Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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“História Global da Literatura Portuguesa” (Temas e Debates, 2024) tem direção de Annabela Rita, Isabel Ponce de Leão, José Eduardo Franco e Miguel Real. Trata-se de uma iniciativa de grande relevância que merece destaque.
A “História Global da Literatura Portuguesa” abrange oito partes, correspondentes a outros tantos períodos estudados – Ressurgências – Idade Média; Humaniores Litterae (Renascimento); Entre as sombras e o esplendor (Maneirismo e Barroco); O espírito das Luzes (Iluminismo); Decadência e regeneração (Romantismo e Realismo); Com golpe de asa (Idade dos ismos); e Primavera Fulgurante (Democracia). Como salienta José Carlos Seabra Pereira, esta «é uma obra qualificadamente insólita que nem teme afastar-se do regime tradicional de narrativa e anotação contínuas, nem o ignora no palimpsesto do seu horizonte de inscrição. A estrutura inabitual com que esta obra procura uma correta e fecunda equação com aquela consciência cognoscente faz pensar na dialética de memória e esquecimento que, vinda do pensamento de Renan sobre O Que É Uma Nação, Paul Ricoeur torna central na sua filosofia da História, mas dir-se-ia que combina com o pensamento de E. Lévinas sobre escolha, lacuna e exemplaridade nas fases historiográficas». Assim, contamos, entrada a entrada, com investigadores de gerações e abordagens diferentes, com diversas perspetivas e trajetos que manifestamente enriquece o conjunto. Nesse sentido, esta pluralidade, permite-nos dispor de uma visão poliédrica da realidade literária e da criação artística. Esta articulação constitui um claro incentivo para a melhor compreensão da especificidade de cada tempo e década realidade. De facto, a proposta dos Estudos Globais constitui um desafio aberto e exigente que no campo da Literatura assume um especial significado pela natureza da criação narrativa. A lógica interdisciplinar associa-se à necessidade de se considerar o confronto entre gerações e épocas, entre visões e mundividências. Daí a importância de uma renovação da leitura literária, como refere ainda Seabra Pereira, centrada na relação de hospitalidade, de mestiçagem simbólica, de crioulização semiótica ou de originalidades híbridas e compósitas, enquanto valorização do alcance antropológico da literatura, autointerpretação e imaginação simbólica do humano. E assim a perspetiva global e intercultural, mais do que multicultural, dá importância à abertura e à transdisciplinaridade, que recusa a facilidade do superficial ou passageiro, para ir ao encontro das interações e da compreensão da complexidade.
ESPAÇOS ABERTOS A COMPREENDER Importa compreender, como afirmam os coordenadores da obra, que os territórios da Literatura se configuram como espaços abertos. “Se a Literatura é a ‘antropologia das antropologias’, na expressão de Fernando Cristóvão, em que o ser humano se retrata na diversidade, na complexidade e na profundidade das suas aspirações e manifestações, o domínio da criação literária é o campo poroso pelo qual o mundo todo tem muitas vezes passado ou pelo qual pode vir a passar”. Estamos, afinal, perante um objetivo privilegiado da história global – eis o interesse acrescido desta obra e da metodologia que adota. O “global” torna-se, assim, uma chave hermenêutica para revisitar e pensar a história dos vários domínios da produção humana. Não se trata, contudo, de uma história totalizante. Ao contrário, deve incentivar-se a “vontade de promover análises em diversos níveis, mudar perspetivas, combinar diferentes escalas. Mais do que a multidisciplinaridade, insistamos, é a inter e a transdisciplinaridade que importa, como relacionamento mútuo de domínios e como modo de superar as leituras lineares. É uma mutação epistemológica que gere as suas diferentes relações, alcançando o equilíbrio numa democracia cognitiva, considerando a complexidade e a ideia de metamorfose, mais do que a ideia de mera transformação, como tem, de modo persistente e pertinente, sido afirmado por Edgar Morin. O anacronismo, tantas vezes cultivado em nome de uma falsa coerência, tem assim de dar lugar à ideia de que “cada literatura, respeitando as suas idiossincrasias e sem compromissos, comunica com todas as outras e com os respetivos contextos”. Deste modo, os quatro diretores da obra confiaram a cada um dos coordenadores gerais de cada período a elaboração do plano de temas e autores de referência, bem como a seleção dos respetivos especialistas para a criação dos diversos verbetes. Assim, a subjetividade corresponde à própria ideia de diversidade, cabendo ao leitor e ao estudioso proceder criticamente à leitura das análises e das sínteses que envolvem sempre a consideração plural da perspetiva global. Não se trata de cultivar o aleatório, mas sim se pôr a complexidade em ato, entre diversas perspetivas e conclusões. A novidade e a criatividade resultam, pois, da consideração do pensamento como conjunto de caminhos que permitam, afinal, o conhecimento e a compreensão de cada tempo, sem a tentação das simplificações ou das caricaturas. O exemplo de José Agostinho de Macedo, por contraponto a Garrett e Herculano, representa, por exemplo, o paradigma de um século de contradições – entre a resistência e a adesão a dinâmicas globais. E uma voz singular e reativa representa a tensão sempre existente quando se trata de olhar uma história global na sua originalidade…
O ano de 2025 será o da comemoração do segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, e importa preparar tal acontecimento.
CELEBRAR UM GRANDE ESCRITOR Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.
Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.
COMPREENDER O TEATRO HUMANO O romancista compreendia bem que não é possível entender o teatro humano sem referências históricas. Nesse sentido, quem melhor conhece Camilo sabe que era um bibliófilo com provas dadas e que o estudo da História foi sempre uma constante da sua vida intelectual. E é esse o tema que aqui trago, a propósito da relação que estabeleceu com Oliveira Martins. Permito-me, por isso, acompanhar um exercício de reflexão crítica a propósito da História da Civilização Ibérica e da História de Portugal, obras inaugurais da Biblioteca de Ciências Sociais. O historiador tinha especial admiração por Camilo e considerava o parecer do romancista como marca de grande rigor, quer quanto ao conteúdo quer à formulação e ao idioma. Sabemos mesmo que no caso da História de Portugal procedeu a correções ou precisões a partir da opinião camiliana, já depois da publicação da primeira edição da obra. E o certo é que, como veremos, estamos perante um exímio leitor e um criterioso crítico. É exemplar o modo como presenciamos a integração dos textos na matéria e no período a que dizem respeito. O profissional da escrita surge assim como um executor exímio da sua arte e um mestre artífice disponível para partilhar com outros que ele respeitasse os seus conhecimentos e as fontes de que dispusesse.
A feitura da História de Portugal constitui exemplo sobre como o autor constrói as suas obras. Os elementos disponíveis que chegaram aos nossos dias não mostram a versão original da obra, que se terá perdido nas andanças tipográficas, mas permitem tomar contacto com uma cuidada e meticulosa intervenção do escritor, em especial na revisão e nos acrescentos a que procede. Veja-se como, para a 3.ª edição, depois da apreciação de Camilo, o autor introduz pormenores de grande relevância quanto à embaixada de D. Manuel ao papa, quanto à matança dos judeus de 1506 ou quanto à descrição do terramoto («Casas, palácios, conventos, mosteiros, hospitais e igrejas, campanários, teatros, fortalezas, pórticos, tudo, tudo caía, tudo ardia.»), onde procura uma maior intensidade literária…
«A história do sr. Oliveira Martins lê-se devagar, atentamente, porque a cada página se encontram induções, panoramas, lances de vista que obrigam a reflexão». Quem o diz é Camilo, a propósito da «História», demonstrando um extraordinário zelo e uma sólida fundamentação. «É mister às vezes agrupar os personagens subentendidos nas ilações para que eles operem e afirmem os sucessos de que derivam as opiniões históricas do autor». O ler devagar que o autor de Amor de Perdição aconselha aos leitores corresponde à contrapartida do método usado pelo historiador: o de ligar uma leitura aturada das fontes escritas à interpretação literária, como ligação naturalista ao mundo da vida, e nunca como mera abstração formalista. As induções, os panoramas, os lances de vista obrigam, de facto, à reflexão, porque resultam em regra de profunda reflexão. E isso é muito evidente na História, onde o escritor não se exime a fazer uma interpretação dos acontecimentos, que se projeta sempre na atualidade, com a preocupação de entender a história como referida a um corpo vivo que persiste no tempo, carecendo de uma interpretação atualista.
Como diz Eduardo Lourenço, dando sequência à leitura camiliana: «num século tendencialmente positivista, Oliveira Martins é ao mesmo tempo hiper-racionalista e intuicionista. Ou mesmo mitólogo. […] Sobretudo, num tempo genericamente eufórico e culturalmente humanista a ele propõe — a meio caminho entre Schopenhauer e Nietzsche — uma espécie de pessimismo não niilista, mas trágico pelo papel que confere aos indivíduos e em particular aos representativos — de responder à Fatalidade em termos de vontade e de energia, introduzindo assim o humano, mesmo se precário ou vão, no não humano» (Oliveira Martins e os Críticos da História de Portugal, IBNL, 1995, pp. 20-21).
«O Português visto por (alguns) Portugueses» de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote, 2023) permite-nos compreendermo-nos melhor à luz da nossa literatura de hoje.
AFINAL, QUEM SOMOS?
«Quem somos? Qual o grau da nossa cultura? Porque decaímos? Que remédios nos poderão salvar? Sem dúvida tentaram eles (os homens de 1870) responder a estas e outras interrogações que tanto nos importam; e com ou sem resposta as legaram às gerações vindouras». José Régio faz estas perguntas a que temos de responder com sentido da realidade. Marcello Duarte Mathias reuniu na obra que intitulou O Português visto por (alguns) Portugueses (D. Quixote, 2023) opiniões que podem ajudar. E neste conjunto de diversas perspetivas, podemos concluir que nos caracterizamos por algo paradoxal que nos distingue. Por isso, o conde Ficalho disse que, com essa busca, Portugal “significa simplesmente ser uma coisa à parte, sem imitação e sem cópia; significa ter uma língua própria, e um traje especial e um modo de pensar e de sentir particular, lentamente fixado pela tradição (…). E se um dia, os burgueses e viscondes, que tão relesmente nos governam, chegarem a desnacionalizá-lo, sob o fútil pretexto de o civilizar, hão de talvez perceber que ele fica sem grande razão de existir». Com estas palavras ásperas, Ficalho faz suas as preocupações de antepassados como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, longe de qualquer entendimento fechado ou autossuficiente. Daí que este verdadeiro inquérito nos permite ver até que ponto no ocidente peninsular se construiu uma identidade própria, aberta e complexa, que poderemos designar por um patriotismo prospetivo, que envolve a compreensão de uma realidade complexa e diversa que devemos continuar a aperfeiçoar e a fortalecer, como realidade viva e aberta.
O CARÁCTER PORTUGUÊS
Pela parte que me toca, segui desde muito cedo muitos dos percursos que aqui encontramos – salientando uma preciosa primeira edição de “O Estudo do Carácter Português” de Jorge Dias que me acompanha e que continuo a ler com distância crítica, ao lado de um manual único de ensinamentos sobre quem somos, que é “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” de Orlando Ribeiro, onde está tudo o que devemos saber sobre nós mesmos. Devo dizer, aliás, que, confirmando plenamente o que Ernesto Sabato afirmou sobre a verdade de uma nação dever ser encontrada nos romances, e não na História, foi Ruben A. quem demonstrou claramente, designadamente em “A Torre da Barbela”, que os portugueses só podem ser compreendidos com essa rica profusão de retratos romanescos, que vão do “pobre de mim” da “Peregrinação” até à Joaninha dos Rouxinóis, ao Joãozinho das Perdizes, a Simão Botelho, a Fradique, a Jacinto, a Zé Fernandes, a Gonçalo Mendes Ramires, ao Lelito de “A Velha Casa”, até aos fantasmas de Barbela e à panóplia de Aquilino, de Nemésio ou de Saramago… E, nos textos escolhidos, com olho clínico, por Marcello D. Mathias é essa heterogeneidade que encontramos, ligada por um forte fio de Ariadne. “O génio lusíada é mais emotivo do que intelectual”, diz Pascoaes. “O trágico, o patético, a teatralidade, a desmesura não são connosco”, afirmou António José Saraiva. “O bom português é várias pessoas”, para Fernando Pessoa. “Entre o delírio e a melancolia, entre a exigência e a queixa, (o português) prefere esperar a sua vez”, disse Agustina Bessa-Luís. “Os portugueses têm aversão às soluções simples” para Valente de Oliveira.
UM NOVO-VELHO PAÍS
Com o 25 de abril de 1974, nasceu “um novo-velho país, e não é fácil a adaptação que constituiu uma verdadeira metamorfose. Para muitos um reencontro; para os demais, um dilaceramento. De qualquer modo, esta procura de identidade, que se agudiza com o pós-25 de abril, não é sentimento exclusivamente nosso, pois foi partilhado pelos países europeus que haviam sido potências coloniais, e que viriam a sofrer de semelhante rutura”. E a literatura dá-nos pano para mangas para essa interrogação e o sucesso do Marquês de Fronteira D. José Trasimundo, a seguir à revolução, foi significativo do que permanece e do que muda. António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira devem, por isso, ser lidos com atenção, porque o sentido crítico ajuda a uma leitura dos acontecimentos capaz de compreender a complexidade dos fatores com que se constrói a pátria. Uma identidade antiga não pode ser interpretada de modo simples ou superficial. E se esta obra notável de Marcello Duarte Mathias merece uma atenção especial e uma revisitação necessária, tal deve-se à complementaridade dos diversos registos que integra. E assim se entende Eduardo Lourenço, uma vez que ninguém levou tão longe e com tanta pertinácia “repensar a sério e a fundo uma realidade tão difícil de apreender como a portuguesa”. O autor apresenta diversos testemunhos numa escolha plural que permite compreender a essência do património, como serviço do que recebemos de quem nos antecedeu, fundamento duma herança rica e multifacetada, e valorização de uma memória viva. Na evocação, por exemplo, de Augusto de Ataíde ou de João Bigotte Chorão, duas personalidades com experiências diferentes, sentimos que a cultura se constrói com sensibilidade e sabedoria, com vontade e lembrança. E uma certa frustração das elites, correspondente à sua fragilidade, leva a um persistente fatalismo do atraso e da preguiça, a que importa responder com a compreensão de que, mais do que o primado do improviso, o melhor em nós é o trabalho. De facto, só podemos ter resultados positivos se ligarmos organização, persistência e cooperação. Sempre que o fizemos ganhámos, sempre que o esquecemos desaparecemos. Não se esqueça o que disse António Sérgio: “Quem vê com miragens o seu passado, constrói com miragens o seu futuro”. E é bom que Miguel Torga, como homem de raízes, seja lembrado quando diz “o Portugal de que sempre me orgulhei não é o da versão oficial”. Aí se sente “uma vontade de identificação, tanto no plano físico como espiritual, a que nunca renunciará”. Os vários autores que Marcello Duarte Mathias nos traz merecem ser lidos com vagar, de modo e entendermo-nos melhor. Somos um povo antigo, que se evidenciou por querermos ser nós mesmos. Como D. Pedro das Sete Partidas, entendamos a Europa como lugar de afirmação e não de ilusão. “A Europa, sim como pedra angular de uma política externa mais alargada, não como meio de subsistência coletiva; como âncora de ações que se assumem, não como álibis, que desresponsabilizam; não como uma aliança de nações que se juntam na afirmação de um bem comum superior, e não como um conjunto de povos às ordens de uma central burocrática interventiva que se arroga um magistério moral e político que não tem; a Europa, sim, como um processo contínuo de afirmação e valorização do que somos, entidade à parte entre os demais parceiros europeus, e não cobaia de um gradual desapossamento de nós mesmos, de tudo o que fomos e somos”.
Maria de Lourdes Belchior (1923-1998) é uma referência da cultura portuguesa contemporânea, cujo centenário este ano se assinala, merecendo uma atenta recordação.
EXPLICAÇÃO DE PORTUGAL
«Teremos nós consciência de que toda a explicação de Portugal visa à construção do país possível? Para tal, segundo o conselho não amargo de Vitorino Magalhães Godinho, estudemos amorosamente, minuciosamente, lucidamente, cientificamente as nossas coisas; definamos com meridiana clareza os problemas que são de facto os nossos, seguros de que na nossa história do passado há doutrina para o presente. (…) E o país possível – título de um livro de poemas de Ruy Belo – será “O portugal futuro”: “O portugal futuro é um país / onde o puro pássaro é possível». É Maria de Lourdes Belchior quem o afirma, demarcando-se das tentativas de nos vermos ou como os melhores, ou como um país sem remédio. Ora, seguindo Eduardo Lourenço, importaria tirar as sucessivas máscaras que temos afivelado para enfim conhecermos o nosso rosto verdadeiro. Neste ano de 2023, em que celebramos também o centenário de Maria de Lourdes Belchior, importa lembrar o método proposto por quem se empenhou no estudo aprofundado e sistemático sobre momentos cruciais da nossa literatura, permitindo aproximarmo-nos desse rosto, que tanto temos procurado. Não por acaso, os séculos XVI e XVII constituem circunstâncias especiais para essa indagação, uma vez que, com energias aparentemente esgotadas, houve que recuperar forças com apelo à criatividade.
INVESTIGAÇÃO E SERVIÇO PÚBLICO
Merece atenção redobrada o exemplo de Maria de Lourdes Belchior, surpreendente pela capacidade de interpretar a literatura com um novo olhar, inteligência, abertura de espírito e capacidade de compreender a realidade cultural, para além da superfície. Licenciada em Filologia Românica, em 1946, com a dissertação Da Poesia de Frei Agostinho da Cruz - Tentativa de Análise Estilística, viria a ser colega de Sebastião da Gama, na Escola Veiga Beirão, tendo em 1947 assumido funções docentes na sua Faculdade de Letras, onde obteve o doutoramento em 1953, após ter estado no Instituto Católico de Paris (1950-52), com a tese muito celebrada sobre Frei António das Chagas - Um Homem e um Estilo do Século XVII. Profundamente conhecedora da transição setecentista apresentaria, em 1959, o Itinerário Poético de Rodrigues Lobo no concurso para professora extraordinária. Se o tema da espiritualidade no percurso da autora é evidente, o mesmo liga-se à nossa situação em seiscentos, na qual uma Corte de Aldeia ganhava a aspiração de se libertar. Investigadora incansável, partiu para o Brasil em 1963 para desempenhar funções de Conselheira Cultural da Embaixada de Portugal, até 1966, aproveitando esse tempo para melhor compreender o barroquismo e para aprofundar a cooperação científica, pedagógica e cultural entre os dois países. E é notável na mulher de cultura essa capacidade de ligar a investigação e o serviço público. Concorre a uma vaga de Professora Catedrática da Universidade do Porto, assegurando a lecionação da cadeira de Literatura Portuguesa I (Idade Média), apoiando o Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade. Entre 1970 e 1973 preside ao Instituto de Alta Cultura e participa no núcleo fundador da Universidade Nova de Lisboa. Depois da revolução, entre maio e dezembro de 1974, é Secretária de Estado da Cultura e Investigação Científica, numa experiência fugaz, sendo em maio de 1975, como militante católica, cofundadora do Semanário “Nova Terra”, a convite do Cardeal D. António Ribeiro, em cuja direção se destacará pela grande qualidade e pertinência dos seus editoriais num momento decisivo na construção da democracia e de defesa da liberdade.
«HOMENS E LIVROS»
Quando lemos o primeiro volume de “Os Homens e os Livros”, obra notável publicada em 1971 pela Editorial Verbo, notamos a extraordinária riqueza analítica de uma das mais importantes estudiosas da cultura portuguesa. E recordamos como as suas colegas do liceu Maria Amália, foram premonitórias, quando lhe deram a alcunha de “Carolina Michaëlis”. A reunião de ensaios, é de uma qualidade superlativa, quer pelo rigor e profundidade dos temas, quer pela capacidade evidenciada de uma visão integradora, não apenas no panorama da literatura, mas especialmente na compreensão das tendências da cultura europeia. Foi, assim, pioneira na reflexão estilística, numa perspetiva centrada na dimensão histórica e cultural. Refira-se o caso de Frei António das Chagas, discípulo de Gôngora – exaustivamente analisado como um “homem e um estilo do século XVII”, num estudo considerado pelos especialistas na literatura peninsular como exemplar, por abrangente e compreensivo, envolvendo o poeta que na vida civil se chamou António da Fonseca Soares. Foi essencial a busca que realizou da difícil síntese definidora do barroco e do barroquismo, pela ambiguidade e multiplicidade de fatores contraditórios presentes. Como ficará claro a propósito de Frei Luís de Sousa e da sua biografia do Arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, temos nesse caso “um prosador da época barroca”, que antecipa o Padre Manuel Bernardes, alguma “prosa tranquila” do Padre António Vieira, ou até a escrita do Padre Bartolomeu de Quental. E assim, longe da tentativa de encerrar o conceito de barroco num conjunto de elementos formais, enfatiza a complexidade das influências. E os limites cronológicos do barroco português ficam definidos tendencialmente entre 1580 e 1680, sendo capitais os dois cancioneiros “Fénix Renascida” (1716-1728) e “Postilhão de Apolo” (1761-62). Nas glosas ao Salmo 136 na relação com a saudade portuguesa encontramos a simbiose do tema religioso com a íntima dor que a condição de exilado suscita no poeta, valorizando-se a nostalgia e o desencanto e a tensão entre as dimensões celeste e terrena da Cidade de Deus. Luís de Gôngora, Baltasar Grácian ou Emanuele Tesauro, mas também Ribeiro Chiado, Frei Agostinho da Cruz ou o Padre António de Gouveia (na evangelização da China) correspondem a um fecundo elenco de referências e leituras que permitem a compreensão de um período da nossa história literária que foi significativo pela coexistência de múltiplas influências – num contexto em que a cultura portuguesa atinge a maturidade cultural e recomeça a ganhar influência global, até pela afirmação brasileira. E assim o barroco e o barroquismo foram fatores que acompanharam a afirmação da influência da cultura da língua portuguesa com um novo fulgor, como Maria de Lourdes Belchior demonstrou de modo pioneiro. Além de poeta em “Gramática do Mundo”, foi notável a sua carreira internacional, sendo Professora na Sorbonne, antes de suceder a Jorge de Sena na Universidade de Santa Bárbara, num longo período de cerca de dez anos em boa parte em acumulação com presença semestral em Lisboa, sendo, a partir de 1989, até 1998, Diretora da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, sempre com uma brilhante ação de apoio às culturas da língua portuguesa.
“Metamorfose Necessária – Reler S. Paulo” de José Tolentino Mendonça (Quetzal, 2022) é um livro oportuno que devemos escolher para esta quadra de Natal como leitura utilíssima.
APROXIMARMO-NOS DO PRESÉPIO
Ao conhecer melhor o apóstolo dos gentios, aproximamo-nos mais do Menino que vai nascer. Através de Paulo e da sua conversão podemos, assim, entender melhor a essência da Epifania, representada metaforicamente na presença dos Magos no presépio, mas só compreensível através do fundamental encontro na Estrada de Damasco, em tudo o que representou e significou. Numa cronologia possível elaborada no livro pelo Cardeal Tolentino, mercê do que Paulo diz de si nas cartas e do que Lucas refere dele nos Atos, podemos elaborar um percurso: a conversão entre os anos 35 e 37, a evasão de Damasco entre 37 e 39, o incidente em Antioquia entre 43 e 44, a primeira viagem missionária entre 45 e 48, a Assembleia de Jerusalém (48-49), a segunda viagem missionária e a estada em Corinto (49-52), a terceira viagem missionária, com estada em Éfeso e três meses em Corinto (57-60), o cativeiro de Cesareia (60-64) e a morte ocorre provavelmente em Roma, entre 64 e 68. Julgamos que Paulo tenha sido um “fabricante de tendas”, que se orgulhava de, “graças ao seu trabalho, não depender das comunidades nem do patrocínio dos ricos”. Não sabemos, porém, em rigor, quantas cartas teria escrito Paulo, mas no cânone do Novo Testamento são-lhe atribuídas treze, pondo à parte a Carta aos Hebreus. Há consenso em reconhecer a autoria paulina de sete epístolas: a primeira aos Tessalonicenses, a primeira e a segunda aos Coríntios, e ainda as cartas aos Filipenses, a Filémon, aos Gálatas e aos Romanos. A estas designamo-las como autênticas, por análise literária, teológica e histórica, sendo as outras atribuídas a discípulos posteriores.
UM MODELO DE COMUNICAÇÃO
O encadeamento dos textos permite-nos ver como o apóstolo, o primeiro escritor cristão, começou de um modo simples e direto e passou, com o decurso do tempo, a usar os melhores “recursos da oficina literária” de um modo mais rigoroso, “a ponto de George Steiner dizer que poucos homens, na história da comunicação humana, acreditaram tanto no poder da palavra como Paulo”. E se há coisas algo difíceis de compreender, o certo é que há uma coerência, que encontramos e que nos ajuda a dar sentido ao conjunto do pensamento e das mensagens. “Paulo nunca foi um pregador solitário ou um one man show. Viveu toda a vida num ritmo comunitário, cultivou uma finíssima rede de relações pessoais, tinha um conjunto de colaboradores que partilhavam o seu quotidiano e o seu pensamento, operava numa verdadeira rede social que é parcialmente reconstruível”. E podemos acrescentar ao que nos diz o autor que se trata de uma “rede” aberta e dialogante (em contraste com o que tantas vezes encontramos em circuitos fechados). Trata-se de uma “teologia de pregação”, que interage com a vida concreta, que determina um sentido direto, dotado de capacidade de sedução, o que levaria supostamente Séneca, numa carta ficcionada dirigida a Paulo, a pedir-lhe: “Usa por favor uma linguagem correta, empresta aos teus nobres conceitos uma bela veste, de maneira que o generoso dom que te foi concedido possa por ti dignamente dar muito fruto”. E qual a chave do ensinamento de Paulo? Estamos diante de “um pensamento móvel, que se estende por declinações muito diversas, a partir de um centro fixo: o encontro com Cristo” – e assim se realiza a “experiência mística de um Cristo que está vivo”. E o apóstolo não pensa apenas no destino dos crentes, mas reflete sobre o destino humano e a metamorfose do mundo. Como diz o insuspeito Alain Badiou, o pensamento universal de Paulo supera a proliferação de alteridades (o judeu, o grego, as mulheres, os homens, os escravos, os homens livres, etc.) pela afirmação de uma equivalência igualitária. E Giorgio Agamben diz-nos que o essencial em Paulo incide sobre aquilo que resta (o resto que permite compreender o todo), que impede as divisões sumárias e impossibilita que as partes e o todo coincidam consigo mesmos. E assim supera a contradição do primado da lei escrita, “uma vez que divide a lei em lei das obras e lei da fé, lei do pecado e lei de Deus (Rm 7, 22-23) – e assim a torna inoperante -, Paulo pode então cumprir a lei na figura do amor”.
VER É SER VISTO
Mais do que viajante, Paulo é peregrino. E o seu ver “não é apenas um observar com os olhos da carne; é o ser visto, é o passar a ver com os olhos da fé”. E esta construção do anúncio cristão inscreve-se na encruzilhada dos mundos judaico-semita e helenístico-romano. “Paulo metamorfoseia o mundo e as relações, ao pensar alternativas de futuro”. E a Filémon diz, com clareza, que o dono e o escravo se devem reconhecer como irmãos. Mas então de que metamorfose falamos? Não por acaso, Lucas descreve Paulo caído por terra, com uma cegueira funcional, protagonista de uma reviravolta na vida – “Aquele que já nos perseguiu anuncia agora a fé que antes destruía” (Gal. 1, 23). E o cristão é para Paulo um sujeito crente em construção, sabendo que a fé é frágil e incompleta. Como Karl Rahner dirá: “o cristão do futuro ou será místico, ou não será cristão”. Urge que possamos experimentar, no sentido criador. “Deus, com efeito, não criou o homem; Ele cria-o e continuará a criá-lo. Nesse sentido, estamos sempre em estado de ser criados e de criar (…). Não somos simplesmente testemunhas de um passado. Cada pessoa é chamada a ser, e é já, um documento do futuro”. Eis a metamorfose necessária.
Sendo uma bola de pó feita de restos humanos, não deixa de ser irónico que o que varremos é a nossa própria morte.
A.C.
Li no Jornal de Letras (nº1356) «Pó» de Afonso Cruz, um dos nomes mais conceituados da nossa literatura.
Imaginei-nos numa fábrica que se vai despedindo do que produz, e antes de fechar, expõe o que resta de um processo. Depois, varre pele, que o mesmo é dizer corpo, e varre alma, que o mesmo é dizer quem lá trabalhou.
O êxito passou a ser a ideia da transição para outro produto, e essa ideia não é estática, mas cristaliza se não se desenvolver, passando a ser algo físico de explicação simples e de sentido único: pó.
A morte mais terrível seria mantermo-nos iguais
A.C.
Quem na fábrica conhecia previamente as perguntas das dissertações dos novos produtos ou das novas ideias, ou quem conhecia os arguentes, era estável, tão estável que definharia no próprio pó, engrossando-o, sem que tivesse dado algo avesso à morte.
Os outros eram os do preço a pagar pela arte da vassoura no regresso da pá.
A única maneira de matar a arte ou qualquer produção imaterial é disparando esquecimento, sendo essa também a única forma de uma alma morrer, tão diferente da outra, a do corpo que se transforma em pó.
A.C.
Percebe-se ou vai-se percebendo que no final de muito ou de tudo, não é tempo de reocupar o passado com a linha de montagem da fábrica. A fábrica e o produto já não estão ali. São apenas pó varrido na sua relação com o mundo. A morte não se altera.
Num sentido absoluto, a morte não é morrer, é esquecer a canção.
A.C.
Diria que a morte pertence ao que não negamos, mas varremos.
Talvez acreditar que em tudo há sempre um mais secreto: uma passagem que pode até nem coincidir, mas que não esquece por uma outra boca - que não sucede necessariamente à nossa - o som similar à vibração das folhas.
Que se leia Pó de Afonso Cruz, meu profundo convite.
Que me tenha aproximado do que queria dizer é também minha viagem.
Estes dias outonais em que celebramos o centenário de Agustina Bessa-Luís são ocasião para lembrar o que um dia nos disse: “depois de mortos temos muito mais para ensinar”. E recordo uma visita que a romancista fez com José Régio à casa de Camilo Castelo Branco, em Seide, relatada em “O Tempo e o Modo” (nº 15, abril de 1964). O texto está repassado de paixão pelo mundo romanesco. A descrição baseia-se numa construção fascinante, suscitada pelo génio e pela imaginação criadora.
«Diante do portão da casa de Seide tinha parado uma caleche verde; um padre obeso, duma palidez de recolhimento e de dietas, inclinava sobre o ombro a cabeça romana como a de um senador vencido. Não dormia. De vez em quando debruçava-se na sombra em que se percebia a fofa espessura duma manta de viagem que, apesar do calor, lhe cobria os joelhos; o olhar vivo riscava por um momento a faixa do portão semiaberto. A sua presença insólita e, no entanto, encarada como legítima, carregava-nos subitamente o coração de uma ansiedade furtiva: “São coisas como estas que a mim me causam calafrios” – disse o Régio». A este calafrio do companheiro de viagem, correspondia, contudo, uma sensação diferente de Agustina que, rindo intimamente, deixava-se entusiasmar pelo que a apavorava. E Camilo atraía-a, ele que se considerava desde novo predestinado para o infortúnio. Mas, em bom rigor, esse infortúnio era menos condição própria e mais carácter dos outros. E, de facto, aquele ambiente era propício a pensar na comédia e no drama da vida. “Da sala de trabalho de Camilo veem-se as hortas onde o calor desbota os verdes trigados de azul e do ouro dos primeiros anúncios de outono. Pensamos naquele escritor ali recluso não por desdém do mundo, mas por respeito pela forma de expressão que lhe foi conferida”. E alguém chama pelos visitantes, ou parece chamar. “Uma porta bateu talvez, outra chiou prolongadamente. ‘É alguém que tem saudades nossas’ – dizemos. Só os mortos têm saudades e chamam de longe, para que não os esqueçamos”. De facto, naquela tarde, Régio e Agustina sonhavam acordados em tal ambiente propício. Camilo ligou sempre o “léxico do coração” a “muita ousadia”. E aquele lugar estava repleto de espíritos e de sentimentos contraditórios. José Régio inquietava-se e Agustina regozijava. O calor continuava. As palavras de Raul Brandão recordam: “A natureza chorava revolvida: a acácia do Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas”. Camilo está omnipresente. Os espíritos reais e imaginários abundam nas redondezas – Ana Plácido, Fanny Owen, José Augusto, Vieira de Castro, Simão Botelho, Calisto Elói, Eusébio Macário, tão diversos convívios.
Num ápice, “já não está ao portão a caleche com o seu estranho viajante abrigado com a manta alpina”. Régio e Agustina perscrutam os arredores, a tentar perceber o que ocorreu. E ela, com intuição feminina, imagina que se trataria de um cónego velho que viria comprar alfaces; “há destes ladinos intuitos sob a forma de excentricidade e do mistério”. Mas comove-se com a estranheza do episódio, que reclama um desenvolvimento. “E, como para defender a gestação da memória, rodeio-a (diz-nos) de uma frialdade hibernal que intimida o doce mundo do convívio presente”. Eis a síntese que Agustina considera essencial. A memória é matéria-prima que se junta à imaginação. E este encontro com Camilo e a presença discreta de José Régio, permite compreender a coexistência e a distinção entre o mundo real e a ficção. Como poderemos entender esses mundos se não nos tornarmos simultaneamente protagonistas, narradores e figurantes capazes de criar ou de destruir? Essa dimensão de “deus ex machina” entusiasmava Agustina, deixava-a em êxtase, perante o mundo encarado como gigantesco palco de sentimentos e paixões.
O nome de Judite estava riscado pelo autor na capa da primeira edição desta obra. Para muitos, a começar no Ricardo Reis retratado por Saramago no “Ano da Morte”, estamos perante uma das obras mais importantes na renovação da literatura portuguesa contemporânea, ao lado de “Viagens na Minha Terra” de Garrett. O tema, a linguagem, a ordenação – tudo dá sinais de uma vida que persegue o mundo. E neste folhetim, onde vários fantasmas se encontram, não poderia faltar esta surpreendente obra de um grande artista que não deixou por mãos alheias o domínio da literatura moderna. Antunes persegue Judite. É uma procura que se exprime como verdadeira busca de uma sombra. Escrito por Almada Negreiros em 1925 é um romance de iniciação de um jovem de província, o Luís Antunes, provindo de uma família abastada. O tio de Antunes envia-o para Lisboa ao cuidado do amigo D. Jorge (“bruto como as casas” e ordinário) com o objetivo de fazer as “provas masculinas”. E o protagonista persegue Judite, mas esta percebeu perfeitamente que ele não estava destinado a ela, mas “não lhe faltava dinheiro”, que era o principal para esperar, “para disfarçar, para mentir a miséria e a desgraça”. «A Judite é um pedaço de verdade, autêntica, sem forma nem fuga. Verdade tão pura que não admite arranjo nem escape. Ao mesmo tempo, ela é a ignorância em pessoa. Verdade absoluta sem sonho. Sem imaginação. Os seus dezanove anos cheios de cicatrizes são a estátua mutilada da Verdade. Os gestos da estátua são falsos, é tudo mentira, apenas a matéria da estátua mutilada é verdade!»
«Só quando chegou à rua é que viu que não ia para parte alguma. Não havia nenhum lugar para onde ele fosse. A mesma multidão, as mesmas casas, as mesmas ruas e ele. Mas qualquer coisa de novo se passava na sua vida. Se sondava o seu íntimo, não havia nada até à profundidade. Do exterior nada lhe vinha, tudo encontrava resistência nos seus sentidos para o animar de imagens. Ele não se reconhecia: havia qualquer coisa de estranho na sua vida, qualquer coisa de estranho e dele próprio ao mesmo tempo». (…) «A Judite e o Antunes entraram ambos na intimidade um do outro como ladrões que não sabem exatamente o que vão roubar. Percorreram todos os cantos, indagaram de todos os caminhos, revolveram tudo o que se procura e não se encontra, e ambas as intimidades foram impiedosamente devassadas um pelo outro. Ainda que alguém viesse depois a entrar pela primeira vez nas suas vidas, não poderia deixar de reparar em que já lá tinham andado os ladrões.» (…) «Todos quantos intervêm na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são afinal de uma cobardia que escapa à observação dos melhor atentos. Cobardes por duas razões: primeira, por serem incapazes de se reconhecerem e darem a conhecer o seu próprio caso pessoal para a aceitação geral; segunda, porque, ao intervirem na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são incapazes também de abnegar da sua própria pessoa. Se alguém decide da sua vida para servir os outros e não renuncia a si mesmo, em que poderá então ser equânime e admirável, justo e elucidativo? Respeitemos os que a tanto se afoitaram e se decidiram, mas desprezemos os que o fingem. A condição para saber ver ao longe é estarmos dentro de nós se se trata do próprio, ou de ter renunciado a si mesmo se se trata dos outros.
Moralidade deste romance: Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar».
Torga, discípulo de Cervantes e de Unamuno, definiu Portugal como um ponto de encontro entre a vontade, o mar e a insatisfação. A leitura da sua obra permite entendermo-nos nas nossas contradições e nos nossos anseios.
CADINHO DE VÁRIAS INFLUÊNCIAS
Portugal é um país difícil de entender. O cadinho de várias influências apresenta-nos elementos contraditórios. Mas há fatores que são permanentes e definem uma identidade que começa no querer, continua na omnipresença do mar e pressupõe uma luta constante. Lembremo-nos da saga dos poveiros, com o negro do luto das viúvas e dos órfãos nas praias atlânticas ou do combate contra a adversidade do meio em Trás-os-Montes, no Douro ou no Alentejo. Eduardo Lourenço e José Mattoso lembram que “uma das descobertas mais simples e irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espetaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos”. Isto significa, porém, que dependemos da nossa responsabilidade, do nosso querer e do saber pensar e fazer. Assim chegámos aqui. Precisamos uns dos outros. E temos de saber planear o futuro, partindo do presente, e avaliar os resultados que somos capazes de obter. Sempre que preparámos o futuro, ganhámos. Ao Deus dará perdemos e agravámos o nosso atraso, que não é uma fatalidade. O mérito não é um mito, só funciona quando resulta do reconhecimento das diferenças e da dignidade de cada um. Miguel Torga foi tantas vezes duro na sua apreciação de quem somos. Sabia do que falava e que nada se consegue de ânimo leve ou de ilusão. O desencanto assalta-nos tantas vezes, e o lirismo poético é apimentado com o picaresco e o maldizer.
O MUNDO CONTRADITÓRIO
Desejamos coisas contraditórias. E assim, se temos vícios devemos combatê-los, em vez de cultivar utopias enganadoras e esperanças vãs. Considerando-nos ou os melhores ou os piores, não nos safamos. Relendo o “Portugal” de Miguel Torga, surpreendemo-nos quando nos fala do Algarve, onde o conheci e cuja memória guardo num lugar especial. Disse ele, depois de nos descrever quem somos e onde estamos, sem ilusões: «O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. As coisas de Trás-os-Montes tocam-me muito no cerne para eu poder esquecer a solidariedade que devo a quem sofre e a quem sua. E isto repete-se com maior ou menor força no resto de Portugal. Mas, passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril». Não, não há contradição nesta bela página, que temos de ler em estreita ligação a tudo o resto. O que Torga nos diz, é exatamente que temos de ser quem somos. E no caso algarvio, compreender que não é de sol e praia que se trata, mas de entender a cultura como capacidade de construir e usufruir, de amar a liberdade e de ligá-la à entreajuda, à compreensão da diversidade das raízes e ao desenvolvimento humano. E José Mattoso definiu o ponto que permite entender a paradoxal visão de Torga: «o fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos ‘justos’ que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem, e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela ‘justiça’».
Ao assinalar os cinquenta anos do nascimento de Daniel Faria, a Assírio e Alvim acaba de publicar “Sétimo Dia” (2021), resultado de incursões ao espólio recolhido no mosteiro de Singeverga, onde foi encontrado um conjunto de catorze folhas com textos inéditos.
POETA MÍSTICO
Foi Eduardo Prado Coelho quem me chamou a atenção para a importância da poesia de Daniel Faria (1971-1999) e foi então que li, em 2002, os três primeiros livros, editados pela Fundação Manuel Leão, graças ao apoio do então Padre Carlos Moreira Azevedo, segundo o corpus definido pelo próprio poeta desaparecido: Explicação das Árvores e de outros Animais; Homens que são como Lugares mal situados e Dos Líquidos. É certo que este último volume foi publicado a título póstumo, mas foi deixado globalmente acabado, como obra de fecho desse conjunto. Ou seja, pouco depois da sua morte prematura e inesperada, pudémos dispor de uma prova concludente relativa ao valor do poeta e à importância da sua promessa. «Não sabemos como tencionaria Daniel Faria prosseguir o “Sétimo Dia” ou sequer se teria encarado em algum momento a hipótese de concluí-lo; interrogamo-nos, caso tivesse continuado, que lugar ocuparia cada homem nos dois dias em falta», escreveu Francisco Saraiva Fino no texto que abre o volume. Apenas sabemos da boca do próprio poeta que ele tinha a intenção de reconhecer Cristo como “lugar mal situado”, devendo ser compreendido pela humanidade, até pela dificuldade em encontrar um lugar onde “reclinar a cabeça”. No fundo, tratar-se-ia de fazer da arte poética uma procura do lugar de encontro entre a imanência e a transcendência. «Em “Sétimo dia”, cinco homens repartem perspetivas sobre a ideia de ocupação e coincidem no desejo de alcançar uma certa ideia de existência transcendente sem depor a medida humana». E cada voz é o anunciar de um degrau no caminho do reencontro com a palavra poética na expressão tendo em consideração a “fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro” e na representação das depurações da semente na difícil ascensão para a vida do espírito.» Deste modo, o poeta caminha na busca de um lugar, não como certeza fechada, mas como: “Homens que são como casas saqueadas / Que são como sítios fora dos mapas / Como pedras fora do chão / Como crianças órfãs / Como homens sem fuso horário / Homens agitados sem bússola onde repousem (…) / Porque a sua força é para fora e a sua espera / É a fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro / Não os levantemos / Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos / No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos / A qualquer instante». Com efeito, há algo por desvendar, nesse texto incompleto agora divulgado. Apenas podemos reler o que o poeta nos deixou. Se, de facto, há um mistério que se manterá eternamente, podemos sentir a inquietação manifestada… «Agora, quando telefonar de novo (diz Daniel Faria), vou deixar no atendedor de chamadas uma passagem bíblica. Há aqui uma de que gosto por demais: “Ao descer da montanha, seguiam-no multidões numerosas, quando um leproso de repente se aproximou e se prostrou diante dele dizendo: ‘Senhor, se queres, tens poder para purificar-me’. Ele estendeu a mão e, tocando-o, disse: ‘Eu quero, sê purificado’ E imediatamente ele ficou curado.” E Jesus disse, “Eu quero”… Eu nunca ouvi nada com mais luz. Eu nem consigo imaginar, sem que me aumente a febre, esse homem a correr por entre a multidão, esse homem a dizer se queres e Jesus a dizer eu quero… Eu quero… eu quero… eu nunca tinha dito nada assim.»
UM PERCURSO MUITO FUGAZ
Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, a 10 de abril de 1971. Frequentou no Porto o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – onde se licenciou em 1996. No Seminário e na Faculdade de Teologia demonstrou uma forte inclinação poética, estabelecendo um diálogo com a criação contemporânea. Também se diplomou em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Simultaneamente com a sua fecunda criação artística, a opção monástica torna-se evidente. A partir de 1990, colabora com a paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses, onde demonstra uma capacidade excecional para a animação cultural e um grande potencial de sensibilidade para o teatro, encenando, com recursos limitados, As Artimanhas de Scapin de Molière e o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Faleceu tragicamente a 9 de junho de 1999, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga, em resultado de uma queda. Como lembra Alexandra Lucas Coelho, num texto fundamental, que corresponde a um retrato fiel de Daniel Faria: «Sophia de Mello Breyner Andresen foi, para ele, o princípio da poesia. E quando chegou a vez de Sophia o ler, disse: "Versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós." Essa é a síntese, tudo o que importa. É da poesia que partimos, mesmo quando vamos de casa em casa, à volta da vida. Para saber um pouco mais, para voltar a não saber. Vale só por isto, a aproximação a uma biografia.
UM ROSTO QUE HÁ DE VIR
Quando lhe pediram um autorretrato, Daniel Faria escreveu que era "um rosto que há de vir". E assim será, para o leitor dos poemas. Acreditamos que na poesia portuguesa dos últimos 20 anos poucos tenham vindo à luz assim, com um impacto de pedra». Nesse testemunho recolhido no jornal Público. Um colega recorda: "O Daniel tinha sempre projetos fantásticos, queria ler as obras completas de Shakespeare... O Rilke, na tradução do Paulo Quintela, era fundamental para ele, como o Herberto. E depois Luiza Neto Jorge, Eugénio, Ramos Rosa, Sophia, Ruy Belo, Lorca. Foi com ele que conhecemos Drummond, Guimarães Rosa..." O poeta empenhou-se na ida de Eugénio de Andrade ao seminário. Foi um risco, mas o resultado foi muito bom: Daniel Faria "ficou exausto, havia oposições dentro do seminário, isso angustiou-o imenso. Depois correu muito bem, o Eugénio só não entrou na capela, lembro-me que se admirou por jogarmos futebol sem batina..." E Eugénio de Andrade resumiu essa inédita aventura como "uma tarde divertidíssima". (cf. Público, 14.6.2001). A memória de Daniel Faria foi-se consolidando com o andar do tempo. Mas o seu prematuro desaparecimento teve dois efeitos contraditórios: por um lado, atrasou o reconhecimento da importância da sua obra; e, por outro, permitiu que, finalmente, possamos encontrar a sua voz, como uma das mais significativas da contemporaneidade.