Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Há 750 Anos, a 7 de março de 1274, morria em Fossanova (Lácio) S. Tomás de Aquino, um dos mais influentes teólogos de sempre, que hoje está a ser relido a uma nova luz, deixando vestes conservadoras, para passar a ter uma leitura avançada e original.
E SE VIVESSE NOS DIAS DE HOJE? Há anos, Umberto Eco perguntava: o que faria Tomás de Aquino se vivesse nos dias de hoje? Aperceber-se-ia de que “não poderia nem deveria elaborar um sistema definitivo, como uma arquitetura acabada, mas preferiria uma espécie de sistema móvel, uma Suma de folhas substituíveis, porque na sua enciclopédia das ciências entraria a noção de provisoriedade histórica. Diria, por certo, que deveria pensar outra coisa”. De facto, como afirmou Karl Rahner o aquinense era um místico consciente de que Deus está para além de qualquer possibilidade de expressão. Tanto mais saberemos de Deus quanto mais nos dermos conta da nossa incapacidade e das nossas limitações para compreender a transcendência. Por isso, S. Tomás sempre se atreveu, ousando a ser lúcido acerca dos limites da nossa ousadia.
Os próximos três anos marcarão três grandes aniversários da trajetória de S. Tomás de Aquino: seu nascimento, sua morte e sua canonização. Em 2025 será comemorado o seu nascimento. Não se conhece a data exata, mas é sabido que nasceu em Roccasecca no Lácio, no ano de 1225 numa família influente. Os dominicanos em Toulouse, na França, onde o grande filósofo e teólogo está sepultado, celebrarão o “Doutor Angélico” com vários eventos, que permitirão revelar a sua inesperada atualidade, como o Concílio Vaticano II reconheceu expressamente. Em 2023 passaram 700 anos da sua canonização que ocorreu em 18 de julho de 1323, sob o magistério do Papa João XXII, num momento a partir do qual a sua celebridade correu o risco de poder perder a força espontânea da sua originalidade. O tempo, porém, foi permitindo compreender que a principal virtude do seu contributo foi a do apelo constante a poder ver a presença de Jesus Cristo como companheiro das nossas audácias e exigências.
UM TEMPO DE REFLEXÃO No ano corrente, assinalam-se os 750 anos da morte, que ocorreu em 7 de março de 1274. Estas três ocasiões são motivo para termos um melhor conhecimento da sua personalidade e da sua obra, o que constitui um apelo permanente ao seu espírito de renovador da fé, de quem compreendeu o amor, o respeito mútuo, as bem-aventuranças e a compreensão do bem comum como um sinal prático e humaníssimo da vida humana. Chesterton disse que “Tomás de Aquino surgiu de maneira estranha e algo simbólica no centro do mundo civilizado do seu tempo, no ponto central onde os poderes controlavam a cristandade”. E assim pôde revolucionar o modo de pensar, indo descobrir no mundo grego Aristóteles para abrir novas perspetivas sobre a realidade. “Com argumentos sinceros pôde escalar as torres mais altas e falou com os anjos sobre os telhados de ouro”, para usarmos de novo a expressão do autor de “O Homem que era Quinta-feira”. E recordemos um célebre discípulo português, Frei João de S. Tomás, O.P. (1589-1644), que procurou seguir com fidelidade a orientação de S. Tomás de Aquino na procura de uma ligação entre a contemplação e a ação. A contemplação é uma certa forma de ação interior, dinâmica, progressiva, operante, dependendo da fé mas também do conhecimento, como resulta da teologia dos dons do Espírito Santo, entre os quais se encontra o dom do entendimento. E a contemplação anseia, como o veado do salmo, pelas águas frias dos regatos das montanhas, no sentido da visão distante e próxima do amor divino.
CONVERSÃO E IMAGINAÇÃO O padre Giuseppe Barzaghi, O.P., dominicano, professor de Teologia fundamental e dogmática na Faculdade Teológica da Emilia Romagna e docente no Estúdio Filosófico Dominicano de Bolonha, na obra La maestria contagiosa, estudou o tema essencial do poder imaginativo de S. Tomás, demonstrando como o grande teólogo foi um mestre na cultura de imagens, enquanto discípulo de Aristóteles, que disse em De Anima, na tradução latina feita por Guilherme de Moerbeke, nihil intelligit anima sine phantasmate. O que isso significa? Nossa alma não entende nada sem imaginação. Quando tentamos entender algo, é por meio de uma conversio ad phantasmata. Devemos converter-nos à fantasia, segundo a relação entre a contemplação e a ação. E isso significa dar exemplo. É por isso que S. Tomás continua fascinante. Ele nunca deixa uma visão, digamos, teoricamente rígida, descoberta, a não ser reconduzindo-a à descoberta das imagens, que são os exemplos e formas de podermos compreender a vida e os outros, a que não podemos ser indiferentes.
Quando quer representar a atividade de nossa razão no conhecimento, O Doutor Angélico toma a imagem do voo dos pássaros e diz: há o pássaro que voa de forma circular e rodando, ou o voo que vai para frente e para trás, ou o voo que vai de cima para baixo e de baixo para cima. O movimento circular é o movimento contemplativo, que vai para frente e que liga a causa e o efeito, e que vai para trás, do efeito para a causa. De cima para baixo é a dedução, de baixo para cima é a indução. Lembrando o voo dos pássaros trazemos à mente todas as formalidades da atividade cognitiva, e compreendemos a importância da contemplação e da ação. Eis como S. Tomás de Aquino nos ensina a compreender a complexa realidade que nos cerca, a humanidade que nos enriquece, a dignidade que nos afirma e reconhece, a fé, o conhecimento e a ação que nos animam. “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt., 5, 8).
Villa Regina, Fábrica Velha, Bairro dos Espelhos, Valmares e um mistério – eis as referências. Milene estava em casa por volta do meio-dia a ouvir os “Simple Minds” e tocaram à porta dois agentes da Guarda Nacional Republicana a perguntarem se ela sabia onde estava a avó Regina. E então tudo se precipitou. E uma pergunta terrível ficou por responder. Por que razão e como aconteceu tudo aquilo? “Tudo o que tinha a fazer era imaginar que todas essas coisas caladas se conjugavam para encobrir a noite de quinta-feira, de propósito para ela mesma não saber o que dizer aos tios”. A avó Regina morreu e ela estava só. O romance de Lídia Jorge constitui a base para o filme de Jeanne Waltz, no qual nos deparamos com belas imagens do Sotavento algarvio e o cenário da memória de uma antiga fábrica de conservas, num tempo em que tudo mudou intensamente com a chegada de novas pessoas, encontros e desencontros. E tornam-se evidentes dois mundos, à primeira vista irreconciliáveis, mas dentro do mistério que domina o curso dos acontecimentos, há por obra e graça talvez do acaso a presença sempre enigmática da jovem Milene Leandro, que temos de considerar singular na sua distância de tudo, cuja ingenuidade, lentidão e simplicidade de sentimentos e raciocínio vão, ao longo do romance, torná-la a principal protagonista, respondendo às interrogações fundamentais e revelando o essencial quanto ao destino da vida, sendo vítima da perversidade e da violência, mas capaz de ver o mundo com uma lucidez que os outros não vislumbram.
