Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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190. A GEOMETRIA VARIÁVEL NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Se a liberdade de expressão implica a liberdade do outro se poder exprimir, exige ter de ouvir o que não gostamos, aceitar a controvérsia e a discussão, dado que, quando não é assim, não somos incomodados, questionados ou perseguidos, limitando-nos a aceitar o que é a norma e o usual, não havendo liberdade.
Sendo um direito de geometria variável, é difícil definir até onde pode ir, tendo de ser avaliada caso a caso e no seu contexto, havendo vários graus de avaliação e de aplicação.
Se aceitamos ser redundante o questionamento sobre gostos e que é supérfluo levá-lo a tribunal, desde que não seja um crime ou uma ilegalidade, também o é se uma pessoa razoável, naquele contexto e caso concreto, não acreditar que o que ouviu, foi dito, escrito ou publicado não corresponde à verdade, uma vez estarmos perante uma paródia humorística, literária, sarcástica ou satírica, de mau gosto, escárnio e maldizer, caricaturando, criticando e ridicularizando em tom cáustico e mordaz, ou provocando o riso.
O mesmo releva se levarmos a sério o direito à asneira quanto a uma ancestral e longa plêiade de anedotas, clichês, estereótipos, preconceitos, vulgaridades, dizeres e lugares-comuns, transversal a todos os países, que não têm potencial ofensivo, difamatório ou injurioso, em termos criminais ou de mera ilegalidade.
São de proibir, porque atentatórios e ofensivas da liberdade de expressão, anedotas, fábulas, histórias, adágios, provérbios, ditados populares, preconceituosos e sem qualquer validade científica, sobre alentejanos, algarvios, minhotos, portuenses, lisboetas alfacinhas, queques da linha, portugas em geral, judeus, monhés, chineses, pretos, branquelas?
Trata-se de expressões ou situações vulgares e preconceituosas, com as quais podemos não concordar, mas sem potencial ofensivo, não discriminando negativamente e de modo essencial os visados, não os humilhando de tal modo que seja posta em causa, de forma grave, a sua dignidade e segurança, sob pena de amputarmos e proibirmos a liberdade de expressão, só porque uma apreciação pessoal ou generalizada nos incomoda, mesmo reconhecendo que se trata de uma opinião/vulgarização ignorante e injusta.
O melhor meio de superar esses chavões e preconceitos é exercer a liberdade de expressão com sentido crítico, escrutinando e reduzindo ao ridículo a asnice, o disparate, o preconceito e a tolice, cada um por si e ouvindo os outros, sem necessidade de arautos do politicamente correto e de uma presumível superioridade ética, intelectual e moral.
140. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O POLITICAMENTE CORRETO
Se, no essencial, a liberdade de expressão se justifica para os que discordam de nós, nos escrutinam, incomodam e questionam, dado que só me interessa quando sou controverso, perseguido ou posso sê-lo, pela minha contundência ou sentido crítico, não se justificando quando concordam connosco ou dizem bem, uma vez que, quando assim é, não somos escrutinados, incomodados, questionados ou perseguidos, é porque é um foco de resistência ao poder, à normalização, ao politicamente e usualmente correto, uma segurança das minorias contra as maiorias, dos mais fracos contra os fortes, uma garantia de limites ao poder estabelecido.
Se o poder, por sua vez, tem como arma de defesa o politicamente e usualmente correto, o “status quo”, o pensar da maioria, coexistindo em democracia com o politicamente incorreto e a discordância via uso da liberdade de expressão, esta e o politicamente usualmente correto e o desusadamente incorreto colaboram e coexistem entre si, sendo duas faces da mesma moeda, escrutinando-se e limitando-se na imperfeição e numa exigência permanente pelo melhor.
