Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Se estivesse entre nós, Corsino Fortes teria completado, no dia 14 de fevereiro, noventa anos. Graças à iniciativa de Filinto Elísio, poeta e editor, cultor da língua portuguesa, de Márcia Souto e Ana Paula Godinho (filha do poeta), familiares e amigos do autor de “Pão e Fonema” reunimo-nos no Grémio Literário, com a presença do Presidente da República José Maria Neves, em nome da morabeza, num convívio em que a memória de um saudoso amigo esteve sempre presente. E começámos, como não poderia deixar de ser, por ouvir a leitura dos poemas reunidos pela editora Rosa de Porcelana em “Sinos de Silêncio”. “Perfume d’nôs ilha / Perfume d’nôs vida / Sê pai é amor / Sê mãe é melodia / Morabeza é farol / De nossa Senhora da Luz / Que Deus plantá Kab Verd / Na alma de coraçon”. E o poeta ali regressou e, por momentos, fechando os olhos, pudemos reencontrá-lo na sua inconfundível veste branca, com a aura fraterna, que tanto admirámos. Conheci-o na cidade da Praia e nunca mais deixámos de nos falar, até aos seus últimos dias, ouvindo na sua voz pausada e quente numa militância cívica inesgotável. O homem de cultura não esqueceu o dever de memória. E a sua originalidade ia ao ponto de ligar a necessidade de viver a identidade cabo-verdiana dinâmica, aberta e corajosa. E falámos de S. Vicente e do Mindelo, de Baltasar Lopes e da “Claridade”, bem como da importância dos crioulos. Foi das pessoas mais lúcidas que conheci no tema da diversidade das culturas da língua portuguesa. O plural é o sentido da alma. O seu percurso de vida foi extraordinário, desde as provações de juventude à formação jurídica, à resistência, às funções de professor, de exemplar magistrado e de exímio diplomata e governante. Foi o primeiro Embaixador de Cabo Verde em Portugal. Mas nunca deixou a sua banca de poeta, escritor, ensaísta, tendo colaborado nas revistas “Claridade”, “Cabo Verde” e “Raízes e África”, tendo sido o primeiro presidente da Academia Cabo-Verdiana de Letras.
Protagonista da libertação e da independência, pôde assumir, com uma irrepreensível coerência, a defesa da cultura popular, a afirmação emancipadora da identidade da jovem nação, o culto da poesia oral das mornas e das coladeiras e a relação com o fado português, a modinha brasileira, o tango argentino e o lamento angolano. Quando lemos “Pão e Fonema” (1974), “Árvore & Tambor” (1986), “Pedras de Sol & Substância” (2001) ou a reunião poética de “A Cabeça Calva de Deus” (2001), sentimos a vivência de um património exultante, onde a liberdade e a vontade se juntam à tomada de consciência dos sinais da opressão. E Corsino pega no tema de “Pasárgada” de Manuel Bandeira, (“Vou-me embora pra Pasárgada”) como um sonho interno do paraíso e um suplemento de alma, da tradição “claridosa”, abrindo caminho alternativo à partida de “Chiquinho” de Baltasar Lopes, obra-prima e referência nacional. Como resistente, pensa no retorno e na independência. E em “Pão e Fonema” é a tónica do povo que encontramos, do chão e da fome, como grito e denúncia. E o fonema é símbolo da fala, inequívoca marca de uma vontade indómita contra a seca e a provação.
Corsino Fortes foi um poeta empenhado na cultura dos crioulos e na consciência dos castigos da seca, da fome e da pobreza. A nossa última conversa foi sobre a necessidade de uma cultura inclusiva do crioulo, num arquipélago de diferenças. Urge a celebração da identidade insular e a exaltação serena dos valores da pátria, com especial relevância para a memória coletiva. O pão simboliza a esperança do cabo-verdiano no saciar da fome. “A vogal adentra / O coração do ditongo / Faminta de amor”. E o significado da metáfora remete para a ideia de que o pão vai além do signo, pois simboliza fonema, mar, matrimónio, património e a própria palavra constitui-se em imagem revivida pelo leitor, porque, segundo Octávio Paz, “o poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser completada e vivida por um leitor novo”.
«Genuína Fazendeira – Os Frutíferos Cem Anos de Cleonice Berardinelli» é uma bela recordação da personalidade fascinante desta verdadeira mestra de muitas gerações.
MESTRA DE MUITAS GERAÇÕES Manuel Bandeira elogiava-lhe a voz bonita e o comentário claro e sábio. E o poeta bem conhecia, desde jovem, Cleonice Berardinelli, não apenas através das considerações sérias e avisadas em matéria literária, mas também das representações de Gil Vicente, cheias de ironia ou de sérios alertas, com voz límpida e expressão viva, animada, rigorosa e compassada. No fundo, para a professora, discípula de Fidelino de Figueiredo, a literatura era muito mais do que uma disciplina científica, fria e desenraizada, mas a expressão humanista dos sentimentos, do pensamento e da ação. Nela a ciência e a cultura fundiam-se, com naturalidade, contribuindo para que a língua como realidade viva fosse expressão fiel da vida humana. O teatro e a literatura completavam-se intimamente e permitiam entender que o idioma e a sua expressão narrativa eram tanto mais ricos quanto se conseguia ir além do formalismo através da melhor comunicação de uns com os outros. E a comunicação torna-se compreensão. Não há literatura repetitiva nem sujeita à inércia e daí que a representação dramática permita compreender melhor os segredos das palavras. Assim aconteceu com Cleonice Berardinelli que é referência fundamental no estudo e conhecimento das culturas da língua portuguesa. E assim a estudiosa compreendeu, melhor que ninguém, que a projeção global do nosso idioma obriga a entender a diversidade e a abertura, num território com muitas raízes e diversas fronteiras.
Luciana Stegagno-Picchio, quando lhe foi pedido que prestasse homenagem a Cleonice Berardinelli, entendeu oferecer-lhe metaforicamente duas ilhas, uma poética e outra cartográfica – uma ilha desconhecida e uma ilha que não há. Uma ilha Utopia e uma ilha Brasil. E se a ideia foi a de ofertar ilhas metafóricas, a razão tinha a ver com o facto de Cleonice, ela mesma, ter sido como que uma ilha no seio da cultura portuguesa na academia brasileira e, na Europa, uma ilha da cultura e da doce fala brasileira no mundo académico português. Assim, no mundo luso-brasileiro, haveria muitas ilhas para oferecer a Dona Cleo – na expressão camoniana, a Ilha dos Amores, na área pessoana, as Ilhas Afortunadas, para a paixão da viajante, a Ilha da Utopia, descoberta, segundo Thomas Morus, pelo português Rafael Hitlodeu, para o mundo da moderna literatura portuguesa uma ilha do Mediterrâneo, em homenagem a Sophia de Mello Breyner, ou a ilha desconhecida para um ilhéu honorário chamado José Saramago… E, invocando, a sua qualidade de italiana, Luciana aventava ainda a hipótese de uma “Ilha não encontrada”, invocando Guido Gozzano. A imaginação poderia chegar a Itaparica ou a Maré, mas a que realmente interessava a Luciana era a referência à Ilha-Brasil. Esta era a “Ilha próxima e remota / que nos ouvidos persiste, / para a vista não existe”, de que fala Fernando Pessoa na “Mensagem”. Já Carlos Drummond de Andrade quando dedicou um extraordinário poema a Cleonice, considerou-a como “genuína fazendeira”, sobretudo em homenagem à imaginada grande ilha, onde se cultiva “a constante maravilha / do linguajar português / tal como sino que soa / no copiar da fazenda / até Fernando Pessoa”.
A BELEZA DA LÍNGUA COMUM De facto, quando Pêro Vaz de Caminha anunciou, primeiro que todos, a magia que se lhe apresentava, falou de uma Ilha, como se tratasse do achamento de uma parte do Paraíso, inesperadamente encontrado. E quando hoje referimos este mundo plural e diverso onde se cultiva a nossa língua, ao lado de variadas culturas, numa nova representação de Babel, esta Ilha-Brasil significa não um lugar de uniformidade, mas um encontro de mil culturas, e de uma demanda das múltiplas expressões do Outro. De facto, para Cleonice Berardinelli, apenas seria possível compreender a cultura do Brasil indo ao encontro das suas origens – da sua multiplicidade. Daí que esquecer qualquer dessas componentes seria ter um desencontro com a própria complexidade e força de uma cultura. Afinal, seria não compreender a relação com o diverso e o esquecimento da corrente que permite entender o património cultural como uma permanente troca de influências. Se os núcleos preferenciais das atenções de Dona Cleo são, literariamente falando, Gil Vicente, Camões e Pessoa é porque essa é sua linha de atenção, que permite perceber uma parte do linguajar “como sino que soa / no copiar da fazenda”. Temos de ir aos trovadores que começaram a construir este idioma de projeção global, mas não podemos esquecer ainda os sermões de Vieira, o romantismo de Garrett e de Camilo, a ficção de Eça de Queiroz, a poesia de João de Deus, os sonetos de Antero de Quental, a chamada geração de 70, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Namora, Maria Judite de Carvalho, Vergílio Ferreira, Almeida Faria, José Saramago… Mas este núcleo permite-nos abrir horizontes e ir adiante – entendendo a genuína expressão brasileira de Machado de Assis e de quantos seguiram um caminho próprio de riqueza incalculável, partindo daí para a compreensão da língua e da literatura da língua comum em África. E as pontes que se vão estabelecendo significam não uma mistura ou uma adaptação, mas um encontro ativo, capaz de produzir realidades outras, como fica demonstrado na capacidade de recriação que encontramos em João Guimarães Rosa ou em Mia Couto.
DUAS LITERATURAS Eduardo Lourenço, com a intuição conhecida para descobrir o essencial na realidade cultural, afirmou que Cleonice Berardinelli deixou evidenciado, ao longo de cinquenta anos de ensino e investigação, que a mesma língua dá lugar a várias literaturas. Não há, porém, conflito entre as literaturas portuguesa e brasileira (ou as outras), uma vez que têm em comum a mesma língua. As pequenas diferenças entre elas não fazem com que haja uma dissensão nem colisão. E o ensaísta de “Portugal como Destino”, admirador confesso da Mestra, reforça esse entendimento: “a paixão e o saber dessa cultura em comum (do elo que une as nossas únicas margens do atlântico cultural que há séculos une e separa o antigo cantar da galaica raiz e de imemorial futuro) eram – são – uma espécie de segunda natureza da filóloga herdeira do berço comum da latinidade que tem hoje no Brasil o seu espaço de memória mítica”. No fundo, é essa a Ilha que se torna autêntica na oferta de Luciana Stegagno-Picchio e que se revela como a melhor homenagem à coerência de Dona Cleo. Essa Ilha-Brasil contém e engloba uma história antiga que, longe de ser uniformizadora, é distintiva e constitui um verdadeiro desafio à compreensão da pluralidade e à riqueza nas lusofonias.
António Manuel Couto Viana (1923-2010) comemoraria cem anos e invocamos a pedagogia da cultura popular e a preocupação especial que teve com os mais jovens e com a importância do teatro no ensino.
PEDAGOGO DA CULTURA POPULAR
Celebra-se o centenário de um poeta e homem de teatro, que influenciou decisivamente muitas gerações de jovens nos anos cinquenta e sessenta. António Manuel Couto Viana foi, antes de tudo, um pedagogo da cultura popular portuguesa. Pode dizer-se que foi esse seu papel de ativo educador através da leitura e do teatro que deixou uma marca indelével. Filho de um português e de mãe aragonesa, cultivou sempre as suas raízes galaico portuguesas e minhotas. Poeta, dramaturgo, ensaísta, memorialista e tradutor, fez os seus estudos no seu Minho e em Lisboa. Desde sempre foi um entusiasta do teatro, como a arte que melhor permite ligar a criatividade popular e a necessidade da cultura, tendo recebido de seu avô, com suas irmãs, em herança o Teatro Sá de Miranda de Braga. Cedo começou a colaborar no Teatro Estúdio do Salitre, como ator, cenógrafo e encenador (1948-1950), sendo ainda um dos animadores do Teatro de Ensaio do Monumental (1952), bem como diretor do Teatro do Gerifalto (1956-1960) – onde também estiveram Cecília Guimarães, Henriqueta Maya, Irene Cruz, Rui Mendes e Morais e Castro. Participou na Companhia Nacional de Teatro – Teatro da Trindade (1961-1965). Como ator, encenador e mestre da arte de dizer e de representar, encenou na televisão portuguesa (RTP) espetáculos de teatro e animou conversas e programas, com grande repercussão entre o público de todas as idades, mas especialmente entre os jovens, atraindo uma nova geração de atores e artistas para a arte de Talma. Lecionou no Liceu D. Leonor e foi membro do Conselho de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Estreou-se na escrita em 1948 com o livro de poemas O Avestruz Lírico, muito bem recebido pela crítica. Foi autor de mais de uma centena de obras escritas.
ATIVIDADE INTENSA DE PROMOÇÃO DA CULTURA
De 1950 a 1954, dirigiu com David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo as folhas de poesia Távola Redonda, e em 1956-1957 a revista de cultura Graal, participando na revista Tempo Presente em 1959-1961. A sua obra poética procurou reabilitar as tradições líricas populares e um certo culto do passado e da paisagem. Além da poesia e do teatro, dedicou-se à literatura infantil, a partir dos principais autores europeus e dos romanceiros portugueses antigos, estudando-a em ensaios, escrevendo e traduzindo livros destinados aos mais jovens. Dirigiu o Camarada (1949-1951). Uma boa parte da sua atividade teatral como ator, encenador e autor dirigiu-se também aos jovens e às crianças, o que se relaciona com a sua obra poética onde perpassam marcas dos temas dos contos tradicionais. A referência ao Gerifalto, que marcou o mais importante grupo que animou, tem a ver com a simbologia de uma ave semelhante ao falcão, que representava a altivez e a valentia. Couto Viana está representado nas principais antologias de poesia portuguesa, e os seus poemas foram traduzidos para castelhano por Angel Crespo e para inglês por Joan R. Longland. Foi em 1960 premiado com o Prémio de Poesia Luso-Galaica Valle-Inclan, além de um conjunto dos principais galardões relativos à poesia e ao conto.
Um dos seus poemas mais célebres, publicado em “Versos de Caracacá”, intitula-se “A Maçã”, que recordamos: «Na relva cheia de pó, / cai uma maçã pequena / que ao ver-se tão suja e só/começa a chorar de pena. / O galo do catavento, / temendo alguma desgraça, / pára logo o movimento / e pergunta: - O que se passa? / - Quero ver o Mundo! – diz / a maçã, a soluçar. / - O escaravelho é feliz, / pois tem patas para andar! / / De um alto ramo pendente / via o Sol, o Céu, a estrela / com gatos e cães e gente. / Mas, no chão, não vejo nada! / Eu tenho uma rica ideia! / - diz o galo (e bate as asas). / - Dou-te esta noite boleia / para veres gentes e casas. / E assim fez. Voa da igreja, / põe às costas a maçã / que vê tudo o que deseja / até ao romper da manhã. / - Olha outro galo tão lindo, / a voar! – Maçã pateta! – / responde-lhe o galo, rindo. / - Aquilo é uma borboleta! // Olha uma casa amarela! / Desço até ela. Já está! / Espreita pela janela / e diz-me o que vês por lá. / - Vejo uvas numa taça – / diz a maçã. - Por favor, / chega-te mais à vidraça, / para eu espreitar melhor. / E a maçã pôde, assim, ver, / sobre a toalha engomada, / o garfo, a faca, a colher. / Viu tudo e ficou cansada. // O galo regressou à sua / torre da igreja aldeã / para, aí, contar à Lua / a viagem da maçã. //E a maçã muito contente, / diz, na relva, para consigo: / - Vi o Mundo, finalmente! / E o galo é meu amigo!»
O CULTO DAS TRADIÇÕES
Como afirmou um dia sobre o Alto Minho: «A família toda foi uma apaixonada pela sua terra, que é encantadora: meu pai, um etnólogo, um homem que fez o ressurgimento do trajo à lavradeira (aquilo a que se chama «trajo à minhota», mas que é apenas do concelho de Viana do Castelo) e escreveu sobre Viana; minha irmã mais velha também tinha uma grande paixão por Viana e escreveu muito sobre ela e o mesmo com a minha outra irmã... O Luís d’Oliveira Guimarães dizia que o meu pai amava tanto a própria terra que até a usava no nome (Couto Viana). Eu identifico-me com a cidade e tenho recebido dela um carinho e uma admiração muito grandes – recentemente foi edificada a Biblioteca Municipal de Viana, que tem quatro salas: a sala Camões, a sala Fernando Pessoa, a sala José Saramago e a sala Couto Viana; sou cidadão de mérito da cidade; a Câmara Municipal tem publicado muitos livros meus de poesia e ensaio. A cidade tem correspondido ao meu amor”. Esta referência significa que a obra de António Manuel Couto Viana procura ligar, a partir da poesia, a literatura, a língua e a procura da compreensão da cultura como ponto de encontro entre as gerações – numa verdadeira noção de património cultural como realidade viva. Assim, a leitura da sua obra constitui um ensinamento permanente sobre o cadinho complexo e heterogéneo que vai construindo a língua portuguesa – de Camões a Eça de Queiroz, passando por Vieira e Garrett, por Sá de Miranda e Antero, sem esquecer os antigos trovadores, de que o poeta se considerava seguidor. Um pedagogo da cultura popular não poderia ser outra coisa do que um ouvinte fiel das tradições e leitor atento da melhor língua erudita.
“Requiem, Uma Alucinação” (1992), de Antonio Tabucchi (1943-2012), foi escrito originalmente em português e constitui um exemplo da criatividade de um escritor essencial da contemporaneidade, que esta semana foi homenageado pelo município de Lisboa com a atribuição do seu nome a um jardim na freguesia da Misericórdia, por proposta do Centro Nacional de Cultura.
UM SONHO EM LISBOA Este “Requiem” tem um especial significado, tendo sido escrito integralmente em português. Suspenso entre a consciência e a inconsciência, entre a realidade e o sonho, a personagem que protagoniza esta alucinação é apresentada ao meio-dia em ponto de uma data precisa, sem que o próprio entenda muito bem porquê, na cidade de Lisboa, deserta e tórrida, num domingo de julho. Ironicamente, ele sabe vagamente que tem algumas tarefas a cumprir – mas sobretudo deve encontrar-se com um ilustre poeta desaparecido que, como qualquer fantasma que se preze, talvez apareça só à meia-noite, hora do mistério e da surpresa. E o protagonista entrega-se aos ditames do acaso, segundo a lógica das associações do inconsciente. Então, dá consigo a seguir um percurso que o leva a reviver o que foi ao longo da vida, a tentar desatar os nós cegos da sua existência passada, que, de facto, nunca conseguiu compreender verdadeiramente. Tabucchi sempre foi um apaixonado do mistério dos sonhos, jogando com o significado das misteriosas aparições de quem teve importância na sua formação e no seu destino. Essas alucinações, errâncias, aparições, regressos e sonhos duram doze horas. É o tempo de uma vida se comprime e se dilata. Passado e presente confundem-se e os vivos encontram-se com os mortos no mesmo plano, como aliás acontece em diversas circunstâncias documentadas na obra do escritor.
ENTRE RAÍZES E DESCOBERTAS Em “Requiem”, Antonio Tabucchi conta a experiência de uma viagem misteriosa e iniciática. Assim, este livro é um ato de amor relativamente ao país que lhe pertence profundamente por adoção e à língua na qual o romance está escrito, pressupondo uma ligação intensa a uma personalidade multifacetada, que não esquece as raízes, as lições passadas e a descoberta literária de um poeta com várias vidas e personalidades. Foi, aliás, um misterioso poeta que trouxe Tabucchi até à cultura portuguesa e ao mundo dos seus afetos. E se falamos dessa referência, temos de considerar a multiplicação de personalidades que ela comporta. É, de facto, do Engenheiro Álvaro de Campos que falamos, discípulo de Alberto Caeiro, que o poeta ortónimo visita estranhamente, ao lado de outras personalidades consagradas em “Sonhos de Sonhos”, como Dédalo, Ovídio, Apuleio, Cecco Angiolieri, François Villon, Rabelais, Caravaggio, Goya, Coleridge, Leopardi, Collodi, R.L. Stevenson, Rimbaud, Tchekhov, Debussy, Toulouse-Lautrec, Maiakovsky, Garcia Lorca e Freud. Estamos perante um verdadeiro mundo, em que se pode descobrir a complexidade do género humano e os seus mistérios. E “Requiem” é um outro modo de descoberta dessa fantasmagoria criadora, através de pessoas aparentemente comuns que a cidade de Lisboa revela. Aí encontramos: o rapaz drogado, o cauteleiro coxo, o chauffeur de táxi, o criado da Brasileira, a velha cigana, o guarda do cemitério, o escritor polaco Tadeus, o senhor Casimiro, a sua mulher, o porteiro da Pensão Isadora, a Isadora, a Viriata, o Pai Jovem (numa reminiscência perturbadora), o barman do Museu de Arte Antiga, o pintor copiador, o revisor do comboio, a mulher do faroleiro, o maître da Casa do Alentejo, Isabel, o vendedor de histórias, a Mariazinha, o misterioso convidado e o tocador de acordeão. Ah! e não devemos esquecer o gato solitário que passeava entre as primeiras campas dos Prazeres.
UM CONTO DE UM VENDEDOR DE HISTÓRIAS «Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento»… Depois de vários desencontros, num bizarro regateio, o vendedor de histórias consegue convencer o interlocutor de que tem um conto para crianças a trezentos escudos – não era um conto de fadas, mas de um mundo mágico, de uma sereia que trabalhava num circo e que se apaixona por um pescador da Ericeira… E ali no cais das colunas, à beira do Tejo, com o cacilheiro a chegar a sereia talvez viesse mesmo a calhar. A deambulação é rica de encontros e desencontros, de realidade e imaginação, de alucinação e sonambulismo… E quando somos chegados ao fim do cais, há um banco como no começo da conversa, que vai tornar-se o fim da mesma. Então o tocador de acordeão torna-se dispensável. Pode terminar e função. E, como por encanto o Convidado desvanece-se, como tinha aparecido. “Quem sabe se um romance escrito numa língua que não é a nossa não poderá nascer de uma minúscula palavra que, essa sim, é exclusivamente nossa e não pertence a mais ninguém. Às vezes uma sílaba pode conter o universo”.
Nascido em 19 de janeiro de 1923, há cem anos, Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas contemporâneos. Cuja leitura permite a abertura de portas amplas para a compreensão da contemporaneidade da nossa cultura.
É URGENTE UM BARCO NO MAR Qual a força de Eugénio de Andrade (1923-2005) para tornar o Porto ainda mais heroico, dramático e sentimental? Por um momento, percebemos, como a transparência se liga ao granito, à saudade e ao humor melancólico. «A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma claraboias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real». E ouvimos o poeta: «É urgente o amor. / É urgente um barco no mar. / É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas. /É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. / Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. /É urgente o amor, é urgente permanecer». As palavras marcam a ligação íntima entre pessoas e pessoas, entre pessoas e lugares. E continuemos a ouvi-lo: «1. Sê tu a palavra, / branca rosa brava. / 2. Só o desejo é matinal. / 3. Poupar o coração / é permitir à morte / coroar-se de alegria. /4. Morre de ter ousado / na água amar o fogo. /5. Beber-te a sede e partir / - eu sou de tão longe. / 6. Da chama à espada / o caminho é solitário. / 7. Que me quereis, / se me não dais / o que é tão meu?». E como não recordar, como procura do essencial: «Colhe todo o oiro»: «Colhe todo o oiro do dia / na haste mais alta / da melancolia?» E o poeta que clarifica: «É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela».
ESTREIA AUSPICIOSA Estreando-se em 1939 com o livro “Narciso”, ainda sob o seu nome civil, José Fontinhas, Eugénio de Andrade vai-se tornando conhecido, em especial quando em 1942 dá à estampa “Adolescente” Entretanto, é incentivado a prosseguir, por António Botto, com quem entra em contacto, que reconhece a qualidade indiscutível do novel poeta. Mas é com a publicação de “As Mãos e os Frutos” que se verifica o reconhecimento público, através da receção positiva da melhor crítica, como Jorge de Sena e Vitorino Nemésio. E José Saramago resume com felicidade o carácter lírico dessa poesia, que se singulariza por uma permanente referência ao corpo, a que chega através de uma depuração contínua. De Lisboa vai para Coimbra e depois para o Porto – e começa a publicar com regularidade: “Os Amantes sem dinheiro” (1950); “As Palavras interditas” (1951); “Ostinato rigore” (1964); “Véspera da água” (1973); “Escrita da terra e outros epitáfios” (1974); “Limiar dos pássaros” (1976); “Memória doutro rio” (1978); “Matéria Solar” (1980); “Rente ao Dizer” (1992); “Ofício de Paciência” (1994); “O Sal da Língua” (1995); “Os Lugares do Lume” (1998) ou “Os Sulcos da Sede” (em 2003 Prémio de Poesia do Pen Clube). São exemplos de uma maturidade poética adquirida num permanente exercício, como num cuidado produto de oficina de artesão… Também publica em prosa: “Os Afluentes do Silêncio” (1968); “Rosto precário” (1979) ou “À sombra da memória” (1993), além de obras infantis como “A história da Égua Branca” (1977) e “Aquela Nuvem e as Outras” (1986). Traduz Federico Garcia Lorca, António Bueno Vallejo, René Char e Jorge Luís Borges… E em 2001, ser-lhe–ia atribuído o Prémio Camões, graças a uma obra segura e consistente, que se afirma como de primeira grandeza na poesia portuguesa do século XX.
