Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Os textos que António Mega Ferreira nos deixou são a demonstração de que os espíritos de Montaigne, de Goethe ou de Stendhal estavam bem vivos em si.
A PAIXÃO DA LITERATURA DE VIAGENS Foi um conhecimento de sessenta anos, desde os tempos do Pedro Nunes, com a diferença de três anos de idade, o que era muito quando se entrava no liceu. Mas havia um espírito especial feito de atenção ao que faziam os mais velhos numa espécie de escol, desde o teatro às artes plásticas ou ao desporto… O Pedro Nunes, que meu avô frequentara em 1914, criava raízes – e aí encontrei o António Mega Ferreira. Em tempos muito recentes foi meu companheiro no Conselho Editorial da Imprensa Nacional, e não esqueço a magnífica conferência na Embaixada de Itália sobre a Comédia de Dante ou uma deliciosa conversa na Associação Portuguesa de Escritores, à Lapa, na primeira edição do prémio Maria Ondina Braga, de literatura de viagens, galardão que viria a ser-lhe atribuído, há poucos meses, pelas “Crónicas Italianas”, quando já há muito deixara esse júri. Foi de peregrinações italianas que essa conversa versou, numa curiosa troca de informações sobre uma busca detectivesca a propósito de um misterioso fidalgo de Chaves que, entre 1510 e 1517, viveu em Roma e deixou um manuscrito de 92 fólios com preciosas informações sobre um período crucial na capital pontifícia – a batalha de Ravena, a morte de Júlio II, a eleição do Cardeal Médicis, Leão X, e a entrada em Roma da embaixada de D. Manuel, chefiada por Tristão da Cunha… Quem foi esse fidalgo de Chaves, criado de D. Jaime, 4º duque de Bragança? Não se sabe e por isso demo-nos a imaginar, concordando sobre a necessidade da publicação desse documento, estranhamente esquecido, em edição diplomática, depois do estudo e das revelações importantes do académico Paulo Alves. Conhecemos apenas a perspetiva arguta do fidalgo sobre o que se passava em Roma, em vésperas de grandes mudanças. Mas perguntámo-nos, nessa tarde, se o esforçado fidalgo escritor o teria sido apenas por incumbência funcional ou mais do que isso? António achava que havia mais do que um mero relatório, estando persuadido de que haveria um autêntico impulso literário nesse texto. A verdadeira identidade do fidalgo e a motivação para a escrita das Memórias ocupou-nos, mas no essencial era a paixão pelas práticas de viagem. O António tinha prometido que, enquanto vivesse, haveria de cumprir o compromisso de regressar todos os anos a Itália. Como disse José Manuel dos Santos, “a sua vida, em tudo o que foi e deixou de ser, nos trabalhos e nos dias, nos frenesins e nos vagares, nos realces e nos refúgios, nos poderes que teve e nas recusas a tê-los, nos favores que recebeu e nos favores que concedeu, nos amores e nos ódios, dava uma daquelas biografias que ele adorava ler e que o faziam sonhar” (Público, 27.12.2022). De facto, a ideia de viagem era, para si, uma procura de lugares e de gentes, de vários tempos. Isso entusiasmava-o, porque simultaneamente descobria novas geografias, ou aprofundava as que já conhecia, mas podia empreender a marcha de uma “Máquina do Tempo” algo descontrolada, como ocorreu, para nós, leitores de banda desenhada, com Mortimer na “Armadilha Diabólica”, mais do que em H. G. Wells. A visita de vários tempos tornava-se possível graças à versatilidade da literatura.
