Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Deixámos a Condessa e Rytmel apaixonados. Há uma ponta de loucura nessa relação. Propositadamente Ramalho e Eça demarcam-se das soluções tradicionais quanto às heroínas de folhetim.
Luísa não faz parte do rol tradicional de quem se deixa arrastar pela força do destino. Luísa tem a sua vontade e afronta os limites. Ensaia uma fuga romântica, num iate. A solução é afastada por demasiado previsível e terrivelmente incerta. Receosa de perder o controlo da situação Luísa vive atormentada pelo ciúme. Será que o capitão a considera como um estratagema passageiro?
Num momento tremendo de vertigem e de loucura, a condessa, insegura e angustiada, para tentar ver os papéis de Rytmel, ministra ao amante uma dose de ópio, que se revela excessiva. E o capitão perde a consciência e morre inesperadamente de overdose. Luísa fica desesperada, mas pondera uma saída racional de modo a camuflar o homicídio. Conta, por isso com a ajuda dos amigos, a quem explica em pormenor por escrito a complexa história, num racional, longo e inexorável exame de consciência. É essa a estrutura fundamental do romance, desenvolvido através de uma sucessão de cartas, dos dois autores, de formações e perspetivas diferentes.
Ramalho Ortigão segue mais de perto a solução tradicional dos folhetins românticos. Eça de Queiroz, leitor de Zola e da escola realista, procura libertar-se do método. E assim deparamo-nos no mesmo texto com duas perspetivas que demonstram como a geração de 1870 (e estamos em 1870) soube assumir uma especial originalidade, libertando-se de uma perspetiva de escola. E há uma armadilha lançada ao leitor desprevenido: parte-se do exagero caricatural do género folhetinesco, procurando introduzir a novidade realista-naturalista. Não vamos discutir a eficácia ou o sucesso. Mais tarde os dois escritores considerarão que a obra ficou aquém do desejável, mas hoje podemos fazer a autópsia, percebendo as hesitações e contradições da geração, através dos dois autores mais distantes entre si. Contudo, ambos estão deslumbrados pela condessa loura e voluntariosa, que não obedece ao modelo da adúltera dos folhetins sentimentais, aproximando-se de Bovary (1856) ou de Karenina (1875-77).
Luísa torna-se um paradigma especial, que se perde nas aventuras que foram engendradas com perda evidente da coerência romanesca. Eça e Ramalho reconhecerão que o carácter folhetinesco levou a uma perda de força, originalidade e autenticidade do romance. No entanto, sobressai a originalidade de Luísa, que é um exemplo premonitório que contrasta com a outra Luísa, a de Basílio. "Os seus olhos eram de um azul profundo como o da água do Mediterrâneo. Havia neles bastante império para poder domar o peito mais rebelde; e havia bastante meiguice e mistério, para que a alma fizesse o estranho sonho de se afogar naqueles olhos. (…) Os seus movimentos tinham aquela ondulação musical, que se imagina do nadar das sereias. De resto, simples e espirituosa".
Estamos perante a aparência romântica servida em tom severamente crítico e satírico. E a confissão de Luísa pressupõe os ecos modernos: "Eu já não sou alguém. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma espécie de exemplo. Não sou uma mulher, sou um romance". A sua lucidez autocrítica não condiz com a fragilidade de caráter, típica da lógica dos folhetins vulgares. E o epílogo aproxima-se.
No primeiro romance policial português, de 1870, conta-se o misterioso rapto perpetrado por um grupo de mascarados. Eça de Queiroz confessa em 1884 que «numa noite de verão no Passeio Público, em frente a duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade, que em torno de nós cabeceava de sono, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros num romance tremendo, buzinando à Baixa das alturas do ‘Diário de Notícias’». E começaram a escrita, num romance epistolar a quatro mãos: “Certa noite, indo um médico e um escritor na caleche pela estrada de Sintra (que se iniciava onde hoje é a Estrada de Benfica e ligava a capital àquela vila) foram surpreendidos e raptados por quatro homens embuçados, que os levariam a uma casa isolada. O objetivo era confirmar o óbito de um oficial britânico, a quem fora ministrada uma dose excessiva de ópio”. A partir daí, os acontecimentos sucedem-se a um ritmo alucinante. À medida que a noite avançava os dois compreenderiam estar diante da consequência trágica de um triângulo amoroso constituído pelo morto, uma condessa portuguesa mal casada e uma bela rapariga chegada de Cuba. Tudo começara meses antes da noite fatídica durante uma estada na ilha de Malta à época parte do Império britânico. Quem é o morto e quem o matou? E porquê? Quem era a mulher com quem ele se encontrava, e quem são os mascarados que pretendem proteger a sua honra?
A história foi publicada no Diário de Notícias entre julho e setembro de 1870 sob a forma de cartas anónimas, e foram muitos os que se assustaram com os acontecimentos narrados. Para anunciar a história, o DN começou por anunciar: “A hora já adiantada recebemos ontem um escrito singular. É uma carta, não assinada, enviada pelo correio à redação, com o princípio de uma narração estupenda que dá ares de um crime horrível, envolto em sombras de mistério, e cercado de circunstâncias verdadeiramente extraordinárias, e que parece terem sido feitas para aguçar a curiosidade, e confundir o espírito em milhares de vagas e contraditórias conjeturas. Trata-se da sequestração noturna de um médico, de um amigo seu para assistirem a um ato gravíssimo, e, demais factos subsequentes. O interesse que esta narração desperta, a forma literária que a reveste, e o crime que parece revelar nos obrigam a não buscar resumi-la e dá-la na íntegra aos nossos leitores”. E eis a carta que antecedia a narrativa: «Senhor Redator do DN, venho pôr nas suas mãos a narração de um caso verdadeiramente extraordinário em que intervim como facultativo, pedindo-lhe que, pelo modo que eu entender mais adequado, publique a substância do que vou expor. Os sucessos a que me refiro são tão graves, cerca-os um tal mistério, envolve-os uma tal aparência de crime que a publicidade do que se passou torna-se importantíssimo como chave única para a desvendação de um drama que suponho terrível conquanto não conheça dele um só ato». Só no final é que Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão admitiram tratar-se de uma brincadeira e que eram eles os autores das cartas.
Luísa, apenas identificada misteriosamente pelo nome próprio e como Condessa de W., era casada com um bon vivant, conhecido, mas com pouca história. Ela era inteligente e culta, mas diferente das heroínas românticas de pacotilha. Cultivava a sua autonomia e procurava enfrentar o destino. Recebia em casa numerosos amigos, entre os quais o excêntrico Carlos Fradique Mendes, cheio do original dandismo satânico. Cosmopolita e viajada, Luísa sente tédio pela vida rotineira que leva. E o conde convence-a a fazer uma viagem, com um primo seu, e melhor amigo, à ilha de Malta (que neste folhetim surge pela segunda vez). Na escala por Gibraltar conhecem o belo capitão Rytmel, súbdito de Sua Majestade Sereníssima. A condessa e o capitão caem-se de amores e iniciam uma relação clandestina, entre Paris e Lisboa. Na capital, encontram-se amiúde numa casa arrendada. E é aí que tem lugar o acontecimento tremendo que precipitará a tragédia, como veremos no próximo capítulo e que constitui o cerne deste epílogo…
Já compreenderam por certo que este Folhetim, que está a dar as últimas, como uma coleção de fantasmas, que conto reunir em breve para tentar compreender qual o mistério que esta amálgama encerra. E não seria possível fazer essa reunião final em que vou tentar descobrir o enigma que liga estas personagens nascidas no papel. E, por isso, pedi ajuda ao meu amigo Jaime Ramos, que é especialista no assunto, e tem já uma série de ideias que me mostrou e poderão ser úteis. Decidi, porém, deixar em paz um outro amigo, António Sousa Homem, que continua na pacatez de Moledo do Minho, a lembrar “O Crepúsculo em Moledo e outras elegias”… Jaime Ramos foi inspetor responsável pela secção de homicídios na Judiciária do Porto. Solitário, pessimista e algo conservador, não se escandaliza com nada. Tudo o que é humano é compreensível e digno de atenção. Tem uma namorada no Porto, que vive no mesmo prédio, dois andares acima do seu, sem casa comum. Gosta de ler, fumar charutos comprados em Espanha, não perde a boa comida e não tem dúvidas de que o Porto é uma Nação. Quando lemos “Morte no Estádio”, “Duas Águas do Mar” ou “Um Céu Demasiado Azul” percebemos que a «marca melancólica, ou nostálgica, é também uma forma de conhecimento ou de apreensão da realidade. E confessa Francisco José Viegas, o criador: «um dia, o José Saramago, que tinha acabado de ler “Morte no Estádio”, disse-me uma coisa desse género: eu li o livro mas aquilo não é bem policial. Estávamos na Ericeira, numa casa em cima do mar, e eu disse-lhe, “olhando à volta, que linguagem usaria para falar desta beleza toda, ou de uma personagem que fica tocada por ela?”. Não era com certeza uma coisa seca, direta e pouco dada a estados de alma. Em suma, Jaime Ramos é «um burguês do Porto. Um burguês mais ou menos conservador de uma cidade burguesa e conservadora. Um velho teimoso. Não fui eu que o fiz assim, diz Francisco José, foi ele que nasceu desta forma, como um pessimista, um cínico, um homem que procura alguma espécie de sensatez e de conforto. Ele foi militante comunista no passado, um homem que aprendeu a natureza da desilusão, da derrota e da perda. E não gosta de coisas novas, de comida nova, nem de novos jogadores do FC Porto. Por ele, ainda jogariam o Jardel, o Rodolfo, o Rolando e o Cubillas. E o Gomes».
Porque fui chamar Jaime Ramos? Para não esquecer Mário Zambujal e a Quadrilha do Renato, do golpe falhado no Museu Gulbenkian, cada um dos elementos da quadrilha e como se conheceram. Entre o dramático e o ridículo, é uma ilusão, com boas intenções, para deixar a vida do crime medíocre, porque ninguém rouba ou mata por gosto, mas por não terem outra escolha. Renato, Marlene, Flávio, Arnaldo, Pedro, Adelaide e Silvino, todos rejeitados pela sociedade por falta de oportunidade, deram por si mesmos a viver do outro lado das leis. Mas não esqueço ainda o “Repórter X” de Reinaldo Ferreira, nem “O que Diz Molero”, de Dinis Machado (o celebrado Dennis McShade de outros policiais), que conta a história de um rapaz de uma comunidade difícil, que mergulha no mundo em busca de uma grande aventura. Molero é o detetive incumbido pelos seus superiores, Austin e Mister Deluxe, de seguir o itinerário - mental, emocional e geográfico - do rapaz e fazer os respetivos relatórios. Estes vão sendo comentados e discutidos, e o leitor conhece a história do rapaz: as viagens, as mulheres, os livros. O romance revolucionou a linguagem, a literatura, e a maneira de ver a narrativa, com vinte edições desde a sua primeira publicação, em 1977. E houve Dick Haskings, António Andrade Albuquerque (1929-2018), autor de “O Isqueiro de Oiro” e Ross Pynn, Rossado Pinto (1926-1984). E vem à baila a coleção Vampiro, dos Livros do Brasil, de António Augusto de Souza-Pinto (1944), com 680 volumes publicados da melhor literatura policial. Quantos de nós não lemos Agatha Christie nos livros Vampiro, como Conan Doyle, Ellery Queen, Raymond Chandler, Dashiell Hammett?… Por isso, fico grato ao Jaime Ramos por me ajudar…