Parecendo não compreender, Milene é quem melhor entende o fio condutor da existência. E se há distância entre o romance e o filme, já que são duas realidades complementares e diferentes, é porque a literatura é mais adequada a revelar o drama e a força de Milene, em cada silêncio ou em cada palavra, que vêm do íntimo de si mesma. E é através das mãos de Milene que o leitor e o espectador entram na complexidade do tema, atualíssimo, do confronto entre nós e os outros, entre o mundo utilitarista e a procura da essência das coisas, entre supostas certezas e diferenças necessárias. E assim estamos perante um filme, executado com rigor e serena parcimónia, com o desenvolvimento de uma boa história, com bons desempenhos, mas que não dispensa a leitura do romance, que, esse sim, constitui a verdadeira chave para a compreensão da mensagem de Lídia Jorge, que é simultaneamente de uma dura análise do género humano, mas também de uma mensagem de abertura e de esperança, não baseada numa visão doce das coisas mas na adequada consideração do drama, sem a qual nos arriscamos a deixar à indiferença a compreensão de que temos de recusar o medo dos outros e da incerteza. Afinal, o caso perante o qual nos encontramos associa um amor, um crime e um silêncio para sempre selado.
“O Vento assobiando nas Gruas” permite-nos compreender como o encontro de Milene (Rita Cabaço), esquecida pela família Leandro, com Antonino Mata (Milton Lopes), operador da grua, membro do extraordinário clã crioulo, viúvo com três filhos, é pleno de ensinamentos para os tempos de hoje. E, para além da grande representação de Milene, com um desempenho irrepreensível num papel difícil de uma personagem que vamos compreendendo melhor ao longo filme (como acontece no romance), merece referência a presença de Dino d’Santiago com o tema “Filho do Vento”, que bem representa a cultura cabo-verdiana do funaná, das mornas e coladeiras bem evidente na encenação que presenciamos. Milene, nos seus silêncios e repentes inesperados, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundidos, obrigando-nos a ir ao encontro da forte e rica criação literária de Lídia Jorge, que tem aqui uma referência marcante na sua obra, felizmente tão fecunda.
Emílio Rui Vilar – Memórias de Dois Regimes (Temas e Debates, 2024) constitui um documento de grande importância, da autoria de António Araújo, Pedro Magalhães e Maria Inácia Rezola.
DISCURSO DIRETO Ao aproximarmo-nos do cinquentenário da revolução de Abril, importa reunir reflexões e testemunhos que nos permitam compreender a génese e o desenvolvimento dos acontecimentos históricos, não numa perspetiva comemorativa, mas num sentido que permita compreendermos a democracia como processo dinâmico, numa lógica prospetiva, de modo que o Estado e a sociedade civil se reforcem, através de instituições mobilizadoras e participativas, que permitam mediações que assegurem a vitalidade e a permanência do Estado de Direito, como sistema de valores baseado no primado da lei, na legitimidade do voto e do exercício e numa cidadania ativa. O melhor método neste sentido deve basear-se no testemunho e no exemplo de quantos se entregaram ao serviço público com inteligência e generosidade. Só o exemplo e a experiência podem ajudar no sentido das mediações eficazes, suscetíveis de impedir as tentações providencialistas que enfraquecem e destroem as democracias. Emílio Rui Vilar – Memórias de Dois Regimes (Temas e Debates, 2024) constitui um documento de grande importância, no qual os autores, António Araújo, Pedro Magalhães e Maria Inácia Rezola, conduziram entrevistas realizadas ao longo de vários meses, que permitiram um relato na primeira pessoa de um percurso de alguém que teve uma intervenção privilegiada na transição entre o final do Estado Novo e o alvor da democracia. Seguimos assim, desde a contestação ao regime anterior, em especial no meio universitário nos anos sessenta, a guerra colonial, a criação da SEDES, o fracasso da chamada “primavera marcelista”, a ocorrência do movimento de 25 de abril e os primeiros anos de institucionalização da democracia, em que Emílio Rui Vilar exerceu funções governativas em três Governos Provisórios e no Primeiro Governo Constitucional.
UM DOCUMENTO FUNDAMENTAL A leitura da obra é extremamente agradável e útil, acompanhando num ritmo vivo não apenas as raízes familiares do protagonista, mas também a progressiva entrada do jovem na vida social e cultural do seu tempo, avultando o facto de na Universidade de Coimbra ter sido fundador do Círculo de Artes Plásticas, organismo autónomo da Associação Académica, no qual convidou diversas personalidades, com grande sucesso, entre as quais a então surpreendente Maria de Lourdes Modesto, para falar sobre o Olfato e o Gosto, o que lhe valeu surpreendente reprimenda do reitor de então. Contudo, o teatro no CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) viria a ser um dos grandes motivos de afirmação do jovem Emílio Rui, enquanto presidente ativo e inovador, com uma militância cultural muito apreciada. Miguel Torga, Paulo Quintela, António Pedro, ou os jovens Eliana Gersão e António Barreto encontramo-los nesta imersão teatral que tão boas recordações deixou, apesar dos naturais dissabores com a censura, que impediu a representação de “O Crime na Catedral” de T. S. Eliot. O carro da queima das fitas desenhado por Vilar, apesar da admiração que este tinha por Camus, chamava-se “Les Mains Sales” em homenagem à peça de Sartre, levando os melhores alunos de orientações políticas diversas, mercê de uma camaradagem tolerante.
Em 1962, é mobilizado para o serviço militar e vai para a Escola Prática de Cavalaria em Santarém, no mesmo ano de Cavaco Silva e José Vera Jardim. Parte para Angola como Alferes miliciano, regressando três anos depois. “A situação militar em meados de 1965 era de razoável controlo dos itinerários – explica-nos. Fora dos itinerários principais havia o risco das minas e de emboscadas”. Contudo ainda não havia zonas de conflito fora do Norte, porque o MPLA ainda não tinha iniciado atividade militar. Com o regresso à vida civil, volta para o estágio de advogado no Porto, mas depressa vai trabalhar na Administração, nos setores das Comunicações e Transportes e na Educação, até que lhe chega o convite de Vasco Vieira de Almeida para o Banco Português do Atlântico de Cupertino de Miranda. A experiência da gestão bancária torna-se essencial, permitindo alargar horizontes. O ano 1969 será especialmente profícuo, uma vez que as economias portuguesa e internacional conhecem profundas alterações, ligadas à internacionalização. António Champalimaud lança uma ofensiva junto do BPA, dando sinal de que o tecido económico se movimenta.
