Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Faltavam-lhe muitas páginas. A que se podia pressupor como última nunca existira. A primeira, se a considerarmos como página escrita, era, na realidade, uma nota dispersa, e muitas das restantes continham narrativas que se interrompiam constantemente como se se tivessem deparado com uma outra força maior.
Era um livro-coto.
Importa explicar o poder que desde logo exercia aquele livro-falho sobre mim.
Era um livro que de imediato abria caminho à estranheza. Era um livro-desafio. Um livro que incitava às inquietações. Era afinal um completo livro-viagem.
Tive a certeza de que ao tentar cifrá-lo me entregava a um compromisso que poderia não compreender.
Mas tinha um plano para aquele livro. E fui progredindo numa narrativa que me levava a recordar que o trabalho não tem sempre forma conhecida, e que se alteram formas de verbos e se transportam textos até para outros já escritos ou para outros que nem existem.
Pois é.
Assim fui avançando como discípula de uma aula de nascimento.
O livro, e eu nele, assegurava-me a um tempo o visível e o invisível, labirinto que me ocultava a chave e com ela a possibilidade da decifração última do meu descobrir e do meu dizer.
E por entre assédios e dúvidas, precipitei-me numa circularidade.
Foi a minha natureza a lidar com o impasse a que chegara.
De súbito, quase leitora e quase narradora e quase escritora, dei-me conta que o livro-coto era uma casa de lavoura com um rebanho de filhos e terrenos pastados, a uma hora de todas as serras e mares e bestas e dores e trabalhos e beijos e céus e colheitas e pavios-lamparinas que sempre seguraram ilusão e esperança, enquanto o azeite, o azeite do livro-coto procurava sem fim escorar um ponto.
*
Um dia, passados anos, voltei a abrir o livro-coto.
Senti-o amável e silencioso como os sábios.
Nada a provar.
O mundo da literatura, revisitação de nós próprios, rasto naquele que viu, memória do ter visto ou intuído em páginas lidas, ou escandalosamente não escritas e ainda assim.
A escrita foi o coração da civilização, substituindo a fala.
Na língua oral, de trato quotidiano, uma vez lançada a mensagem, o processo está feito, extingue-se.
Na língua escrita, a sua mensagem não morre, perdura, por maioria de razão se mais elaborada e usada na literatura.
Há o provérbio latino, segundo o qual: verba volant, scripta manent, ou seja: o que se diz voa e perde-se no ar; o que se escreve permanece, tem a garantia da perenidade.
A linguagem oral é conjuntural, a escrita é estrutural.
O livro foi o melhor amigo da escrita, a que acresce o jornal.
A aprendizagem e o hábito da leitura, foram imprescindíveis para o progresso civilizacional.
A leitura procurava o livro (e o jornal) numa reciprocidade de benefícios e interesses. Livros e jornais eram o ícone da leitura (em especial o livro) e esta o seu arquétipo. Hoje a leitura tende a ser cada vez mais arqueológica, livros e jornais são menos procurados e lidos, a caligrafia e escrita manual é uma relíquia, tanto mais requintada se em tinta permanente.
Surgiu o telemóvel, o novo ícone, cuja leitura agressiva, aleatória, chamativa, imediata, impulsiva, programada (a gosto) e velocista o universaliza, tornando os leitores mais primários, impulsivos e menos exigentes, prejudicando a leitura como hábito de pensar no seu sentido crítico e racional, não ajudando a meditar e pensar com vagar.
A velocidade contagiosa da internet difunde um sempre mais e mais da notícia de leitura curta, rápida e ao minuto, marginalizando outras, género comentário ou ensaio, porque não interessam ou não há tempo, argumenta-se, fomentando-se a informação acrítica, consumista, descartável, de pobreza vocabular, por vezes manipuladora e falsa.
A disrupção digital ensina que a aprendizagem e a leitura se devem submeter à velocidade, ao não aprofundamento, à banalização linguística, anulando a reflexão e o tempo para pensar.
A palavra, por natureza, é racional, exige triagem, distância, raciocínio e sentido crítico, precisa ser escrutinada, pertence ao terreno da escrita e só nesta tem verdadeiro sentido, necessita de valer por si e não ser meramente submetida ao império amoral, autoritário, funcional e utilitário da tecnologia.
Ao celebrarmos o centenário do nascimento de Ray Bradbury (1920-2012), o autor de Farenheit 451, de 1953, podemos neste tempo refletir sobre o sentido autêntico dos temas do destino dos livros e da força da memória.
CONTINUAREI A LER LIVROS
Há uns anos numa das suas crónicas Javier Marías afirmava isto mesmo, para demonstrar que o debate tantas vezes repetido sobre o fim do livro em papel deveria ser considerado com especiais cautelas e sem simplificações. Presenciamos uma evolução muito rápida e profunda sobre a comunicação. A comunicação digital sofreu nos últimos meses um extraordinário progresso, ditado pelo confinamento e pelos efeitos da pandemia. É verdade que muito do que se assistiu, já estava em curso, e se não tivesse havido antes avanços tecnológicos tão significativos, não teria sido possível com tanta rapidez, pôr as pessoas em diálogo, através das redes de informação e comunicação. As conferências “em linha”, os “webinars”, o ensino a distância tornaram-se uma realidade nova, com virtualidades e limitações. E as redes sociais prosseguiram, com as enfermidades conhecidas, com circuitos fechados e microcosmos empobrecedores, mas longe de terem esgotado as suas vantagens… E a leitura? Curiosamente, há sinais vários e até contraditórios, sobre a sua importância, bem como muitas dúvidas e perplexidades. Houve muitas interpretações sobre o sentido do conto “Bright Phoenix” (1947) e o livro que se lhe seguiu e o escritor passou uma boa parte do tempo a desmentir muitas das interpretações pseudopolíticas, dizendo apenas que idealizou e escreveu a obra na Universidade da Califórnia, na biblioteca Powell, com uma máquina de escrever alugada, com o objetivo de prevenir a sociedade de consumo para risco do fim dos livros e das bibliotecas e para um consequente suicídio da humanidade. Contra os riscos totalitários, contra o esquecimento da importância do tempo e da reflexão, o que animou Bradbury foi um profundo amor pelo livro, pela leitura e pelas bibliotecas – como fatores de liberdade. Muito do que afirmou no livro e em comentários subsequentes tornou-se uma realidade quase profética – e o certo é que, nesta última emergência pandémica, houve pequenos sinais (como o escritor também encontrou na sua narrativa) que apontam para que o livro e a leitura são fatores essenciais que asseguram a liberdade e a responsabilidade e podem prevenir contra a manipulação, a simplificação e a emergência de novas formas de servidão. Mas a grande vantagem do livro e da leitura está na demonstração da imperfeição humana. De facto, podem trazer-nos o melhor e o pior, a qualidade e a mediocridade, como na vida.
COMO ERRADICAR O ANALFABETISMO?
O primeiro país a erradicar o analfabetismo foi a Noruega, porque a igreja reformada luterana proibiu o casamento de mulheres analfabetas, para que todos pudessem ler a Bíblia. Assim passou de 80% de analfabetos no início do século XIX para zero por cento, geração e meia depois… Quando em 1990 a UNESCO proclamou o objetivo da “Educação para todos” deu especial ênfase à educação das mulheres – e onde os programas têm sido postos em prática a generalização da leitura tem permitido combater a fome, a doença e a miséria. Ler um poema, contar uma história, cultivar a memória, conhecer os programas de vacinação, as bulas dos medicamentos e as regras da maternidade responsável, salvam vidas humanas. Compreendo o amor de Bradbury aos livros e à leitura, sendo suspeito porque nasci e tenho vivido rodeado de livros, mas não se trata apenas de um gosto egoísta pelo calor e pelo cheiro dos livros. Trata-se do cerne da cultura. Os livros, porém, como as pessoas são diferentes, com qualidades e defeitos. Quando em pequeno me ofereciam um livro novo, desembrulhava-o, a tinta nova inebriava-me e recebia-o como uma visita. Já disse tantas vezes que os Dicionários e as Enciclopédias foram a minha perdição na biblioteca de meu avô. Passei dias esquecidos com eles. Aí conheci Garrett e Herculano, mas também Plutarco, o grande mestre da biografia na coleção inesquecível dos “Cadernos Culturais” da Editorial Inquérito, de Eduardo Salgueiro. Aí encontrei uma verdadeira enciclopédia ao alcance da mão – Licurgo, Sólon, Péricles, Cícero. Mas nos cadernos havia também António Sérgio, Sílvio Lima, José Régio, Nemésio, Casais Monteiro. Foi Agostinho da Silva (bom amigo, graças a Mário Soares) que me deu a conhecer Fernando Pessoa, na coleção de filosofia dos Guimarães. Só mais tarde encontrei Eduardo Lourenço, graças a António Alçada na “aventura da Morais”. Era o tempo dos pequenos cadernos. Os da “Seara Nova” traziam-nos a melhor literatura. O amor da poesia vem de lermos e decorarmos. Ah! Os clássicos: Camões, Vieira, Bocage (tão esquecido), Cesário, Antero, Camilo Pessanha, Sebastião da Gama, Daniel Filipe… E há o gosto pelo teatro, e em especial por Gil Vicente. Maria Germana Tânger ensinar-me-ia a dizer e não a declamar. E Rómulo de Carvalho leva-nos até à “Ciência para Gente Nova”. A “História do Átomo” ou a “História dos Balões” foram lidas e relidas com um prazer enorme… Depois as enciclopédias francesas, a começar no imprescindível Larousse com as ilustrações de uma edição do princípio do século XX. E o vício dos pequenos livros continuou com o “Que sais-je?”. Era puro prazer, e a exigência correspondia, no fundo, ao conhecimento pela narrativa, que nos permitia entender questões complexas – e aprendi que a clareza é a melhor pedagogia, por passos sucessivos e seguros…
LER DE COR
Devorávamos livros porque eram pequenos e acessíveis. E ganhávamos treino para ler Júlio Dinis, Camilo e Eça – e tudo o mais… Poderia dar mil exemplos. O design dos livros originava verdadeiras obras de arte – Sebastião Rodrigues, Daciano Costa, Emmérico Nunes, Fernando Lemos, Mily Possoz, Paulo-Guilherme, José Brandão… De que falo, afinal? Do amor da leitura e dos livros, que é algo dificilmente definível. Hoje o vício de leitura chega, naturalmente, às versões digitais e aos e-books. Ler é ler e para quem tem o vício, ele chega a toda a parte. Sei que as publicações em papel terão um futuro condicionado. Mas os livros continuarão a ser fundamentais. Vai mesmo nascer um tempo em que a digitalização das obras e a sua disponibilização ao grande público criará um interesse redobrado pelas edições em papel de qualidade. Haverá livros de que não poderemos prescindir, aptos a ser folheados e sublinhados. E haverá obras de referência disponíveis através das redes digitais. E continuaremos a ter a biblioteca como mito, segundo o entendimento de Alberto Manguel. De facto, “a Biblioteca de Alexandria foi concebida para fazer mais do que somente imortalizar. Devia registar tudo o que tivesse existido e pudesse ser registado, e esses registos deviam originar mais registos, num infindável rasto de leituras e glosas, que produziriam, por sua vez, novas glosas e novas leituras. Devia ser uma oficina de leitores, não apenas um local onde os livros fossem preservados para todo o sempre”… (A Biblioteca à Noite, Tinta da China, 2016).
O passado que tenho por mais próximo, é o de ler e escrever sobre livros ao longo dos tempos em que os leio e releio, os descubro e redescubro, os vivencio com diferentes paixões, e da experiência de todos, o elo de equilíbrio sempre se moveu, muitas vezes, conflito.
Sempre aprendi e aprendo no movimento e no todo.
Tenho para mim que não há equilíbrio sem mobilidade, nem há equilíbrio sem uma totalidade.
Aprendi e aprendo, o encontro e o perder na viagem de um livro.
Julgo saber que há trilhos irreversíveis para enfim, tentarmos chegar aos vestígios, à passagem pelo meio; à passagem que busco na experiência do livro.
Tempos houve em que me surpreendia com o ângulo tão diferente em que se oferecia um livro já lido. Foram tempos que me trouxeram um outro tempo de aprendizagem: refiro-me ao falar com a escrita, qual criatura terrena.
Tempos do livro arquétipo, dos metalivros, do êxtase, desde o palimpsesto que sempre me provocou de imediato o amor desejado por outros livros, até ao que bebeu da fonte das fontes, entre polo e polo, e eu sempre muito me reconheci e reconheço, deslumbrada, neste cerco aberto.
Tempos de olhar para a frente e para o antes das palavras, sentindo-lhes a resistência, a aceleração, é tempo de com elas sentir uma espécie de cumplicidade com o dom de iluminar as coisas.
Tempos da descida das arribas às povoações quando os livros, soalheiros à interpretação dos sentires das narrativas, nos esclarecem num atalho, no verso e reverso da escrita que leio na solidão que me conhece, e sei, que nem o silêncio é súmula, mas a primeira vontade de existir segue no golfinho veloz.
«Dicionário do Livro – Da Escrita ao Livro Eletrónico» de Maria da Graça Pericão e de Maria Isabel Faria (Almedina, 2008) constitui um repositório muito completo, de consulta indispensável, que permite uma boa compreensão das perspetivas passadas, presentes e futuras sobre o livro e a leitura.
UMA FUNÇÃO INSUBSTITUÍVEL O tema do futuro do livro tem sido muito glosado e nem sempre com o uso de bons argumentos. Há muitas vezes simplificações que esquecem o essencial. Em primeiro lugar, o livro e a leitura são peças fundamentais na aprendizagem – e o certo é que não há desenvolvimento humano sem leitura e aprendizagem. Questão diferente é a de nos perguntarmos sobre o futuro do livro impresso. Nesse ponto, importa fazer distinções e compreender a diversidade de problemas. O livro impresso coexistirá com outros suportes de leitura. Ler no “kindle”, no “tablet” ou num livro de bolso, num livro de capa dura ou em qualquer suporte digital terá a ver com a comodidade de cada um. O livro continuará, no entanto, a ter uma função insubstituível. Aliás, é preciso dizer-se que, em virtude do aumento da escolarização, há mais livros e mais leitores, mas é essencial que haja uma boa formação na leitura. Faz parte da educação cívica ler bem, saber comunicar e apreender na leitura a diversidade cultural e a complexidade. A cultura como criação e a boa aprendizagem exigem boa leitura. Por exemplo, no caso das Enciclopédias e das obras de referência deixa de fazer sentido termos os livros encadernados nas nossas estantes – desatualizam-se rapidamente, as casas não têm espaço e o suporte digital permite uma consulta mais fácil. Quanto aos jornais diários em papel, têm os dias contados. Tornar-se-ão dispensáveis porque a internet permite uma comunicação mais fácil a todo o momento, com custos económicos mais acessíveis. Pelo contrário, as revistas ou alguns semanários com textos mais longos, ensaios de qualidade e com uma apresentação gráfica apetecível vão ter mais importância – seja em papel, seja no digital.