LITERATURA E IMAGINAÇÃO Só a literatura permite cultivar a imaginação. “Itália – Práticas de Viagem” – é um exemplo de uma obra essencial. “Apenas com um alforge e uma mochila de pele de texugo por bagagem” foi metendo pés ao caminho e assim a sua peregrinação a Itália, partindo da ideia de Goethe, “muito mais uma viagem em busca de si próprio do que uma observação sistemática do que era a Itália em finais do século XVIII”, tornou-se realização literária, necessário complemento da sua inequívoca paixão pela capacidade de mudar o mundo, como fez na sua querida cidade de Lisboa, que ele deixou outra, reforçando, porém, os elos com as raízes antigas. Lembrando a “Bíblia pauperum” que foi o “Cavaleiro Andante”, onde nos formámos, a banda desenhada foi um modo de inventar utopias e de compreender distopias. Corto Maltese, Sandokan, Sinbad o Marinheiro e Robinson Crusoé, personagens dos livros de aventuras, relacionadas com o mar, tornaram-se topónimos de travessas que a cidade de Lisboa herdou da Expo 98 no Parque das Nações, ruas paralelas e que vão do Passeio dos Heróis do Mar à Rua Ilha dos Amores. E aqui encontramos o imaginoso lugar que ele quis criar. Mas se esse nobre povo tem expressão nas placas identificadoras dos arruamentos, importa não esquecer o zelo que pôs na descoberta do português mais universal, Santo António de Lisboa e de Pádua. Como ele disse, é uma obra de afeto e curiosidade, não de ciência ou teologia - “não é uma biografia, no sentido técnico do termo, nem uma devassa erudita sobre o seu pensamento, antes um ensaio literário de indagação das razões e caminhos por que António se constituiu como uma das figuras portuguesas de maior relevância na Europa do seu tempo. E também uma tentativa de aproximação à sua essência propriamente humana, ao seu trajeto pessoal.» Afeto e curiosidade, eis o que sempre encontramos em António Mega Ferreira e nas deambulações italianas. A cada passo está essa sublime impressão – na invocação do “Grand Tour” e da ”Bildungreise” (viagem de formação), em Trieste, no Caffè San Marco com Claudio Magris, nas margens do Adriático, na invocação de Casanova, no imaginário encontro de Montaigne com Tasso, em Ferrara, nos sucessivos reencontros com Dante e a “Comédia”, na meditação sobre o “bom governo” na Sala dos Nove, no Palazzo Pubblico de Siena e nos frescos de Ambrogio Lorenzetti, em San Miniato al Monte com a vista deslumbrante de Florença, com D. Jaime, Cardeal de Portugal, filho do Infante das Sete Partidas, o canto gregoriano, a pintura de Antonio e Piero Pollaiuolo, “sem esta obra quase fortuita seria difícil avaliarmos hoje todo um aspeto da sensibilidade florentina” na arquitetura, escultura e pintura.
O ESPLENDOR DE BERNINI E a sua curiosidade permite-nos entender como a “mitificação de Lourenço como Il Magnifico tem tanto de aproveitamento político quanto de narrativa cultural”. Há toda uma trama ardilosamente urdida que permite chegar-se a uma lenda, e é essa lenda que leva a entender a própria grandeza adquirida por Florença. Entre o esplendor de Roma de Bernini e a memória de Pasolini no Caffè Rosati, há uma devoção. Quem visita Roma hoje, entrando na Porta del Popolo, sente a ordenação do “tridente” (via del Babuino, via del Corso e via di Ripetta) e percebe que “entre 1623, data da acessão ao sólio pontifício de Maffeo Barberini, o papa Urbano VIII, e 1667, data em que morreu Fabio Chigi, que adotara o nome de Alexandre VII, a cidade de Roma sofreu uma das mais profundas revoluções da sua história: a munificência de três papas e a esplendida criatividade dos seus artistas fizeram da antiga urbe imperial o centro de um movimento que consagrou a imagem do barroco romano e marcou a fisionomia e a história da cidade para sempre”. Luz, matéria e espaço – eis a marca que Bernini valorizou sumamente e que apaixonava António Mega Ferreira.