OS SINAIS DE MUDANÇA Perante os sinais de mudança, considera que estes deviam ser aproveitados para a abertura e a fundação da SEDES será um momento fundamental. Vilar é eleito o primeiro presidente da Associação, por ter uma posição equidistante. A SEDES é o resultado de um “caldo de circunstâncias” e da “confluência de outras linhas de força” – “um conjunto de ideias e preocupações que, num grupo muito plural e com trajetos diversos, tinham o denominador comum da consciência de que era preciso encontrar uma saída, que a guerra não podia continuar eternamente”. A nova Associação junta “os católicos pós-concilares, os tecnocratas com o sentimento comum de que era preciso ultrapassar o bloqueio que existia no país”. O método dos cenários é adotado no exercício “Portugal, para onde Vais?”. Trata-se, no fundo de procurar caminhos visando a democracia. No entanto, 1972 é o ano da perda total das esperanças, com a reeleição de Américo Tomás. Francisco Sá Carneiro ainda faz uma tentativa de convencer o General Spínola a candidatar-se. Miller Guerra e Sá Carneiro renunciam aos lugares na Assembleia Nacional e ocorre a vigília da Capela do Rato. Apesar da perda de ilusões, a SEDES lança uma importante iniciativa cívica na Defesa do Consumidor, que leva à constituição da DECO. A experiência da SEDES será, no entanto, muito importante para Emílio Rui Vilar, e em 25 de Abril, torna-se um símbolo, quer ao surgir entre os primeiros responsáveis políticos a ter voz na RTP, quer ao ser chamado para os Governos Provisórios. A sua independência partidária é essencial.
Os pormenores na descrição da vida política no tempo dos governos provisórios têm um interesse indiscutível. Sentem-se as tensões e as contradições, os choques entre o poder militar e o poder civil, e a posição moderada de Rui Vilar é alvo de desconfianças. É importante a sua participação, no início de 1975, na feitura do Programa de Política Económica e Social, sob a coordenação de Ernesto Melo Antunes. “Dentro do grupo havia um razoável consenso. Claro que havia um bloco mais teórico e académico, constituído pelo Vítor Constâncio e o Silva Lopes. A Maria de Lourdes era a mais idealista. E depois havia um terra-a-terra, que era eu, que procurava que as coisas tivessem alguma aderência à realidade e a alguma viabilidade”. Tudo se precipita, porém, depois dos acontecimentos de 11 de março de 1975, finalizando a tentativa de realismo. A unicidade sindical, as nacionalizações, a radicalização do MFA, um difícil pacto para garantir as eleições da Assembleia Constituinte, a um ritmo alucinante. E.R. Vilar conhece o desemprego, mas em outubro de 1975 regressa como vice-governador do Banco de Portugal, e depois de 25 de novembro haverá uma Constituição democrática em 1976 e será Ministro dos Transportes no I Governo de Mário Soares. É um relato fascinante em que emergem o bom senso, a inteligência e a determinação.
António Quadros (1923-1993) era um espírito aberto e livre que conhecia muito bem as raízes da cultura portuguesa e que pensou Portugal a partir da modernidade e das suas relações com a tradição.
COMPREENDER A HISTÓRIA Para António Quadros, não havia contradição entre o caminho histórico português e o desejo de olhar o futuro como um desafio de transformação. Nesse sentido, foi original na sua atitude, capaz de compreender a multifacetada e heterogénea atitude, por exemplo, de Fernando Pessoa, enquanto inclassificável e indomável. É, por isso, impossível encerrar António Quadros numa leitura retrospetiva da sua obra, sendo uma pessoa atenta à realidade que o cercava, como “homo viator”, capaz de compreender, como poucos, a filosofia da existência, assumida por Karl Jaspers e Gabriel Marcel, como podemos encontrar com nitidez em «Histórias do Tempo de Deus» (1965).
Quem conheceu António Quadros sabe bem a singularidade e a riqueza da sua atitude – de um homem de verdadeiro diálogo, nunca encerrado sobre qualquer posição de superioridade ou de certeza. E se, para entendermos o pensamento, precisamos de conhecer os pensadores, a verdade é que o humanismo e a proximidade eram referências que o tornavam alguém para quem o ato de pensar tinha a ver com a necessidade de nos compreendermos e aproximar-nos mutuamente. A dúvida metódica foi sempre uma leal conselheira para Quadros na demanda da verdade – já que considerava que à categoria tradicional do ser tornava-se necessário acrescentar a categoria do estar (ou do existir), donde decorria que a verdade deveria ser entendida com algo que englobava, que abarcava, que integrava a vida, ou seja, uma simbiose do testemunho pessoal e existencial, em que a transcendência tinha de partir da dignidade humana. Nesse sentido se demarcou de uma atitude transpersonalista, para assumir o reconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana. «Não reconheço verdadeiramente adversários em minha volta (disse um dia), porque de todos me sinto irmão na origem da minha atividade, na geratriz da minha energia ao serviço de uma causa». E não podemos esquecer a invocação do Quinto Império de Vieira e de Pessoa, como domínio, não do poder, mas da cultura e do espírito, a realizar quando se unirem, o que o poeta chamava o lado direito e o lado esquerdo da sabedoria. O lado direito é o do conhecimento, do transcendente e do místico e o lado esquerdo o da ciência, da filosofia, da experiência e da razão. A criação do futuro haveria de resultar dessa ligação e dessa complementaridade.
RESPEITAR O PASSADO «Desde muito cedo me choquei com a maneira como os portugueses falam de Portugal». Numa entrevista ao «Diário de Notícias», a Antónia da Sousa (11.3.93), fala-nos dessa sensação estranha que lhe causava o derrotismo fatalista. «Uma maneira constantemente depreciativa. Confundiam os aspetos materiais com os aspetos espirituais. Então, acho que essas pessoas (que são de todos os géneros, no meio intelectual e não só) não dão uma chance a Portugal. Põem Portugal no banco dos réus e condenam-no». Se é verdade que hoje a crise é mais sentida, o certo é que somos levados a ir além das simplificações. Não meias-tintas, temos mesmo de responder, sob pena de perdermos. «A minha mola psicológica (dizia António Quadros) é tentar ajudar a criar um outro estado de espírito, em que as pessoas possam entender melhor a razão de ser de Portugal e aquilo em que Portugal é grande e desconhecido».
Fora de uma mitificação da identidade, o que estaria em causa era o entendimento de que «a identidade portuguesa não é (…) qualquer coisa estática, mas qualquer coisa a construir». Daí a preocupação do ensaísta em reunir ideias e pensadores que animaram e contribuíram para a afirmação do país – como Fernão Lopes, o Padre António Vieira, os homens da Renascença Portuguesa, alguns do «Orpheu», como Fernando Pessoa… E António Quadros, um dos animadores do jornal «57», ao lado doutros discípulos de José Marinho e Álvaro Ribeiro, foi-se preocupando em alargar horizontes e esferas de reflexão. À ciclotimia portuguesa, haveria que saber contrapor o estímulo e a resposta de Arnold Toynbee, que nos levou além dos limites, perante os exigentes desafios da provação e da subalternidade. E assim pudemos ir superando: mediocridade, irrelevância e periferia. Portugal precisaria de pensar por si próprio. «Portugal, quanto a mim, nasceu para realizar uma obra de sentido universal e nós temos de estar à altura dessa exigência». E seguia as pisadas de Camões, de Vieira ou de Pessoa, refletindo sobre a complexa relação entre o mito e a profecia. Afinal, a previsão científica em História é, segundo pensava, mais problemática que a profecia. Esta, parte de uma crença e a ciência pode partir de um erro. Nunca a História ou o historicismo conseguiram fazer previsões ou leis, embora tal tenha sido tentado várias vezes. Afinal, os mitos e as profecias, mesmo que postos em dúvida, constituem o imaginário de um povo – sem o qual a identidade não existe. Leia-se, por isso, «Memórias das Origens – Saudades do Futuro» (Europa-América, s.d., 1992), livro dedicado a Afonso Botelho, Ariano Suassuna e Lima de Freitas.
