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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR


O subúrbio era o lugar que permitia ser aquilo que se quer ser.


No livro “A cidade na História. Suas origens, transformação e perspetivas.” (Martins Fontes, 1998) de Lewis Mumford escreve que a formação do subúrbio coincide com o aparecimento da cidade. A sobrevivência da cidade e do subúrbio depende um do outro. A cidade predominava insalubre e compacta. O subúrbio decorria das necessidades e das deficiências da cidade.


O subúrbio desde cedo significava espaço (ar, verde e sol), natureza, saúde e liberdade. Mumford explica que os deleites do suburbanismo eram, desde o princípio reservados às classes superiores: “…de modo que o subúrbio podia ser descrito quase como a forma urbana coletiva da casa de campo (…) o modo de vida suburbano é, em grande parte, um derivado da vida descansada, jovial e consumidora da aristocracia, que se desenvolveu a partir da existência rude, belicosa e árdua da fortaleza feudal.” (Mumford 1998, 523)


Mumford faz notar que já no tratado de construção de Alberti se achava todo o programa suburbano doméstico dos arquitetos do princípio do séc. XX: retiro conveniente perto da cidade, livre de qualquer tipo de constrangimentos e convenções da sociedade urbana; oferta de ar e possibilidade de contemplação; abertura a prados, bosques, regatos, lagos e ao sol.


O subúrbio era assim o lugar que permitia ser aquilo que se quer ser: “…construir a sua própria casa, única, no meio de uma paisagem única; viver uma vida centralizada em si mesma (…) criar um asilo (…) comandado ainda à vontade dos privilégios e benefícios da sociedade urbana.” (Mumford 1998, 525)


O subúrbio antigo representava um esforço da classe média em encontrar um novo modo de vida segregado e menos formalizado e uma solução para a depressão e desordem da metrópole poluída.


O subúrbio representou, durante algum tempo, pela sua livre utilização do espaço, a antítese da maior parte das cidades históricas do Ocidente. No subúrbio houve uma dispersão da edificação no meio de espaços abertos. As ruas já não formavam corredores fechados. O edifício podia afirmar-se isolado no meio da paisagem. Foi, sobretudo no séc. XIX, que urbanistas e construtores utilizaram o subúrbio como um campo experimental para investigarem novas formas para a cidade de planta aberta com uma nova distribuição de funções.


Mas, Mumford revela que a utopia do subúrbio antigo terminou através do movimento em massa que se deu em direção a essa dispersão e liberdade. Nesse movimento coletivo, visível a partir do séc. XX, produziu-se um novo tipo de desenho suburbano com deficiências evidentes: “…uma multidão de casas uniformes, inidentificáveis, alinhadas de maneira inflexível, a distâncias uniformes, em estradas uniformes, num deserto comunal desprovido de árvores, habitado por pessoas da mesma classe, mesma renda, mesmo grupo de idade, assistindo aos mesmos programas de televisão, comendo os mesmos alimentos pré-fabricados e sem gosto, guardados nas mesmas geladeiras, conformando-se, no aspeto externo como no interno, a uma modelo comum, manufaturado na metrópole central.” (Mumford 1998, 525)


O crescimento em massa sobretudo dos subúrbios norte-americanos, que se deu em meados do séc. XX, levou à atomização, ao isolamento e à fragmentação da vida quotidiana: “…a mudança de dimensões e a difusão de moradias levantou um problema rural mais antigo, o do isolamento; e (…) amplificou a necessidade de transportes por veículos particulares…” (Mumford 1998, 530)


Na opinião de Mumford o subúrbio ao ter sido símbolo de refúgio preservava ilusões. Ali a individualidade podia prosperar sem culpa. Mumford afirma que ainda é a vivência da cidade concentrada que permite naturalmente construir uma consciência social, pelo constante contacto com a diferença e com a complexidade. O subúrbio contemporâneo ao compartimentar só permite o contacto com realidades diversas através da televisão. A televisão, como explica Luísa Sol na tese “A Imagem da cidade e o seu espaço-representado no videoclip da década de oitenta. Interferências norte-americanas na cultura arquitetónica contemporânea dita ocidental.” (Universidade de Lisboa, Faculdade de Arquitetura, 2018) permitiu uma confortável relação com o mundo sem sair do lugar. A partir deste momento, o culto do indivíduo elegeu o ecrã como sendo o novo grande espaço público.


Mumford explica assim que: “…as diferenças operativas entre o subúrbio contemporâneo e a grande cidade tornam-se cada vez mais minúsculas, pois naqueles ambientes aparentemente diferentes, a realidade tem sido gradativamente reduzida àquilo que é filtrado da tela do televisor.” (Mumford 1998, 536)


Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

O espaço urbano e o encontro do eu mais profundo.

 

‘A cidade favorece a arte, é a própria arte.’, Lewis Mumford

 

Giulio Carlo Argan, em ‘História da Arte como História da Cidade’, declara que a arte pode revelar a experiência urbana individual real. Diz ainda que Gaston Bachelard (no livro ‘The Poetics of Space’) ao estudar a casa da infância constrói um modelo sobre o qual se funda grande parte da psicologia individual – isto é, um modelo onde se constroem as imagens mais profundas de espaço e de tempo.

 

Desde muito cedo, a arquitetura (real ou imaginada) é motivo de pintura. A presença da arquitetura permite situar o homem no seu contexto temporal, social, político, histórico, moral e sensível. A propósito da exposição ‘Building the picture: Architecture in Italian Renaissance Painting.’, que esteve patente na National Gallery em Londres, em 2014, Peter Zumthor em entrevista afirma que os objetos arquitetónicos são de facto sempre concretos e nunca abstratos porém têm de ter a forma de uma alma.

 

Neste contexto, o espaço arquitetónico (no qual também está incluído o espaço urbano) é entendido como um campo de mútua interação entre a esfera espiritual e a esfera física. Segundo Argan, o espaço urbano é por excelência um espaço visual. E por isso, existe uma infinita variedade de valores simbólicos que os dados visuais do contexto urbano podem assumir em cada indivíduo. E a arte existe como modo de acentuar a memória, a identidade, o tempo e o lugar do homem. E assim ajudar na construção da alma da cada indivíduo.

 

O conceito de espaço arquitetónico - ideal (abstrato, puro) e real (físico, vivencial) – aproxima-se da arte. O homem é o elemento central da arquitetura. A arquitetura é uma disciplina que tem a capacidade de cruzar o sensível com o inteligível, o corpo e o mundo, a intuição e racionalidade. E da relação e do entendimento do homem com o espaço pode surgir o encontro com o seu eu mais profundo.

 

No texto ‘Walking’ de James Hillman, a cidade é, por excelência lugar de reflexão. É manifesto de profundidade, onde perceção se confronta com sensação. A realidade é, segundo Hillman, construtora do eu. Em períodos de maior perturbação psicológica, andar pode atuar como terapia. Andar permite o fluir dos pensamentos, a clarificação das ideias, o encontro com o princípio da vida (‘As we walk, we are in the world, finding ourselves in a particular space. If we cannot walk, where will the mind go?’). Mas pode a cidade permitir esta cura psicológica? A cidade tem de oferecer desafios para a alma, implicando descobertas sucessivas – ‘When we no longer walk, what happens to the soul? I am as I move’ ‘…the foot should never travel to it by the same path which the eye has travelled over before…’ ‘…stopping the progress of the walk, forcing the foot to turn and the mind to reflect’.

 

James Hillman propõe resolver os mistérios da natureza humana. A vida humana segue uma imagem particular – o Homem tem um destino, tem um fazer e um ser individual que pertence à espírito e não ao corpo. O Homem não consegue descobrir a extensão da sua alma, tão profunda é a sua natureza. Do que o Homem fizer na sua vida dependerá que se torne ‘alma pura’.

 

A inspiração é o encontro absoluto do Homem consigo próprio. O movimento das coisas do mundo aparentemente simples leva ao fundo do ser. Essas coisas têm de aceitar as projeções do Homem, experimentar sentimentos, recordações e intenções. Precisam de subjetividade e profundidade para que se associem à procura do Homem pela sua alma. Para que a cidade pertença ao Homem tem de se tornar identificável e permitir o fluir do conhecimento do eu (lugar de reflexão) através do confronto com os outros (lugar de relações humanas). A cidade ao ser objeto identificável pode ser construtora da alma.

 

Ana Ruepp