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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  
De 10 a 16 de fevereiro de 2025


Luís de Camões (1524-1580), cujo centenário comemoramos foi um verdadeiro intérprete de Portugal, assim o procuramos demonstrar.


UM CENTENÁRIO QUE REFLETE
Em 1880, por ocasião do terceiro centenário da morte de Camões, houve uma onda de entusiasmo que percorreu o país. Contudo o jovem Oliveira Martins, como os seus companheiros de geração, pondo-se de sobreaviso relativamente a todas as ilusões, afirmava: “Nós que abusamos demais das glórias conquistadas por nossos avós, supondo que elas bastam para nos justiçarem a fraqueza e os vícios, devemos considerar o Centenário como um incitamento a melhor vida; um Confiteor e não um Glória. Penitenciemo-nos, pois. Se o Centenário ficar como expressão nova de uma bazófia velha, melhor fora não se ter feito”. Esse foi, no entanto, um momento alto na tomada de consciência cívica. De facto, “o melhor modo de consagrar os heróis é repetir-lhes as façanhas. (…) São o carácter, a virtude, o heroísmo, que valem decerto mais que todas as luminárias”, e lembrava o historiador que as festas de Atenas só foram maiores depois da tomada pelos romanos, porque as celebrações póstumas são nostálgicas. E assim na década de noventa, passado o entusiasmo imediato este ardeu como a palha e “Os Lusíadas” voltaram a ser apenas uma saudade, dissipada a esperança de um momento. “A crítica tornava a exercer o seu papel de consoladora e mitigante, nas horas de desalento em que sentimos os braços quebrados para a ação. Camões tornava a pertencer à história de um passado extinto”, enquanto se varria para longe “a imagem desenhada nos horizontes luminosos de um dia”. Muitas e muito boas obras puderam, porém, enriquecer a literatura camoniana, salientando-se os estudos do visconde de Juromenha, de Teófilo Braga, bem como as traduções de Storck e de Burton, bem como, em paralelo, a edição da obra de Garcia de Orta e sobre a «Flora” de “Os Lusíadas”» pelo conde de Ficalho ou a edição de Sá de Miranda da autoria de Carolina Michaelis de Vasconcelos.


UMA HISTÓRA PRESENTE
Depois de o historiador ter escrito, quando estava em Espanha, em meio de charnecas bravias da Mancha, a dirigir as minas de Santa Eufémia, «Os Lusíadas: Ensaio sobre Camões e a sua obras, em relação à sociedade portuguesa e ao movimento da Renascença» (Porto 1872), refundiu-a quase vinte anos depois num notável trabalho de releitura, dado à estampa em 1891 - “Camões – Os Lusíadas e a Renascença em Portugal”, com uma estrutura semelhante à anterior mas com uma maturidade que demonstra bem a compleição cultural e literária do pensador e do artista da História - sem alterar “nem os lineamentos primitivos, nem o tom juvenilmente exuberante que lhe encontrava no estilo”. E o certo é que no fecho do prólogo da nova edição podemos ler uma afirmação que traduz bem o espírito de quem, ciente da decadência que se vivia, considerava que haveria razões para uma exigência de redenção, baseada num trabalho necessário de preparação do futuro: “Neste acabar de século, por tantos lados semelhante ao fim fúnebre do século XVI, quando morreram Camões e Portugal, o vivo desejo da minha alma é que, se efetivamente, está morta a esperança inteira e temos de abandonar a ideia de voltarmos a ser alguém digno de nome vivo sobre a terra, este livro seja como um ramo de goivos deposto no altar do poeta que, morrendo com a pátria, lhe cantou o glorioso passado, legando-nos o testamento de um futuro não cumprido”.


Importava, no fundo, compreender a circunstância que rodeara em 1572 a publicação de “Os Lusíadas” – porque “as grandes eras poéticas nunca são as da plena expansão enérgica das sociedades”. De facto, o poema épico foi publicado quando a pátria agonizante estava debruçada sobre a cova de Alcácer Quibir. E também Virgílio escreveu na época clássica de Augusto «quando Roma, terminada a época da sua expansão e grandeza, buscava nas instituições imperiais e na “imensa majestade da paz” o triclínio dourado e cómodo para ir passando os séculos da sua digestão apoplética. A incomparável epopeia virgiliana exprime, na sua perfeição, no seu rigor, no seu saber artístico, esse meigo descair de um sol que não dardeja mais os raios fulgurantes do meridiano, com uns longes de cansaço anunciando a doença».


ESPÍRITO DA RENASCENÇA
E no caso português, o espírito da Renascença centra-se no seguinte: “Toda a energia deste povo cristaliza em três atos: o imperialismo político, as descobertas e conquistas e o absolutismo religioso”. Na “História da Civilização Ibérica”, Oliveira Martins encontrará, a um tempo, as causas de decadência dos povos peninsulares e as características próprias de uma experiência crucial na história da humanidade. Fomos, assim, os romanos da Renascença, como dirá Camões, ao invocar a proteção de Vénus (“Afeiçoada à gente Lusitana, / Por quantas qualidades via nela / Da antiga tão amada sua Romana” – Canto I). E partilhando o idealismo espiritualista, capaz de exigência crítica, “Camões não é só o épico português da força e da fé, nem o épico da ciência e do comércio; é também um vate do pensamento filosófico moderno”. E deste modo “por um ato de vontade coletiva, Portugal quis ser e foi uma imitação de Roma” – e essa é uma chave que a visão camoniana consagra. “E esse ato de vontade, semente da sua energia heroica, deu fisionomia própria a um pequeno povo que primeiro vivera indistinto entre os vários reinos  da Espanha, apenas porventura caracterizado diferencialmente pelo lirismo da sua alma céltica, igual em todo o caso dos dois lados do Mondego, mais igual ainda em ambas as margens do Minho”. E a bela Vénus diz da língua portuguesa que, ao ouvi-la, “com pouca corrupção crê que é a latina” (Canto I). Por outro lado, reforçando essa semelhança heroica, “o foro português, à semelhança do romano, não era o atestado de uma ascendência consanguínea, mas sim o batismo em uma fé que não distinguia nacionalidades, nem origens naturais de raça, ou de religião”. E aqui temos o carácter paradoxal da herança camoniana que a geração de 1870 deseja que funcione como um desafio de vontade – cientes das vicissitudes várias e dos fumos da Índia de que Albuquerque falava. “É por isso que os Lusíadas, escritos em letra de ouro, sobre a candura de um mármore são (na expressão do historiado) o epitáfio de Portugal e o Testamento de um povo. Como Israel, com os seus cativeiros sucessivos, o português, abraçado à sua bíblia e enlevado no sonho messiânico do sebastianismo, amassado com lágrimas, balbuciará as estrofes de Camões sempre que vir apontar no céu uma aurora fugaz de renascimento, e sempre que contemple melancolicamente o crepúsculo saudoso do seu passado perdido”. No Portugal oitocentista, o épico apresentava-se como intérprete da história pátria num sentido profético, não com pendor fatalista, mas como futuro de esperança.    


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

LUANDINO VIEIRA

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Ourém homenageou Luandino Vieira, um dos seus mais ilustres conterrâneos, natural de Lagoa do Furadouro, para surpresa de alguns, já que a celebridade do escritor angolano e até o seu pseudónimo se devem à ligação íntima que estabeleceu com a cidade de Luanda. Tratou-se de uma iniciativa plena de significado, e foi com emoção que pudemos usufruir dos trabalhos realizados pelos estudantes das escolas sobre a obra do escritor. Ficou mais uma vez demonstrado como a atividade educativa pode desempenhar um papel fundamental não apenas na troca e difusão de conhecimentos, mas também na mobilização das comunidades no desenvolvimento da educação para a cidadania, pela construção de uma escola de cidadãos, como pretenderam os melhores pedagogos, de Maria Montessori ou John Dewey até aos nossos Luísa e António Sérgio. Que melhor promoção da cultura senão através da leitura participada? As bibliotecas escolares estão, assim, no centro de qualquer vida cultural. E deste modo pudemos reler com os olhos de sempre a obra de Luandino Vieira, designadamente “Luuanda”, através da sensibilidade de alunos e professores de Ourém.

 

Graças à iniciativa de Agripina Carriço Vieira, foi possível mobilizar o Município de Ourém e o Instituto Politécnico de Tomar numa importante reflexão sobre a vida e o exemplo do escritor luso-angolano. E Roberto Vecchi visitou os “Papeis da Prisão” como testemunhos vivos da revelação do que Eduardo Lourenço designou como o “nosso impensado”, a resistência e o combate pela liberdade. A força da cultura da nossa língua evidencia-se em tal determinação. E nessa reflexão, José Luís Pires Laranjeira, Lívia Apa, Tânia Macedo e Francisco Topa abriram horizontes sobre a vitalidade cultural de quando no livro “Luuanda” os casos se passaram “no musseque Sambizanga nesta nossa terra de Luanda”. E eis que podemos descobrir o que Carmen Tindó Secco afirmou sobre o facto, “de um modo próprio e genial”, de Luandino ter recriado “a língua portuguesa para refletir a oralidade angolana”. Vem à memória “Sagarana”, o inesquecível livro de contos de João Guimarães Rosa, cujo espírito renovador se projeta na escrita de “Luuanda”. E assim seguimos as três narrativas capitulares: “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, “A estória do ladrão e do papagaio” e “A estória da galinha e do ovo”, que tanto entusiasmaram os jovens leitores de hoje, surpreendidos pelo inesperado da criatividade vivida entre o português e o quimbundo, língua viva dos musseques. Como afirma Margarida Calafate Ribeiro: esta obra “ganhou um lugar tanto na história portuguesa como na angolana como um momento chave de enfrentamento”.

 

Quando Luandino Vieira recusou receber o Prémio Camões em 2006, fê-lo com o argumento que não tinha então uma ação continuada no mundo literário. Contudo fica claro que a sua presença na cultura da língua portuguesa é marcante como demonstrou o Grande Prémio de Novelística atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores em 1965, que originou a perseguição política e o brutal fecho da instituição presidida por Jacinto do Prado Coelho. O júri constituído por Alexandre Pinheiro Torres, Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, João Gaspar Simões e Manuel da Fonseca reconheceu de forma pioneira uma obra muito importante na moderna literatura portuguesa, daí que o Prémio Camões caiba com inteira justiça a Luandino Vieira, numa análise global de tudo o que nos deixa. 

 

GOM

NOTÍCIAS DO PARAÍSO

  

David Lodge (1935-2025) foi um mestre do romance satírico britânico e a sua obra encerra uma análise plena de ironia da sociedade em que vivemos, desmascarando a vaidade, a hipocrisia e a mesquinhez que a cada passo encontramos. Discípulo de Jonathan Swift ou de Henry Fielding, seguiu as pisadas de Evelyn Waugh, de Graham Greene ou até de Chesterton, fazendo chegar até nós o saudável espírito de um cristão inconformista, empenhado em distinguir o essencial e o acessório, pondo em primeiro lugar o sentido crítico e o respeito mútuo. Os seus maiores êxitos editoriais tornaram-se referências que ultrapassaram as contingências do tempo em que surgiram. Quando publicou O Museu Britânico vem Abaixo (1965) partiu da sua experiência como professor universitário, seguindo o percurso de um jovem estudioso de língua inglesa às voltas com uma dissertação com tema muito complicado sobre “A estrutura de frases longas em três romances ingleses modernos”. Contudo o investigador deixou-se distrair com as circunstâncias mais diversas e estranhas. No caso de Lodge como autor da tese sobre “O Romance católico desde o movimento de Oxford até aos nossos dias”, ele fez da carreira universitária o seu ganha-pão, aproveitando o facto para poder criticar, com humor e sentido crítico, a perversidade dos labirintos universitários e das suas endogamias. Em A Troca (1975), romance passado nas Universidades fantasiosas de Rummidge e Euphoric, em Inglaterra e nos Estados Unidos, dois professores de literatura inglesa trocam as suas posições durante seis meses, e deparamo-nos nesse cenário com o cabotinismo e a preguiça generalizados em busca de reconhecimento intelectual, entre congressos e conferências, à mistura com devaneios amorosos. Com um humor feroz, encontramo-nos perante o que Umberto Eco designou, cheio de ironia, como “picaresco académico”.  

Em How Far Can We Go (Até Onde Podemos Ir) (1980) o romancista põe em diálogo, com inteligência, ironia e até ternura, vários católicos que se conheceram nos anos cinquenta do século passado e que se veem confrontados com uma evolução dramática da espiritualidade, com as mudanças não apenas ditadas pelo Concílio Vaticano II, mas também pela sociedade contemporânea no tocante à tomada de consciência do corpo, a uma maior permissividade sexual e ao surgimento da pílula, no contexto de um confronto entre o tradicionalismo e a modernidade. Graham Greene dirá tratar-se de uma obra magnífica. Segundo David Lodge: “Ler é submeter a curiosidade e o desejo a um continuo movimento de uma frase para outra. O texto desvenda-se diante de nós, mas não permite que o possuamos. Mais do que desejarmos possuí-lo, deveremos obter o prazer de usufruir das suas traquinices”. De facto, a descoberta do prazer e dos jogos de sedução, permitindo compreender o que muda no mundo e na vida em cada momento, constitui uma permanente preocupação do escritor, na relação com a literatura e os seus leitores, como analisará nos casos de Henry James e H. G. Wells. Com efeito, as notícias que recebemos do paraíso obrigam a limitar os entusiasmos. Não nos devemos enganar. Daí a importância de uma boa dose de ironia, para que percebamos que não há mundo perfeito, mas a necessidade de termos sentido de autocrítica, para caminharmos com sinceridade e sabedoria...     


GOM

A ATUALIDADE DE EÇA DE QUEIROZ

  


Na varanda de casa de seus pais no Rossio, aquando do desfile de celebração da descoberta do caminho marítimo para a Índia (maio de 1898), José Maria Eça de Queiroz foi surpreendido por uma sentida ovação dos populares presentes na circunstância. Lembrei-me desse episódio quando assisti à cerimónia de concessão de honras de Panteão Nacional em memória do grande romancista da língua portuguesa, cuja importância ultrapassa em muito a nossa dimensão geográfica. Na manifestação espontânea de outrora, que muito sensibilizou o escritor, está simbolizada a justiça da homenagem de agora. Estavam então e agora representados cidadãos comuns, leitores, admiradores e amantes da língua comum, e nesse sentido o Panteão constitui um lugar de culto cívico que sai mais prestigiado pela chegada de um dos nossos imortais.

Citou o Presidente da República um trecho da carta datada de Paris em 28 de janeiro de 1890, dirigida a Oliveira Martins, que constitui um testemunho simbólico, onde sentimos ainda como Eça de Queiroz não seria indiferente a este reconhecimento. Daí a ligação das duas ocasiões – a do aplauso popular e a da confissão do mestre. A propósito de umas eventuais intrigas sobre o consulado de Paris, com epicentro no famigerado visconde de Faria, Eça pedia ao seu amigo que cuidasse de garantir a continuidade no consulado da cidade-luz, porém acrescentava: “Isto não quer dizer que eu não tenha desejo de recolher à minha Pátria; mas isso é difícil, por questões orçamentais, e a ficar na carreira, então desejo ficar em Paris. Se Vocês, todavia, homens poderosos, pudessem arranjar aí um nicho ao vosso amigo há tantos anos exilado, teríeis feito obra amiga e santa! Era necessário, porém, descobrir o nicho! E depois, arranjar do nosso bom amigo, o Rei, que eu fosse plantado no nicho! E dizer que, se eu, tivesse nascido dos Pirenéus para cá, e dado romances ao Petit Journal possuiria talvez 60.000 francos de renda”… Havia, no fundo, uma ligação íntima ao torrão natal e à nossa gente. E falando nas Notas Contemporâneas a propósito da demanda artificial de grandes homens que havia em França, Eça reconhecia que em qualquer escolha “a demonstração fica sujeita a dúvidas, a contestações, a protestos. Fica sobretudo incompreendida pela multidão”. Contudo, na distinção dos melhores, havia a exceção de Vítor Hugo, “pelo menos, é um grande homem – que não necessita demonstração”. E é disso que se trata no caso do nosso grande romancista.

Ele, melhor que ninguém, usou da ironia para distinguir o trigo do joio, e isso não se esquece quando se fala dos melhores, sabendo-se que a sociedade envolve todos, incluindo as respetivas caricaturas, os Acácios, os Pachecos e os Abranhos, dos quais não se conhecia obra, mas apenas inefável talento. O contexto da carta era o do Ultimato inglês, na sequência do Mapa Cor-de-Rosa, momento dramático da vida nacional, e a Eça parecia-lhe que o País acordava estremunhado e olhava em redor procurando um caminho. E Eça de Queiroz foi uma personalidade atenta, que, com espírito positivo, desejava que Portugal singrasse. A atualidade queiroziana está assim na sua obra, que importa ler e reler, e no retrato crítico e rigoroso da sociedade com os seus defeitos e qualidades que importa apurar, para sermos melhores.


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  
De 20 a 26 de janeiro de 2025


Preparando o segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco que ocorrerá no dia 16 de março a Imprensa Nacional e o Pato Lógico lançaram o livro “Camilo Castelo Branco – Amores de Perdição” da autoria de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada com ilustrações de Jorge Margarido.



O ELOGIO DA LEITURA
O incentivo à leitura, designadamente dos mais novos, obriga a uma atenção especial à divulgação dos autores clássicos e das suas obras fundamentais. A Imprensa Nacional criou uma nova coleção intitulada “Grandes Vidas Portuguesas – Portugal de Ontem, de Hoje e de Sempre, através de Vidas de quem o fez Grande” e no âmbito dessa iniciativa, acaba de publicar um pequeno volume dedicado a um dos maiores romancistas portugueses de sempre – Camilo Castelo Branco. Em vésperas de se iniciar a comemoração dos duzentos anos do seu nascimento, estamos perante a melhor oportunidade para dar ao grande público uma pequena mas sugestiva biografia para os mais jovens do primeiro escritor português que fez da escrita uma profissão exclusiva. Numa linguagem acessível e cuidada e com elevado sentido pedagógico, as autoras usam a sua experiência para nos apresentar não só os momentos fundamentais de uma vida atribulada, mas também as linhas essenciais de uma obra multifacetada que projeta para a opinião pública o testemunho de vida do seu autor. Pode dizer-se, assim, que podemos usufruir simultaneamente de duas dimensões – a vida e a obra de alguém que representou de modo exemplar o período atribulado em que viveu – abrangendo a guerra civil entre D. Pedro e D. Miguel, a implantação do regime liberal após a Convenção de Évora Monte (1834), a revolução de Setembro, a Patuleia e a Maria da Fonte e a acalmação ditada pela Regeneração. O percurso seguido por Camilo Castelo Branco compreende a tensão existente entre as ideias liberais dos meios urbanos e as resistências conservadoras dos meios rurais. O ambiente familiar, a memória da infância e da adolescência, o conhecimento de vida adquirido entre Lisboa e Vila Real vão fornecer ao romancista matéria-prima que lhe permitirá dar aos seus leitores um panorama extremamente rico nos temas e nas personagens.


UM TEXTO NECESSÁRIO
Temos, assim, um texto de grande utilidade, dando-nos um pano de fundo muito rico apto a caracterizar o país profundo na sua diversidade, obrigando a uma síntese entre as tradições vetustas do mundo rural e as influências dos ventos europeus da modernidade. De facto, a criatividade do romancista permite prender a atenção dos leitores ao tratar de temas envolvendo amores contrariados, conflitos familiares ancestrais, resistências em relação ao progresso, caciquismo, chegada dos emigrantes de torna-viagem, confronto entre campo e cidade. Contudo, Camilo é também um inovador na escrita e no estilo, não sendo o romântico de escola, antecipando-se mesmo nos terrenos naturalistas. Durante quase 40 anos, entre 1851 e 1890, escreveu mais de 260 obras, ou seja, mais de seis livros por ano. Prolífero e fecundo escritor, deixou, assim, obras de referência que se singularizam na literatura portuguesa. Quando esteve preso na Cadeia da Relação do Porto, sob a acusação de crime de adultério pela relação com Ana Plácido, legou-nos em “Memórias do Cárcere” (1862) um retrato duro mas pleno de interesse vital sobre as duras condições de vida no histórico estabelecimento, onde se vivia a pesada justiça oitocentista, tendo como fio condutor a experiência vivida na primeira pessoa em confronto com outros testemunhos de vida, que Camilo quis deixar para a posteridade, desde as histórias de um falsário à biografia de Zé do Telhado, passando por parricidas e infanticidas e ainda pelo pobre homem que matou o burro dum abade.


UM ENCONTRO HISTÓRICO
Visitando a Cadeia em 23 de novembro de 1860, o Rei D. Pedro V não regateou elogios ao romancista, declarando desejar vê-lo libertado, para poder prosseguir o seu brilhante percurso literário. Nesse período, apenas entre 1862 e 1863, Camilo publicará onze novelas e romances, atingindo uma notoriedade dificilmente igualável. É deste período “Amor de Perdição”, escrito na Cadeia em quinze dias, inspirado numa história familiar, mas, como esclareceu oportunamente, totalmente original, longe de qualquer tendência autobiográfica. Simão Botelho e Teresa Albuquerque protagonizam um intenso amor, elogiado na sua sinceridade plena. Em termos literários e considerando uma obra notável,  Jacinto do Prado Coelho considera Camilo «ideologicamente flutuante […] mantendo-se um narrador de histórias românticas ou romanescas com lances empolgantes e situações humanas comoventes». Assim, o seu romantismo é «um romantismo em boa parte dominado, contido, classicizado», havendo ao «lado do seu alto idealismo romântico a viril contenção da prosa, um bom-senso ligado às tradições e a certo cânones clássicos, um realismo sui generis, de vocação pessoal que parece na razão direta da autenticidade do seu romantismo».


De facto, esta visitação da vida e da obra do romancista de S. Miguel de Seide permite compreender a importância de Camilo, dando aos seus leitores oportunidade para beneficiarem da genialidade de um grande narrador.


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  
De 13 a 19 de janeiro de 2025


Ao atribuir a Helder Macedo o Prémio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural, o júri afirmou que o poeta, romancista, ensaísta, crítico, e professor, apresenta um percurso exemplar no campo da cidadania.

 


O PRIMADO DA LIBERDADE
“Vivendo em Moçambique, desde a sua juventude afirmou-se como uma consciência livre, considerando a liberdade como abrangendo a criação literária e artística, mas também o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência. Exilado em Londres a partir de 1960 foi colaborador da BBC e lecionou no King’s College onde ensinou Língua e Cultura Portuguesas, afirmando-se como prestigiado investigador. Após a Revolução de 25 de Abril exerceu em Portugal importantes funções na área cultural, tendo prosseguido, a par da criação literária e ensaística, uma ação persistente na cultura e educação em prol da língua portuguesa no mundo». A cidadania cultural constitui um modo de afirmação da liberdade e da justiça social como consequência natural da dignidade humana. A defesa dos direitos fundamentais e do Estado de Direito constitui, assim, uma experiência orientada para o respeito mútuo e para um saber de experiências feito centrado não em abstrações, mas na consideração de valores éticos enraizados na vida e numa prática dialógica em que eu e o outro se completam naturalmente.


UM PERCURSO DE RARA COERÊNCIA
Quando seguimos o percurso de Helder Macedo, verificamos que o intelectual faz da sua ação algo de coerente e complementar, como acontece quando lemos o romance Partes de África (1991), onde a fronteira entre os acontecimentos e a invenção é propositadamente ténue para que melhor se compreenda a importância da memória como verdadeiro artífice da História. À infância em Moçambique, segue-se a adolescência passada em Lisboa, tendo frequentado a Faculdade de Direito em finais de cinquenta. O primeiro livro de poesia Vesperal é de 1957 e foi saudado por Jorge de Sena como dos mais perfeitos “que por esse tempo se publicaram”, como domínio da expressão e do ritmo. Participa então no Grupo do Café Gelo, ainda que numa atitude de original independência, sempre crítica da situação e do conformismo político. Foi coorganizador com António Salvado das Folhas de Poesia (1956-58). Crítico do regime, exila-se em Londres, com Suzette Morgado de Aguiar, onde entre 1960 e 1971 colabora com a BBC. Aí encontra Luís de Sousa Rebelo, que desempenhou em Londres um papel fundamental na afirmação da cultura portuguesa, numa perspetiva aberta e livre. Em termos académicos Helder Macedo prefere obter as necessárias qualificações académicas, estudando Bernardim Ribeiro e Cesário Verde, e prosseguindo uma carreira docente ativamente portuguesa no King’s College. A primeira tese de doutoramento que orientou será sobre Herberto Helder.


Organiza Antologias de poesia portuguesa em língua inglesa (em 1973 e 1978, esta com E. M. de Melo e Castro). Funda a revista Portuguese Studies, que será premiada nos Estados Unidos (1987) e dirige o departamento do King’s College que inclui os estudos brasileiros e se expande para abranger estudos africanos e História – com muitos alunos que exerceriam cargos docentes relevantes em escolas e universidades inglesas, americanas e portuguesas. Após a revolução portuguesa de 1974 regressou a Portugal, quando, na sua expressão, deixou de ter de haver para os portugueses o “lá fora”. Foi assim diretor-geral dos Espetáculos (1975), Secretário de Estado da Cultura (1979). Em 1976, organizara a importante antologia Camões Some Poems (com Jonathan Griffin e Jorge de Sena). E entre 1981-82 foi professor visitante na Universidade de Harvard, tendo ainda lecionado em França, e no Brasil, nas Universidades de Campinas, S. Paulo e Federal do Rio de Janeiro. Regressado a Inglaterra foi titular da cátedra Camões no King’s College (1982-2004), função que acumulou com a de diretor do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, até 1991, sendo hoje Emmeritus Professor. Dirigiu ainda a revista da Associação Internacional de Lusitanistas. Em 1998 publicou Pedro e Paula, romance que é saudado positivamente pela crítica e em 2005 obtém o Prémio do Pen Club português pelo romance Sem Nome, dando à estampa ainda Tão Longo Amor Tão Curta a Vida (2013).


EM PROL DA LÍNGUA PORTUGUESA
Além de vasta produção poética, o grande ensaísta produziu textos fundamentais sobre o “Cancioneiro de Amigo”, a “Menina e Moça”, obtendo neste caso o prémio da Academia das Ciências (1977), e ainda sobre Camões e Cesário Verde, sendo autor com o seu amigo de infância Fernando Gil do notabilíssimo Viagens do Olhar: Retrospeção, Visão e Profecia no Renascimento Português, em 1998, que obteria os Prémios da Associação Portuguesa de Críticos Literários e do Pen Club português. Pode dizer-se que esta obra é indispensável (ainda para mais neste ano de Camões) para podermos ter uma visão de conjunto da cultura da língua portuguesa, na sua dimensão universalista. E assim se abrange: o efeito-Lusíadas, a sobrerrealidade do olhar em Camões, a poética da verdade na obra maior da nossa cultura, a História como profecia em Fernão Lopes e nos Príncipes da Ínclita Geração, as Crónicas portuguesas do século XVI, os enganos do olhar, Sá de Miranda e as ambiguidades do conhecimento, os modos do amor ausente nos mistérios do romance de Bernardim e nas suas obscuras transparências – por entre convergências e dissidências -, o apetite e a razão em Camões, envolvendo a distinção entre nacionalismo e pastoralismo, e culminando com dois estudos magníficos sobre o Padre António Vieira – desde o silogismo da Profecia á interrogação sobre dedução ou abdução no futuro tornado presente, culminando na consideração da profecia bíblica na Apologia das Coisas Profetizadas. O diálogo entre o filósofo Fernando Gil e o mestre da História Literária Helder Macedo – com uma bela incursão de Luís de Sousa Rebelo pelos cronistas - produz uma obra fascinante e inesgotável, tendo como centro irradiante Camões, em ligação com o extraordinário Imperador da Língua Portuguesa…


De facto, “o Renascimento português levanta problemas particulares, como sejam a viagem, o novo, o encontro com a diferença e como a pensar. As crónicas de viagem e de império constituem a sua expressão mais direta e aparente, e a sua importância fica devidamente assinalada no estudo que lhe consagra Luís de Sousa Rebelo. (…) Ver claramente visto põe simultaneamente o problema de ver o que ‘lá está’ e de como o que lá estivesse poderia ser visto. Este interrogar do exterior ia a par com modos novos de lidar consigo e com os outros”. Estamos, assim, no coração de um pensamento que se transforma. “As metamorfoses do eu através do amor” constituem, com efeito, temas que conduzem estas “viagens do olhar”. Ligando as considerações de Bernardim, Sá de Miranda, Fernão Lopes e Camões, descobrimos que a originalidade da posição do contributo português, culmina no Quinto Império, que é mais do que um sonho próprio uma ideia de refundação da humanidade. “Com efeito, os textos de Vieira mostram claramente que, menos do que Portugal, é antes o futuro do homem que se trata. (…) A evidência é ao mesmo tempo fundadora e insustentável: no amor como na profecia, na fundamentação da nação como nos fundamentos do eu” – como afirmam magistralmente os autores. E assim encontramos uma forte via racional no nosso Renascimento, que matiza o sentimento…  E eis como temos aqui uma marca de cidadania em que a cultura compreende a complexidade da vida, para além do sonho.


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De 6 a 12 de janeiro de 2025


Na semana em que ocorrerá a justíssima trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, recordamos a publicação da autoria de Alfredo Campos Matos de “Eça de Queiroz – Fotobiografia – Vida e Obra”, Caminho, 2007.

 


OPORTUNIDADE ÚNICA
A leitura desta fotobiografia constitui oportunidade única para conhecermos melhor não só a vida e obra de José Maria Eça de Queiroz (1845-1900), mas também a história do seu tempo, uma vez que poucas personalidades culturais portuguesas tiveram uma influência tão grande sobre o país, no tempo da sua existência e no século que se lhe seguiu. Como aconteceu tal? Através da capacidade excecional de retratar Portugal e os portugueses com argúcia e ironia, estabelecendo uma relação próxima com as grandes referências intelectuais do seu tempo. Nas suas personagens está o retrato de um País que ainda não desapareceu… Lembremo-nos da fotografia tirada no velho Palácio de Cristal do Porto em 1885, onde se encontram as cinco maiores referências culturais de então – Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. Depois de um encontro aparentemente fútil, em torno de um leque a oferecer à noiva de Eça, foi possível reunir lado a lado o suprassumo da elite desse tempo.


UM ROTEIRO NECESSÁRIO
Definindo um percurso rigorosamente delineado, o autor permite-nos seguir a par e passo quem foi o grande romancista, permitindo-nos ter contacto com o meio em que nasceu e viveu, a família, a Universidade de Coimbra, os amigos, a atividade diplomática que desenvolveu e a atenção que prestou ao país e ao mundo. Não faremos aqui uma análise exaustiva desta obra indispensável, limitar-nos-emos a seguir um breve roteiro de Lisboa do escritor. Quando se faz um roteiro, escolhemos alguns pontos focais que nos permitem fazer a peregrinação. No caso de Eça de Queiroz, na cidade de Lisboa, o Jardim de S. Pedro de Alcântara, o Chiado e o Rossio são os polos naturais. E nessa varanda sobre a cidade, onde, os amigos vindos de Coimbra estabeleceram o que designaram como Cenáculo, Jaime Batalha Reis explica: “E como Antero e eu nos tivéssemos habituado a estar juntos dia e noite, pensando em voz alta, conversando , discutindo esquecidos muitas vezes, quase, de tudo que não fossem as ideias em conflito dos mil sistemas, fomos viver ambos para S. Pedro de Alcântara, em frente da Alameda, na sobreloja de uma casa que foi depois substituída por um palácio moderno, perto do convento alto”. E que era o Cenáculo? Um ponto de encontro com desígnios elevados da mudança do mundo. E lá se encontraram ainda Eça de Queiroz, Teófilo Braga, Oliveira Martins e José Fontana. E as ideias germinavam. Aí nasceram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, ao mesmo tempo que em Paris, acabada a guerra franco-prussiana, tinham lugar os acontecimentos dramáticos da Comuna de Paris. Antero de Quental, Eça de Queiroz e Adolfo Coelho ainda puderam fazer as suas palestras, mas Salomão Saragga já não pôde, perante a proibição governamental. E a iniciativa que poderia ter passado discretamente, tornou-se um acontecimento, que continuou o grande debate sobre o Bom Senso e o Bom Gosto, de Coimbra, alargando-o, com o protesto veemente de Alexandre Herculano, não em nome de qualquer programa político, mas na defesa da liberdade de pensar e de falar. E se falamos das Conferências do Casino, não esquecemos a Revista Ocidental, onde começou a ser publicado o romance iconoclasta de Eça “O Crime do Padre Amaro”. E ao descermos a atual Rua da Misericórdia até ao Largo de Camões, seguindo a muralha fernandina, artéria que se chamou Rua Larga de S. Roque e Rua do Mundo, passamos à porta do Restaurante Tavares, onde Eça jantava com os seus amigos Vencidos da Vida, enquanto numa rua paralela no Largo da Abegoaria (hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro) se situava o Casino Lisbonense.


CHIADO LUGAR COSMOPOLITA
O Chiado é o segundo ponto por nós escolhido. Aí podemos encontrar as principais personagens dos romances de Eça. Paremos na esquina da casa Havanesa, loja refinada de tabacos, ponto de encontro dos janotas da altura. Nesta esquina o senhor Guimarães encontrou João da Ega a quem revelou a chave do mistério de “Os Maias”, entregando os papeis que provavam que Carlos Eduardo era irmão de Maria Eduarda. Por cima da Havanesa havia o Hotel Aliança, cujas persianas eram constituídas, na velha tradição lisboeta, por tabuinhas verdes descidas nas janelas, como “pálpebras pesadas de langor e de sono”, como Eça dirá em “A Relíquia”. Aqui encontramos o Conselheiro Acácio, despedindo-se apressadamente de Luísa em “O Primo Basílio” à porta da Basílica dos Mártires. Aqui estão as grandes lojas, o Jerónimo Martins, que representou o célebre azeite de Herculano, a Livraria Bertrand, a mais antiga da Europa, o restaurante Marrare do Polimento, lugar de muitos compromissos. Um pouco adiante o Teatro de S. Carlos, onde Carlos foi apresentado à condessa de Gouvarinho e onde Artur de “A Capital!” ficou deslumbrado por aquilo que viu na grande sala da ópera. No Chiado temos na atual Rua Ivens, antiga Rua de S. Francisco, o Grémio Literário e ao lado a casa onde morou a Maria Eduarda. O Grémio, fundado por Garrett, é referido em “O Primo Basílio”, “A Capital!” e “Os Maias” e foi aí que Eça primeiro leu “Les Fleurs du Mal” de Baudelaire. Descemos a Rua Garrett, antiga Rua Larga de Santa Catarina e aprestamo-nos a chegar ao terceiro ponto por nós escolhido – o Rossio. É um dos cenários principais da ficção queiroziana. Aí está a casa de seus pais num quarto andar, onde o escritor morava quando vem à capital. A varanda oferece sobre a praça um panorama surpreendente, que nos dá a sensação de termos a cidade a nossos pés. Aqui passeiam o Padre Amaro, o Conselheiro Acácio, Luísa, o Raposão ou Gonçalo Mendes Ramires. O consultório médico de Carlos Eduardo da Maia tinha janelas para o Rossio, tal como o dentista de Luísa, o Dr. Vitry, personagem real. Para o Rossio dava também o escritório do Dr. Vaz Caminha, patrono do nosso conhecido Alípio Abranhos. Foi aqui que na passagem do cortejo comemorativo da chegada à Índia de Vasco da Gama que Eça foi reconhecido e teve uma inesperada ovação popular. E, voltando à varanda do quarto andar da casa dos pais de Eça, avistamos, a norte, o que foi a entrada do Passeio Público, sacrificado pela abertura da Avenida da Liberdade, onde hoje é a Praça dos Restauradores. O Passeio foi cenário obrigatório em “O Primo Basílio” - aí Jorge conheceu Luísa, Luísa encontrou-se com Basílio junto do tanque e D. Felicidade esperou pelo Conselheiro Acácio afrontada pelas flatulências… E há reminiscências do velho Passeio Público um pouco por toda a parte na cidade, como o coreto do Jardim da Estrela concebido para o antigo sonho pombalino à imagem dos parques londrinos. E falando do roteiro lisboeta de Eça, temos de ouvir João da Ega a gritar “Lisboa é Portugal – Fora de Lisboa  não há nada. O País está todo entre a Arcada e S. Bento”…     


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

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194.  LITERATURA E TRADUÇÃO

 

“A razão do papel maior desempenhado pela tradução literária é evidente: foi graças às traduções que o checo se constituiu e aperfeiçoou como língua europeia de corpo inteiro, terminologia europeia incluída. Enfim, foi através da tradução literária que os checos fundaram a sua literatura europeia em língua checa e que a literatura formou os leitores europeus que leem checo”.
Milan Kundera

 

Sobressai a ideia de que uma nação só sobrevive culturalmente se deixar de ter uma visão paroquial, meramente utilitária e só centrada no seu umbigo, em benefício de critérios importantes para o mundo e toda a humanidade, onde o tradutor, como ator literário maior ou principal, tem o protagonismo.

 

As palavras de Kundera, inseridas num discurso ao Congresso dos Escritores da Checoslováquia, em 1967, sobre “A Literatura e as pequenas nações”, exclui o pensar de que uma germanização teria simplificado a vida dos checos, dado que a pertença a uma nação maior oferecia melhores oportunidades e alargava o alcance a todo o trabalho do espírito, incluindo a ciência.

 

Preserva-se e reafirma-se a identidade de um povo, atualizando-a, quando e se necessário, dando-a a conhecer ao Outro e recebendo, desse encontro, em reciprocidade, valores que os povos possam acolher, em igualdade, rumo à construção de um caminho em dignidade e humanidade.

 

Entre nós, por exemplo, refere-se como forte razão para o défice de apenas um escritor de língua portuguesa ter sido premiado com o Nobel da literatura, a pouquidade de tradução para sueco (principal idioma escandinavo, sendo a Suécia patrocinadora do prémio), a que se soma a insuficiência de tradução para o inglês, hoje a língua global por excelência (o que foi atempadamente suprido por Saramago).

 

Há também o perigo da globalização, inclusive em termos culturais quando, em rigor, deve ser a cultura o derradeiro abrigo que justifica e preserva a identidade e singularidade que nos autonomiza e diferencia, contrariando perspetivas estritamente hegemónicas e integracionistas. Só assim os pequenos povos conseguem defender a sua língua e a sua soberania, através do peso cultural do seu idioma e a natureza dos valores gerados com a sua ajuda.

 

Mesmo Portugal, que tem, através da lusofonia, uma das línguas mundiais maiores, não está imune ao fenómeno mundial de massas, dada uma intelectualizada, gradual e lamentável tendência de começar a priorizar o inglês à sua língua natal, a pretexto de facilitar o contacto com a ciência e o cosmopolitismo internacional, sem reciprocidade, o que pode e deve ser suprido, sempre que necessário, pela tradução para português (em sentido inverso), enriquecendo-o em termos de valor acrescentado e linguísticos.   

 

03.01.25
Joaquim M. M. Patrício

OS SEGREDOS DE UM ATLAS

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Na época de Natal, as principais revistas internacionais apresentam números especiais com reflexões aprofundadas sobre as realidades do mundo. Dentro de tal espírito, permito-me recensear um livro da maior oportunidade – Atlas Estratégico – Da hegemonia ao Declínio do Ocidente, de Gérard Chaliand, Nicolas Rageau e Roc Chaliand (Guerra e Paz, 2024). A sua consulta é indispensável para compreendermos os acontecimentos do momento e as perplexidades que geram. Sendo meu avô professor de História e Geografia, sempre me entusiasmaram os Atlas, e tratando-se deste pequeno livro, distante dos grandes monumentos conhecidos, vejo-me perante um excelente instrumento capaz de fazer entender muitos dos mistérios que nos assaltam quanto aos acontecimentos do presente e do passado. O momento que atravessamos é especialmente complexo. Da bipolaridade da Guerra Fria, passámos a um sistema de “polaridades difusas”, que deixa em aberto a previsibilidade quanto ao tempo futuro. Os cerca de cinquenta mapas que constituem o livro começam por acompanhar, desde a revolução francesa, o balanço da hegemonia da Europa sobre a Ásia e a África até ao início do grande século XX, no dealbar da Primeira Guerra Mundial. As potências europeias, lideradas pela Grã-Bretanha, e menos pela França, dominaram a cena internacional. Cerca de meia dúzia de Estados europeus, incluindo a Rússia czarista, imperaram sobre o continente asiático e repartiram entre si a África.

 

O domínio dos povos europeus foi ajudado pela revolução industrial e pelos grandes progressos militares. O conceito de Estado-nação substituiu progressivamente a noção de Império e a Europa foi a matriz da inovação científica e técnica. Os Estados Unidos mantiveram, porém, o velho continente fora do seu hemisfério. O Império Otomano, o grande doente da Europa, preservou-se após a guerra da Crimeia, graças à tensão anglo-russa, mas caiu inexoravelmente, pela dependência económica dos Estados mais influentes. O Imperio czarista expandiu-se na Ásia e a imensa região que se estendia do Turquestão até ao norte da Índia, de língua e cultura persas, ficou sob domínio russo e a sul sob controlo dos ingleses. A revolução bolchevique (1917) abriu, como sabemos, um novo caminho. A China dominada pelos Manchus desde 1644 foi o último dos impérios da Ásia oriental a cair.

 

No fim da Segunda Guerra, em 1945, a Europa dividiu-se entre os dois vencedores: os Estados Unidos da América e a URSS. Os povos colonizados tentam emancipar-se, a revolução chinesa avança, a libertação da Índia leva à separação entre indianos e muçulmanos, a Guerra da Coreia (1950-53) termina sem a vitória dos EUA – e de 1947 a 1991 desenvolvem-se as guerras frias sem confronto direto das duas superpotências e a Guerra do Vietname abriu uma mudança essencial. Foi o tempo da “paz impossível, guerra improvável” de Raymond Aron e da lógica de contenção de George Kennan, que culminou no colapso, fragmentação e destruição da ex-União Soviética.  Mas continuou a Guerra Fria, nas Fases 2 e 3 (1991-2022). O panorama geopolítico apresenta a região do Indo-Pacífico como centro de gravidade do grande conflito entre a China e os EUA e seus aliados. Putin sofre do erro de avaliação de atacar a Ucrânia e procura minorar estragos. E para a Europa, o plano Draghi é de sobrevivência, em nome da confiança e da relevância.

GOM