A MEMÓRIA DE MONTAIGNE Em carta de junho de 1949 (leia-se a “Correspondência - 1949-1978 entre Jorge de Sena e Eugénio de Andrade”, publicada pela Guerra e Paz, 2016) Jorge de Sena era muito claro a propósito de “As Mãos e os Frutos”: “Não sei se alguma vez lhe disse da estima que a sua poesia me merece, pela categoria autêntica, tão diferente do que a nossa desvairada geração tem produzido (…). Lembro-me que, em tempos, o acusaram de desumanidade. Não encontro, todavia, senão uma pagã humanidade; e mais vale uma humanidade assim, que só se importa com o que liricamente toca, do que fingir sentimentalidades oportunas”. É difícil dizer melhor. O tempo confirmou e afinou essas qualidades e a coerência. E vem à memória Montaigne: “l’essentiel est dit: deux êtres singuliers se rencontrent et comprennent en un éclair, que leur vie ne sera plus jamais comme avant». E Eugénio de Andrade fala dos Amigos com especial cuidado: «Os amigos amei /despido de ternura/ fatigada;/uns iam, outros vinham, /a nenhum perguntava /porque partia, /porque ficava; /era pouco o que tinha, / pouco o que dava, / mas também só queria / partilhar / a sede de Alegria / - por mais amarga». E chegamos a La Boétie, que não existiria na nossa memória sem o testemunho admirável de Montaigne: “parce que c’était lui, parce que c´était moi!”. «A partir de 1986, Dario Gonçalves foi, ao mesmo tempo, causa e consequência de muitos versos de Eugénio de Andrade. Passou a ser uma espécie de afinador de palavras e grande fonte de inspiração. Leia-se o postal de outubro de 1987 sobre uma viagem do Porto até Ribatua. Aí se nota a proximidade e a cumplicidade que permitem uma partilha quase perfeita de sentimentos e de sensações. “Querido Amigo. Retomo a tradição dos postais em viagem. Saímos do Porto atrasados, comemos bogas fritas, já perto do Pinhão, e mal chegamos a casa, por volta das quatro, o Laureano acendeu o lume e aqui me tem à lareira a escrever-lhe. Só para lhe dizer que tem de ter cuidado consigo, que tem que alterar o seu ritmo de vida, essas correrias tiram-lhe anos de vida e eu quero que V. dure muitos anos, porque a sua amizade me é preciosa, além do livro sobre o Porto».
“Aprendi ao longo da vida que o verbo é o que fazemos com ele”, Nélida Piñon inicia deste modo um dos capítulos de Um Dia Chegarei a Sagres (Temas e Debates, 2021). Um dos mistérios que a escritora procura desvendar relaciona-se com a origem da língua portuguesa, que começou na terra de seus ancestrais, numa zona de Finisterra, ponto de encontro de múltiplas influências e origens, “território ocupado por sobrados, casas senhoriais, castelos, muitos ainda habitados. E antigas fortificações outrora a serviço do rei, prontas para combater inimigos. A constituir um sistema de defesa cujo poder bélico exibia esplendor e ostensivo contraste com a pobreza reinante”. Como idioma e património comum, o português nasceu nessa terra de trovadores e peregrinações e partiu à aventura. Quando lemos os poemas de Rosalia de Castro em Cantares Gallegos sentimos o que Nélida, na convergência da ancestralidade galega, nos diz em Uma Furtiva Lágrima (Temas e Debates, 2019) – “bastou-me ver pela primeira vez a ponte medieval e a capelinha à entrada de Borela, para jurar amor imorredouro por aquele solo”. O mito da origem torna-se enamoramento e recuperação da força do mistério, verdadeira força da vida. E o certo é que o “mito não se moderniza. Afinal, o núcleo mítico daquela terra alastra-se além das aldeias que amei”.
É o galaico-português que encontramos e demarca este maravilhoso terreno das nossas raízes, nascido fora do Portugal, que nós prolongámos e se tornou marca e matriz de uma cultura que se projetou além-fronteiras no mundo global. E ouvimos Rosalia invocar “cantos, vagoas, queixas, sospiros, serans, romerias, paisaxes, debesas, pinares, soidades, ribeiras, costumes, tod’aquelo en fin que pó-la forma e colorido e dino de ser cantado, todo ó que tuvo un eco, un-ha voz, un runxido por leve que fosse, que chegasse á commoverme, tod’este m’atrevin á cantar…”. A verdade é que ainda hoje ouvimos, de um lado e do outro do rio Minho: “Canta xente… canta xente / Por campiñas, e por veigas! / Canta pó lo mar abaixo / Ven camiño da ribeira”. E foi esta língua que se espraiou desde as ondas do mar de Vigo para o sul, recebendo o tributo moçárabe, até Sagres, que, depois das influências e contributos dos trópicos, formou esse núcleo mítico que Nélida amou. “Há anos escrevi (diz-nos a escritora): era a época dos prodígios. Lembro-me de quando a Idade Média começou. A mãe levantou-se cedo para regar a horta e esquentar o leite recém-saído das vacas. Foi quando a mãe anunciou para uma família ainda sonolenta: - Venham ver as catedrais nascendo…”. E assim se fizeram a língua e a grei. “Santos e deuses caminhando de mãos dadas”. Nélida viveu apaixonada pela memória de quantos amou, a família, os amigos. E sonhava com a possibilidade de usar o capacete de Hermes e de, graças a ele, poder tornar-se invisível, para ver e conhecer melhor o mundo. A imaginação é uma razão de viver. Amava as cidades, mas tinha nostalgia do campo, gostava de imaginar-se em personalidades diversas, em tempos diferentes. E pensava-se feita de retalhos, de escombros, de lembranças, que impedissem a morte por força da ingratidão.
E Nélida Piñon bem sabia, como os cultores da sabedoria, que “o melhor da viagem é prolongá-la através dos recursos da memória”. E foi este o enigma fundamental de quem, chegou a Portugal, sabendo por onde caminhar e quis “captar a paisagem, os enigmas do povo, os locais onde o sangue foi derramado”, porque “precisava descobrir de onde viera esse nosso idioma deslumbrante”. Eis o que nos liga e que faz desta língua multifacetada algo que permite compreender que somos uma cultura aberta, que deve recusar a tentação de qualquer superioridade histórica e que está investida no desafio da exigência e da responsabilidade. “Falar em primeira pessoa requer audácia. Mas é uma opção natural. Enquanto falo por mim, incorporo os demais na minha genealogia. Não ando sozinha pelo mundo”.
Graça Morais e Lídia Jorge têm pontos de encontro. Há um diálogo entre as obras de ambas, que nos permite entender como a cultura portuguesa contemporânea, para ser adequadamente compreendida, necessita de uma procura das raízes e dos seus desenvolvimentos.
UMA IDENTIDADE PRÓPRIA A obra de Graça Morais tem uma identidade própria, em que violência e ternura se encontram, na expressão de Fernando de Azevedo. Não podemos compreender a sua pintura sem entender o sentido do caminho trilhado e a ligação às raízes. Assim se compreende que “As Escolhidas” fossem “trabalhadoras de uma classe que viveu mal, todas elas falam de uma infância em que passaram fome e andaram descalças. Havia o domínio do masculino sobre o feminino”. Graça Morais é uma artista comprometida. O clima duro e adverso transmontano está vivo na sua pesquisa, através da representação das pessoas concretas que são protagonistas da sua obra. E a sua mãe, forte e corajosa, é quem lhe transmite a determinação e a agudeza do olhar. Como disse Jeanette Zwingenberger: “a paleta de Graça é a da terra e a da luz. Nos seus desenhos a sépia e a tinta-da-china, regista com um traço a força vital da natureza: a eclosão de uma romã, um ramo de oliveira, cerejas, o voo de um inseto ou a agitação febril de um cão. A série da perdiz, seu animal totémico, traduz o ciclo da maturação, do voo, e mais tarde da decomposição”. E o imaginário da infância está bem presente, correspondendo o bestiário a uma verdadeira metáfora da vida. Os gafanhotos evocam tanto as mulheres lutadoras como “anjos de asas translúcidas”, ainda na expressão de Zwingenberger. E são os mitos da natureza e da vida que encontramos nos temas que a artista escolhe. Como diria Octavio Paz e também Eduardo Lourenço: “vemos numa coisa outra coisa”. E a ideia de metamorfose torna-se essencial para entendermos a originalidade da obra. Segundo Fernando Pernes, “os frutos aludem caprichosamente à fecundidade dos ventres maternais”. E, na palavra de Nuno Júdice, há “uma descoberta de passados secretos, revelando que nada morre”. As raízes populares, que Graça Morais vai recordando, esclarecem-nos sobre essa continuidade. Os caretos representam a interrogação dos mitos e a força da relação múltipla no seio da natureza, entre vencedores e vencidos. Por isso, a pintora faz a natureza dialogar em si mesma trazendo à luz do dia a diversidade da vida. E nessa demanda encontramos as referências fundamentais que a influenciam: Miguel Ângelo, Goya, Van Gogh, Picasso e Bacon. Mas a poesia e o romance também a atraem – Torga, Sophia, Saramago, Nuno Júdice, Agustina, Maria Velho da Costa, Vasco Graça Moura, Manuel António Pina, além da omnipresença de Ovídio nas “Metamorfoses” ou de Dante na “Comédia”. E o teatro, de Shakespeare a Jean Genet está igualmente evidente. Há, deste modo, uma permanente procura da identidade da artista, através da interrogação sobre a existência e a busca do universo.
CONTRA O MEDO, A DETERMINAÇÃO O medo, a violência, a incerteza, as dúvidas misturam-se com a determinação e a luta. A série “A Caminho do Medo”, apresentada na exposição “Tudo o que eu Quero”, na Gulbenkian e depois em Tours, revelam-se proféticas. Tendo sido concebida em 2011, durante a crise económica, a austeridade e a emergência da chegada dos refugiados, anuncia já a pandemia e a guerra, numa sucessão de momentos dramáticos, representados por uma estranha máscara cirúrgica, apanágio do confinamento que viria depois. E os tempos que aqui se configuram (crise, drama dos refugiados, pandemia e guerra da Ucrânia) definem a incerteza e o medo, que continuam a pôr a humanidade de sobreaviso. A liberdade e a dignidade tornam-se, deste modo, fatores capazes de contrariar o puro ceticismo, seguindo os passos determinados das mulheres, e em especial de sua mãe, trazidas à ribalta na sua produção artística. Como Helena de Freitas lembra: num diário na aldeia, a artista “corporiza a perdiz, o animal que na cadeia da sobrevivência é o animal caçado, que na representação simbólica evoca o feminino na sua duplicidade de luxúria e morte”. “As minhas personagens (lembra a artista) são sempre vítimas, mas que resistem”. E temos assim um inequívoco sinal de esperança, que a dinâmica constante e interminável das metamorfoses nos dá. O mundo transforma-se e aperfeiçoa-se. Se há um paralelo digno de nota entre duas mulheres artistas na cultura portuguesa contemporânea, é o encontro entre Graça Morais e Lídia Jorge. Ambas representam, de modo diferente, uma ligação íntima e insofismável às raízes. E se Trás-os-Montes e o Algarve são distantes, o certo é que têm proximidades maiores do que pode parecer à primeira vista. Portugal é, afinal, o continente em miniatura, que está cheio de tensões e complementaridades que a pintura de Graça Morais e a literatura de Lídia Jorge revelam de um modo exemplar. Tradição e modernidade são chamadas a conciliar-se, num caminho emancipador. E as mães de ambas são símbolos que as aproximam, como intérpretes e mediadoras, cuja influência se projeta nas respetivas obras. Se nos ativermos, aliás, a Misericórdia (D. Quixote, 2022) podemos entender em que medida há uma especial ligação às raízes, à presença e à ausência, à continuidade e à interrogação a respeito do choque entre esperança e desespero. E Lídia Jorge sente uma angústia semelhante à de Graça Morais: “Há trinta anos, nós tínhamos um programa para sair da ruralidade da escola. Aconteceu que, entretanto, o mundo tecnológico veio contrariar esse projeto. E está provado que os países que têm menos tradição letrada e cultural incorporam acriticamente a informação, tendo uma noção de vanguarda – porque é muito fácil uma pessoa quase analfabeta manejar com muita facilidade todos os gadgets – e transitaram de uma cultura iletrada para uma cultura tecnológica, sem passagem pelo filtro civilizante. Foi o caso da sociedade portuguesa, que não tinha suficientes hábitos de leitura, de crítica, de liberdade ou de ousadia da expressão do pensamento para o evitar” (entrevista, revista “Ler”, Inverno de 2022). Lídia Jorge vê aqui o perigo de uma nova barbárie, que pode resultar da recusa da coragem de assumir as diferenças e os riscos, sem a tentação do complexo por não se ser o melhor e o mais avançado, esquecendo que importa cuidar do nosso jardim, sem pretendermos ser melhores ou piores, mas tão só nós mesmos, abertos à compreensão dos outros e dum caminho de verdadeiro diálogo de culturas, baseado no melhor conhecimento mútuo.
UM DIÁLOGO PORTUGUÊS O diálogo na sociedade portuguesa passa por esta tensão, representada nos dois polos sobre que Graça Morais e Lídia Jorge procuram refletir, o respeito das raízes e a recusa do fatalismo do atraso, num sentido de emancipação, capaz de entender os riscos do medo e da uniformização, da indiferença e do esquecimento. O compromisso deve ser com a humanidade e a dignidade do ser. As personagens que são vítimas resistem e o sinal de esperança baseia-se na ideia da metamorfose, num mundo que se transforma e aperfeiçoa. Eis o ponto em que Graça e Lídia se aproximam.
A morte do livro foi anunciada com o digital, às mãos do e-book.
Enganaram-se. O livro persiste, o que é bom, uma boa notícia.
Ler livros não é um mero prazer estético.
Também é um prazer tátil único. Entre outros prazeres…
Tem as vantagens do analógico sobre o digital, pode ser dobrado, guardado no bolso, na mala, na pasta, leva-se para qualquer lugar, não consome energia elétrica, é mais funcional e pessoal de anotar, sublinhar, pode ser lido e relido a todo o tempo à luz do dia, da vela e do candeeiro de tempos idos, à luz artificial atual, adaptando-se à nossa dimensão física e humana e ao tempo e espaço de cada época.
Há um milhão de leituras se um livro for lido por um milhão de pessoas diferentes.
Ler é ser livre, com a nossa imaginação e memória navegando, sonhando e voando.
Os livros não envelhecem, são firmes e leais, são amigos úteis, o que dizem hoje, dirão amanhã, daqui a anos ou séculos.
O hábito de ler e ver, dia a dia ou amiudadas vezes um livro, faz com que acabemos por lhe ter amizade. À força de se nos tornarem familiares, os livros acabam por se tornar nossos amigos, em que um instintivo e estranho animismo nos leva, por vezes, quase a atribuir alma às coisas inanimadas.
Há livros que são transformadores, contagiantes, podendo salvar-nos ou marcar o nosso destino, que nos fazem leitores, provocando uma sensação gratificante de não estarmos sós, amigos inalteráveis e constantes na saúde ou na doença, no trabalho ou no ócio, uma companhia com o seu não ruído em silêncio.
Estimulam a aquisição de conhecimento, o aumento e enriquecimento de vocabulário, o perguntar, interrogar, questionar, uma imaginação e um sonho que nos liberta, um escape, uma fuga, uma compensação.
Quem lê e ama os livros tem espaço e mentalidade para pensar, refletir, questionar, para nos transcendermos, ter asas para voar, ir mais além daquilo que é tido como básico, diário, quotidiano, afastando a lassidão e a rotina, mesmo que esta seja vital para o nosso conforto.
Sem esquecer o arrumar da biblioteca pessoal que conta a história das nossas vidas, o enriquecimento da associação livre de grupos de leitura, as edições de autor e a partilha do seu testemunho, uma liberdade de escolha e de leitura que não nos limita, desde os livros que devoramos, saltamos páginas ou paramos de ler.
E há os amorosos do livro para os quais é uma coisa imprescindível à vida, tendo-o como parte de si mesmos.
Porém, os não amorosos e indiferentes excluem-no de fotos e vídeos para compra e venda de casas endinheiradas exemplificando-o, quase sempre, o sua não visualização nas respetivas buscas via internet, como sinal de declínio, e não prestígio, dominando o culto do dinheiro, ao invés do saber acumulado por milhares de anos de leitura.
Há quem só navegue na net para os ler, quem se recuse, ou faça ambas as coisas, sendo bom saber que o livro sobrevive ao digital, nem sempre este sendo o ideal, pois sendo nós analógicos (não biónicos ou digitais) aquele agarra mais de perto os nossos sentidos que se manifestam em sentimentos e hábitos não substituíveis pelo e-book.
Se perdurou, no decurso de séculos, a ditaduras que inúmeras vezes o tiveram como transgressor e perigoso, espera-se que também resista à digitalização progressiva e seus inconvenientes de fiscalização automática, sendo mais durável e menos sujeito, até agora, a danos físicos do que os dispositivos ou materiais eletrónicos de acessibilidade mais remota.
Criado há mais de cem anos (1901), o prémio Nobel de Literatura só foi atribuído a um escritor de língua portuguesa, ao português José Saramago, em 1998.
O Brasil, país independente há 200 anos, não foi, até hoje, contemplado, o mesmo sucedendo com escritores africanos (ou timorenses) de países de língua oficial portuguesa.
O que contrasta com 33 prémios de escritores de língua inglesa (entre os quais 12 do Estados Unidos, 11 do Reino Unido, 4 da Irlanda, 2 da Austrália e 1 do Canadá), 16 de autores em língua francesa, 14 em alemão (2 da Áustria), 12 em espanhol (2 do Chile, 1 da Colômbia, Guatemala, México e Perú, além dos de Espanha), 7 em sueco, 6 em italiano e russo, 2 em dinamarquês e norueguês, 2 em grego e japonês.
Sendo o nosso idioma transcontinental, transoceânico, cultural, pluricultural, pluricêntrico, de exportação, internacional e global, o mais falado do hemisfério sul, o terceiro do ocidente, quinto na internet, quinto ou sexto a nível mundial, com mais falantes que o francês, alemão, italiano, russo e japonês, é legítimo perguntar se será pela inexistência de autores potencialmente nobelizáveis que escrevem em português, sendo a resposta negativa.
A possibilidade de premiar a terceira língua do ocidente e uma das mundialmente mais faladas, foi abordada várias vezes antes de ser galardoado Saramago. Teixeira de Pascoaes, Miguel Torga, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Lygia Fagundes Telles, António Lobo Antunes, também constaram da lista. Consta que Torga teria sido premiado, se não já falecido, apesar da quase ausência de livros seus traduzidos para sueco, sendo levantada a hipótese de subsidiar a sua obra, suprindo tal défice.
O que nos interpela para indagar do porquê de apenas um autor e escritor em língua portuguesa ter sido premiado, num universo de quase 300 milhões de falantes.
Para além da carência de escritores lusófonos traduzidos para sueco (principal língua escandinava, sendo a Suécia patrocinadora da entrega do Nobel de Literatura), também é indispensável, nos dias de hoje, a tradução no idioma global por excelência, ou seja, o inglês, deficiências atempadamente supridas por Saramago.
Quanto à visão eurocêntrica do mundo, subjacente à entrega do prémio, justificativa da falha de escritores lusófonos premiados, nomeadamente brasileiros, não se intui ser decisiva, dado que da lista dos nobelizados há um número significativo de todo o continente americano, que inclui o Canadá, Estados Unidos e toda a América Latina, continuadores e descendentes da Velha Europa, sem esquecer a Austrália e países como o Japão, segundo um critério estratégico do chamado Ocidente.
Por que não, por exemplo, subsidiar, se necessário, a tradução para inglês e sueco, entre outros idiomas, de autores laureados com o prémio Camões, da mesma natureza ou prestígio?
O que nos questiona sobre uma estratégia para a cultura, tendo como ideal, a este nível, uma parceria com os países de língua portuguesa, em que instituições como o Instituto Camões, Fundação Biblioteca Nacional do Brasil, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, incluindo entes privados como a Fundação Gulbenkian, tenham uma voz ativa, com um empenho de todas as partes, sem complexos ideológicos e políticos, em prol de um reconhecimento mais adequado, proporcional e razoável, até agora injustamente não alcançado.
“Metamorfose Necessária – Reler S. Paulo” de José Tolentino Mendonça (Quetzal, 2022) é um livro oportuno que devemos escolher para esta quadra de Natal como leitura utilíssima.
APROXIMARMO-NOS DO PRESÉPIO
Ao conhecer melhor o apóstolo dos gentios, aproximamo-nos mais do Menino que vai nascer. Através de Paulo e da sua conversão podemos, assim, entender melhor a essência da Epifania, representada metaforicamente na presença dos Magos no presépio, mas só compreensível através do fundamental encontro na Estrada de Damasco, em tudo o que representou e significou. Numa cronologia possível elaborada no livro pelo Cardeal Tolentino, mercê do que Paulo diz de si nas cartas e do que Lucas refere dele nos Atos, podemos elaborar um percurso: a conversão entre os anos 35 e 37, a evasão de Damasco entre 37 e 39, o incidente em Antioquia entre 43 e 44, a primeira viagem missionária entre 45 e 48, a Assembleia de Jerusalém (48-49), a segunda viagem missionária e a estada em Corinto (49-52), a terceira viagem missionária, com estada em Éfeso e três meses em Corinto (57-60), o cativeiro de Cesareia (60-64) e a morte ocorre provavelmente em Roma, entre 64 e 68. Julgamos que Paulo tenha sido um “fabricante de tendas”, que se orgulhava de, “graças ao seu trabalho, não depender das comunidades nem do patrocínio dos ricos”. Não sabemos, porém, em rigor, quantas cartas teria escrito Paulo, mas no cânone do Novo Testamento são-lhe atribuídas treze, pondo à parte a Carta aos Hebreus. Há consenso em reconhecer a autoria paulina de sete epístolas: a primeira aos Tessalonicenses, a primeira e a segunda aos Coríntios, e ainda as cartas aos Filipenses, a Filémon, aos Gálatas e aos Romanos. A estas designamo-las como autênticas, por análise literária, teológica e histórica, sendo as outras atribuídas a discípulos posteriores.
UM MODELO DE COMUNICAÇÃO
O encadeamento dos textos permite-nos ver como o apóstolo, o primeiro escritor cristão, começou de um modo simples e direto e passou, com o decurso do tempo, a usar os melhores “recursos da oficina literária” de um modo mais rigoroso, “a ponto de George Steiner dizer que poucos homens, na história da comunicação humana, acreditaram tanto no poder da palavra como Paulo”. E se há coisas algo difíceis de compreender, o certo é que há uma coerência, que encontramos e que nos ajuda a dar sentido ao conjunto do pensamento e das mensagens. “Paulo nunca foi um pregador solitário ou um one man show. Viveu toda a vida num ritmo comunitário, cultivou uma finíssima rede de relações pessoais, tinha um conjunto de colaboradores que partilhavam o seu quotidiano e o seu pensamento, operava numa verdadeira rede social que é parcialmente reconstruível”. E podemos acrescentar ao que nos diz o autor que se trata de uma “rede” aberta e dialogante (em contraste com o que tantas vezes encontramos em circuitos fechados). Trata-se de uma “teologia de pregação”, que interage com a vida concreta, que determina um sentido direto, dotado de capacidade de sedução, o que levaria supostamente Séneca, numa carta ficcionada dirigida a Paulo, a pedir-lhe: “Usa por favor uma linguagem correta, empresta aos teus nobres conceitos uma bela veste, de maneira que o generoso dom que te foi concedido possa por ti dignamente dar muito fruto”. E qual a chave do ensinamento de Paulo? Estamos diante de “um pensamento móvel, que se estende por declinações muito diversas, a partir de um centro fixo: o encontro com Cristo” – e assim se realiza a “experiência mística de um Cristo que está vivo”. E o apóstolo não pensa apenas no destino dos crentes, mas reflete sobre o destino humano e a metamorfose do mundo. Como diz o insuspeito Alain Badiou, o pensamento universal de Paulo supera a proliferação de alteridades (o judeu, o grego, as mulheres, os homens, os escravos, os homens livres, etc.) pela afirmação de uma equivalência igualitária. E Giorgio Agamben diz-nos que o essencial em Paulo incide sobre aquilo que resta (o resto que permite compreender o todo), que impede as divisões sumárias e impossibilita que as partes e o todo coincidam consigo mesmos. E assim supera a contradição do primado da lei escrita, “uma vez que divide a lei em lei das obras e lei da fé, lei do pecado e lei de Deus (Rm 7, 22-23) – e assim a torna inoperante -, Paulo pode então cumprir a lei na figura do amor”.
VER É SER VISTO
Mais do que viajante, Paulo é peregrino. E o seu ver “não é apenas um observar com os olhos da carne; é o ser visto, é o passar a ver com os olhos da fé”. E esta construção do anúncio cristão inscreve-se na encruzilhada dos mundos judaico-semita e helenístico-romano. “Paulo metamorfoseia o mundo e as relações, ao pensar alternativas de futuro”. E a Filémon diz, com clareza, que o dono e o escravo se devem reconhecer como irmãos. Mas então de que metamorfose falamos? Não por acaso, Lucas descreve Paulo caído por terra, com uma cegueira funcional, protagonista de uma reviravolta na vida – “Aquele que já nos perseguiu anuncia agora a fé que antes destruía” (Gal. 1, 23). E o cristão é para Paulo um sujeito crente em construção, sabendo que a fé é frágil e incompleta. Como Karl Rahner dirá: “o cristão do futuro ou será místico, ou não será cristão”. Urge que possamos experimentar, no sentido criador. “Deus, com efeito, não criou o homem; Ele cria-o e continuará a criá-lo. Nesse sentido, estamos sempre em estado de ser criados e de criar (…). Não somos simplesmente testemunhas de um passado. Cada pessoa é chamada a ser, e é já, um documento do futuro”. Eis a metamorfose necessária.