AS BIBLIOTECAS DA GULBENKIAN Refiro o pensamento de António Quadros, para invocar o seu papel de pedagogo e de estudioso da cultura, desde o papel fundamental desempenhado na Fundação Calouste Gulbenkian, até à fundação do IADE (Instituto de Arte e Decoração). E atenho-me em especial às Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, cujas repercussões são de uma importância fundamental. Pode dizer-se que a abertura de horizontes na educação em Portugal se deveu em parte importante a essa missão crucial. Em 1958, por sugestão de Branquinho da Fonseca foi convidado para integrar os quadros do recém-criado Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, onde ocupou sucessivamente os cargos de Presidente da Comissão de Escolha de Livros, Inspetor-Geral, Diretor-Adjunto (1969) e de Diretor de Serviço depois da morte de Branquinho da Fonseca (1974) e de Domingos Monteiro (1980). Até dezembro de 1974 foram examinadas pelo Serviço 11.499 obras, tendo a Comissão de leitura sido inicialmente dirigida por Domingos Monteiro e constituída por António Quadros e Tomás Kim (Monteiro Grilo), sendo mais tarde composta por Patrícia Joyce, Maria João Vasconcelos, Natércia Freire, Orlando Vitorino e Breda Simões. António Quadros desenvolveu o seu trabalho nas Bibliotecas Itinerantes durante vinte anos, constituindo essa a sua principal atividade profissional. Percorreu o país de norte a sul, o que lhe permitiu um conhecimento circunstanciado do património cultural português, tendo constituído um acervo de imagens, fundamental para o conhecimento da História de Arte portuguesa.
A partir de 1971 assumiu a direção-geral do IADE, sendo docente das cadeiras de História da Arte e de Cultura Portuguesa, o que manteve ininterruptamente até 1992. Acumulou essa função com as de Diretor-adjunto das Bibliotecas Itinerantes, sob a direção de Branquinho da Fonseca, lecionando ainda na Universidade Católica Portuguesa Deontologia da Comunicação. Em 1972 com a demissão de Lima de Freitas como diretor do IADE deixou a direção-adjunta das Bibliotecas, ficando como Inspetor-Geral e vogal da Comissão de Leitura. Após o falecimento de Branquinho da Fonseca, em maio de 1974, António Quadros foi nomeado para exercer interinamente as funções de diretor de serviço das Bibliotecas Itinerantes, o que acontece até 1975, com a nomeação de Domingos Monteiro, regressando ao cargo de Inspetor-Geral. Depois da morte de Domingos Monteiro assumiu de novo o cargo de Diretor do Serviço das Bibliotecas Itinerantes (1980), mas no ano seguinte decidiu reformar-se antecipadamente na Fundação Gulbenkian, dedicando-se à sua obra, mantendo a atividade como diretor e docente do IADE e da Universidade Católica.
Nos domínios em que exerceu atividade, António Quadros demonstrou sempre uma grande coerência, considerando que «o grande problema moderno não é um problema económico, é um problema de valores e há uma riqueza de valores em suspensão em toda a cultura portuguesa». A verdade é que o pensador nunca desistiu da tarefa fundamental de «desentranhar esses valores», fazendo-os trazer para a luz do dia. O que deveria ser construído como império do futuro, não seria uma quimera, deveria ser algo a criar com o nosso pensamento e esforço. Com as Bibliotecas Itinerantes, a cultura ia até junto das pessoas nos lugares mais recônditos Tratava-se de um «mundo de valores que nos pertence a nós criar». Um país antigo apenas pode persistir com conhecimento, vontade e determinação. E, por isso mesmo, o pensador deixou-nos um apelo de esperança: «acreditem em Portugal, porque Portugal está no mais fundo de cada um de nós e sem Portugal sereis menos do que sois».
O Museu Bordalo Pinheiro acaba de publicar Conversas Soltas – Guerra Junqueiro e Rafael Bordalo Pinheiro, de Mariana Roquette Teixeira e Pedro Bebiano Braga.
OBSERVADOR ATENTO Observador atento da cultura portuguesa, José-Augusto França foi porventura o melhor analista da nossa realidade histórica na passagem do século XIX para o século XX. Ligando de forma natural a realidade artística e a evolução política pôde deixar-nos na sua abundante produção literária e científica um retrato rigoroso sobre um tempo contraditório e paradoxal – aparentemente decadente, mas de facto profícuo no sentido da tomada de consciência das nossas fragilidades e erros, em simultâneo com o entendimento crítico sobre a necessidade de recusar um qualquer fatalismo do atraso. Quando lemos os textos agrestes da Geração de Setenta, percebemos que a crítica sem dó nem piedade possui não as cores da desistência, mas o aguilhão da vontade de renascimento. Daí a ligação das gerações anteriores de Garrett e Herculano às gerações seguintes de “A Águia”, de Pascoaes e Cortesão, de “Orpheu” de Pessoa, Amadeo e Almada, e da “Seara Nova”, de Sérgio, Brandão e Proença. Afinal, os companheiros de Antero de Quental, de Eça, Ramalho, Oliveira Martins e Junqueiro constituíram a placa giratória que permitiu chegarmos onde estamos, à democracia europeia e universalista, onde desejamos continuar com a exigência crítica que Eduardo Lourenço nos indicou na sua psicanálise mítica em “O Labirinto da Saudade”.
ZÉ POVINHO, CLARO… Em julho de 1903, Rafael Bordalo Pinheiro representou na figura emblemática de Zé Povinho a descrição da nossa História: «deitando-se na fuga de D. João VI, levantando-se em 1820 e em 1836, deitando-se na paz de Gramido imposta pelas potências vizinhas chamadas por D. Maria II contra a Maria da Fonte, levantando-se aquando do Ultimatum, deitando-se depois numa ‘soneca real’, à sombra de uma seca ‘árvore da Liberdade’, donde sobre ele, defeca o passarão do juiz Veiga das perseguições à imprensa… Porque, diz a legenda, o Zé Povinho ‘nunca se levanta que não se deite’». Zé Povinho é o símbolo de que somos da autoria do nosso mais célebre caricaturista. E J.-A. França diz-nos certeiramente: “Duas culturas (…) podem ser supostas, num país sujeito à centralização pombalina e jacobina do Terreiro do Paço, Praça do Comércio com século e meio de perenidade política, económica e social. Nela o Zé Povinho, rural urbanizado à força, em trajo e espertezas, em certa medida, ditas saloias, alfacinha por não poder ser outra coisa, necessariamente frutificou, para além do espaço de vida do seu criador, numa multiplicação de vidas menores”. No fundo, o Zé Povinho resume a evolução cíclica da nossa realidade – entre a albarda e o manguito. E há sempre a predisposição para largar uma em nome da soberana negação, como resposta direta, sem nostalgias nem saudades – “Queres fiado?...”. As duas culturas são incindíveis. Bordalo Pinheiro definiu, afinal, como os seus contemporâneos de 1870, o patriotismo prospetivo para não nos deixarmos arrastar pela indiferença ou pela sonolência. Tratou-se do apelo severo à vontade crítica. Zé Povinho está sempre pronto a levantar-se e a atirar os aparelhos ao ar. E Ramalho não esconde: “um dia virá em que ele mude de figura e mude também de nome, para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo”.
CONVERSAS SOLTAS O Museu Bordalo Pinheiro acaba de publicar Conversas Soltas – Guerra Junqueiro e Rafael Bordalo Pinheiro, de Mariana Roquette Teixeira e Pedro Bebiano Braga. Aí podemos encontrar a ilustração do que acabamos de dizer. «“Poeta exímio e cavaqueador inimitável” – foi assim que Rafael Bordalo Pinheiro descreveu o amigo Guerra Junqueiro quando o visitou na sua casa em Viana do Castelo, em 1887». E nos “Pontos nos ii” publicou uma vista do interior da casa do poeta, onde são evidentes as loiças, os móveis e as obras de arte do colecionador. Mas o momento-chave deste encontro entre Bordalo e Junqueiro está no episódio relatado por Luís Oliveira Guimarães, ocorrido pouco depois das Conferências Democráticas de 1871 e da célebre publicação do álbum humorístico “A Berlinda”. “Uma noite, Bordalo entrou no Martinho (do Rossio), abancou à mesa de Junqueiro, onde já abancara Guilherme de Azevedo e, quando os dois menos esperavam, segredou-lhes: - Vocês querem reformar as instituições? – Não queremos outra coisa – responderam ambos. – Pois então vamos fazer um jornal de caricaturas. Vocês escrevem, eu desenho… - Está dito.”. Falamos da “Lanterna Mágica” (1875) da autoria de Gil Vaz, sendo Gil, Guilherme de Azevedo e Vaz, Guerra Junqueiro. Foi, no entanto, muito fugaz esta experiência, apenas de maio a julho. Mas o sucesso não se fez esperar, o que levou a que a folha se tornasse diária no último mês de publicação. A partida súbita de Bordalo Pinheiro para o Brasil, para colaborar em “O Mosquito” do Rio de Janeiro, interrompeu a empresa. Iriam ser precisos quinze anos para que Junqueiro e Bordalo voltassem a colaborar, quando no fragor patriótico do Ultimatum, o poeta pediu ao desenhador duas ilustrações para o seu “Marcha do Ódio”, sobre um velho cavaleiro, que é Portugal, que encontra a morte num combate injusto e desigual. A publicação fez-se, e ainda no ano de 1890, os “Pontos nos ii” imprimem “O Caçador Simão”, violenta crítica de Guerra Junqueiro à inação de D. Carlos, inicialmente dado á estampa em “A Província” e “O Globo”. Ainda no mesmo ano, Bordalo publicaria com destaque duas intervenções parlamentares do poeta, as derradeiras como deputado progressista. Recorde-se, porém, que Junqueiro já fora especialmente invocado nos “Pontos nos ii” aquando da publicação de “A Velhice do Padre Eterno” (1885). E na correspondência entre ambos, nota-se ainda a tentativa de reunir textos significativos do grande amigo, quase esquecido, Guilherme de Azevedo, falecido em 1882, companheiro na “Lanterna”, o celebrado Rialto do “Álbum das Glórias”. Infelizmente tal não passou de projeto.
Em 1892, “O António Maria” publica, a propósito da saída de “Os Simples” uma significativa homenagem a Junqueiro, representado com uma coroa de louros numa pose glorificadora, quando o poeta afirmou: “Engana-se quem entre ‘Os Simples’ e ‘A Velhice do Padre Eterno’ descobrir porventura contradições. Este lirismo é o reverso daquela sátira”. Contudo, a última homenagem de Rafael Bordalo Pinheiro ao seu amigo Junqueiro ocorreu a propósito da publicação do poema “Oração ao Pão” em “A Paródia” (1902). É uma homenagem tocante, na qual o poeta surge como semeador de trigo e de palavras, vestido de mujique (como o mestre Tolstoi), trazendo um turíbulo aceso, donde saem nuvens de incenso. E J.-A, França refere a grande seriedade emotiva da caricatura, marcada pela palavra “Oremus!”. A caricatura é um verdadeiro testamento. Raul Brandão referir-se-á a “um pregador socialista-tolstoiano, um santo cavador, de barba negra e inculta”. E Bordalo Pinheiro não esconde a amizade profunda e a admiração pelo artista, que tão bem compreendeu o humor e o picaresco e que tanto o apoiou no projeto da Fábrica das Caldas da Rainha.
"Du personnalisme au fédéralisme européen - en Hommage à Denis de Rougemont", Centre Européen de la Culture, Genève, 1989, é um livro oportuno no momento em que duas guerras às portas da Europa exigem o reforço do projeto europeu.
MARE NOSTRUM, EUROPA NOSTRA Nos quarenta anos da morte de Denis de Rougemont, lembramos que a Europa que herdámos nasceu em volta do Mediterrâneo e depois tornou-se continental ao longo dos séculos. As guerras civis europeias do século XX, com projeção mundial e resultados trágicos, levaram a que, sobretudo depois de 1945, tenha havido um forte movimento pan-europeu, que o Congresso de Haia de 1948 procurou projetar e desenvolver como um sobressalto cívico e um fator preventivo de futuras guerras e conflitos desregulados. Denis de Rougemont, no Centro Europeu de Cultura, de Genebra, foi um dos principais protagonistas dessa ação intelectual, que passou pela descoberta de autores e correntes de pensamento europeístas. Milan Kundera disse um dia que o europeu poderia ser definido como aquele que tem nostalgia da Europa. Tendo afirmado que na Idade Média a unidade europeia era baseada na religião e na Idade Moderna na cultura, perguntava qual seria o fator atual de unidade? Não há homogeneidade nem uma nação europeia, mas um caleidoscópio heterogéneo, pleno de complementaridades. No entanto, vista de fora, a Europa tem uma personalidade, muitas vezes olhada com desconfiança. Na célebre conferência de Genebra de setembro de 1946, Karl Jaspers procurou dar resposta a este intrincado problema. O pensador falou então de Liberdade, de História e de Ciência como marcas da personalidade europeia. “Se queremos citar nomes, a Europa é a Bíblia e a Antiguidade. (…) A Europa está nas suas catedrais, nos seus palácios, nas suas ruínas, é Jerusalém, Atenas, Roma, Paris, Oxford, Genebra, Weimar. A Europa é a democracia de Atenas, da Roma republicana, dos suíços e dos holandeses, dos anglo-saxões…”. Sentimos, no íntimo de nós a Europa como lugar de múltiplas diferenças, que trazem consigo a audácia da liberdade. A Liberdade (para Jaspers) significava inquietude e agitação, vitória da vontade sobre o arbitrário. A consciência trágica liga-se, assim, à esperança cristã, e o diálogo entre culturas torna-se busca de uma consciência de si. A História é a lógica sequência da Liberdade – situando o que é real e o que é possível, a partir da pessoa humana, num caminho inesgotável. A Ciência, por fim, parte da ideia de que o saber nos torna mais livres, pelo sentido crítico, pela experiência e pelo uso equilibrado da razão.
NOME PREMONITÓRIO O adjetivo “Eurôpos” significa o que é largo e espaçoso. Como pessoa, “Eurôpé” quer significar aquela que tem grandes olhos – que permitem ver longe. Há afinidades evidentes com Eurídice. O rapto da formosa Europa por Zeus, transformado em touro, é a alusão mítica referenciada quando falamos da designação do velho continente. Uma princesa da Ásia trazida para a Grécia liga a civilização fenícia à cretense. Em 1948, o Congresso Europeu de Haia deu o sinal: haveria que usar um novo método na reconstrução da Europa e do mundo, depois da catástrofe da guerra. E a declaração de Paris de Schuman (9.5.1950) consagraria o objetivo defendido pelos intelectuais na capital holandesa. É neste contexto que se insere a obra de Denis de Rougemont, empenhado em lançar as bases desse novo método, baseado na descentralização e na subsidiariedade. As pessoas e os cidadãos devem, assim, ser a base de uma nova construção, não centrada na perspetiva nacional e nos egoísmos agressivos ou protecionistas, mas na procura de uma via pacífica e funcionalista, baseada na economia e na sociedade. Não se trataria de criar um Estado Europeu nem uma nação europeia, mas de construir uma solidariedade de facto e de direito, centrada no pluralismo e nas diferenças, numa palavra, unidade na diversidade. Daí a importância da procura das raízes comuns, não em nome da harmonização, mas sim de uma realidade complexa. Fernand Braudel, o historiador da economia, falou do carácter pioneiro e necessário do projeto europeu. Mas perguntava: “A unidade política da Europa poderá fazer-se hoje não pela violência, mas pela vontade comum dos parceiros? O programa desenha-se, levanta entusiasmos evidentes, mas também sérias dificuldades”. E o historiador lança os alertas necessários, uma vez que a construção europeia depressa se tornou menos um projeto político de cidadania, para ser uma mera adição de preceitos técnicos e de burocracias. “É inquietante verificar que a Europa, ideal cultural a promover, venha em último lugar na lista dos programas em causa. Não há uma preocupação nem com uma mística, nem com uma ideologia, nem com as águas falsamente acalmadas da Revolução ou do socialismo, nem com as águas-vivas da fé religiosa. Ora a Europa não existirá se não se apoiar nas velhas forças que a fizeram, que a trabalham ainda profundamente, numa palavra se negligenciarmos os humanismos vivos. (…) Europa dos povos, um belo programa, mas que está por formular”. Mais do que invocarmos os grandes idealistas, somos chamados a dar um salto desde os ideais até à realidade. E quando recordamos Denis de Rougemont ou Altiero Spinelli, não podemos esquecer os funcionalistas (como Jean Monnet) e os políticos europeus (como De Gasperi, Schuman, Delors e Mário Soares). A Europa do futuro constrói-se com mais política, com melhores instituições, com Estados de Direito e Uniões de Direito. Longe da tentação de construir instituições artificiais (que se tornam perigosamente reversíveis). Do que se trata é de superar os egoísmos nacionais pela salvaguarda sã das diferenças culturais (os Estados-nações não podem ser esquecidos, mas têm de subsistir, compreendendo que se tornaram, a um tempo, grandes e pequenos de mais). No fundo, é a dignidade da pessoa que está em causa, como sempre insistiu Alexandre Marc, um militante europeu centrado na liberdade e na dignidade humana. Do que se trata, pois, não é de criar uma identidade europeia, mas de entender a complexidade do pluralismo e das diferenças “Com um pouco de nervo político (diz o filósofo alemão Jürgen Habermas), a crise da moeda comum pode acabar por produzir aquilo que alguns esperavam em tempos da política externa comum – a consciência, por cima das fronteiras nacionais, de compartilhar um destino comum europeu”.
«Istambul – A História de Três Cidades» de Bettany Hughes (Planeta, 2023) permite-nos compreender como uma cidade que se encontra na fronteira entre o Ocidente e o Oriente pode ajudar-nos a entender a importância do diálogo entre culturas diferentes e complementares.
TRÊS CIDADES APAIXONANTES Bettany Hughes, historiadora e publicista, venceu em 2018 o Prémio Europeu Helena Vaz da Silva, atribuído pela Europa Nostra, representada em Portugal pelo Centro Nacional de Cultura. O prémio foi-lhe atribuído pelo trabalho que tem realizado em livros e documentários televisivos na defesa e divulgação do Património Cultural europeu e universal. Estava-se no ano europeu dedicado ao tema e a sua atribuição correspondeu à exigência de pôr a tónica na noção abrangente de Património, não como realidade do passado, mas como realidade viva, envolvendo a herança recebida das gerações anteriores, incluindo a criação contemporânea – numa ligação íntima entre património material e imaterial, monumentos e tradições, natureza e paisagem, arte e ciência, considerando a História como realidade de que somos todos protagonistas. Daí a importância do património comum da humanidade, enquanto fator de paz e desenvolvimento, como salienta a Convenção de Faro, do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na sociedade contemporânea. O livro de Bettany Hughes de que falamos (Istambul, A História de Três Cidades, Crítica - Planeta, 2023) data originalmente de 2017 e constitui um notável testemunho sobre a importância de uma urbe de referência, que envolve a história de três cidades, num ponto de encontro único entre o Oriente e o Ocidente. Se nos reportamos ao Mediterrâneo mítico, quando avistamos o Bósforo da cidade de Istambul, lembramo-nos da deslumbrante paisagem do estuário do Tejo, e percebemos que as duas cidades se relacionam numa relação mimética. Não espanta, por isso, que muitos testemunhos recordem como Calouste Gulbenkian, quando vivia em Lisboa, no alto do Monsanto, recordava embevecido, em tardes amenas, a sua terra natal, olhando o estuário do Tejo. Por isso, muitas gravuras de Constantinopla assemelham-na a Lisboa e os clássicos, ao elegerem Ulisses como mítico fundador da cidade, fizeram-no, por certo, a pensar nessa íntima ligação mediterrânica.
UMA HISTÓRIA INESGOTÁVEL. - Bizâncio, Constantinopla e Istambul são pontos de ligação entre o Oriente e o Ocidente, o Norte e o Sul. Durante os seus mais de oito mil anos de história, estamos perante uma capital de Impérios, o romano, o bizantino e o otomano, onde se estabeleceram fenícios genoveses, venezianos, judeus e vikings. Há um movimento permanente de gente, de comércio, de transportes, de negócios – que constitui uma importante Economia-Mundo que nos leva a compreender a importância da cidade, para além das mil vicissitudes que acompanham a sua história. Quando lemos o retrato de Orhan Pamuk da sua cidade compreendemos bem que qualquer simplificação impede a compreensão das virtualidades desse encontro de culturas e de vontades. Centremo-nos em Santa Sofia – Haghia Sophia. Para Bettany Hughes tudo na cidade se desenrola e desenvolve em torno deste verdadeiro símbolo da humanidade. É um modelo de arte e de audácia. A cúpula dourada apresenta-se como suspensa no ar, representando a gravidade, a graça e a transcendência, servidas por uma construção exemplar que recorre a uma grande heterogeneidade das matérias-primas – tijolos de Rodes, pinturas, mosaicos, pilares, arquitraves, tetos revestidos a prata, mármore vindo de todo o império bizantino. Imagens poderosas representam uma espiritualidade pujante e serena. As memórias de Teodora e Justiniano (século VI) estão bem evidenciadas neste que foi durante cerca de mil anos o maior templo cristão da humanidade. E o fascínio da cidade corresponde à evidente complementaridade entre as diferentes fases históricas que a caracterizaram. Os vestígios bizantinos estão bem presentes no centro histórico, designadamente nas muralhas internas e externas construídas por Teodósio, avultando os complexos sistemas de cisternas subterrâneas para captação e fornecimento de águas. A magnífica Porta Dourada era o terminal da Estrada Romana, e quando hoje visitamos as ruas comerciais do centro histórico, na Sultanahmet, quase não nos apercebermos de que no dédalo complicado de vielas, pisamos o que foi outrora a via usada pelos Imperadores bizantinos nos grandes cerimoniais.
SETE COLINAS – COMO ROMA E LISBOA. - A cidade é antiga, plena de recantos e segredos, a que não faltam as Sete Colinas, que unem nas suas raízes a antiga Roma à cidade de Constantino e até a Lisboa. Quando percorremos um compêndio de História sobre a cidade, encontramos mil relatos de batalhas e combates. Não é estranho imaginá-lo, já que hoje mesmo estamos paredes meias com o tremendo conflito ucraniano e a evocação renascida da Guerra da Crimeia. O Bósforo é a fronteira da Europa e da Ásia, mas apenas foi aberto como o conhecemos 5500 anos antes da nossa Era. Foi o resultado de um gigantesco e dramático movimento de águas, que elevou o nível do Mar em cerca de 70 metros… E o certo é que o Bósforo hoje ainda esconde um curso de águas doces. Contudo esta ligação do Mar Negro ao Mediterrâneo encerra um potencial de espanto, de riqueza e de risco para a cidade, já que se permite o acesso da Rússia aos mares quentes do Sul e garante à Turquia a influência no Levante Mediterrânico.
Quando Constantino escolheu Bizâncio para sua capital ponderou seriamente as vantagens nas rotas do Oriente, preferindo a cidade do Bósforo à hipótese mítica de regresso ao que teria sido a antiga cidade de Tróia, onde quer que a mesma se tivesse situado verdadeiramente. Em 28 de outubro de 312 a vitória de Constantino sobre Maxêncio na Batalha da Ponte Mílvia abriria caminho a um período novo da história romana. Pouco antes da batalha teria mandado que pintassem nos escudos dos soldados uma cruz, tendo ainda avistado nos céus o milagroso lema “In Hoc Signo Vinces” (também invocado pelo nosso D. Afonso Henriques na mítica batalha de Ourique). Constantinopla seria capital do Império Romano de 330 a 395 e depois do Império Romano do Oriente (395-1204 e 1261-1453) e ainda do Império Latino (1204-1261). Mas foram os efeitos dramáticos da Quarta Cruzada que deixaram uma onda irreversível de destruição em Constantinopla, de que a cidade nunca recuperaria, sobretudo em razão de uma governação frágil e caótica no período do chamado Império Latino. O Império Bizantino seria reduzido à cidade, que se tornou um enclave dentro do Império Otomano, até que o sultão Maomé II tomou Bizâncio após um cerco de cerca de um mês em 1453, tornando-se a cidade capital otomana, em lugar da antiga Adrianópolis (Edirne). E foi o acontecimento de 1204 que contribuiu decisivamente para a destruição de Bizâncio e do Império Romano do Oriente. Bettany Hughes não tem dúvidas, porém, sobre o facto de Istambul ser ainda a capital não oficial da Turquia – “com muita da energia e vibração cosmopolita de que desfrutou ao longo da História”. Eis como o património cultural vivo marca o tempo.
Eu não confio no Estado. Eu confio na vigilância da sociedade.
Não tenho filhos, mas leitores, capazes por si sós de defenderem a civilização contra os avanços da barbárie. A eles nomeio sucessores de uma linguagem irrenunciável. E, embora duvide às vezes se vale defender alguns princípios hoje contestados, persisto em inscrever certas normas no código dos direitos humanos.
E que ninguém abandone o arado da literatura que se lê e vive em fôlegos de grandeza responsáveis pela manutenção da pátria-poética na esteira de si, no coroar de toda a trajetória literária e na esteira também de Saramago.
Nélida: a musa de quantos viveram também na sua convivência, na sua vizinhança, aquela mesma que nos legou uma narrativa luminosa.
Traduzida em mais de 30 países, Eduardo Lourenço, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Alberto Mussa entre tantos outros criadores de linguagens como William Faulkner ou Pedro Páramo - tão evocado por Jorge Luís Borges -, nunca descuraram a poderosa trajetória de Nélida Piñon.
Escritora integrante da Academia brasileira, dela, na emoção da despedida, escreve Evandro Afonso um epitáfio à sua palavra-luz de onde centro, proa e quilha se confiam à vigilância da sociedade, à respiração de onde é tantas vezes alheio o próprio Estado.
Como afirmava Nélida, os tribunais quase inquisitórios proliferam nas mãos dos perguntadores de serviço esgrimindo artríticos poderes: homens em declínio como perfeitas imagens de solidão.
Que vigilantes sejam as gentes a tanta ambiguidade! Que se não desatentem do quanto as sombras fantásticas gritam! Digo.
Nélida morre em Lisboa em 2022 em plena pandemia, mas deixa-nos a pedra obsidiana, aquela do seu livro “Um Dia Chegarei a Sagres”, análise poderosa de decadências e esplendores humanos quando fundo e superfície são um reter e um libertar.
Miguel de Unamuno foi porventura o pensador espanhol que mais intensamente procurou compreender a cultura portuguesa. O texto que se segue demonstra isso mesmo.
QUE SÉCULO DE OURO? «Sem negar o valor de alguns dos clássicos portugueses, devo dizer que, em meu entender, a literatura portuguesa, que merece ler-se, data do século passado, do período romântico, da época de Almeida Garrett e de Herculano. E creio que a sua verdadeira idade de ouro é a atual». Assim se exprime Unamuno sobre a literatura portuguesa, em texto datado de Salamanca, de março de 1907. De que falava o pensador? Naturalmente, das repercussões poderosas na geração de 1870, de que falámos há dias, não escondendo profunda admiração pelos seus protagonistas – Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão. Os três primeiros já não faziam parte do número dos vivos quando o mestre escreveu, mas os dois últimos ainda estavam presentes. E o mestre salmantino invoca uma célebre conversa com Guerra Junqueiro: «O Cristo espanhol, dizia-me uma vez Guerra Junqueiro, está sempre no seu papel trágico: nunca baixa da cruz, onde, cadavérico, estende os seus braços e alarga as suas pernas cobertas de sangue; o Cristo português anda por costas e prados e montanhas, com a gente do povo, diverte-se com eles, merenda, e de vez em quando por pouco, para desempenhar o seu papel, regressa à cruz. (…) Aqui há o culto da morte; só que em vez de ser trágico, como em Espanha, é elegíaco e triste»… E ao dizer isto, o mestre sente encantamento. É verdade que não deixa de reconhecer, por comparação, as virtudes da literatura catalã, mas nas letras portuguesas vê um sinal da originalidade e o selo de uma identidade viva. E considera João de Deus o mais português dos nossos líricos do momento, corroborando Junqueiro esta consideração sentida. Mas Antero de Quental é outra coisa – comparável aos maiores na filosofia e na sensibilidade poética. «Em Espanha não temos nada que se assemelhe. Campoamor é a seu lado um falsificador do ceticismo. Quental foi uma das almas mais atormentadas pela sede de infinito e pela fome de eternidade. Há sonetos seus que viverão enquanto viva a memória das gentes, porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas dos homens atormentados pelo olhar da esfinge». António Nobre apresenta o tom de um desespero resignado ou de resignação desesperada, que aparece noutros passos da literatura portuguesa.