Só que nem sempre o politicamente correto coincide com o pensar e opinião da maioria ou de quem tem o poder, dada a existência de minorias, tidas por superiormente iluminadas, que se têm como progressistas, de ideias e pensar da esfera do politicamente correto, onde só pode haver espaço e mentalidade para uma opinião, a alinhada como o seu discurso e pensamento mais “limpo”, querendo higienizar, censurar ou cancelar, fixando o tolerável e o intolerável porque, por exemplo, “leitores ou pessoas sensíveis”, ainda que à revelia da maioria e dos autores.
Mesmo que não o assumam, a liberdade de expressão, na sua pluralidade, é mal vista, mas é bem-vinda quando em causa o pensamento politicamente correto que defendem, onde a mera discordância de alguém contra o seu pensar, mesmo que em minoria, é tida como ofensiva, no mínimo.
Quão fácil é ser-se intolerante e ter vontade de acabar com o debate numa sociedade onde a liberdade de expressão tolera o politicamente correto e incorreto, ao invés de se aí tolerada e vigente uma só via de pensar.
125. FOCOS DE RESISTÊNCIA À NORMALIZAÇÃO QUE NORMALIZAM
As manifestações da liberdade de expressão, implementadas pela criação de regras estruturantes de um novo tipo de confronto verbal de opiniões, não existem para ser agradáveis, concordar e dizer bem, fazendo mais falta quando geradoras de discussão, podermos opinar e ser informados sobre temas chocantes, polémicos, não elogiosos, inconvenientes, que abominamos e magoam, protegendo quem discorda de nós, cujas ideias não aceitamos, refutamos ou odiamos.
Nos Estados Unidos da América, onde é mais ampla e irrestrita, são lícitas opiniões e discursos agressivos, cortantes, deploráveis, indecorosos, vergonhosos, de mau gosto, ofensivos, provocadores, violentos, não moralistas, racistas, antirreligiosos, antissemitas, chauvinistas, xenófobos, negacionistas do holocausto, não sendo as exceções determinadas pelo teor das expressões proferidas, mas sim se houver um risco inequívoco de algo grave ou muito grave, se se souber da falsidade dos dizeres ou textos, só sendo ilegal o incitamento à prática de crimes se existir um risco manifesto de ocorrerem e na sequência do que se expressou.
Esta liberdade de expressão permite encontrar um vencedor, um vencido, não haver vencedores nem vencidos, ficarem uns mais convencidos que outros, escrutinando-se, criticando-se, ouvindo-se via contraditório, mesmo que gritando, fazendo demagogia, substituindo insultos verbais primitivos e uma violência física tribal por uma compensação que é sublimada por uma liberdade que quer normalizar o tido por saudável a nível da expressão, do pensamento, da criatividade e da informação.
Em paralelo com as grandes manifestações desportivas, ao permitirem encontrar um vencedor e um perdedor sem agressões físicas, derramamento de sangue ou mortes, aceitando certas condutas de grupo em estádios como uma fuga ou compensação para antiquados atos de violência tribal sublimados por gritaria, berraria, ruído e insultos verbais emergentes da multidão e por ela atenuados e abafados.
Soma-se à verdade de um argumento tido por antropológico e sociológico, a de um tido como evolutivo e civilizacional, em dois exemplos de focos de resistência à normalização que com o seu escapismo consentido e legal acabam por normalizar o que ab initio nem sempre se presume ou se tem como adquirido.
107. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CANCELAMENTO (RUSSOFOBIA) CULTURAL
Cancelar da cultura mundial Dostoiévsky, Tolstoi, Pushkin, Pasternak, Tchekhov, Tchaikovsky, Stravinsky, Kandinsky, Mussorgsky, Rachmaninov, Chostakovitch, Tarkovsky, Anna Pavlova, entre outros, por um sentimento de aversão ou ódio à Rússia, seu país natal, após a agressão e invasão russa na Ucrânia, é censurável, por maioria de razão em países democráticos que fazem culto e consagram a liberdade de expressão, incluindo a de informação e de pensamento.
Pela arte, literatura, música, dança, pelo cinema, pela cultura em geral, a Rússia é património cultural da humanidade, produziu e continua a produzir, a nível artístico, cinematográfico, literário e científico, nomes intemporais que a Europa também reconhece como seus, e se universalizaram, sendo parte integrante da alma russa e do génio humano.
Não faz sentido cancelar a cultura russa, mesmo havendo uma condenação intransigente da invasão da Ucrânia, como notícias vindas de Zagreb revelando que a orquestra filarmónica cancelou dois concertos de Tchaikovsky, ou da MET, companhia de ópera de Nova Yorque, ao excluir uma soprano e um maestro russos, ou a interdição da literatura de Dostoiévski numa universidade italiana, o que não ajuda a amenizar o sofrimento das vítimas ucranianas, sendo um contra senso condenar o governo russo por limitar ou boicotar a liberdade de expressão e o ocidente agir do mesmo modo quanto à cultura russa.
Defendemos que uma obra cultural (uma obra de arte em geral) vale por si, independentemente das opções políticas, ou outras, de cada um ou do autor, fazendo a separação entre a obra em si ou ao serviço de qualquer coisa, sobrepondo-se às contingências pessoais por que passou ou passa o seu autor, sendo transcontextuais, transversais, transnacionais, transcontemporâneas, isentas de culpas.
Não há que confundir a Arte e a Cultura Russa com as opções políticas atuais dos seus governantes, dada a sua intemporalidade, antecipando-se, antepondo-se ou sobrepondo-se para além de quem tem o poder.
Faz sentido que deixe de ler ou exclua da minha biblioteca obras como Guerra e Paz, de Tolstoi, Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski?
Que deixe de se ouvir e ver O Lago dos Cisnes ou O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky?
Não se ouça Rachmaninov, Stravinsky, ou não se contemplem as pinturas de Kandinsky?
Não faz, nem faria, nem atenua o sofrimento dos ucranianos, antes é uma arma de arremesso que, por um lado, não dignifica sociedades que se dizem livres e têm por base a liberdade de expressão e, por outro, quando fazem uso de tais cancelamentos culturais dão argumentos ao culto da russofobia e a que se fortaleça o regime russo e a sua propaganda direcionada para criar entre os russos uma sensação de injustiça e de o ocidente estar contra eles, mesmo que a democracia em que vivemos, cheia de falhas, seja a melhor alternativa (por confronto com propostas autocratas, ditatoriais, totalitárias ou similares).
“Não estou a ver se os convenço a gostar do que Larry Flynt faz. Eu não gosto do que ele faz. Mas do que eu gosto é de viver num país onde podemos ser nós a tomar essa decisão. Gosto de pegar na Hustler e lê-la, ou deitá-la no lixo, se quiser. Ou de exercer a minha opinião e não a comprar. Gosto desse direito. Os senhores também devem gostar. A sério.
Vivemos num país livre. Esquecemos o que isso significa, por isso escutem de novo: vivemos num país livre. Mas essa liberdade tem um preço. Temos de tolerar coisas de que não gostamos. Se erguemos muros contra o que alguns pensam ser obsceno, pedem surgir muros em lugares onde nunca esperámos. E isso não é liberdade”.
São palavras do advogado de defesa de Larry Flyn (LF), em tribunal, no filme de Milos Forman, sobre o processo judicial que na década de 80 do século anterior o opôs ao evangelista Jerry Falwell.
LF foi um polémico self made man norte americano, que ousou desafiar o sistema como magnata e dono do império de revistas humoristas, satíricas e pornográficas Hustler, atacado por conservadores e progressistas, que lutou arduamente pela liberdade de expressão, tendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido que poder expressar o que se pensa é um aspeto da liberdade, essencial para a busca da verdade, protegido pela Primeira Emenda, mesmo que em apreciação assuntos públicos lamentáveis.
“Eu só sou culpado de ter mau gosto. Este país também é meu. Não é obrigado a ler a Hustler. O que é mais obsceno? O sexo ou a guerra? A guerra! A verdadeira obscenidade é educar os jovens fazendo-lhes crer que o sexo é mau e sujo, e que é heroico derramar sangue em nome da humanidade”.
Afirmações atribuídas a LF, que admite que o podem culpar de mau gosto, não de crime ou ilegalidade, e sendo supérfluo o questionamento sobre gostos, também o é se uma pessoa razoável, tida como normal, não acreditar que o que foi dito, escrito ou publicado não corresponde à verdade, porque uma caricatura ou paródia humorística, satírica ou sarcástica, criticando, escarnecendo ou ridicularizando.
Para dizer bem, não se justifica a liberdade de expressão, uma vez que, quando assim é, não somos contrariados, colocados em ridículo, incomodados ou perseguidos, o que é agudizado pelo facto de tal direito se justificar quando gerador de discussão e do exercício do contraditório, tendo como limites a ausência de verdade e afirmações dolosas ou maledicentes.
A liberdade de expressão, nas sociedades democrática, é um valor estruturante, a que acresce o seu valor pessoal, como garantia e forma do desenvolvimento da personalidade de cada pessoa.
Para a sua aceitação contribuiu LF, falecido este ano, com um caso tido, à data, por escandaloso e ultrapassando todos os limites.
A liberdade de expressão, nas sociedades democráticas, tem um valor estruturante e pessoal.
Sendo estruturalmente antiautoritária, autocorrige-se.
Países com mais elevados níveis de educação e literacia, são candidatos mais fortes à democracia, ciência e liberdade, incluindo a liberdade de expressão.
Tem intrinsecamente subjacente o debate livre entre “verdades” diferentes, que não admite donos da verdade, dada a sua permanente imperfeição e incerteza.
Questionando a autoridade, erodindo o dogmatismo, expurgando a superstição, exige para sua sobrevivência e progresso que as pessoas se encontrem e falem livremente, tendo o direito de fazer perguntas, aceitando que a democracia e a liberdade são, por natureza, imperfeitas.
Permite-nos interpelar o passado, o presente e o futuro.
Tem como dado adquirido, por exemplo, que a visão da História não é só uma.
Não é apenas a visão do vencedor, mas também a do vencido, ou de outros.
Prevenindo eventuais intolerâncias que não nos façam regressar a uma visão única: a dos vencedores, heróis e conquistadores, a dos vencidos, fracos e perdedores.
Tendo sempre presente que se justifica mais para interpelar, contradizer, dizer mal (mesmo que chocante), e não para dizer bem ou estar de acordo, dado que, quando assim é, não somos incomodados, contrariados, questionados ou perseguidos, só assim não sendo quando se falta à verdade, fazem afirmações maledicentes ou haja uma violação abjeta da defesa da privacidade.
Mas tal liberdade implica que lutemos não só pela nossa liberdade, mas também pela de todos, sem monitorização, fiscalização e policiamento da liberdade de expressão e do pensamento.
É essa liberdade que nos liberta e concede uma libertação pessoal e dos controlos sociais, o direito a dizer coisas mal-ditas e à indignação, que uma opinião imponderada e não rigorosa possa ser legítima, a querer reescrever (ou não) a História, a uma história não única e plural.
Sem a linguagem dos totalitarismos e atos suprematistas, possibilitando a quem a usufrui exprimir-se em liberdade, por causas nobres, sem um cânone inquisitorial de intolerâncias e de valores, que também beneficia aqueles que sem ela se amputariam e a querem censurar ou extinguir.
Essa liberdade de expressão foi alcançada por muitos que nos antecederam temporalmente e que hoje são tidos como velharias e antiquados, precisamente por quem, tantas vezes, está protegido por essa liberdade tão penosamente conquistada, nem sempre reconhecida e valorizada, porque manipulada, lutando apenas pela sua liberdade, não pela dos outros.