Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Vasco Graça Moura © José Coelho/Lusa


210. LIBERDADE PARA UMA OPINIÃO LIVRE E ESCLARECIDA


“Não sinto propriamente a obrigação de, como escritor, fazer ouvir a minha voz como exercício de uma dada responsabilidade de intervenção cívica. Isso pode, na prática, acontecer ou não, mas não terá de obedecer a um programa ou a uma contrição ideológica. No meu caso, não obedece com certeza. As minhas responsabilidades enquanto cidadão não têm forçosamente de irromper ou de se projetar nas minhas produções enquanto escritor. Mas admito perfeitamente que haja quem pense ter essa responsabilidade nos termos enunciados e o faça em coerência com tais conceções. Tanto uma opção como outra devem ser estritamente respeitadas por toda a gente”
(Vasco Graça Moura, JL n.º 1105, sublinhado nosso).

A formação de uma opinião livre e esclarecida é essencial numa sociedade democrática, onde a liberdade de expressão, informação e de criação artística serão maiores quanto maior o seu grau e valor. 

No culto dessa liberdade o que mais nos deve entusiasmar é o que não sabemos (não o que sabemos), com experimentação e consequências em todas as artes e saberes, sabendo interpretar a beleza e a criatividade associadas ao 25 de abril e fazendo valer a liberdade pela liberdade e a arte pela arte.   

Há que contrariar  qualquer tarefa autoritária, ditatorial ou oficial de fixação de dogmas e normas ideológicas a que as artes, artistas, investigadores e opinião pública se devem submeter através da imposição de uma arte ou ideologia estadual, tendo-os como um mero meio ou instrumento de transformar a sociedade para fins utilitários ou deterministas, e não como um fim em si mesmo.       

Mesmo sabendo-se que a criatividade, enquanto elemento de combate e de intervenção, pode ser um modo especial e extremamente eficaz de luta pela liberdade a favor dos oprimidos e mais desfavorecidos, isso não nos legitima a respeitar apenas uma opção, proibindo a outra, dado sabermos que sempre houve quem preferisse o campo dos dominadores, dos opressores ou dos indiferentes e tivesse elaborado e deixado uma obra que perdurará.


25.04.25
Joaquim M. M. Patrício

AS LUZES DE LEONOR

  


Um dia, sua mãe chamou-a à salinha onde recebia as amigas e ouvia música e apontou para um livro que estava sobre a mesinha baixa, e disse-lhe assinalando «uma página onde estava o retrato de uma mulher fascinante no seu vestido antigo, sorriso de fatalidade, pérolas entrançadas nos cabelos e olhar de enigma: “Esta  mulher é a tua avó e foi uma grande poetisa”. Nesse dia, a Leonor entrou na minha vida». É Maria Teresa Horta quem o diz. A mulher fascinante era Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna. E eu abro o meu volume do romance extraordinário As Luzes de Leonor e leio a dedicatória da autora: “… este livro de poetas e anjos, mas sobretudo da maravilhosa Leonor de Almeida…” E é com profunda saudade que recordo essas palavras e quem as escreveu, que resumem duzentos anos de lembranças. E oiço: “Sou tua espia / Sou tua neta / Tua vigia // Sou tua asa / Sou tua guia / Tua passagem //Crio-te a fresta / Abro-te a porta / Teço-te a aura” (in Poemas para Leonor, 2012). Numa obra apaixonante, vasta e plural, lemos o livro segundo o conselho da autora, pela história dos Távoras ou pela história de Leonor, que esteve em reclusão no Convento de S. Félix de Chelas durante dezoito anos, “pela suprema vontade de um déspota” que determinou a sua existência, pois ao condenar à morte os avós Távora, ao prender o pai nas masmorras da Junqueira e “ao mandar enclausurar a minha mãe num mosteiro, comigo e a mana Maria no rasto e sombra da sua saia, julgou Sebastião José de Carvalho e Melo salgar o chão do meu destino”. E as palavras fluem naturalmente. “Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes, a visões, a premonições, a adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as profecias, veem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado sombrio do seu mundo interior…” Deparamo-nos com o cego destino e o fanatismo que o domina, mas Leonor cultiva as Luzes e ama a liberdade. Lê Rousseau, Voltaire, Pope, Locke e Leibniz. Todos eles levam a questionar a autoridade do poder despótico, no qual “todo o sistema de educação se dirige ao temor e à vileza”. E Leonor confessa a seu pai: “Eu não acredito no destino, a vida é aquela que nós traçamos por decisão própria e nossa vontade”. E que melhor modo de exprimir o que vai na alma senão a poesia? Francisco Manuel do Nascimento lê o que Leonor escreve: “Li teus versos, Alcipe, e quando os lia / Bem cri que com a História conversava”. E a resposta não se faz esperar, batizando Alcipe seu interlocutor de Elísio, nome que ele junta a Filinto. Leonor sente a força do sentimento, mas no ambiente conventual torna-se “perigosa no querer passar para além do seu limite”,  - “alma nunca aplacada , gémea da tempestade, torvelinho e desacerto, novelo de muita água”. A poesia e o pensamento entusiasmam-na. Maria Teresa Horta segue com intensidade e amor os caminhos de Leonor e põe na sua boca as palavras que sente. “Não gosto, não consinto, não aceito: o negrume, a obediência cega. O torpor, a ignorância, o perdimento”. Terminado o pesadelo de Pombal, Leonor torna-se admirada na Corte e D. Maria I trá-la para junto de si. Casada com o conde de Oeynhausen, consegue para o marido a Embaixada em Viena, iniciando uma vida intensa e agitada. E seguindo-a Maria Teresa Horta deixou-nos uma obra-prima e um autorretrato sublime, pleno de audácia e inconformismo.


GOM

AUDÁCIA E MODERNIDADE

  


Eduardo Marçal Grilo acaba de lançar uma obra que merece especial atenção pela dimensão histórica e pelo contributo inestimável para a compreensão da importância da prioridade dada à Educação nos dias de hoje. Educação e Liberdade – A primavera de Veiga Simão, os desmandos do PREC e a renovação de Sottomayor Cardia (Clube do Autor, 2024) é um livro em que nos deparamos com uma análise serena e objetiva, com pormenores muito significativos, capazes de fazer luz sobre a génese das mudanças operadas em momentos decisivos da construção da nossa democracia. Não se trata, por isso, apenas de uma análise historiográfica, mas de uma reflexão crítica, uma vez que o autor tem provas dadas de uma preocupação permanente com a necessidade de um reformismo atuante, gradualista, a um tempo prudente e audaz. No caso da “primavera” de Veiga Simão, acompanhamos um caminho fértil, quer nos ensinos básico e secundário, quer no ensino superior. A experiência de Lourenço Marques do antigo reitor da Universidade tornado Ministro com Marcelo Caetano revela-se de grande utilidade, somando-se a uma arguta compreensão da necessidade de fazer entrar a sociedade na democracia. Daí todas as resistências e incompreensões, mas também as dúvidas e hesitações.

Partimos de dois documentos essenciais de Veiga Simão de 1971: o projeto de Sistema Escolar e as linhas gerais de Reforma do Ensino Superior. No primeiro, a escolaridade obrigatória deveria ser estendida de seis para oito anos, o que não avançaria senão em 1986, para os nove anos da Lei de Bases; o ensino secundário envolveria os liceus clássico, técnico e artístico e o ensino superior seria ministrado em universidades, institutos superiores politécnicos e outros estabelecimentos de ensino superior. Rompendo com a ideia da impossibilidade de autorreforma, as novas universidades foram uma resposta com virtualidades claras que chegam aos nossos dias, e que o autor conhece como ninguém. Houve que intervir renovando a estrutura, e foi o que aconteceu. Francisco Sá Carneiro diria, aliás, com justiça, em 1973, depois de renunciar ao mandato na Ala Liberal, que o setor da Educação Nacional foi o que se revelou mais dinâmico e renovador. Depois de 25 de Abril, as lições da Revolução foram muito duras, obrigando, porém, segundo o autor, a um grande pragmatismo e à defesa dos valores em que se acredita. No I Governo Constitucional, Sottomayor Cardia “entrou no Ministério como um tufão, capaz de derrubar as estruturas que tinham sido erguidas durante o período revolucionário”. O seu papel foi fundamental nos dois anos em que esteve no ministério, empenhando-se na regulamentação da gestão das universidades e das escolas, na definição das questões do ensino da Medicina, na restruturação da Universidade Nova, na educação pré-escolar, no lançamento dos fundamentos de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo ou na atenção ao ensino superior privado. Ao lermos esta obra, indispensável para a compreensão dos avanços significativos alcançados no domínio educativo, ressaltam três referencias – a personalidade de Veiga Simão e a sua orientação estratégica num sentido de abertura e de modernização; a determinação de Mário Sottomayor Cardia em estabilizar uma orientação reformista democrática no campo da educação e a perspetiva assumida por Eduardo Marçal Grilo num sentido de exigência e rigor, com compreensão dos poderosos desafios de modernização, de desenvolvimento humano e de internacionalização.


GOM

CULTURA E LIBERDADE

  
Sophia de Mello Breyner Andresen © António Cotrim /Lusa 2007 


Dedico a crónica de hoje à memória de um amigo que nos deixou inesperadamente, quando tínhamos vários compromissos a realizar, graças ao seu entusiasmo e à sua inteligência. João Diogo Nunes Barata foi um grande embaixador de Portugal, com quem trabalhei de perto no gabinete de Mário Soares como Presidente da República, tendo desde então continuado uma excelente cumplicidade cívica e cultural, que culminou agora no Grémio Literário. Numa das muitas conversas que tivemos recordámos a extraordinária personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen, que bem conhecemos, amiga muito próxima de Mário Soares e Maria Barroso, espírito livre, que na sua aparente distração era a mais arguta analista da humanidade e da vida, que tanto partilhava as agruras domésticas como o diálogo com o melhor da humanidade. Quando lemos, por exemplo, os seus discursos na Assembleia Constituinte, sentimos um frémito, uma vez que as suas palavras ecoam sem uma ruga com marcas de eternidade. Lidas hoje, nada temos a acrescentar, e contrastam quer com as mil palavras de circunstância que o vento leva, quer com a vulgaridade que nos invade da politiquice de todos os dias. E João Diogo recordava estas lapidares palavras proferidas no hemiciclo de S. Bento: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2.9.1975). Afinal, a luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. (…) Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra dogmatismos indiscutíveis e maximalismos irreais. Por isso, importava atacar o “poder totalitário”, onde quer que esteja, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. E se falava de cultura, também importava referir a educação como objetivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderia encontrar-se para falar da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola o lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade. E João Diogo lembrava, quando era embaixador em Moscovo, o nosso memorável encontro com Mário Soares, quando nos fotografámos simbolicamente com o retrato de Jaime Batalha Reis, o embaixador português aquando da revolução de 1917, em homenagem ao espírito emancipador da geração de 1870 e à liberdade. Há quanto tempo…


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
Jimmy Stewart em "Mr. Smith goes to Washington"


190. A GEOMETRIA VARIÁVEL NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO


Se a liberdade de expressão implica a liberdade do outro se poder exprimir, exige ter de ouvir o que não gostamos, aceitar a controvérsia e a discussão, dado que, quando não é assim, não somos incomodados, questionados ou perseguidos, limitando-nos a aceitar o que é a norma e o usual, não havendo liberdade.       

Sendo um direito de geometria variável, é difícil definir até onde pode ir, tendo de ser avaliada caso a caso e no seu contexto, havendo vários graus de avaliação e de aplicação.     

Se aceitamos ser redundante o questionamento sobre gostos e que é supérfluo levá-lo a tribunal, desde que não seja um crime ou uma ilegalidade, também o é se uma pessoa razoável, naquele contexto e caso concreto, não acreditar que o que ouviu, foi dito, escrito ou publicado não corresponde à verdade, uma vez estarmos perante uma paródia humorística, literária, sarcástica ou satírica, de mau gosto, escárnio e maldizer, caricaturando, criticando e ridicularizando em tom cáustico e mordaz, ou provocando o riso.             

O mesmo releva se levarmos a sério o direito à asneira quanto a uma ancestral e longa plêiade de anedotas, clichês, estereótipos, preconceitos, vulgaridades, dizeres e lugares-comuns, transversal a todos os países, que não têm potencial ofensivo, difamatório ou injurioso, em termos criminais ou de mera ilegalidade.     

São de proibir, porque atentatórios e ofensivas da liberdade de expressão, anedotas, fábulas, histórias, adágios, provérbios, ditados populares, preconceituosos e sem qualquer validade científica, sobre alentejanos, algarvios, minhotos, portuenses, lisboetas alfacinhas, queques da linha, portugas em geral, judeus, monhés, chineses, pretos, branquelas?

Trata-se de expressões ou situações vulgares e preconceituosas, com as quais podemos não concordar, mas sem potencial ofensivo, não discriminando negativamente e de modo essencial os visados, não os humilhando de tal modo que seja posta em causa, de forma grave, a sua dignidade e segurança, sob pena de amputarmos e proibirmos a liberdade de expressão, só porque uma apreciação pessoal ou generalizada nos incomoda, mesmo reconhecendo que se trata de uma opinião/vulgarização ignorante e injusta.  

O melhor meio de superar esses chavões e preconceitos é exercer a liberdade de expressão com sentido crítico, escrutinando e reduzindo ao ridículo a asnice, o disparate, o preconceito e a tolice, cada um por si e ouvindo os outros, sem necessidade de arautos do politicamente correto e de uma presumível superioridade ética, intelectual e moral.


27.09.24
Joaquim M. M. Patrício

O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (4)

FOTO DN_ Reinaldo Rodrigues - Global Imagens.jpg

 

4.  Somos livres?

 

Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.

Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos mesmos termos ou não.

Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos neuronais inconscientes?

De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público um “Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro” - cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’? Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.” É preciso continuar as investigações, no sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se compreende com exactidão como está construída.”

A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade?  Ele seria possível?  

Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e que é elucidativo e obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”

O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade – não implica a espontaneidade a necessidade?

A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo. Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim (já ouvi uma criança de seis anos dizer à mãe: “tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.

É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.

Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”, segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais.  Como diz P. Bieri – ver de novo citação em O princípio de todas as coisas --, “é inútil procurar na textura material de um quadro o representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade nem falta de liberdade. Do ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”

Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente, responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir verdadeiramente?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 31 de agosto de 2024

CADA TERRA COM SEU USO

folhetim 24.jpg

 

XXIV.  Democracia e opção europeia

 

Quando lembramos as datas fundamentais do constitucionalismo português (1820, 1834, 1910 e 1974), verificamos que correspondem à necessidade de concretizar a democracia como permanente atenção à liberdade, à responsabilidade e à participação, enquanto cidadania ativa, como respeito mútuo e defesa dos valores éticos. Em 1820 e na Constituição de 1822 o absolutismo cedeu lugar à soberania dos cidadãos e à separação, interdependência e limitação dos poderes. Depois da guerra civil, a causa de D. Pedro e de D. Maria da Glória viu reconhecida a vitória da liberdade em Évora Monte e a Carta Constitucional de 1826 pôde renovar o caminho para o Estado liberal, graças à Constituição de 1838 e ao Ato Adicional à Carta de 1852, que permitiram à Regeneração modernizar o País, aproximá-lo da Europa e pôr a tónica no primado da lei e na liberdade de opinião, sendo a proibição ocorrida nas Conferências do Casino de 1871 uma singular exceção, que levou à solidariedade entre os jovens amigos de Antero de Quental e a primeira geração romântica, representada por Alexandre Herculano. A República de 1910 e o republicanismo, de que foi símbolo a “Renascença Portuguesa”, representou a procura de um novo alento para os valores democráticos. Daí a necessidade de compreendermos o que Jaime Cortesão afirma sobre a importância dos fatores democráticos na formação de Portugal (envolvendo a independência da nação, a legitimidade das Cortes de Coimbra de 1385, a aclamação de D. João I, o municipalismo, os descobrimentos, a Restauração e a proclamação da liberdade) – consumados no constitucionalismo.

 

Após a ditadura (1926-1974), ao chegarmos a 25 de abril de 1974, tratou-se de fazer renascer a democracia em toda a sua vitalidade num contexto europeu e no concerto das nações, pela autodeterminação e independência dos países de língua oficial portuguesa. Em 1820, com todas as vicissitudes conhecidas, renovou-se a tradição portuguesa, a um tempo fiel ao espírito de independência de D. Afonso Henriques e de D. Dinis, e à audácia de 1383-1385 e da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, mas também às tradições do povo e à expansão da língua portuguesa em todos os continentes. A democracia e o constitucionalismo não são obra do acaso, mas de trabalho persistente e de grandes responsabilidades. A opção europeia, a “Europa Connosco” de Mário Soares (1976), com a adesão de pleno direito a partir de 1986 às Comunidades Europeias, hoje União Europeia, e a entrada na moeda europeia, o Euro, depois de 2001 fazem pleno sentido no âmbito da afirmação da identidade democrática de Portugal no âmbito da cooperação entre Estados e cidadãos soberanos e livres, para quem a cultura é um fator de emancipação e desenvolvimento. Fiel às raízes históricas de uma identidade de nove séculos, Portugal, a cultura e a língua afirmam-se como realidades abertas e acolhedoras, em nome da diversidade matricial de um cadinho de várias influências. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis a chave desta convergência de fatores. Nas artes e na literatura, na educação, na cultura e na ciência, Portugal afirma-se através de nomes como Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, José Régio, Alves Redol, José Cardoso Pires, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, David Mourão-Ferreira, Augusto Abelaira, José Saramago, António Lobo Antunes, Manuel António Pina, Lídia Jorge, Nuno Júdice ou de artistas como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, Ângelo de Sousa, Graça Morais, Siza Vieira, mas também Agustina Bessa-Luís, Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Isabel da Nóbrega, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. A atribuição a José Saramago do Prémio Nobel da Literatura em 1998 é corolário da afirmação da cultura da língua portuguesa como marca do Portugal democrático.

 

As marcas da contemporaneidade portuguesa são a abertura e a liberdade. O primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício e a justiça como valor ético – distributiva e intergeracional – constituem os elementos cruciais de uma cultura de respeito mútuo, de solidariedade e de proximidade, centrada na dignidade da pessoa humana.

Agostinho de Morais

 

 

» Cada Terra com seu Uso no Facebook

 

CRÓNICA DA CULTURA

  


A sombra suplanta em tamanho o seu dono, mas não confunde quando se decide executar o homem.

Se as sociedades tivessem esta consciência, sinal seria de que se avançara através do questionamento, o que impossibilitaria a miniaturização dos seres e o seu consequente abate.

É certo que a argumentação, mesmo a interrogativa, pode tomar direções retrógradas, mas entendemos que o indagar, é o que nos permite não nos deixarmos encerrar por pensamentos dominantes.

Bem se tem conhecimento real de que a bestialidade promulga leis como resposta às ideias de quem se não submete; e, utiliza leis, a fim de usar a mascarada teatral que indica quem está certo ou errado, o que não carece de esforço de entendimento por parte de quem nem sabe que desistir da liberdade é extinguir-se a si mesmo.

Mas «liberdade» é algo conquistado ou também algo em dúvida? Que palavra de poder, «liberdade»!

E afinal saberemos nós procurar a composição dos âmagos que abarca? Teremos apurado esse instinto nuclear?

Les Hirrondelles de Kaboul, esclarecem-nos, como a seu tempo expressámos.

Ansiamos a liberdade e queremo-la de volta se a mesma nos tiver sido retirada, mas há sempre trabalho a fazer.

O desejo e a vontade de liberdade são indivisíveis como bem nos transmitiu Nelson Mandela «as correntes em todo o meu povo eram as correntes em mim».

O grande alerta é o de que o oposto deste pensar-sentir está a ressurgir e com ele a anatematização.

Regressa o uso da religiosidade do líder quando tudo o que é mau é o que está fora do seu domínio, e incute-se o medo desmensurado a fim de que a sociedade soçobre ao comando, ou se entregue por se crer definitivamente vítima.

Resultou do Príncipe de Maquiavel o quanto o medo é um instrumento de governação mais eficaz do que o amor.

Mas recordamo-nos também que George W. Bush declarou memoravelmente que «um líder é alguém que une as pessoas», por oposição a quem afirma que todos o seguem.

Há que desmascarar com urgência a variedade de aiatolas que nos rodeiam e que vão sobrevivendo e se vão reforçando, graças aos donativos das ignorâncias catastróficas que tão em coro, papagueiam clichés de uma estupidez charlatã.

Afinal, pensar por si, pensarmos pela nossa cabeça, não é um dado adquirido.

Mas se nos reclamam como membros de pertença e titulares de um bilhete de pensamento de grupo, eis-nos face à possibilidade do nosso eu valioso se expor.

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

  


A liberdade é um sentir que quando alcançado nunca evolui para trás.

Muitos não o sabem porque não sabem o que é o saber, e não o sabendo, desconhecem que algo essencial sobre a sua identidade é constantemente atacada.

E afinal tudo tem a ver com o modo como as pessoas pensam a liberdade.

Os aparelhos de opressão de certas instituições das sociedades, desde sempre, estiveram e continuam, no processo de pôr limites ao que se pensa e ao que se diz; inclusive a franqueza da arte é responsabilizada pelas sérias dificuldades de a manter controlável, motivo bastante para a considerar «ilegal»

De muitos modos, diga-se, inúmeros galileus continuam a negar o que sabem ser verdade.

Ultimamente nos EUA (e não só) tem tido lugar, com uma clareza arrogante, e por parte de um mundo de acusações desonestas, o quanto é importante que a liberdade signifique fanatismo autorizado, distorcendo-se as palavras de modo que as violências dos significados conduzam à insanidade das interpretações.

Encontramo-nos, de facto, face a uma sensibilidade contemporânea desencantada na pergunta do como chegámos aqui, e afinal o que chegou antes de nós, para que isto acontecesse.

Fomos contando a nós próprios as explicações de tudo o que não fomos entendendo, e no amor e no medo chamámos os deuses, desejando sermos os seus favoritos, já que se preferissem outros que não nós, então pensaríamos em Aracne transformada em aranha.

Nunca admitimos o quanto a humanização também surgiu prenha das suas muitas e grandes falhas.

Todas estas coisas aconteceram de há muito, mas a história não tem sido um espaço disputado acerca do passado para melhor interpretação do presente.

As princesas e os príncipes mimados, os poderosos do revisionismo, os supremacistas, os da pseudoinvestigação filosófica que lhes esconde as inseguranças, são os grandes fedelhos dos desejos de que os seres humanos nunca os ponham em causa; são os incapazes de compreender que em liberdade, a existência é um direito a defender e a celebrar; que a liberdade é um sentir que quando alcançado nunca evolui para trás.


Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


172. O 25 DE ABRIL NÃO TEM DONOS


Numa ordem mundial dominada por ditaduras não teria acontecido o 25 de Abril em Portugal, nem outros acontecimentos congéneres seriam possíveis pelo mundo fora. Só uma ordem mundial baseada na democracia poderia ser a sua génese.


Sendo intrinsecamente democrático, na sua essência, o 25 de Abril de 1974 não tem donos, é de todo o povo, não sendo propriedade exclusiva desta ou daquela ideologia, deste ou daquele partido, direito de preferência de alguns, sendo de todos, sejam mais ou menos instruídos ou qualificados e, daí, também, ser feriado. 


Não pode, nem deve, ser apropriado por poucos, pois sendo generoso na sua origem nele cabem todos, não sendo de direita, do centro ou de esquerda, havendo nele lugar para democratas, antidemocratas, liberais, antiliberais, comunistas, anticomunistas, radicais e extremistas. 


Querer a liberdade de celebrá-lo só para nós, enquanto a negamos aos outros, é trair o sentido mais autêntico daquela data. 


Se a sua mensagem mais genuína foi a liberdade, no seu respeito pelas liberdades individuais e direitos humanos, onde sobressaem a liberdade de expressão, de pensamento e o direito à informação, há que repudiar a ideia de que tem proprietários, que é uma espécie de coutada ou tapada proibida a quem pense de maneira diferente. 


É contra o espírito do 25 de Abril apropriá-lo, para sobreviver, à custa de autoelogios por atos louváveis praticados anteriormente na clandestinidade.   


Assim como o é a sujeição a uma ditadura de opinião que defenda a interdição de partidos de direita, tidos como antidemocratas, ditatoriais e totalitários, mas que aceita como arautos da liberdade partidos de esquerda similares, que sempre defenderam (e defendem) regimes políticos que nunca admitiram (nem admitem) qualquer princípio de liberdade em democracia nos países que têm como modelo. 


Nem é aceitável que uma minoria de presumíveis ideólogos da democracia se arrogue no direito de decidir o que é liberdade, muito menos quando é sabido serem contrários ao espírito da alvorada e da primavera de 1974 totalitarismos de direita ou de esquerda, não distinguindo entre ditaduras condenáveis e virtuosas, porque ambas intoleráveis, o que é reforçado pelo voto expresso dos portugueses no decurso de 50 anos.


Uma liberdade que é inerentemente antiautoritária, aberta à mudança, à crítica, ao debate, ao não sectarismo, a novos espaços e mentalidades, tem de incluir na democracia mesmo os que se lhe opõem, sendo o principal remédio (não o único) para que não regressem governos autoritários ou ditaduras.   


Sem constrangimentos e sem censura, assim o celebrizemos e continuemos a questionar, neste seu cinquentenário, havendo ainda muito por fazer.


26.04.24
Joaquim M. M. Patrício