«As Ilhas Desconhecidas – Notas e Paisagens» de Raul Brandão é uma das obras-primas da literatura de viagens em língua portuguesa, facilmente ombreando com os melhores clássicos.
UMA OBRA - PRIMA
No início das Memórias, Raul Brandão (1867-1930) define o seu modo de ver, a sua atitude: “Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra”. E isto plenamente se manifesta em As Ilhas Desconhecidas – Notas e Paisagens, sem sombra de dúvida uma das obras-primas da literatura de viagens em língua portuguesa, facilmente ombreando com os melhores clássicos. Com efeito, ainda hoje, é impossível compreender os Açores moderno, sem trilhar os passos e entender as apreciações do escritor nessa viagem realizada de junho a agosto de 1924, ao encontro de um mundo de magia e mistério. Ligam-se a natureza, as pessoas, as tradições e a história, e o que resulta é um panorama que naturalmente nos atrai, numa identificação em que nos tornamos participantes num extraordinário laboratório onde o povo açoriano se singulariza nas suas qualidades, através de um melting pot baseado numa rica simbiose entre natureza e sociedade. Dir-se-ia, pois, que Brandão pôde compreender bem a natureza da autonomia açoriana, confirmando os objetivos de sensibilização, que também levaram ao arquipélago no mesmo ano de 1924 a chamada “Missão Intelectual”, por iniciativa de José Bruno Carreiro, constituída entre outros por Antero de Figueiredo, José Leite de Vasconcelos, Teixeira Lopes, Luís de Magalhães, Armindo Monteiro e Joaquim Manso. Não esquecendo Mês de Sonho de José Leite de Vasconcelos, com objetivos mais específicos, pode dizer-se que a obra de Raul Brandão constitui uma peça crucial para a compreensão da especificidade açoriana e para a construção da autonomia constitucional hoje consagrada. E a grande qualidade cultural e literária contribuiu decisivamente para a afirmação da moderna identidade açoriana.
A AÇORIANIDADE Não por acaso, Vitorino Nemésio coloca uma afirmação de As Ilhas Desconhecidas como uma das epígrafes, ao lado de Melville e Chateaubriand, em Mau Tempo no Canal: “Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha em frente - o Corvo as Flores, Faial o Pico, o Pico São Jorge, São Jorge a Terceira e a Graciosa...”. O arquipélago manifesta-se em toda a sua pujança e originalidade nessa relação entre as ilhas. E assim a identidade não é uniforme, mas necessariamente polifacetada. Como tem sido salientado, é talvez nesta afirmação que se encontra condensada a compreensão exata da açorianidade – como paradigma cultural, geográfico e antropológico. Lembremo-nos do capítulo emblemático sobre a pesca da baleia. É como se participássemos desse espetáculo único do homem perante a necessidade e o perigo: “A claridade espelha-se e escorre no dorso escuro e molhado. O barco aproxima-se sem ruído, o arpoador à proa, com o arpão erguido nas duas mãos, firme nos pés e na atitude de arremesso. É um ferro com setenta e cinco centímetros e dois metros de cabo. Ao lado, no barco, vai a lança, que é maior, para acabar este monstro do tamanho dum prédio. Mas o homem impressiona-me ainda mais que a baleia: é tremendo, de pé, minúsculo, com a vida no olhar e nas mãos. No barco está tudo calado e ansioso, ninguém diz palavra inútil: homens, barco, arpoador e arpão, tudo tem o mesmo corpo e a mesma alma…”. A descrição coloca-nos de pleno na cena teatral. Sentimo-nos protagonistas do combate. Como na grande literatura, as palavras servem para dar o ritmo certo – até ao momento em que tudo se consuma. O bicho hesita e é como na arena quando o touro é atingido pelas bandarilhas, com outra intensidade, com outra força. Garrett foi claro um dia: a valentia dos homens do mar sobreleva a dos toureiros e campinos. É que tudo começa aqui num verdadeiro combate de sobrevivência, até ao momento dramático e heroico, em que se ouve finalmente: “ – É nossa! é nossa!”