CHORAR AMARGO, RIR BURLESCO Quer o chorar amargo, quer o rir burlesco fazem parte da mesma atitude. E vem à baila Eça de Queiroz e as suas implacáveis sátiras que são tão dolorosas e exprimem queixume, como a mais triste das elegias. Os exemplos são significativos – A Ilustre Casa da Ramires e A Cidade e as Serras, mas também a corrosiva e supercrítica Correspondência de Fradique Mendes. Compreenda-se que é o autor do Sentimento Trágico da Vida a falar, apaixonado pelo caráter complexo do português. Há uma identidade construída num cadinho com ingredientes inesgotáveis. Mas Camilo Castelo Branco, com “alma tormentosa e apaixonada”, teria sido mais espanhol que português, com sinais de Quevedo. E Ramalho fala de proximidade com a dinastia dos Amadises e dos Palmeirins, numa participação evidente nas raízes do génio peninsular. E Oliveira Martins – o mais artista e penetrante dos historiadores - na História da Civilização Ibérica faz a análise desse génio, ilustrando-o com acontecimentos e com a demonstração das evidentes diferenças e complementaridades. Mas, para que não restem dúvidas, fica ainda para Unamuno a visão profética da língua portuguesa (e das línguas ibéricas) nas novas culturas da América do Sul, com evidentes e imprevisíveis potencialidades. Mas o pessimismo português impressiona o autor de Agonia do Cristianismo – que sobre Oliveira Martins diz que “o português é constitucionalmente pessimista”. O regicídio de 1908 deixa-o atónito, procurando compreender tão violenta expressão da ira do manso. «Neste povo doce, pacífico, sofrido e resignado, mas cheio de paixão por dentro, os crimes de sangue são raros, muito raros, raríssimos; mas entre os que ocorrem costuma havê-los muito mais atrozes e violentos que aqui em Espanha, onde por desgraça são mais frequentes tais crimes do que ali». Na literatura há manifestações contraditórias – para Herculano, a quem faltaria veia de artista, a literatura era uma missão e não um diletantismo, contudo para Garrett as coisas seriam diferentes já que usou a arte para descobrir o fundo do palpitar das entranhas portuguesas. “Que ouviu? Um coro de aflições tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança vaga, etérea na imaginação de uma jovem tísica e no desvario de um escudeiro sebastianista”. Eça cultivou a arte por ser estrangeirado…
ACREDITAR OU NÃO… Miguel de Unamuno julga ver nestes diversos sinais que “estes elegíacos pessimistas não acreditavam na pátria”. E lê as últimas páginas de Portugal Contemporâneo. "Submissos até quando se rebelam”. O país dormiria e sonhava – seria dado despertar ainda a tempo? Parece haver contradição entre considerar uma idade de ouro literária e artística e verificar a persistência de uma passividade endémica. Mas é na superação dessa contradição que os homens da Geração de 1870 e da Vida Nova vão poder encontrar forças para superar o atraso. “Não foi por acaso que Herculano falou do plácido sepulcro rodeado de esperança?”. E Unamuno recorda então o culto muito português das almas do Purgatório, lembrando-nos do mar como um enorme lugar de naufrágios e de mortes. Não por acaso, a nossa criação literária alia o lirismo e a história trágico-marítima. E invoca a figura do “Desterrado” de Soares dos Reis, como um autêntico símbolo, daquilo que o escritor não sabe explicar sobre o que o atraía Portugal. “Que terá esta terra, por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Eu não sei; mas quanto mais lá vou, mais desejo voltar. (…) Parece que por ali pousa a lúgubre sabedoria do Eclesiastes. Num povo triste, tristíssimo, as pessoas divertem-se, sem dúvida, mas divertem-se como se dissessem: comamos e bebamos, que amanhã morreremos”. Marcado pela morte do amigo Manuel Laranjeira e recordando o fim trágico de Antero, de Camilo e de Soares dos Reis, Miguel de Unamuno fala de um país suicida. “Este é um povo não só sentimental, mas também apaixonado, ou melhor dito, antes apaixonado do que sentimental. A paixão trá-lo à vida, e a mesma paixão leva-o à morte”… Cultor de paradoxos, o pensador espanhol não ilude a contradição, agravada pelas circunstâncias – o século de ouro é ditado pela forte consciência existencial e crítica. E a inércia do vulgo é contrariada pela determinação do mundo das ideias, tornando a ação arte, a arte vontade e a vontade determinação...
«Se é o sonho que cria o homem, vou criar o sonho que me cria» Maria Gabriela Llansol
Quando comecei a ler Maria Gabriela Llansol aquele estado de estranhamento que é a base da atitude filosofal, abriu-se a um outro tempo encontrado na proposta de uma fração infinitesimal, aquela mesma que se situa entre o que recordamos e o que percebemos.
Maria Gabriela foi e é um ponto luminoso de ideias e inspirações.
Entendi-a como uma lutadora incansável contra as normais solicitações humanas, procurando que a compulsão mimética não prevalecesse no seu íntimo, como um assalto constante a tudo e todos sabendo o quanto tudo se desvaneceria, enfim.
De Kafka, Camus, Goethe, Malraux, sempre numa tentativa algo oracular, procuramos dar rumo e sentido a um polo oposto da verdade que intuíamos existir, e esse percurso, também o fizemos mão-na-mão das seduções de Gabriela Llansol.
Por Dilthey, procuramos mesmo por entre as ciências da consciência e as da natureza, uma sociedade fora da universidade que nos foi proposta e que pouco ou nada permitia o pé em ramo verde, pé de fantástica afinidade pelo ensino de dentro de ângulos novos, quando tudo começa a ser predileção, depuração, condensação do pensar e do dizer.
Eduardo Lourenço afirma: «Qualquer texto de Maria Gabriela Llansol é um texto em que o laço com a realidade, no sentido banal, se nega e se transfigura numa outra espécie de texto, considerando-se aquela ofuscação positiva que só a música exprime, ou antes é. Viajemos por um texto qualquer, porque todos os textos de Maria Gabriela têm essa propriedade de serem um só texto e um texto diferente».
"Escrever é o duplo de viver" ou "a minha maior responsabilidade é contribuir para que um livro seja um ser". Assim Maria Gabriela no seu livro "Falcão no Punho".
A absoluta centralidade da linguagem com a qual pensamos, será sempre o que nos conduz às grandes perguntas gravitacionais, e só por aí o sonho que nos cria é o mais desejado e furtivo dos animais em nós: