podemos dizer "Vejo o que como", ou de outro modo, "Como o que vejo"!» Cuidamos assim de uma relação inversa… Por sua vez, a Rainha de Copas revela-se irrascível e intolerável. Uma tartaruga falsa (alusão à sopa assim chamada, feita com carne e caldo verde; daí a cabeça de bezerro da ilustração), a quadrilha da lagosta, o julgamento do valete de copas (pelo “terrível” roubo de uma torta), o decisivo depoimento de Alice – e a final demonstração de que a rainha de copas nada pode, para além do mundo da fantasia contra Alice, regressada à realidade… A aparente loucura, que perpassa em todo o sonho, corresponde, afinal, a uma mistura de paradoxos lógicos, de doenças reais, como a do chapeleiro, e de pequenas referências a hábitos e costumes britânicos. E assim, ainda hoje, a obra de Lewis Carroll continua a revelar muitos enigmas, a que a maior parte dos leitores continua indiferente…

 

Agostinho de Morais