Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
«O Português visto por (alguns) Portugueses» de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote, 2023) permite-nos compreendermo-nos melhor à luz da nossa literatura de hoje.
AFINAL, QUEM SOMOS?
«Quem somos? Qual o grau da nossa cultura? Porque decaímos? Que remédios nos poderão salvar? Sem dúvida tentaram eles (os homens de 1870) responder a estas e outras interrogações que tanto nos importam; e com ou sem resposta as legaram às gerações vindouras». José Régio faz estas perguntas a que temos de responder com sentido da realidade. Marcello Duarte Mathias reuniu na obra que intitulou O Português visto por (alguns) Portugueses (D. Quixote, 2023) opiniões que podem ajudar. E neste conjunto de diversas perspetivas, podemos concluir que nos caracterizamos por algo paradoxal que nos distingue. Por isso, o conde Ficalho disse que, com essa busca, Portugal “significa simplesmente ser uma coisa à parte, sem imitação e sem cópia; significa ter uma língua própria, e um traje especial e um modo de pensar e de sentir particular, lentamente fixado pela tradição (…). E se um dia, os burgueses e viscondes, que tão relesmente nos governam, chegarem a desnacionalizá-lo, sob o fútil pretexto de o civilizar, hão de talvez perceber que ele fica sem grande razão de existir». Com estas palavras ásperas, Ficalho faz suas as preocupações de antepassados como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, longe de qualquer entendimento fechado ou autossuficiente. Daí que este verdadeiro inquérito nos permite ver até que ponto no ocidente peninsular se construiu uma identidade própria, aberta e complexa, que poderemos designar por um patriotismo prospetivo, que envolve a compreensão de uma realidade complexa e diversa que devemos continuar a aperfeiçoar e a fortalecer, como realidade viva e aberta.
O CARÁCTER PORTUGUÊS
Pela parte que me toca, segui desde muito cedo muitos dos percursos que aqui encontramos – salientando uma preciosa primeira edição de “O Estudo do Carácter Português” de Jorge Dias que me acompanha e que continuo a ler com distância crítica, ao lado de um manual único de ensinamentos sobre quem somos, que é “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” de Orlando Ribeiro, onde está tudo o que devemos saber sobre nós mesmos. Devo dizer, aliás, que, confirmando plenamente o que Ernesto Sabato afirmou sobre a verdade de uma nação dever ser encontrada nos romances, e não na História, foi Ruben A. quem demonstrou claramente, designadamente em “A Torre da Barbela”, que os portugueses só podem ser compreendidos com essa rica profusão de retratos romanescos, que vão do “pobre de mim” da “Peregrinação” até à Joaninha dos Rouxinóis, ao Joãozinho das Perdizes, a Simão Botelho, a Fradique, a Jacinto, a Zé Fernandes, a Gonçalo Mendes Ramires, ao Lelito de “A Velha Casa”, até aos fantasmas de Barbela e à panóplia de Aquilino, de Nemésio ou de Saramago… E, nos textos escolhidos, com olho clínico, por Marcello D. Mathias é essa heterogeneidade que encontramos, ligada por um forte fio de Ariadne. “O génio lusíada é mais emotivo do que intelectual”, diz Pascoaes. “O trágico, o patético, a teatralidade, a desmesura não são connosco”, afirmou António José Saraiva. “O bom português é várias pessoas”, para Fernando Pessoa. “Entre o delírio e a melancolia, entre a exigência e a queixa, (o português) prefere esperar a sua vez”, disse Agustina Bessa-Luís. “Os portugueses têm aversão às soluções simples” para Valente de Oliveira.
UM NOVO-VELHO PAÍS
Com o 25 de abril de 1974, nasceu “um novo-velho país, e não é fácil a adaptação que constituiu uma verdadeira metamorfose. Para muitos um reencontro; para os demais, um dilaceramento. De qualquer modo, esta procura de identidade, que se agudiza com o pós-25 de abril, não é sentimento exclusivamente nosso, pois foi partilhado pelos países europeus que haviam sido potências coloniais, e que viriam a sofrer de semelhante rutura”. E a literatura dá-nos pano para mangas para essa interrogação e o sucesso do Marquês de Fronteira D. José Trasimundo, a seguir à revolução, foi significativo do que permanece e do que muda. António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira devem, por isso, ser lidos com atenção, porque o sentido crítico ajuda a uma leitura dos acontecimentos capaz de compreender a complexidade dos fatores com que se constrói a pátria. Uma identidade antiga não pode ser interpretada de modo simples ou superficial. E se esta obra notável de Marcello Duarte Mathias merece uma atenção especial e uma revisitação necessária, tal deve-se à complementaridade dos diversos registos que integra. E assim se entende Eduardo Lourenço, uma vez que ninguém levou tão longe e com tanta pertinácia “repensar a sério e a fundo uma realidade tão difícil de apreender como a portuguesa”. O autor apresenta diversos testemunhos numa escolha plural que permite compreender a essência do património, como serviço do que recebemos de quem nos antecedeu, fundamento duma herança rica e multifacetada, e valorização de uma memória viva. Na evocação, por exemplo, de Augusto de Ataíde ou de João Bigotte Chorão, duas personalidades com experiências diferentes, sentimos que a cultura se constrói com sensibilidade e sabedoria, com vontade e lembrança. E uma certa frustração das elites, correspondente à sua fragilidade, leva a um persistente fatalismo do atraso e da preguiça, a que importa responder com a compreensão de que, mais do que o primado do improviso, o melhor em nós é o trabalho. De facto, só podemos ter resultados positivos se ligarmos organização, persistência e cooperação. Sempre que o fizemos ganhámos, sempre que o esquecemos desaparecemos. Não se esqueça o que disse António Sérgio: “Quem vê com miragens o seu passado, constrói com miragens o seu futuro”. E é bom que Miguel Torga, como homem de raízes, seja lembrado quando diz “o Portugal de que sempre me orgulhei não é o da versão oficial”. Aí se sente “uma vontade de identificação, tanto no plano físico como espiritual, a que nunca renunciará”. Os vários autores que Marcello Duarte Mathias nos traz merecem ser lidos com vagar, de modo e entendermo-nos melhor. Somos um povo antigo, que se evidenciou por querermos ser nós mesmos. Como D. Pedro das Sete Partidas, entendamos a Europa como lugar de afirmação e não de ilusão. “A Europa, sim como pedra angular de uma política externa mais alargada, não como meio de subsistência coletiva; como âncora de ações que se assumem, não como álibis, que desresponsabilizam; não como uma aliança de nações que se juntam na afirmação de um bem comum superior, e não como um conjunto de povos às ordens de uma central burocrática interventiva que se arroga um magistério moral e político que não tem; a Europa, sim, como um processo contínuo de afirmação e valorização do que somos, entidade à parte entre os demais parceiros europeus, e não cobaia de um gradual desapossamento de nós mesmos, de tudo o que fomos e somos”.
Maria de Lourdes Belchior (1923-1998) é uma referência da cultura portuguesa contemporânea, cujo centenário este ano se assinala, merecendo uma atenta recordação.
EXPLICAÇÃO DE PORTUGAL
«Teremos nós consciência de que toda a explicação de Portugal visa à construção do país possível? Para tal, segundo o conselho não amargo de Vitorino Magalhães Godinho, estudemos amorosamente, minuciosamente, lucidamente, cientificamente as nossas coisas; definamos com meridiana clareza os problemas que são de facto os nossos, seguros de que na nossa história do passado há doutrina para o presente. (…) E o país possível – título de um livro de poemas de Ruy Belo – será “O portugal futuro”: “O portugal futuro é um país / onde o puro pássaro é possível». É Maria de Lourdes Belchior quem o afirma, demarcando-se das tentativas de nos vermos ou como os melhores, ou como um país sem remédio. Ora, seguindo Eduardo Lourenço, importaria tirar as sucessivas máscaras que temos afivelado para enfim conhecermos o nosso rosto verdadeiro. Neste ano de 2023, em que celebramos também o centenário de Maria de Lourdes Belchior, importa lembrar o método proposto por quem se empenhou no estudo aprofundado e sistemático sobre momentos cruciais da nossa literatura, permitindo aproximarmo-nos desse rosto, que tanto temos procurado. Não por acaso, os séculos XVI e XVII constituem circunstâncias especiais para essa indagação, uma vez que, com energias aparentemente esgotadas, houve que recuperar forças com apelo à criatividade.
INVESTIGAÇÃO E SERVIÇO PÚBLICO
Merece atenção redobrada o exemplo de Maria de Lourdes Belchior, surpreendente pela capacidade de interpretar a literatura com um novo olhar, inteligência, abertura de espírito e capacidade de compreender a realidade cultural, para além da superfície. Licenciada em Filologia Românica, em 1946, com a dissertação Da Poesia de Frei Agostinho da Cruz - Tentativa de Análise Estilística, viria a ser colega de Sebastião da Gama, na Escola Veiga Beirão, tendo em 1947 assumido funções docentes na sua Faculdade de Letras, onde obteve o doutoramento em 1953, após ter estado no Instituto Católico de Paris (1950-52), com a tese muito celebrada sobre Frei António das Chagas - Um Homem e um Estilo do Século XVII. Profundamente conhecedora da transição setecentista apresentaria, em 1959, o Itinerário Poético de Rodrigues Lobo no concurso para professora extraordinária. Se o tema da espiritualidade no percurso da autora é evidente, o mesmo liga-se à nossa situação em seiscentos, na qual uma Corte de Aldeia ganhava a aspiração de se libertar. Investigadora incansável, partiu para o Brasil em 1963 para desempenhar funções de Conselheira Cultural da Embaixada de Portugal, até 1966, aproveitando esse tempo para melhor compreender o barroquismo e para aprofundar a cooperação científica, pedagógica e cultural entre os dois países. E é notável na mulher de cultura essa capacidade de ligar a investigação e o serviço público. Concorre a uma vaga de Professora Catedrática da Universidade do Porto, assegurando a lecionação da cadeira de Literatura Portuguesa I (Idade Média), apoiando o Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade. Entre 1970 e 1973 preside ao Instituto de Alta Cultura e participa no núcleo fundador da Universidade Nova de Lisboa. Depois da revolução, entre maio e dezembro de 1974, é Secretária de Estado da Cultura e Investigação Científica, numa experiência fugaz, sendo em maio de 1975, como militante católica, cofundadora do Semanário “Nova Terra”, a convite do Cardeal D. António Ribeiro, em cuja direção se destacará pela grande qualidade e pertinência dos seus editoriais num momento decisivo na construção da democracia e de defesa da liberdade.
«HOMENS E LIVROS»
Quando lemos o primeiro volume de “Os Homens e os Livros”, obra notável publicada em 1971 pela Editorial Verbo, notamos a extraordinária riqueza analítica de uma das mais importantes estudiosas da cultura portuguesa. E recordamos como as suas colegas do liceu Maria Amália, foram premonitórias, quando lhe deram a alcunha de “Carolina Michaëlis”. A reunião de ensaios, é de uma qualidade superlativa, quer pelo rigor e profundidade dos temas, quer pela capacidade evidenciada de uma visão integradora, não apenas no panorama da literatura, mas especialmente na compreensão das tendências da cultura europeia. Foi, assim, pioneira na reflexão estilística, numa perspetiva centrada na dimensão histórica e cultural. Refira-se o caso de Frei António das Chagas, discípulo de Gôngora – exaustivamente analisado como um “homem e um estilo do século XVII”, num estudo considerado pelos especialistas na literatura peninsular como exemplar, por abrangente e compreensivo, envolvendo o poeta que na vida civil se chamou António da Fonseca Soares. Foi essencial a busca que realizou da difícil síntese definidora do barroco e do barroquismo, pela ambiguidade e multiplicidade de fatores contraditórios presentes. Como ficará claro a propósito de Frei Luís de Sousa e da sua biografia do Arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires, temos nesse caso “um prosador da época barroca”, que antecipa o Padre Manuel Bernardes, alguma “prosa tranquila” do Padre António Vieira, ou até a escrita do Padre Bartolomeu de Quental. E assim, longe da tentativa de encerrar o conceito de barroco num conjunto de elementos formais, enfatiza a complexidade das influências. E os limites cronológicos do barroco português ficam definidos tendencialmente entre 1580 e 1680, sendo capitais os dois cancioneiros “Fénix Renascida” (1716-1728) e “Postilhão de Apolo” (1761-62). Nas glosas ao Salmo 136 na relação com a saudade portuguesa encontramos a simbiose do tema religioso com a íntima dor que a condição de exilado suscita no poeta, valorizando-se a nostalgia e o desencanto e a tensão entre as dimensões celeste e terrena da Cidade de Deus. Luís de Gôngora, Baltasar Grácian ou Emanuele Tesauro, mas também Ribeiro Chiado, Frei Agostinho da Cruz ou o Padre António de Gouveia (na evangelização da China) correspondem a um fecundo elenco de referências e leituras que permitem a compreensão de um período da nossa história literária que foi significativo pela coexistência de múltiplas influências – num contexto em que a cultura portuguesa atinge a maturidade cultural e recomeça a ganhar influência global, até pela afirmação brasileira. E assim o barroco e o barroquismo foram fatores que acompanharam a afirmação da influência da cultura da língua portuguesa com um novo fulgor, como Maria de Lourdes Belchior demonstrou de modo pioneiro. Além de poeta em “Gramática do Mundo”, foi notável a sua carreira internacional, sendo Professora na Sorbonne, antes de suceder a Jorge de Sena na Universidade de Santa Bárbara, num longo período de cerca de dez anos em boa parte em acumulação com presença semestral em Lisboa, sendo, a partir de 1989, até 1998, Diretora da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, sempre com uma brilhante ação de apoio às culturas da língua portuguesa.
“Metamorfose Necessária – Reler S. Paulo” de José Tolentino Mendonça (Quetzal, 2022) é um livro oportuno que devemos escolher para esta quadra de Natal como leitura utilíssima.
APROXIMARMO-NOS DO PRESÉPIO
Ao conhecer melhor o apóstolo dos gentios, aproximamo-nos mais do Menino que vai nascer. Através de Paulo e da sua conversão podemos, assim, entender melhor a essência da Epifania, representada metaforicamente na presença dos Magos no presépio, mas só compreensível através do fundamental encontro na Estrada de Damasco, em tudo o que representou e significou. Numa cronologia possível elaborada no livro pelo Cardeal Tolentino, mercê do que Paulo diz de si nas cartas e do que Lucas refere dele nos Atos, podemos elaborar um percurso: a conversão entre os anos 35 e 37, a evasão de Damasco entre 37 e 39, o incidente em Antioquia entre 43 e 44, a primeira viagem missionária entre 45 e 48, a Assembleia de Jerusalém (48-49), a segunda viagem missionária e a estada em Corinto (49-52), a terceira viagem missionária, com estada em Éfeso e três meses em Corinto (57-60), o cativeiro de Cesareia (60-64) e a morte ocorre provavelmente em Roma, entre 64 e 68. Julgamos que Paulo tenha sido um “fabricante de tendas”, que se orgulhava de, “graças ao seu trabalho, não depender das comunidades nem do patrocínio dos ricos”. Não sabemos, porém, em rigor, quantas cartas teria escrito Paulo, mas no cânone do Novo Testamento são-lhe atribuídas treze, pondo à parte a Carta aos Hebreus. Há consenso em reconhecer a autoria paulina de sete epístolas: a primeira aos Tessalonicenses, a primeira e a segunda aos Coríntios, e ainda as cartas aos Filipenses, a Filémon, aos Gálatas e aos Romanos. A estas designamo-las como autênticas, por análise literária, teológica e histórica, sendo as outras atribuídas a discípulos posteriores.
UM MODELO DE COMUNICAÇÃO
O encadeamento dos textos permite-nos ver como o apóstolo, o primeiro escritor cristão, começou de um modo simples e direto e passou, com o decurso do tempo, a usar os melhores “recursos da oficina literária” de um modo mais rigoroso, “a ponto de George Steiner dizer que poucos homens, na história da comunicação humana, acreditaram tanto no poder da palavra como Paulo”. E se há coisas algo difíceis de compreender, o certo é que há uma coerência, que encontramos e que nos ajuda a dar sentido ao conjunto do pensamento e das mensagens. “Paulo nunca foi um pregador solitário ou um one man show. Viveu toda a vida num ritmo comunitário, cultivou uma finíssima rede de relações pessoais, tinha um conjunto de colaboradores que partilhavam o seu quotidiano e o seu pensamento, operava numa verdadeira rede social que é parcialmente reconstruível”. E podemos acrescentar ao que nos diz o autor que se trata de uma “rede” aberta e dialogante (em contraste com o que tantas vezes encontramos em circuitos fechados). Trata-se de uma “teologia de pregação”, que interage com a vida concreta, que determina um sentido direto, dotado de capacidade de sedução, o que levaria supostamente Séneca, numa carta ficcionada dirigida a Paulo, a pedir-lhe: “Usa por favor uma linguagem correta, empresta aos teus nobres conceitos uma bela veste, de maneira que o generoso dom que te foi concedido possa por ti dignamente dar muito fruto”. E qual a chave do ensinamento de Paulo? Estamos diante de “um pensamento móvel, que se estende por declinações muito diversas, a partir de um centro fixo: o encontro com Cristo” – e assim se realiza a “experiência mística de um Cristo que está vivo”. E o apóstolo não pensa apenas no destino dos crentes, mas reflete sobre o destino humano e a metamorfose do mundo. Como diz o insuspeito Alain Badiou, o pensamento universal de Paulo supera a proliferação de alteridades (o judeu, o grego, as mulheres, os homens, os escravos, os homens livres, etc.) pela afirmação de uma equivalência igualitária. E Giorgio Agamben diz-nos que o essencial em Paulo incide sobre aquilo que resta (o resto que permite compreender o todo), que impede as divisões sumárias e impossibilita que as partes e o todo coincidam consigo mesmos. E assim supera a contradição do primado da lei escrita, “uma vez que divide a lei em lei das obras e lei da fé, lei do pecado e lei de Deus (Rm 7, 22-23) – e assim a torna inoperante -, Paulo pode então cumprir a lei na figura do amor”.
VER É SER VISTO
Mais do que viajante, Paulo é peregrino. E o seu ver “não é apenas um observar com os olhos da carne; é o ser visto, é o passar a ver com os olhos da fé”. E esta construção do anúncio cristão inscreve-se na encruzilhada dos mundos judaico-semita e helenístico-romano. “Paulo metamorfoseia o mundo e as relações, ao pensar alternativas de futuro”. E a Filémon diz, com clareza, que o dono e o escravo se devem reconhecer como irmãos. Mas então de que metamorfose falamos? Não por acaso, Lucas descreve Paulo caído por terra, com uma cegueira funcional, protagonista de uma reviravolta na vida – “Aquele que já nos perseguiu anuncia agora a fé que antes destruía” (Gal. 1, 23). E o cristão é para Paulo um sujeito crente em construção, sabendo que a fé é frágil e incompleta. Como Karl Rahner dirá: “o cristão do futuro ou será místico, ou não será cristão”. Urge que possamos experimentar, no sentido criador. “Deus, com efeito, não criou o homem; Ele cria-o e continuará a criá-lo. Nesse sentido, estamos sempre em estado de ser criados e de criar (…). Não somos simplesmente testemunhas de um passado. Cada pessoa é chamada a ser, e é já, um documento do futuro”. Eis a metamorfose necessária.
Sendo uma bola de pó feita de restos humanos, não deixa de ser irónico que o que varremos é a nossa própria morte.
A.C.
Li no Jornal de Letras (nº1356) «Pó» de Afonso Cruz, um dos nomes mais conceituados da nossa literatura.
Imaginei-nos numa fábrica que se vai despedindo do que produz, e antes de fechar, expõe o que resta de um processo. Depois, varre pele, que o mesmo é dizer corpo, e varre alma, que o mesmo é dizer quem lá trabalhou.
O êxito passou a ser a ideia da transição para outro produto, e essa ideia não é estática, mas cristaliza se não se desenvolver, passando a ser algo físico de explicação simples e de sentido único: pó.
A morte mais terrível seria mantermo-nos iguais
A.C.
Quem na fábrica conhecia previamente as perguntas das dissertações dos novos produtos ou das novas ideias, ou quem conhecia os arguentes, era estável, tão estável que definharia no próprio pó, engrossando-o, sem que tivesse dado algo avesso à morte.
Os outros eram os do preço a pagar pela arte da vassoura no regresso da pá.
A única maneira de matar a arte ou qualquer produção imaterial é disparando esquecimento, sendo essa também a única forma de uma alma morrer, tão diferente da outra, a do corpo que se transforma em pó.
A.C.
Percebe-se ou vai-se percebendo que no final de muito ou de tudo, não é tempo de reocupar o passado com a linha de montagem da fábrica. A fábrica e o produto já não estão ali. São apenas pó varrido na sua relação com o mundo. A morte não se altera.
Num sentido absoluto, a morte não é morrer, é esquecer a canção.
A.C.
Diria que a morte pertence ao que não negamos, mas varremos.
Talvez acreditar que em tudo há sempre um mais secreto: uma passagem que pode até nem coincidir, mas que não esquece por uma outra boca - que não sucede necessariamente à nossa - o som similar à vibração das folhas.
Que se leia Pó de Afonso Cruz, meu profundo convite.
Que me tenha aproximado do que queria dizer é também minha viagem.
Estes dias outonais em que celebramos o centenário de Agustina Bessa-Luís são ocasião para lembrar o que um dia nos disse: “depois de mortos temos muito mais para ensinar”. E recordo uma visita que a romancista fez com José Régio à casa de Camilo Castelo Branco, em Seide, relatada em “O Tempo e o Modo” (nº 15, abril de 1964). O texto está repassado de paixão pelo mundo romanesco. A descrição baseia-se numa construção fascinante, suscitada pelo génio e pela imaginação criadora.
«Diante do portão da casa de Seide tinha parado uma caleche verde; um padre obeso, duma palidez de recolhimento e de dietas, inclinava sobre o ombro a cabeça romana como a de um senador vencido. Não dormia. De vez em quando debruçava-se na sombra em que se percebia a fofa espessura duma manta de viagem que, apesar do calor, lhe cobria os joelhos; o olhar vivo riscava por um momento a faixa do portão semiaberto. A sua presença insólita e, no entanto, encarada como legítima, carregava-nos subitamente o coração de uma ansiedade furtiva: “São coisas como estas que a mim me causam calafrios” – disse o Régio». A este calafrio do companheiro de viagem, correspondia, contudo, uma sensação diferente de Agustina que, rindo intimamente, deixava-se entusiasmar pelo que a apavorava. E Camilo atraía-a, ele que se considerava desde novo predestinado para o infortúnio. Mas, em bom rigor, esse infortúnio era menos condição própria e mais carácter dos outros. E, de facto, aquele ambiente era propício a pensar na comédia e no drama da vida. “Da sala de trabalho de Camilo veem-se as hortas onde o calor desbota os verdes trigados de azul e do ouro dos primeiros anúncios de outono. Pensamos naquele escritor ali recluso não por desdém do mundo, mas por respeito pela forma de expressão que lhe foi conferida”. E alguém chama pelos visitantes, ou parece chamar. “Uma porta bateu talvez, outra chiou prolongadamente. ‘É alguém que tem saudades nossas’ – dizemos. Só os mortos têm saudades e chamam de longe, para que não os esqueçamos”. De facto, naquela tarde, Régio e Agustina sonhavam acordados em tal ambiente propício. Camilo ligou sempre o “léxico do coração” a “muita ousadia”. E aquele lugar estava repleto de espíritos e de sentimentos contraditórios. José Régio inquietava-se e Agustina regozijava. O calor continuava. As palavras de Raul Brandão recordam: “A natureza chorava revolvida: a acácia do Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas”. Camilo está omnipresente. Os espíritos reais e imaginários abundam nas redondezas – Ana Plácido, Fanny Owen, José Augusto, Vieira de Castro, Simão Botelho, Calisto Elói, Eusébio Macário, tão diversos convívios.
Num ápice, “já não está ao portão a caleche com o seu estranho viajante abrigado com a manta alpina”. Régio e Agustina perscrutam os arredores, a tentar perceber o que ocorreu. E ela, com intuição feminina, imagina que se trataria de um cónego velho que viria comprar alfaces; “há destes ladinos intuitos sob a forma de excentricidade e do mistério”. Mas comove-se com a estranheza do episódio, que reclama um desenvolvimento. “E, como para defender a gestação da memória, rodeio-a (diz-nos) de uma frialdade hibernal que intimida o doce mundo do convívio presente”. Eis a síntese que Agustina considera essencial. A memória é matéria-prima que se junta à imaginação. E este encontro com Camilo e a presença discreta de José Régio, permite compreender a coexistência e a distinção entre o mundo real e a ficção. Como poderemos entender esses mundos se não nos tornarmos simultaneamente protagonistas, narradores e figurantes capazes de criar ou de destruir? Essa dimensão de “deus ex machina” entusiasmava Agustina, deixava-a em êxtase, perante o mundo encarado como gigantesco palco de sentimentos e paixões.
O nome de Judite estava riscado pelo autor na capa da primeira edição desta obra. Para muitos, a começar no Ricardo Reis retratado por Saramago no “Ano da Morte”, estamos perante uma das obras mais importantes na renovação da literatura portuguesa contemporânea, ao lado de “Viagens na Minha Terra” de Garrett. O tema, a linguagem, a ordenação – tudo dá sinais de uma vida que persegue o mundo. E neste folhetim, onde vários fantasmas se encontram, não poderia faltar esta surpreendente obra de um grande artista que não deixou por mãos alheias o domínio da literatura moderna. Antunes persegue Judite. É uma procura que se exprime como verdadeira busca de uma sombra. Escrito por Almada Negreiros em 1925 é um romance de iniciação de um jovem de província, o Luís Antunes, provindo de uma família abastada. O tio de Antunes envia-o para Lisboa ao cuidado do amigo D. Jorge (“bruto como as casas” e ordinário) com o objetivo de fazer as “provas masculinas”. E o protagonista persegue Judite, mas esta percebeu perfeitamente que ele não estava destinado a ela, mas “não lhe faltava dinheiro”, que era o principal para esperar, “para disfarçar, para mentir a miséria e a desgraça”. «A Judite é um pedaço de verdade, autêntica, sem forma nem fuga. Verdade tão pura que não admite arranjo nem escape. Ao mesmo tempo, ela é a ignorância em pessoa. Verdade absoluta sem sonho. Sem imaginação. Os seus dezanove anos cheios de cicatrizes são a estátua mutilada da Verdade. Os gestos da estátua são falsos, é tudo mentira, apenas a matéria da estátua mutilada é verdade!»
«Só quando chegou à rua é que viu que não ia para parte alguma. Não havia nenhum lugar para onde ele fosse. A mesma multidão, as mesmas casas, as mesmas ruas e ele. Mas qualquer coisa de novo se passava na sua vida. Se sondava o seu íntimo, não havia nada até à profundidade. Do exterior nada lhe vinha, tudo encontrava resistência nos seus sentidos para o animar de imagens. Ele não se reconhecia: havia qualquer coisa de estranho na sua vida, qualquer coisa de estranho e dele próprio ao mesmo tempo». (…) «A Judite e o Antunes entraram ambos na intimidade um do outro como ladrões que não sabem exatamente o que vão roubar. Percorreram todos os cantos, indagaram de todos os caminhos, revolveram tudo o que se procura e não se encontra, e ambas as intimidades foram impiedosamente devassadas um pelo outro. Ainda que alguém viesse depois a entrar pela primeira vez nas suas vidas, não poderia deixar de reparar em que já lá tinham andado os ladrões.» (…) «Todos quantos intervêm na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são afinal de uma cobardia que escapa à observação dos melhor atentos. Cobardes por duas razões: primeira, por serem incapazes de se reconhecerem e darem a conhecer o seu próprio caso pessoal para a aceitação geral; segunda, porque, ao intervirem na vida dos outros, quer seja no seu favor ou contra, são incapazes também de abnegar da sua própria pessoa. Se alguém decide da sua vida para servir os outros e não renuncia a si mesmo, em que poderá então ser equânime e admirável, justo e elucidativo? Respeitemos os que a tanto se afoitaram e se decidiram, mas desprezemos os que o fingem. A condição para saber ver ao longe é estarmos dentro de nós se se trata do próprio, ou de ter renunciado a si mesmo se se trata dos outros.
Moralidade deste romance: Não te metas na vida alheia se não queres lá ficar».
Torga, discípulo de Cervantes e de Unamuno, definiu Portugal como um ponto de encontro entre a vontade, o mar e a insatisfação. A leitura da sua obra permite entendermo-nos nas nossas contradições e nos nossos anseios.
CADINHO DE VÁRIAS INFLUÊNCIAS
Portugal é um país difícil de entender. O cadinho de várias influências apresenta-nos elementos contraditórios. Mas há fatores que são permanentes e definem uma identidade que começa no querer, continua na omnipresença do mar e pressupõe uma luta constante. Lembremo-nos da saga dos poveiros, com o negro do luto das viúvas e dos órfãos nas praias atlânticas ou do combate contra a adversidade do meio em Trás-os-Montes, no Douro ou no Alentejo. Eduardo Lourenço e José Mattoso lembram que “uma das descobertas mais simples e irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espetaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos”. Isto significa, porém, que dependemos da nossa responsabilidade, do nosso querer e do saber pensar e fazer. Assim chegámos aqui. Precisamos uns dos outros. E temos de saber planear o futuro, partindo do presente, e avaliar os resultados que somos capazes de obter. Sempre que preparámos o futuro, ganhámos. Ao Deus dará perdemos e agravámos o nosso atraso, que não é uma fatalidade. O mérito não é um mito, só funciona quando resulta do reconhecimento das diferenças e da dignidade de cada um. Miguel Torga foi tantas vezes duro na sua apreciação de quem somos. Sabia do que falava e que nada se consegue de ânimo leve ou de ilusão. O desencanto assalta-nos tantas vezes, e o lirismo poético é apimentado com o picaresco e o maldizer.
O MUNDO CONTRADITÓRIO
Desejamos coisas contraditórias. E assim, se temos vícios devemos combatê-los, em vez de cultivar utopias enganadoras e esperanças vãs. Considerando-nos ou os melhores ou os piores, não nos safamos. Relendo o “Portugal” de Miguel Torga, surpreendemo-nos quando nos fala do Algarve, onde o conheci e cuja memória guardo num lugar especial. Disse ele, depois de nos descrever quem somos e onde estamos, sem ilusões: «O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. As coisas de Trás-os-Montes tocam-me muito no cerne para eu poder esquecer a solidariedade que devo a quem sofre e a quem sua. E isto repete-se com maior ou menor força no resto de Portugal. Mas, passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril». Não, não há contradição nesta bela página, que temos de ler em estreita ligação a tudo o resto. O que Torga nos diz, é exatamente que temos de ser quem somos. E no caso algarvio, compreender que não é de sol e praia que se trata, mas de entender a cultura como capacidade de construir e usufruir, de amar a liberdade e de ligá-la à entreajuda, à compreensão da diversidade das raízes e ao desenvolvimento humano. E José Mattoso definiu o ponto que permite entender a paradoxal visão de Torga: «o fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos ‘justos’ que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem, e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela ‘justiça’».
Ao assinalar os cinquenta anos do nascimento de Daniel Faria, a Assírio e Alvim acaba de publicar “Sétimo Dia” (2021), resultado de incursões ao espólio recolhido no mosteiro de Singeverga, onde foi encontrado um conjunto de catorze folhas com textos inéditos.
POETA MÍSTICO
Foi Eduardo Prado Coelho quem me chamou a atenção para a importância da poesia de Daniel Faria (1971-1999) e foi então que li, em 2002, os três primeiros livros, editados pela Fundação Manuel Leão, graças ao apoio do então Padre Carlos Moreira Azevedo, segundo o corpus definido pelo próprio poeta desaparecido: Explicação das Árvores e de outros Animais; Homens que são como Lugares mal situados e Dos Líquidos. É certo que este último volume foi publicado a título póstumo, mas foi deixado globalmente acabado, como obra de fecho desse conjunto. Ou seja, pouco depois da sua morte prematura e inesperada, pudémos dispor de uma prova concludente relativa ao valor do poeta e à importância da sua promessa. «Não sabemos como tencionaria Daniel Faria prosseguir o “Sétimo Dia” ou sequer se teria encarado em algum momento a hipótese de concluí-lo; interrogamo-nos, caso tivesse continuado, que lugar ocuparia cada homem nos dois dias em falta», escreveu Francisco Saraiva Fino no texto que abre o volume. Apenas sabemos da boca do próprio poeta que ele tinha a intenção de reconhecer Cristo como “lugar mal situado”, devendo ser compreendido pela humanidade, até pela dificuldade em encontrar um lugar onde “reclinar a cabeça”. No fundo, tratar-se-ia de fazer da arte poética uma procura do lugar de encontro entre a imanência e a transcendência. «Em “Sétimo dia”, cinco homens repartem perspetivas sobre a ideia de ocupação e coincidem no desejo de alcançar uma certa ideia de existência transcendente sem depor a medida humana». E cada voz é o anunciar de um degrau no caminho do reencontro com a palavra poética na expressão tendo em consideração a “fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro” e na representação das depurações da semente na difícil ascensão para a vida do espírito.» Deste modo, o poeta caminha na busca de um lugar, não como certeza fechada, mas como: “Homens que são como casas saqueadas / Que são como sítios fora dos mapas / Como pedras fora do chão / Como crianças órfãs / Como homens sem fuso horário / Homens agitados sem bússola onde repousem (…) / Porque a sua força é para fora e a sua espera / É a fé inabalável no mistério que inclina / Os homens para dentro / Não os levantemos / Nem nos sentemos ao lado deles. Sentemo-nos / No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos / A qualquer instante». Com efeito, há algo por desvendar, nesse texto incompleto agora divulgado. Apenas podemos reler o que o poeta nos deixou. Se, de facto, há um mistério que se manterá eternamente, podemos sentir a inquietação manifestada… «Agora, quando telefonar de novo (diz Daniel Faria), vou deixar no atendedor de chamadas uma passagem bíblica. Há aqui uma de que gosto por demais: “Ao descer da montanha, seguiam-no multidões numerosas, quando um leproso de repente se aproximou e se prostrou diante dele dizendo: ‘Senhor, se queres, tens poder para purificar-me’. Ele estendeu a mão e, tocando-o, disse: ‘Eu quero, sê purificado’ E imediatamente ele ficou curado.” E Jesus disse, “Eu quero”… Eu nunca ouvi nada com mais luz. Eu nem consigo imaginar, sem que me aumente a febre, esse homem a correr por entre a multidão, esse homem a dizer se queres e Jesus a dizer eu quero… Eu quero… eu quero… eu nunca tinha dito nada assim.»
UM PERCURSO MUITO FUGAZ
Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, a 10 de abril de 1971. Frequentou no Porto o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – onde se licenciou em 1996. No Seminário e na Faculdade de Teologia demonstrou uma forte inclinação poética, estabelecendo um diálogo com a criação contemporânea. Também se diplomou em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Simultaneamente com a sua fecunda criação artística, a opção monástica torna-se evidente. A partir de 1990, colabora com a paróquia de Santa Marinha de Fornos, Marco de Canaveses, onde demonstra uma capacidade excecional para a animação cultural e um grande potencial de sensibilidade para o teatro, encenando, com recursos limitados, As Artimanhas de Scapin de Molière e o Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente. Faleceu tragicamente a 9 de junho de 1999, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga, em resultado de uma queda. Como lembra Alexandra Lucas Coelho, num texto fundamental, que corresponde a um retrato fiel de Daniel Faria: «Sophia de Mello Breyner Andresen foi, para ele, o princípio da poesia. E quando chegou a vez de Sophia o ler, disse: "Versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós." Essa é a síntese, tudo o que importa. É da poesia que partimos, mesmo quando vamos de casa em casa, à volta da vida. Para saber um pouco mais, para voltar a não saber. Vale só por isto, a aproximação a uma biografia.
UM ROSTO QUE HÁ DE VIR
Quando lhe pediram um autorretrato, Daniel Faria escreveu que era "um rosto que há de vir". E assim será, para o leitor dos poemas. Acreditamos que na poesia portuguesa dos últimos 20 anos poucos tenham vindo à luz assim, com um impacto de pedra». Nesse testemunho recolhido no jornal Público. Um colega recorda: "O Daniel tinha sempre projetos fantásticos, queria ler as obras completas de Shakespeare... O Rilke, na tradução do Paulo Quintela, era fundamental para ele, como o Herberto. E depois Luiza Neto Jorge, Eugénio, Ramos Rosa, Sophia, Ruy Belo, Lorca. Foi com ele que conhecemos Drummond, Guimarães Rosa..." O poeta empenhou-se na ida de Eugénio de Andrade ao seminário. Foi um risco, mas o resultado foi muito bom: Daniel Faria "ficou exausto, havia oposições dentro do seminário, isso angustiou-o imenso. Depois correu muito bem, o Eugénio só não entrou na capela, lembro-me que se admirou por jogarmos futebol sem batina..." E Eugénio de Andrade resumiu essa inédita aventura como "uma tarde divertidíssima". (cf. Público, 14.6.2001). A memória de Daniel Faria foi-se consolidando com o andar do tempo. Mas o seu prematuro desaparecimento teve dois efeitos contraditórios: por um lado, atrasou o reconhecimento da importância da sua obra; e, por outro, permitiu que, finalmente, possamos encontrar a sua voz, como uma das mais significativas da contemporaneidade.
«Sinais de Fogo» de Jorge de Sena (Livros do Brasil, 2017) é na obra do autor uma referência fundamental.
A MEMÓRIA DOS ANOS TRINTA
Os anos de 1930 em Portugal foram literariamente marcados pela confluência entre o psicologismo e a incerteza social, num momento em que, ao contrário do que acontecera nas vésperas da Primeira Guerra, havia consciência de que algo de trágico se preparava. Em Sinais de Fogo, publicado postumamente em 1979, Jorge de Sena, com essa consciência, faz a análise de um tempo perturbador. O panorama geral é o de uma guerra próxima, que se indicia no seio da sociedade, e deixa as pessoas inseguras. Era uma sensação estranha e, ainda que pudesse não nos tocar diretamente enquanto país, teria sempre efeitos. E o romance, que procura retratar esse tempo, regista uma lembrança autobiográfica. O realismo cruza-se com o sonho, e o desenho geral da narrativa não esquece a tónica surrealista. Sinais de Fogo é concebido como o início de um ciclo não cumprido, que se intitularia como Monte Cativo, e que decorreria entre 1936 a 1959. Tudo começa na Figueira da Foz, subitamente cheia de espanhóis, com uma guerra civil em curso do lado de lá da fronteira, a perturbar já a tranquilidade da província.
A GUERRA TÃO PRÓXIMA
O ambiente político da guerra e de um regime policial recém-implantado constitui a base da ação – num romance de formação marcado pelo acordar dos sentimentos mais íntimos de um adolescente... E o protagonista interroga-se: “Era eu diferente dos outros? Estivera, desde sempre, destinado a sê-lo? Ou um conjunto de circunstâncias excessivamente extravagantes me transformara o suficiente para isso? Mas, se as circunstâncias haviam podido ter um tal resultado, não seria porque já eu estava destinado à diferença (que poderia dar-se ou não dar-se) de um conjunto delas agir sobre mim? Eu não queria ser diferente dos outros em nada, e não me sentia diferente. Pelo contrário, o que eu descobrira, ou descobria, é que todos são diferentes, desde que a hora ou o momento surjam”… A poesia, os sentimentos íntimos, a consciência política, tudo emerge num torvelinho de acontecimentos. E é um poeta que vai nascendo… “Poeta, para mim, como para a minha família, e para os meus amigos, era uma pessoa algo caricata, segregada da normalidade da vida, e que se instalava na personalidade romântica de falar por conta própria ou dos outros, como se o que ele dissesse fosse da mais alta e especial transcendência, não o sendo realmente para ninguém a não ser em ocasiões muito especiais”. Como diz Jorge Fazenda Lourenço: “Sinais de Fogo seria uma longa meditação sobre o caminho que vai do instante de se ‘ter nascido poeta’ (por Graça) ao momento de ‘reconhecer-se poeta’ (por Obra)” (“Relâmpago”, nº 21, outubro de 2007). E esse percurso, neste romance de formação, acompanha o drama violento da Guerra de Espanha e descreve a evolução difícil do desenvolvimento espiritual, do desabrochamento sentimental, da aprendizagem humana e social. A instabilidade externa pontua a agitação íntima numa metamorfose, que antecipa e justifica a profunda alteração das circunstâncias do mundo. Daí a preocupação de Jorge de Sena, como romancista, distanciado no tempo, em misturar propositadamente a realidade e o sonho, o conjunto e a singularidade… E assistimos assim à sucessão de uma guerra e de um armistício entre Jorge, o protagonista, e as suas memórias, quando o país e o mundo mudam intensamente. E os anos trinta anunciam com nitidez esse contraste entre a ilusória placidez interna de um Portugal ameaçado, mas incrédulo, e a proximidade de uma grande tragédia que, como sabemos, vai ser global, sem se conhecer se seríamos também envolvidos no drama anunciado. De qualquer modo, avista-se no horizonte o negrume da morte… O certo é que “a imprevisibilidade não era senão o sinal de que o maior horror da responsabilidade estava em não poder haver responsabilidade alguma”. E, ao cair do pano, com a ameaça irónica de uma intentona sem sucesso, vislumbramos a estranha contradição entre o medo e a angústia das tragédias imprevisíveis. E é a própria responsabilidade que se desvanece, perante a negação da liberdade. “Não era que as pessoas fossem coniventes de uma revolução falhada (…). Algumas, por certo leriam o jornal com o mesmo ansiado prazer de a ordem e a disciplina serem mantidas, que houvera na voz de minha mãe. E, todavia, essas mesmas sentiam-se sós e incomunicáveis, por terem aceitado que a ordem e a disciplina fossem uma coisa exterior a elas, defendida por outros, em nome de um governo que tomara sobre si o defini-las e se atribuía a omnisciência mesmo de revoluções que chegavam a sair e causavam mortos e feridos…”.
REFERÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS
Este é o tempo em que a revista “Presença” (1927), órgão do nosso segundo modernismo, valoriza a narrativa de aventura individual e das questões não redutíveis aos conflitos sociais. É a “Literatura Viva” que está em causa. Casais Monteiro teoriza sobre o Romance Contemporâneo. Elói – ou Romance numa Cabeça, de João Gaspar Simões (1932) e O Jogo da Cabra-Cega de José Régio (1934) ilustram essa preocupação. Régio assume um tema confessional, no qual estão ligados os conflitos interiores entre o humano e o divino, o bem e o mal, a carne e o espírito. Pedro Serra descobre a pós-adolescência, com um alter-ego, Jaime Franco, como contraponto diabólico de si. Diferentemente, a novela O Barão de Branquinho da Fonseca (1942) baseia-se numa complexa invenção mítica de uma personalidade dominadora que leva o narrador para surreais caminhos mágicos. É o tema da singularidade pessoal que ocupa os caminhos do novo Romance. Note-se, aliás, que alguém distante do presencismo, como José Rodrigues Miguéis, publica em 1932 Páscoa Feliz, sob a influência de Dostoievsky e Raul Brandão, em registo psicológico: “a verdade é que psicologia a mais, angústia a menos, o Renato desta novela é apenas o subproduto de uma fauna provinciana que em Lisboa desagua, se dissolve e perece”, na expressão do autor. E a dimensão psicológica social termina em pura esquizofrenia. Por outro lado, José Marmelo e Silva em Sedução (1937) aborda o tema complexo da adolescência e da libertação moral de um modo reconhecidamente acutilante e original com apreciável capacidade analítica e sentido romanesco, mais tarde confirmado em Adolescente Agrilhoado (1948).
1934 é ainda para Miguel Torga, que se afastara do grupo da “Presença” com Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca em 1930, o ano emblemático do surgimento do nome literário, que invoca a vocação ibérica de Cervantes e Unamuno e a urze dos montes transmontanos. Isto ocorreu com a novela A Terceira Voz, onde o escritor procura mostrar a força do espírito inconformista, da independência de espírito, da resistência, do antes quebrar que torcer, do sacrifício propiciatório de reacender o fogo pátrio… Se é certo que não foi esta a obra que pôde consagrar, depressa a força que lhe estava subjacente projetou-se nas páginas de A Criação do Mundo e no Diário, que vieram a consagrar o escritor como referência fundamental – consciência crítica, cidadão capaz de ligar duravelmente a salvaguarda da singularidade e a capacidade de compreender a força emancipadora da sociedade. Será diferente a década seguinte, mas a tomada de consciência de uma singularidade que se torna ponto de encontro entre o reconhecimento da criatividade individual e a necessidade libertadora do espírito crítico marca decisivamente a caminhada que Jorge de Sena descobre em Sinais de Fogo, no sentido da presença do eu no mundo.
“Colheita de Inverno” de Vítor Aguiar e Silva (Almedina, 2020) reúne Ensaios de Teoria e Crítica Literárias da maior importância, não só pela diversidade de temas, mas também pela grande qualidade dos textos, pela sentido pedagógico e pela importância científica.
APETECÍVEL VOLUME DE ENSAIOS
Quando recebi este apetecível volume de ensaios, disse ao autor que se tratava de uma verdadeira colheita de Primavera, pela diversidade de temas, fecundidade do respetivo tratamento e pistas tão estimulantes apresentadas. É evidente que a melhor garantia estava no autor, e em tudo quanto nos tem dado, mas é sempre bom podemos verificar como as literaturas da língua portuguesa oferecem extraordinários elementos para conhecermos o melhor que a cultura nos reserva. Sente-se a “humanitas” dos clássicos na presença dessas referências perenes. No livro, encontramos três suculentas partes – Ensaios de Teoria Literária, Ensaios Camonianos e Ensaios sobre Literatura Portuguesa. Em regra, quando temos em mãos uma reunião de textos de proveniência vária podemos temer que reencontremos o que já conhecemos e que reafirma mais do que renova. Não é isso que ocorre com Vítor Aguiar e Silva e em particular com esta obra – e o conjunto permite um saudável efeito de novidade, e devo dizer que neste caso, estamos perante um livro fundamental para quem queira compreender a atualidade e a força da língua portuguesa, na sua diversidade e no seu potencial criativa e artístico. Afinal, reunidos os textos de diversas proveniências, a sua complementaridade fá-los ganhar uma vida que permite olhar sob uma luz resplandecente a vitalidade da criação cultural. Voltando a jogar com estações do ano, leia-se e releia-se “Primavera e Inverno da Filologia Românica”. Aí se explica como se chegou à má imagem da filologia, confundida com saber de antiquários e de eruditos fora do mundo, com reservas contaminadas ideologicamente. Vão longe a ideia de “scienza nuova” de Giambattista Vico a partir das criações humanas, linguagem, poesia, mito, até à religião e ao direito, e a clarificação de Carolina Michaëlis de Vasconcelos sobre a filologia da palavra, da língua e da literatura. Houve um longo caminho, mas a hermenêutica dos textos precisa dos fundamentos filológicos. Daí o autor falar da necessidade de uma filologia pós-imperial, capaz de entender os efeitos do seu banimento, devendo articular-se com a linguística, a hermenêutica, a teoria da literatura e literatura comparada… Afinal, temos sempre de entender o que permanece e o que muda – e a realidade histórica depende sempre do entendimento das duas perspetivas. Lembramo-nos da querela dos Antigos e dos Modernos, e o autor recorda-nos a metáfora usada por Jonathan Swift, ele mesmo defensor ativo dos Antigos. Abelhas e aranhas confrontam-se na “Batalha dos Livros” (1704), as abelhas representam o labor interminável dos poetas enquanto as aranhas, reclusas de si mesmas, não têm memória e constroem a sua astuciosa e letal teia. Estaria em causa o perigo da amnésia total da tradição, na arte como na ciência, que nos condenaria ao silêncio. No entanto, a rutura com a tradição e a absoluta originalidade das Vanguardas são mitos desmentidos pela própria dinâmica da literatura, que levou Fernando Pessoa a escrever que em qualquer poema deverá haver “qualquer coisa por onde se nota que existiu Homero”. Culturalmente, jamais existirá originalidade pura. Pelo que a fábula das abelhas e das aranhas é uma simplificação sem correspondência com a realidade humana…
METÁFORAS E ALEGORIAS
Mas a verdade é que “a metáfora não pode deixar de ser lida e interpretada como metáfora, ao passo que a alegoria pode ser lida não alegoricamente”. E ao longo dos diferentes ensaios, vamos encontrando a preocupação de entender, como afirmou Octavio Paz, que “o mundo começa por ser um conjunto de palavras. Mais exatamente: o mundo é um mundo de nomes. Se nos tiram os nomes, retira-nos o nosso mundo”. Mas o mundo em que se move Fernando Pessoa é irremediavelmente “sem centro e sem horizonte, com múltiplas verdades, com deuses diversos e contraditórios, desesperadamente vazio”. Contudo, Aguiar e Silva lembra em Romarigães com Aquilino, a terra fecundada pelas chuvas e pelo sol, por entre a alegria dos trabalhadores minhotos. E Ruy Belo invoca o requiem por Portugal, que depois de Camões se tornou um tema recorrente - “as lágrimas da elegia orvalham piedosa e melancolicamente essa interrogação, mesmo quando a utopia e o messianismo parecem incendiá-la”. David Mourão-Ferreira faz da crítica literária “um exercício de amor e um espaço de dialógica compreensão e admiração que nunca as diferenças ideológico-políticas vieram a turvar ou perturbar”. Manuel Alegre é lembrado na expressão reflexiva e meditativa. Albano Martins, Francisco d’Eulália, António José Saraiva ou Vasco Graça Moura ajudam-nos no caminho da compreensão das culturas da língua portuguesa, como marcas de emancipação e de vitalidade. Na busca de um cânone literário para a língua portuguesa, podemos encontrar a génese do termo “clássico”, como relacionado com as classes das escolas, passando a designar o autor lido e estudado nas classes das instituições de ensino, por ser excelente e modelar. E o cânone ganha o significado característico que David Ruhnken atribuiu à palavra, universalizando-a, como conjunto de textos ou de escritores selecionados pela sua qualidade e prestígio duradouro e exemplaridade linguística e literária. E, em falando de cultura, a tradição é um património com continuidades e descontinuidades, que vai sendo confirmado, alterado, redescoberto e reinventado: “cada presente histórico reconstrói um passado literário que justifica e legitima este presente”. Daí que “não se deva impor uma norma exclusiva e excludente” – o cânon literário terá “como destinatários ideais os alunos do ensino secundário”, devendo “ser elaborado por uma instituição como o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, a partir de proposta de entidades nacionais escolhidas para o efeito pelo Ministério da Educação de cada país da CPLP e será plasmado em antologias, contendo adequada informação linguística, histórico-literária e comparatista, que concedam representação maioritária aos autores do país a que especificamente se destinem como livro escolar e que deem representação equitativa aos autores dos outros países”. Na cronologia das literaturas africanas pós-coloniais deverá considerar-se os séculos XX e XXI, sem esquecer os autores portugueses e brasileiros do século XIX que foram, e são mestres da língua, como Eça de Queiroz e Machado de Assis, além de Camões e Vieira a quem o idioma comum deve tanto da constituição e irradiação do seu património. Longe de paternalismos ou preconceitos, importa lembrar Celso Cunha, que fala de uma “unidade superior da língua portuguesa”, dentro da sua diversidade que nos cabe preservar…