. Arreiam-se as velas, tranca-se a baleia! Define-se quem partilha os louros. Mas a função não terminou. “Falta o pior; falta trazer o bicho para terra, o que leva horas, leva o dia”. Neste combate, está o climax da obra, justamente considerado como o elemento definidor do caráter dos protagonistas e do seu povo. E a descrição, apresentada na sua crueza e força, completa-se pelo testemunho das gentes. “Os homens do Pico são os homens mais sãos que conheço. Vejo-os diante de mim como torres e um olhar que não engana. (…) Quase toda a gente sabe ler no Corvo e no Faial. Há menos analfabetos que no continente. Reparem na gente do campo, na limpeza das casas, e na situação da mulher, que é tratada com respeito e ternura”. Ah! A gente falada é acolhedora e recorda a faina do mar e a labuta em terra, mas alimenta o sonho de ir até à América, levar a experiência do mar açoriano a terras longínquas – Nova Iorque, a grande metrópole, Califórnia, S. Francisco, a febre do ouro, as ilhas Fidji, as boas tripulações de portugueses. “Quase todos os homens, e até mulheres, emigram para a América, e os que não emigram é porque não podem fugir. Se a América abrisse largamente as portas, os Açores despovoavam-se. Já faltam braços para cultivar as terras”.
UMA SOBERBA ESCRITA O livro é feito de notas de viagem. E a escrita é soberba. “Os jardins são sempre uma obra de arte, e, quanto mais desordenados, mais belos”. Ao falar do Corvo o autor encontra braveza, solidão e negrume, nesta “democracia cristã de lavradores”, e recorda Mouzinho da Silveira e o seu incumprido testamento: “Quero que o meu corpo seja sepultado no cemitério da ilha do Corvo, a mais pequena das dos Açores. (…) Gosto agora da ideia de estar cercado, quando morto, de gente que na minha vida se atreveu a ser agradecida”... Enquanto o Corvo é espesso e nu, as Flores são violeta e verde. Brandão espanta-se por não ser o padre a oficiar o culto do Espírito Santo – “é o povo que o celebra, o povo grosseiro e rude, que traz para diante do Santo Espírito a Santa Matéria. O Padre apenas colabora”. O escritor vê e ouve, em êxtase, o límpido ruído das águas, descobrindo nas Flores a “música pastoril e sagrada”, que é a voz da “floresta adormecida”. No Faial, a ilha azul, Raul Brandão apaixona-se pelas hortenses que ladeiam os caminhos. “O Faial adormece em azul sob o céu de cinza e com o Pico todo violeta ao lado”. E tal é a luminosidade que os melros se enganam nas “noites de lua redonda e branca e desatam a cantar desvairados”. A Horta é uma cidade encantadora, de gente ilustrada e hospitaleira, tendo em frente o Pico formidável. O capote das mulheres protege-as de tudo – e é “pelo sapato e pela meia que se sabe se é bonita”. A beleza do Pico é estonteante, sem igual. É, como o Adamastor, “uma estátua erguida até ao céu e amoldada, pelo fogo”. Ponto a ponto, ilha por ilha, Raul Brandão deixa-se enamorar pelos Açores: em S. Miguel, com as Furnas e as Sete Cidades, transportado à pura natureza e às mais antigas lendas; em Angra do Heroísmo, perde-se “nas quintas e nos jardins entre quadros rústicos de lavoura”; ou no súbito vislumbrar de quatro ilhas, saindo do mar ao mesmo tempo – a Graciosa de um “verde muito tenro”, a Terceira quase desvanecida, o “biombo violeta” de S. Jorge e o “cone do Pico aguçado até ao céu”… Sente-se a cada passo um incontido prazer, de usufruir de uma beleza fantástica.
Guilherme d'Oliveira Martins
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