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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Após poucos dias de canícula, saboreio um agosto mestiço, com janelas semiabertas, para que cá por casa corra também uma refrescante aragem a pedir-nos recosto e leitura amena... Já vai meridiana a manhã, nem dei pelos marcadores do tempo, apenas agora vejo que vão sendo horas de me pôr a cozinhar, serviço doméstico que assumo desde que vim para o campo a tempo inteiro. Mas antes de arregaçar mangas e pôr avental (que não é azul...) quero deixar-te um curioso poema de Du Fu, um dos vates maiores, com o seu tão diferente amigo Li Bai, da poesia da dinastia Tang, como te contava na última carta. Dá-se até o caso de ser essa oitava intitulada Em Dia de Primavera, Pensando em Li Bai... Reza assim, na minha versão portuguesa:

 

               É sem rival a poesia de Li Bai

               Nada se compara à sua elevação!

               É natural e criativo como Yu Xin,

               Majestoso e aéreo como Bao Zhao...

               Árvore primaveril, a norte da Wei,

               nuvem crepuscular a leste do rio,

               quando virá o dia de juntarmos poesia,

               Com um jarro de vinho por companhia? 

 

   Explica-nos Florence Hu-Sterk, tradutora (chinês-francês) e anotadora deste poema para a edição da Bibliothèque de la Pléiade (Anthologie de la Poésie Chinoise, Gallimard, 2015), que Du Fu presta homenagem a Li Bai comparando-o a dois grandes poetas da era das Seis Dinastias, Yu Xin (513-581) e Bao Zhao (414-466), sendo que o estilo imaginativo deste último muito influenciou Li Bai (que o cita 114 vezes nas suas obras). Diz-nos também que, em 746, Du Fu, árvore primaveril, estaria enraizado em Chang´an, a norte da Wei, e Li Bai a leste do rio azul, errante como nuvem crepuscular...

 

   Mas, ainda que distantes no modo de poetar, quiçá no pensarsentir a vida e a ordem do dever, como diversos foram os seus fados, Li Bai e Du Fu comungam no mesmo gosto da contemplação como intuição de tudo, e na partilha desta pela amizade. Pois que contemplar o ser e a sua circunstância não é modo de fuga, antes é ir mais ao fundo do risco que a surpresa traz. Como neste poema de Du Fu, que traduzo duma versão francesa de François Cheng, ilustrada por caligrafia de Fabienne Verdier (Albin Michel, Paris, 2000):

 

               Sozinho me delicio

               com o desabrochar das flores

               à beira rio

 

               À beira rio,

               o infinito

               milagre das flores.

 

               E se a outrem me confiasse

               para não dar em louco?

 

               Vou a casa do vizinho

               meu companheiro de vinho:

               mas saiu para ir beber,

               faz já dez dias.

               Deixou cama por fazer...

  

               Não é que eu ame as flores

               para morrer por elas...

 

               Eis o meu receio:

               beleza que se apaga,

               velhice que se achega!

 

               Ramos carregados:

               queda de flores aos cachos!

 

               Tenros rebentos se concertam

               para suavemente se abrirem...

 

   Livre e desapegado, até boémio, como era e sempre escolhia ser, Li Bai, por muitos admiradores, protetores e amigos que granjeasse, não escapou a momentos difíceis de ultrapassar, a perseguições e exílios, já que os poderes não apreciam independências do s espíritos... Em dois poemas, quais cartas ditadas por sonho amigo, Du Fu recorda Li Bai, inquieta-se e pergunta por ele, deseja-lhe a glória para além da morte: Meng Li Bai er shou, ou, em português, Sonhando com Li Bai.

 

               Separados pela morte, soluços engolidos;

               separados pela vida, tormento infinito.

               Do sul do Rio, roído pela febre,

               sem qualquer notícia do viajante banido,

               esse velho amigo me aparece em sonhos,

               sabendo quanto e quanto penso nele.

               Assim, agora preso numa rede,

               como conseguiste libertar as asas?

               É longa a estrada, incomensurável.

               Possa a tua alma ser a de quem vive,

               a vir por bosques de bordos glaucos,

               atravessando portagens de fronteiras negras.

               Cai a lua e inunda as traves do teto,

               e logo imagino o teu rosto iluminado.

               Águas profundas, vagas poderosas,

               possam poupar-te os dragões marinhos!

 

               Leves se seguem as nuvens pelo ar,

               mas não trazem de volta o viajante.

               Por três noites seguidas sonhei contigo,

               sinal da tua profunda amizade.

               Cada partida parecia perturbar-te,

               e lamentavas as durezas da viagem.

               Estavam tão bravios os lagos e os rios...

               Receavas perder o rumo ao barco.

               Ao chegar, coçaste a cabeça encanecida,

               quiçá desiludido pela ambição de uma vida.

               A capital foi invadida por dignitários,

               só tu te vergavas ao peso de cismas.

               Quem te disse que a justiça divina é clemente?

               Afinal, já velho, cobriram-te de vexames.

               Fama que dure mil, dez mil outonos,

               Só depois de morto a ganharás!

 

   A intemporalidade universal da amizade e do teor destes poemas ocorreu-me esta manhã, ao sair da cama, quando reli esta frase de uma carta de Hannah Arendt à sua amiga Mary McCarthy, com data de 10 de março de 1975, na página que tinha deixado aberta à cabeceira: Sempre acreditei que somos o que vivemos...

 

Camilo Maria    

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Enviei a amigos a minha tradução, a partir da versão francesa publicada pela Bibliothèque de la Pléiade, do belo poema do dao original que canta a água e que, extraído do Huainan zi, inseri na minha-tua última carta. Apreciado por muitos, despertou especial curiosidade entre alguns, como o João Paiva Boléo. Vou então desvendar parte do meu esforço suplementar de aproximação ao original chinês, apesar de só ser capaz de traduzir a partir de versões em línguas europeias, dada a minha ignorância da língua sínica. Faço-o com simpatia pelo interesse manifestado - e pela diferença que as minhas versões de textos originalmente chineses têm relativamente às que ouso fazer do japonês (de que já te descrevi o processo, com recurso ao dicionário universal de japonês-português do meu velho amigo padre Jaime Cepeda Coelho (jesuíta transmontano, atrevido cidadão luso-nipónico) e a compêndios de transcrição fonética e caligrafia sino-japónica, além das transcrições em romaji (caracteres latinos), iniciada pelos jesuítas portugueses no século XVI). Da língua chinesa, nem sequer conheço os sons de leitura dos caracteres (apesar dos muitos kanji que posso ler e entender por via nipónica), o que me obriga a, quando possível, recorrer ao precioso auxílio do meu mestre (nunca o vi em pessoa, mas li-o muito) François Cheng, como mostro no exemplo exercitado abaixo. Antes, porém, e para te ajudar a melhor me compreenderes, do mesmo Cheng te deixo um pequeno trecho do seu L´écriture poétique chinoise (Seuil, Paris, 1996):

 

   Independente do som e invariável, formando em si uma unidade, cada signo fica com a oportunidade de permanecer soberano e, como tal, durar. Eis, desde a origem, uma escrita que se recusa a ser simples suporte da língua falada: o seu desenvolvimento é uma longa luta pela autonomia, e pela liberdade de combinação. (Em cartas passadas, Princesa, também procurei explicar-te estes "achados"]. Revela-se desde a origem esta relação contraditória, dialética, entre os sons representados e a presença física a tender para o movimento gestual, entre a exigência da linearidade e o desejo de uma evasão espacial. Poder-se-á falar de "insensato desafio" por parte dos chineses em manter tal "contradição", isto durante quase quarenta séculos? Trata-se, em qualquer caso, de espantosíssima aventura: pode dizer-se que, pela sua escrita, os chineses ganharam uma aposta singular, de que os maiores beneficiários foram os poetas.

 

   Na verdade, graças a essa escrita, foi-nos transmitido um canto ininterrupto há mais de três mil anos. [O Shi-jing ou Livro da Poesia, primeira seleta de cantos a inaugurar a literatura chinesa, contém peças datadas do primeiro milenário a.C.]. Esse canto, no início intimamente ligado à dança sacra e aos trabalhos do campo ritmados pelas estações, conheceu mais tarde muitas metamorfoses. Na nascente destas está precisamente essa mesmíssima escrita que engendrou uma linguagem poética profundamente original. Toda a poesia dos Tang é um cântico escrito, tanto quanto uma escrita cantada. Através dos sinais, obedecendo sempre a um ritmo primordial, uma palavra explodiu e extravasou por todo lado o seu ato de significância. Cercar primeiro a realidade desses signos, o que são os ideogramas chineses, a sua natureza específica, os seus laços com outras práticas significantes é realçar traços essenciais da poesia chinesa.

 

   Como não tenho - e assim tal qual te lo disse em cartas passadas, sobretudo quanto a traduções ou análises de textos japoneses - possibilidade de escrever aqui outros caracteres além dos nossos latinos, passo à demonstração da versão de um poema de Wang Bo para francês, feita por François Cheng, escamoteando o texto original em caracteres sínicos, mas mantendo a literal tradução do mesmo, paralelamente à versão literária final, em língua francesa, pelo mesmo autor. O título

do poema é, em qualquer língua, O Vento. Logo de seguida, apresento a minha versão portuguesa, composta a partir das duas de François Cheng, a sino-francesa, literal, e a francesa livre, literária:

 

 

Su-su / fraîches ombres naître
Accroître en moi / bois-vallon pureté
Chassant fumée / chercher torrent logis 
Roulant brume / franchir montagne piliers
Aller-venir / toujours sans trace       
Se mouvoir-s´arrêter / comme y avoir sentiment     
Soleil couchant / mont-fleuve calme  
Pour vous / susciter pins bruissement.      
Susurre le vent: ombres, fraîcheurs
Purifiant pour moi vallons et bois
Il fouille, près du torrent, la fumée d´un logis
Et porte la brume hors des piliers de montagne
Allant, venant, sans jamais laisser de traces
S´élève, s´apaise, comme mû par un désir
Face au couchant, fleuve et mont se calment:
Pour vous il éveille le chant des pins.

                                                                                                             

Num sussurro o vento faz nascer frescas sombras

e crescer em mim a pureza de bosques e vales.

Enrola em bruma o fumo dum lar ribeirinho 

e sopra-o para além dos montes próximos.

E assim num vai-vem, sem nunca deixar rasto,

ora agita ora amaina, sentindo apenas.

E ao sol poente sossega os montes e os rios,

para ti despertando o murmúrio dos pinhais...

 

 



   Eis um poema Tang no modo Lü Shi, isto é, de poesia regrada, aqui em oitavas. Em português, só pelo que gostei nessas palavras até capazes de falar caladas, em jeito de meditação silenciosa que, tal como o vento do poema chinês, nele tão só procura uma comunhão no sentimento. Traduzo, isto é, trago-te o que e o como senti.

 

Camilo Maria 

 

 

Minha Princesa de mim:

 

   A dinastia Tang (618-907) acolheu uma era de ouro da arte poética chinesa. Logo no seu período inicial (618-712) se destacam os poetas conhecidos como "Os Quatro Talentos", entre eles o "nosso" Wang Bo (650-676), de que, em carta anterior te enviei O Vento... Confesso jamais ter pensado que algum dia me apaixonaria pela poesia antiga do Celeste Império que, aliás, me invadiu, pelo gosto literário, a minha busca da imanência de Deus, no sentido da presença mística do uno inicial. Já nos meus dezassete anos traduzia, para português, Teilhard de Chardin, que em mim deixou raízes. E, na poesia solar de Sophia de Mello Breyner, cedo percebi aquilo que, curiosamente, numa entrevista, que hoje li, do jornal Público ao comunista editor da Caminho, Zeferino Coelho, este filósofo de formação afirmava: O modo como ela  [a Sophia] entende a poesia e as preocupações que estão por detrás da elaboração poética; e, sobretudo, uma tradição muito alemã, que arranca com o Novalis e que é, no fundo, a morte de Deus depois do Iluminismo, a impossibilidade de acreditar em Deus, o sentimento de perda que isso acarreta a quem isso acontece e a tentativa de, através da poesia, restabelecer essa unidade com o mundo. Ela teoriza isso. Há quase toda uma teologia na obra de Sophia.- Sendo ela católica. - Exacto , com uma contradição enorme. Uma vez atrevi-me a dizer-lhe que havia uma contradição nela. Católica e seriamente católica, acredita num deus católico, que é um deus transcendente, que cria o mundo mas está fora dele , e toda a sua poesia é a exaltação do divino como inerente ao mundo material; o divino é a perfeição da curva da onda, a elegância da haste do trigo. Na natureza e no construído pelo homem, como as colunas de Sunion. Uma das filhas dela ouviu-me dizer isso e não gostou. Mas isto está muito por descobrir e a poesia dela não é valorizada.

 

   Para me ater apenas a Teilhard e Sophia, digo-te, Princesa de mim, que, seis décadas atrás, intuí com o primeiro o que, para me servir das palavras de Zeferino Coelho, a poesia da segunda anuncia enquanto exaltação do divino como inerente ao mundo material. E posso ainda invocar S. Francisco de Assis e o seu Laudato sì, ou, do lado de lá do planeta e da nossa cultura, o François Cheng que, precisamente em Assis, percebeu essa síntese da intimidade do dao e do universo com a transcendência imanente do Deus a quem Jesus chama Pai. Em muitas cartas te falo disso, como da Estranha Ordem das Coisas do António Damásio, ou da fé como substância das coisas que hão de vir... Vejo muito maior contradição entre a visão de um Deus transcendente que, todavia, pode ir intervindo a curar maleitas, arranjar empregos ou ganhar guerras, e a ideia evangélica de que a única parte do Reino que é deste mundo é a presença de Deus no mistério inicial de tudo e na nossa comunhão com o universo, bem como no amor que soubermos partilhar.

 

  Voltando aos grandes poetas da era Tang, e em resposta a perguntas tuas, deixo-te apenas breves notas. A par de Li Bo (ou Li Bai) considera-se Du Fu, seu contemporâneo e amigo, o outro maior. Mas enquanto o primeiro, no dizer de François Cheng, era um apaixonado pela liberdade taoista, o segundo aplicava-se a empenhar a sua conduta conformemente ao ideal confucionista, o que fez dele o grande mestre do lu-shi, ou poesia regrada, complementarmente ao primeiro, que se sentia mais à vontade no gu-ti ou poesia castiça, à moda antiga. Este Li Bo, reza a lenda, gostava da boémia e bebia melhor do que gostava de provar. Talvez por isso tenha, em noite etílica, morrido afogado por ter querido agarrar a lua espelhada nas águas do rio por onde navegava. Sobre a lua e o luar nas artes e letras da China e do Japão talvez um dia te escreva uma carta. Por hoje, deixo-te tão só uma maravilhosa "quadra" de Li Bai, que livremente traduzi: 

 

               Aos pés da cama se deitou o luar,

               como fria geada a cobrir o chão.

               Ergo os olhos e vejo o esplendor da lua.

               Baixo-os e encontro a terra de meus pais.                                                      

 


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira