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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

PERDER VOCABULÁRIO É PERDER LIBERDADE

  


O bem que a inteligência artificial nos está a trazer, é enorme, mas o que a IA nos assusta reside nas forças que a podem capturar e utilizar com objetivos terríveis.

Mas como se sabe a IA é instantânea num mundo que já era de enter e delete, e negligenciou-se, por excesso, o quanto as relações humanas se degradavam ligadas ao empobrecimento do sentir e da linguagem que o exprime.

As crianças, demasiado robotizadas pelas máquinas, foram entrando numa onda que se permitiu avaliar de baixo preço.

Criaram-se indiferenças ao que gera e gerou a pobreza das palavras e dos seus significados; ao que a falta de vocabulário acarreta na impotência para descodificar as mentiras que se propagam a velocidades indizíveis; ao quanto a perda de vocabulário impede o próprio raciocínio de defesa.

E, na verdade, perder vocabulário é perder liberdade.

Vivem-se sociedades que se permitiram reduzir o espírito, reduzindo as palavras, e consequentemente o seu amplo poder, admitindo-se com plausibilidade que se vai aceitando esta violência como se se tratasse de algo natural.

Não há dúvida de que ler livros exercita a nossa autodisciplina e o nosso sentido de sequencialidade, o que nos permite conhecer o passado, e com maior eficácia, planear um futuro com criatividade, quer enquanto indivíduos, quer em cooperação com os outros.

Provado está que o potencial de cooperação humana através do qual nos preservamos e expandimos e que envolve o conceito de «humanidade» foi-se expandindo exponencialmente pela literacia.

Provado está que os conhecimentos dos significados do vocabulário têm mantido acesa a liberdade durante períodos totalitários, pois que a escrita e a leitura e o pensar e sentir as palavras, coroam tudo o que se pode imaginar e lutar para um futuro melhor.

Também o perigo de um sistema político dirigido pela inteligência artificial é atroz, mas há muito que vimos pessoas chupadas por ecrãs, totalmente desligadas sensorialmente, e comandadas por ritmos digitais, enquanto o senso comum vai aceitando oferecer a sua vontade, esta mesma que a IA pode controlar, controlando as massas numa normalização das instituições ditas democráticas, a bem de uma mais convincente delegação e esmagamento das vontades.

E sim, perder vocabulário é perder liberdade, primeiro intelectualmente e depois institucionalmente.

E não, não estamos destinados a um futuro estagnado e fechado. Não estamos condenados à pobreza e à brutalidade da mentalidade de soma zero.

Na nossa senda como espécie, temos feito e continuaremos a fazer muito melhor do que isso.


Teresa Bracinha Vieira

EM BUSCA DE IDEIAS CONTEMPORÂNEAS

Folhetim de Verão - Capítulo 26
 

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INCOMENSURABILIDADE DE VALORES
 
 
Existe a tentação de ceder ao absolutismo ou ao relativismo ético. No absolutismo ético pretende-se impor unilateralmente uma determinada visão e hierarquia de valores. No relativismo ético prevalece a indiferença em relação a uma hierarquia de valores – tudo poderia valer… Ao invés importa assumir uma perspetiva de Ética dialógica assente da noção de pluralismo, que não se confunde com o relativismo ou a indiferença. Não somos neutros relativamente aos valores éticos, nem estamos sujeitos a uma mesma medida comparativa, importando que o respeito mútuo se baseie na salvaguarda das diferenças – daí a liberdade de pensamento, a liberdade religiosa e a liberdade de crença e convicção. “Não sabemos o suficiente para ser intolerantes” (como afirma Karl Popper).
 
Mas a intolerância pode destruir a tolerância. Há esse risco, por isso temos de ser muito claros: a liberdade de pensamento e a ética dialógica exigem que sejamos tolerantes em relação às pessoas, mas não podemos ser passivos em relação às ideias intolerantes ou ao risco da destruição da liberdade. A defesa do pluralismo e da diversidade impõe a prevenção relativamente às ideias intolerantes. Isaiah Berlin (1909-1997) baseia o seu pensamento no pluralismo ético ou axiológico. Assim, “os valores produzidos pelos homens não são conciliáveis numa única hierarquia”. O pensador desenvolve, por isso, a ideia de “incomensurabilidade de valores” – já que a razão não pode definir uma ordem única de valores éticos nem medir os valores de modo universal, por isso o pluralismo é uma necessidade.
 
O princípio da democracia, enquanto sistema baseado na incomensurabilidade dos valores, permite a coexistência pacífica de distintos valores e interesses que constituem a expressão filosófica de uma sociedade livre e aberta. Impõe-se, assim, salvaguardar a liberdade negativa, como ausência de impedimentos à ação e à autonomia de cada um. Isaiah Berlin distingue, por isso, como se sabe, esta liberdade negativa, da liberdade positiva, que exigiria ação, o que determina uma valoração especial relativamente aos entraves que possam estabelecer-se relativamente à liberdade individual.
 
No triângulo Valor ético, Norma e Facto, de que fala Miguel Reale, encontramos uma relação complexa que nos obriga à procura de fundamentação. O vai-e-vem já referido também se aplica às relações facto / valor e facto / normas. O carácter indiretamente normativo da Ética leva-nos à pergunta: porquê um dever moral? Antes do mais, o respeito mútuo não pode ser abstrato. Tem de dar lugar a uma responsabilidade. Daí a legitimidade do exercício (além da legitimidade da origem) obrigar a realizar na prática o bem comum. Temos de ter resposta, perante quem está connosco ou precisa de nós. Se há uma incomensurabilidade dos valores, há também uma exigência de respeitar as diferentes esferas da liberdade de todos.
 
Isaiah Berlin fala-nos da coexistência na sociedade de uma dualidade entre raposas e ouriços. Para a raposa, a curiosidade infinita da razão e a sua permanente busca apontam para a prevalência da diversidade e do pluralismo. Ao invés, o ouriço estaria à espera e não se movia – numa atitude passiva de expectativa. Este último veria o mundo através da lente de uma única ideia definidora (como Platão, Dante ou Hegel). Já o exemplo da raposa corresponderia a Erasmo, Shakespeare, Montaigne ou Goethe. E se Dostoievski poderia ser qualificado como ouriço, Tolstoi não escaparia ao dualismo – com talentos de raposa e de ouriço. Vivemos num mundo plural de raposas e ouriços… A diversidade moral, o pluralismo axiológico são marcas da imperfeição humana – já que apenas somos perfectíveis.
 
Quando lemos a Declaração Universal dos Direitos Humanos (“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”) compreendemos que estamos perante: a expressão concreta dos valores éticos; a sua aplicação numa sociedade aberta; a exigência de liberdade de expressão e de ideias; o respeito mútuo, como valor de valores; a universalidade da dignidade humana. Considerando Valores, Normas e Factos, esse vai-e-vem constante da norma para o valor, do facto para o valor, do valor para a norma e da norma para o facto dá-nos a expressão da relação incindível entre ética, moral e direito.… No fundo a interpretação normativa obriga a um relacionamento complexo na compreensão do mundo. Não estamos sós. Se a pessoa humana é irrepetível e única, se todos somos diferentes, a relação com os outros de respeito mútuo é uma exigência insubstituível.
 
 
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EM BUSCA DE IDEIAS CONTEMPORÂNEAS

Folhetim de Verão - Capítulo 25

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  Ronald Dworkin

 

IGUAL CONSIDERAÇÃO E RESPEITO

 

É normal invocar-se uma contradição insanável entre liberdade e igualdade, como se ambas não admitissem conciliação. Já vimos que entre igualdade e diferença não há incompatibilidade, pois são faces da mesma moeda. Todos somos, de facto, iguais e diferentes – cada um de nós tem identidade própria, não somos confundíveis com números, são irrepetíveis e diferentes, mas devem ser tratados igualmente, sem discriminação. Quando lemos uma distopia, como “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” de George Orwell (1903-1950), vemos que aí igualdade é igualitarismo e que a diferença é esquecida… Ora, relativamente à liberdade e à igualdade questão semelhante se coloca. Lembremos a etimologia mais antiga de “libertas”, tem a ver com libra, que significa balança. Liberdade tem a ver com a balança livre e equilibrada. Num prato estou eu no outro está o outro. Não há liberdade sem equilíbrio entre eu e o outro. Se o romantismo valorizou a liberdade individual e se o coletivismo deu ênfase ao igualitarismo, tantas vezes meramente formal, a verdade é que, como afirmou Norberto Bobbio (1909-2004), importa preservar a liberdade igual e a igualdade livre. Também aqui estamos diante de faces de uma mesma moeda. O século XX, e os sistemas económicos mistos valorizam a complementaridade entre liberdade e igualdade. A liberdade individual e o livre arbítrio asseguram a autonomia pessoal, a igualdade perante a lei, a justiça distributiva e a não discriminação exigem a igualdade, não confundível como homogeneização.
 
Segundo Isaiah Berlin: liberdade igual é liberdade e não igualitarismo limitador da singularidade. E se falamos de capital social, falamos de coesão social, de mediação pelas instituições e de equilíbrio entre autonomia e solidariedade. Ronald Dworkin (1931-2013) afirma, assim, que a conciliação necessária entre liberdade e igualdade exige que entendamos as relações humanas a partir do que designa como “igual consideração e respeito”. Que significa “igual consideração e respeito”? Seguindo o raciocínio de Dworkin a liberdade individual, para ser plenamente respeitada, pressupõe igualdade perante a lei, mas mais do que isso: um fundamento ético assente no princípio do respeito por todos e na consideração da importância fundamental do outro, bem como na igual consideração como elemento central da filosofia moral. E na conciliação entre liberdade e igualdade encontramos a Ética como indiretamente normativa, a Moral como diretamente normativa, mas não coerciva e o Direito, como diretamente normativo e coercivo. A igual consideração e respeito permite considerar a liberdade e a igualdade como irmãos gémeos. A democracia moderna assenta nessa complementaridade, obrigando à coesão social, à mediação institucional, à participação de todos e à dignidade da pessoa humana.
 
Relembremos Edgar Morin (1921) que considera numa cultura de autonomia e responsabilidade a necessidade de: prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva. A autonomia e a solidariedade associam-se naturalmente. A liberdade e a igualdade, a igualdade e a diferença completam-se.

 

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EM BUSCA DE IDEIAS CONTEMPORÂNEAS

Folhetim de Verão - Capítulo 21

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  John Rawls

 

A JUSTIÇA COMO EQUIDADE…

«Há uma coisa que não consegui dizer ou, em todo o caso, que não coloquei com suficiente evidência em Uma Teoria da Justiça (1971) - que a teoria da justiça como equidade (justice as fairness) foi criada como conceção política da justiça» - costumava afirmar John Rawls, perante os críticos que confundiam a sua teoria com uma conceção metafísica da justiça. Do que Rawls se ocupou foi em apresentar uma estrutura de base para uma democracia constitucional moderna. Preocupou-se, assim, com o modo de atuação das instituições económicas, sociais e políticas de forma a terem um único sistema coerente de cooperação social. Por isso, esclareceu, em especial ao longo dos últimos anos, que a sua teoria era diferente das doutrinas morais tradicionais, como a utilitarista, não procurando ser mais do que uma conceção política da justiça, válida para a democracia e baseada em ideias intuitivas que estão no cerne das instituições políticas nos regimes constitucionais que conhecemos. Nesse ponto, este discípulo de Kant sempre insistiu no facto de a sua teoria possuir um enfoque diverso relativamente ao pensamento do filósofo de Königsberg, apesar de seguir as pisadas deste. Rawls fundamentou-se, assim, numa tradição política, de que somos herdeiros e que corresponde a um consenso de sobreposição (overlapping consensus), que abrange as diferentes doutrinas filosóficas e religiosas, opostas e complementares, designadamente de Hobbes a Rosseau, passando naturalmente por Kant, aceites numa sociedade democrática, mais ou menos justa.

John Rawls (1921-2002) foi um homem justo e exigente. Mesmo os seus críticos, mostraram como a sua serenidade foi um exemplo até para os seus antagonistas. A morte trágica de dois irmãos mais novos, em virtude do contágio de uma grave doença que ele próprio contraíra, marcou profundamente a sua reflexão sobre os mais fracos e desprotegidos. A lotaria genética e outras contingências não deveriam, afinal, interferir na igualdade dos seres humanos. Sendo originário de uma família culta e privilegiada de Baltimore, o jovem John cedo se viu confrontado com a força cega da adversidade. Desde cedo, na sua reflexão, percebeu que o contrato social estaria obscurecido por um "véu de ignorância" a propósito do lugar de cada um na sociedade, que conviria desvendar. E uma das tarefas da filosofia política numa democracia seria exatamente interessar-se pela descoberta do meio, aceite pelo senso comum para resolver os problemas postos pelas disparidades e pelas injustiças. E, havendo uma plataforma justa de decisão, poderíamos reduzir de forma suficiente as divergências de opinião e de convicção, para que houvesse uma cooperação política fecunda assente no respeito mútuo entre todas as pessoas. No entanto, há um profundo desacordo sobre a maneira de realizar o melhor possível os valores da liberdade e da igualdade na estrutura de base da sociedade. De um lado, temos a tradição de Locke, que dá mais importância ao que Benjamin Constant designou como "liberdade dos modernos", a liberdade de pensamento e de consciência bem como certos direitos subjetivos ou direitos ligados à propriedade, enquanto Rousseau põe a tónica na "liberdade dos antigos", isto é, a igualdade das liberdades políticas e dos valores da vida pública. E a conceção da "justiça como equidade" pretendeu superar esse dilema, propondo dois princípios para servirem de guias para a realização pelas instituições dos valores da liberdade e da igualdade - não entendidos como antagónicos, mas como complementares. "Cada pessoa deve ter um igual direito á mais extensa liberdade compatível com uma idêntica liberdade para os outros" - afirma o primeiro princípio rawlsiano. Por outro lado, "as desigualdades sociais e económicas devem preencher duas condições: estar ligadas a funções e a posições abertas a todos, em condições de igualdade de oportunidades ; e, em segundo lugar, devem ter a maior vantagem possível para os membros mais desfavorecidos da sociedade". Com base neste entendimento, devemos partir da ideia de que "uma conceção política não tem necessidade de ser uma criação original, pode combinar ideias e princípios intuitivos". Esta intuição fundamental respeita ao facto de a sociedade ser um sistema de cooperação social equitativo, composto por pessoas livres e iguais. E é nesse sistema concreto que a teoria da justiça como equidade surge como um sistema prático - com o objetivo de se obter um acordo livre entre os cidadãos e uma reconciliação graças à razão pública. Assim se reduzem os conflitos e criam-se condições para a sua regulação pacífica e aberta - preservando a cooperação social baseada no respeito mútuo.

 

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
    Vasco Graça Moura © José Coelho/Lusa


210. LIBERDADE PARA UMA OPINIÃO LIVRE E ESCLARECIDA


“Não sinto propriamente a obrigação de, como escritor, fazer ouvir a minha voz como exercício de uma dada responsabilidade de intervenção cívica. Isso pode, na prática, acontecer ou não, mas não terá de obedecer a um programa ou a uma contrição ideológica. No meu caso, não obedece com certeza. As minhas responsabilidades enquanto cidadão não têm forçosamente de irromper ou de se projetar nas minhas produções enquanto escritor. Mas admito perfeitamente que haja quem pense ter essa responsabilidade nos termos enunciados e o faça em coerência com tais conceções. Tanto uma opção como outra devem ser estritamente respeitadas por toda a gente”
(Vasco Graça Moura, JL n.º 1105, sublinhado nosso).

A formação de uma opinião livre e esclarecida é essencial numa sociedade democrática, onde a liberdade de expressão, informação e de criação artística serão maiores quanto maior o seu grau e valor. 

No culto dessa liberdade o que mais nos deve entusiasmar é o que não sabemos (não o que sabemos), com experimentação e consequências em todas as artes e saberes, sabendo interpretar a beleza e a criatividade associadas ao 25 de abril e fazendo valer a liberdade pela liberdade e a arte pela arte.   

Há que contrariar  qualquer tarefa autoritária, ditatorial ou oficial de fixação de dogmas e normas ideológicas a que as artes, artistas, investigadores e opinião pública se devem submeter através da imposição de uma arte ou ideologia estadual, tendo-os como um mero meio ou instrumento de transformar a sociedade para fins utilitários ou deterministas, e não como um fim em si mesmo.       

Mesmo sabendo-se que a criatividade, enquanto elemento de combate e de intervenção, pode ser um modo especial e extremamente eficaz de luta pela liberdade a favor dos oprimidos e mais desfavorecidos, isso não nos legitima a respeitar apenas uma opção, proibindo a outra, dado sabermos que sempre houve quem preferisse o campo dos dominadores, dos opressores ou dos indiferentes e tivesse elaborado e deixado uma obra que perdurará.


25.04.25
Joaquim M. M. Patrício

AS LUZES DE LEONOR

  


Um dia, sua mãe chamou-a à salinha onde recebia as amigas e ouvia música e apontou para um livro que estava sobre a mesinha baixa, e disse-lhe assinalando «uma página onde estava o retrato de uma mulher fascinante no seu vestido antigo, sorriso de fatalidade, pérolas entrançadas nos cabelos e olhar de enigma: “Esta  mulher é a tua avó e foi uma grande poetisa”. Nesse dia, a Leonor entrou na minha vida». É Maria Teresa Horta quem o diz. A mulher fascinante era Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna. E eu abro o meu volume do romance extraordinário As Luzes de Leonor e leio a dedicatória da autora: “… este livro de poetas e anjos, mas sobretudo da maravilhosa Leonor de Almeida…” E é com profunda saudade que recordo essas palavras e quem as escreveu, que resumem duzentos anos de lembranças. E oiço: “Sou tua espia / Sou tua neta / Tua vigia // Sou tua asa / Sou tua guia / Tua passagem //Crio-te a fresta / Abro-te a porta / Teço-te a aura” (in Poemas para Leonor, 2012). Numa obra apaixonante, vasta e plural, lemos o livro segundo o conselho da autora, pela história dos Távoras ou pela história de Leonor, que esteve em reclusão no Convento de S. Félix de Chelas durante dezoito anos, “pela suprema vontade de um déspota” que determinou a sua existência, pois ao condenar à morte os avós Távora, ao prender o pai nas masmorras da Junqueira e “ao mandar enclausurar a minha mãe num mosteiro, comigo e a mana Maria no rasto e sombra da sua saia, julgou Sebastião José de Carvalho e Melo salgar o chão do meu destino”. E as palavras fluem naturalmente. “Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes, a visões, a premonições, a adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as profecias, veem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado sombrio do seu mundo interior…” Deparamo-nos com o cego destino e o fanatismo que o domina, mas Leonor cultiva as Luzes e ama a liberdade. Lê Rousseau, Voltaire, Pope, Locke e Leibniz. Todos eles levam a questionar a autoridade do poder despótico, no qual “todo o sistema de educação se dirige ao temor e à vileza”. E Leonor confessa a seu pai: “Eu não acredito no destino, a vida é aquela que nós traçamos por decisão própria e nossa vontade”. E que melhor modo de exprimir o que vai na alma senão a poesia? Francisco Manuel do Nascimento lê o que Leonor escreve: “Li teus versos, Alcipe, e quando os lia / Bem cri que com a História conversava”. E a resposta não se faz esperar, batizando Alcipe seu interlocutor de Elísio, nome que ele junta a Filinto. Leonor sente a força do sentimento, mas no ambiente conventual torna-se “perigosa no querer passar para além do seu limite”,  - “alma nunca aplacada , gémea da tempestade, torvelinho e desacerto, novelo de muita água”. A poesia e o pensamento entusiasmam-na. Maria Teresa Horta segue com intensidade e amor os caminhos de Leonor e põe na sua boca as palavras que sente. “Não gosto, não consinto, não aceito: o negrume, a obediência cega. O torpor, a ignorância, o perdimento”. Terminado o pesadelo de Pombal, Leonor torna-se admirada na Corte e D. Maria I trá-la para junto de si. Casada com o conde de Oeynhausen, consegue para o marido a Embaixada em Viena, iniciando uma vida intensa e agitada. E seguindo-a Maria Teresa Horta deixou-nos uma obra-prima e um autorretrato sublime, pleno de audácia e inconformismo.


GOM

AUDÁCIA E MODERNIDADE

  


Eduardo Marçal Grilo acaba de lançar uma obra que merece especial atenção pela dimensão histórica e pelo contributo inestimável para a compreensão da importância da prioridade dada à Educação nos dias de hoje. Educação e Liberdade – A primavera de Veiga Simão, os desmandos do PREC e a renovação de Sottomayor Cardia (Clube do Autor, 2024) é um livro em que nos deparamos com uma análise serena e objetiva, com pormenores muito significativos, capazes de fazer luz sobre a génese das mudanças operadas em momentos decisivos da construção da nossa democracia. Não se trata, por isso, apenas de uma análise historiográfica, mas de uma reflexão crítica, uma vez que o autor tem provas dadas de uma preocupação permanente com a necessidade de um reformismo atuante, gradualista, a um tempo prudente e audaz. No caso da “primavera” de Veiga Simão, acompanhamos um caminho fértil, quer nos ensinos básico e secundário, quer no ensino superior. A experiência de Lourenço Marques do antigo reitor da Universidade tornado Ministro com Marcelo Caetano revela-se de grande utilidade, somando-se a uma arguta compreensão da necessidade de fazer entrar a sociedade na democracia. Daí todas as resistências e incompreensões, mas também as dúvidas e hesitações.

Partimos de dois documentos essenciais de Veiga Simão de 1971: o projeto de Sistema Escolar e as linhas gerais de Reforma do Ensino Superior. No primeiro, a escolaridade obrigatória deveria ser estendida de seis para oito anos, o que não avançaria senão em 1986, para os nove anos da Lei de Bases; o ensino secundário envolveria os liceus clássico, técnico e artístico e o ensino superior seria ministrado em universidades, institutos superiores politécnicos e outros estabelecimentos de ensino superior. Rompendo com a ideia da impossibilidade de autorreforma, as novas universidades foram uma resposta com virtualidades claras que chegam aos nossos dias, e que o autor conhece como ninguém. Houve que intervir renovando a estrutura, e foi o que aconteceu. Francisco Sá Carneiro diria, aliás, com justiça, em 1973, depois de renunciar ao mandato na Ala Liberal, que o setor da Educação Nacional foi o que se revelou mais dinâmico e renovador. Depois de 25 de Abril, as lições da Revolução foram muito duras, obrigando, porém, segundo o autor, a um grande pragmatismo e à defesa dos valores em que se acredita. No I Governo Constitucional, Sottomayor Cardia “entrou no Ministério como um tufão, capaz de derrubar as estruturas que tinham sido erguidas durante o período revolucionário”. O seu papel foi fundamental nos dois anos em que esteve no ministério, empenhando-se na regulamentação da gestão das universidades e das escolas, na definição das questões do ensino da Medicina, na restruturação da Universidade Nova, na educação pré-escolar, no lançamento dos fundamentos de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo ou na atenção ao ensino superior privado. Ao lermos esta obra, indispensável para a compreensão dos avanços significativos alcançados no domínio educativo, ressaltam três referencias – a personalidade de Veiga Simão e a sua orientação estratégica num sentido de abertura e de modernização; a determinação de Mário Sottomayor Cardia em estabilizar uma orientação reformista democrática no campo da educação e a perspetiva assumida por Eduardo Marçal Grilo num sentido de exigência e rigor, com compreensão dos poderosos desafios de modernização, de desenvolvimento humano e de internacionalização.


GOM

CULTURA E LIBERDADE

  
Sophia de Mello Breyner Andresen © António Cotrim /Lusa 2007 


Dedico a crónica de hoje à memória de um amigo que nos deixou inesperadamente, quando tínhamos vários compromissos a realizar, graças ao seu entusiasmo e à sua inteligência. João Diogo Nunes Barata foi um grande embaixador de Portugal, com quem trabalhei de perto no gabinete de Mário Soares como Presidente da República, tendo desde então continuado uma excelente cumplicidade cívica e cultural, que culminou agora no Grémio Literário. Numa das muitas conversas que tivemos recordámos a extraordinária personalidade de Sophia de Mello Breyner Andresen, que bem conhecemos, amiga muito próxima de Mário Soares e Maria Barroso, espírito livre, que na sua aparente distração era a mais arguta analista da humanidade e da vida, que tanto partilhava as agruras domésticas como o diálogo com o melhor da humanidade. Quando lemos, por exemplo, os seus discursos na Assembleia Constituinte, sentimos um frémito, uma vez que as suas palavras ecoam sem uma ruga com marcas de eternidade. Lidas hoje, nada temos a acrescentar, e contrastam quer com as mil palavras de circunstância que o vento leva, quer com a vulgaridade que nos invade da politiquice de todos os dias. E João Diogo recordava estas lapidares palavras proferidas no hemiciclo de S. Bento: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (Sessão de 2.9.1975). Afinal, a luta fundamental não deveria ser por uma “liberdade especializada”, mas pela liberdade do povo – liberdade de expressão e de cultura. “Queremos uma relação limpa e saudável entre a cultura e a política. (…) Não queremos opressão cultural. Também não queremos dirigismo cultural. A política sempre que dirigir a cultura engana-se. Pois o dirigismo é uma forma de anti cultura e toda a anti cultura é reacionária”. Premonitoriamente, contra todos os dirigismos e totalitarismos, a poeta deixava claro um sentido essencial para a interpretação da nova Constituição – sendo a liberdade a pedra angular, contra dogmatismos indiscutíveis e maximalismos irreais. Por isso, importava atacar o “poder totalitário”, onde quer que esteja, que persegue o intelectual e manipula a cultura. “Nenhuma forma de cultura se pode atribuir o direito de destruir ou menorizar outras formas de cultura”. E se falava de cultura, também importava referir a educação como objetivo essencial ligado à cultura. “Ensinar é pôr a cultura em comum e não apenas a cultura já catalogada e arrumada do passado, mas também a cultura em estado de criação e de busca”. Que melhor forma poderia encontrar-se para falar da Educação? E que deve ser a liberdade de aprender e ensinar senão a procura de “novas formas de ensino que possam procurar, ensaiar e inventar”? Tudo, em nome de um “ensino livre onde nenhuma iniciativa seja desperdiçada”, sendo a escola o lugar de liberdade e de justiça, de participação e de solidariedade. E João Diogo lembrava, quando era embaixador em Moscovo, o nosso memorável encontro com Mário Soares, quando nos fotografámos simbolicamente com o retrato de Jaime Batalha Reis, o embaixador português aquando da revolução de 1917, em homenagem ao espírito emancipador da geração de 1870 e à liberdade. Há quanto tempo…


GOM

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  
Jimmy Stewart em "Mr. Smith goes to Washington"


190. A GEOMETRIA VARIÁVEL NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO


Se a liberdade de expressão implica a liberdade do outro se poder exprimir, exige ter de ouvir o que não gostamos, aceitar a controvérsia e a discussão, dado que, quando não é assim, não somos incomodados, questionados ou perseguidos, limitando-nos a aceitar o que é a norma e o usual, não havendo liberdade.       

Sendo um direito de geometria variável, é difícil definir até onde pode ir, tendo de ser avaliada caso a caso e no seu contexto, havendo vários graus de avaliação e de aplicação.     

Se aceitamos ser redundante o questionamento sobre gostos e que é supérfluo levá-lo a tribunal, desde que não seja um crime ou uma ilegalidade, também o é se uma pessoa razoável, naquele contexto e caso concreto, não acreditar que o que ouviu, foi dito, escrito ou publicado não corresponde à verdade, uma vez estarmos perante uma paródia humorística, literária, sarcástica ou satírica, de mau gosto, escárnio e maldizer, caricaturando, criticando e ridicularizando em tom cáustico e mordaz, ou provocando o riso.             

O mesmo releva se levarmos a sério o direito à asneira quanto a uma ancestral e longa plêiade de anedotas, clichês, estereótipos, preconceitos, vulgaridades, dizeres e lugares-comuns, transversal a todos os países, que não têm potencial ofensivo, difamatório ou injurioso, em termos criminais ou de mera ilegalidade.     

São de proibir, porque atentatórios e ofensivas da liberdade de expressão, anedotas, fábulas, histórias, adágios, provérbios, ditados populares, preconceituosos e sem qualquer validade científica, sobre alentejanos, algarvios, minhotos, portuenses, lisboetas alfacinhas, queques da linha, portugas em geral, judeus, monhés, chineses, pretos, branquelas?

Trata-se de expressões ou situações vulgares e preconceituosas, com as quais podemos não concordar, mas sem potencial ofensivo, não discriminando negativamente e de modo essencial os visados, não os humilhando de tal modo que seja posta em causa, de forma grave, a sua dignidade e segurança, sob pena de amputarmos e proibirmos a liberdade de expressão, só porque uma apreciação pessoal ou generalizada nos incomoda, mesmo reconhecendo que se trata de uma opinião/vulgarização ignorante e injusta.  

O melhor meio de superar esses chavões e preconceitos é exercer a liberdade de expressão com sentido crítico, escrutinando e reduzindo ao ridículo a asnice, o disparate, o preconceito e a tolice, cada um por si e ouvindo os outros, sem necessidade de arautos do politicamente correto e de uma presumível superioridade ética, intelectual e moral.


27.09.24
Joaquim M. M. Patrício

O HOMEM: QUESTÃO PARA SI MESMO (4)

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4.  Somos livres?

 

Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.

Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos mesmos termos ou não.

Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos neuronais inconscientes?

De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público um “Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro” - cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’? Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.” É preciso continuar as investigações, no sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se compreende com exactidão como está construída.”

A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade?  Ele seria possível?  

Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e que é elucidativo e obriga a pensar. Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”

O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade – não implica a espontaneidade a necessidade?

A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo. Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim (já ouvi uma criança de seis anos dizer à mãe: “tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.

É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homem pode ser senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.

Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”, segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais.  Como diz P. Bieri – ver de novo citação em O princípio de todas as coisas --, “é inútil procurar na textura material de um quadro o representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade nem falta de liberdade. Do ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”

Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente, responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir verdadeiramente?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 31 de agosto de 2024