MELHOR INFORMAÇÃO E CONHECIMENTO Ler mais e melhor tem a ver com a transformação da informação em conhecimento e do conhecimento em sabedoria, para nos lembrarmos do célebre poema de T. S. Eliot. Não podemos esquecer, contudo, o difícil tema das livrarias, onde seja possível encontrar os livros que desejamos ou de que precisamos. Num depoimento sobre a experiência da livraria “Ler Devagar”, tive oportunidade de dizer: «Temos a presença e o calor, muito próprio dos livros, temos as estantes a chamarem-nos, e temos a extraordinária possibilidade de ir pegando nos livros, provando-os, folheando-os. Desde de que me conheço, sinto um prazer especial em deambular entre estantes e livros. E nas longas viagens que tenho feito, a lembrança está ligada a livros, a bibliotecas e livrarias. Tudo começa por planear ou preparar uma viagem, reunindo livros – mais do que roteiros: diários, itinerários, narrativas… Depois há uma escolha criteriosa para levarmos connosco alguns livros, pequenos, maneirinhos, para não serem empecilho, que nos irão libertar do tédio. E num pequeno caderno temos de fazer uma lista das livrarias a visitar… Uma viagem que valha realmente a pena tem de ter como um dos destinos da peregrinação um mundo de livros. Infelizmente, as livrarias a sério são cada vez mais raras. E se uso a expressão “a sério” é porque é preciso contarmos com o livreiro e com a possibilidade de podermos deambular entre os livros, não apenas com o que acaba de sair, posto a eito, como se estivéssemos numa loja de conveniência. E a dificuldade que há hoje para encontrar a livraria onde haja escolha e onde se sinta alma é um sério motivo de desalento. Eis por que razão «Ler Devagar» é um exemplo. Há alma, há diversidade, há clássicos e modernos, há surpresas, há possibilidade de fazer uma viagem entre os livros e pelos livros…». Lembro este depoimento, uma vez que o livro e a leitura precisam de espaços de encontro e de procura, que ocupem o lugar ancestral das velhas tertúlias. E não posso esquecer o papel fundamental das Bibliotecas Escolares – como centros de recursos e pontos de encontro e de diálogo interdisciplinar e cívico. Aliás, insistindo na formação cívica, há melhor aprendizagem com melhor leitura e melhor comunicação – já que a democracia precisa de reflexão e de tempo. A rapidez e a simplificação suscitam as notícias falsas, bem como o populismo e a demagogia. É preciso combater a tirania do imediato e da ausência de reflexão e de mediação. Daí a importância da leitura. Um mundo complexo não pode confundir as pessoas com números ou lidar com os cidadãos como se fossem seres manipuláveis. O livre arbítrio depende da autonomia individual e do sentido de responsabilidades. Só o tempo permite a ponderação e a prevenção da demagogia. As instituições precisam, para funcionar bem, de se instituir em forças mediadoras. A qualidade da democracia depende da representação e participação dos cidadãos, da existência de corpos intermédios atuantes e legítimos e de uma limitação justa e legítima do poder. Num mundo complexo é preciso que a simplificação não ponha em causa a justiça nas decisões. Não se esqueça que muitas instituições antigas e prestigiadas por esse mundo fora exigem que as decisões importantes sejam tomadas depois de os responsáveis terem pelo menos uma noite de reflexão. Dormir sobre os assuntos é garantir a ponderação, que é o contrário de pedir votos instantâneos e sem limites. Numa palavra, o livro e a leitura são peças essenciais numa sociedade civilizada, capaz de combater a tirania e a ignorância – e de dar prioridade ao tempo e à reflexão.
Pois que também aborda a inversão do medo, quando grande era a satisfação protetora que a personagem sentira ao encontrar as serpentes que lhe protegiam a casa, enroladas nos troncos de madeira seca junto à porta de entrada. E sempre assim sentira no começo do Outono. Julgo que chegou mesmo a reconhecer três víboras de corpos entrelaçados que se enrolavam como aspirais insinuando uma presença concertada.
Era natural espreguiçar-se pela manhã cedo, virada para os ângulos do lago perto da cabana. Eram ângulos propícios à vida: águas de desejo espesso, águas que limpavam temores e absorviam quereres sem deles se apossarem; águas onde se perdia nos espelhos dos mergulhos. Tudo era fonte de entendimento para ela, até o adeus sanguíneo do lentíssimo pôr-do-sol a que assistia sempre, rezando ao deus que sabia, sem drama, que para ela nunca existira ou, em dado momento, qual? se desvanecera.
Escutava as aves, cuidadosamente, a caminho da sua tosca casa para entender o nevoeiro que a cercava e as lanças enegrecidas dos pinheiros contra o céu. Assim a cerimónia do dia se prolongava, mítica e captativa do mundo que a separava do mundo.
Pescava por seu próprio engenho usando uma pequenina fateixa que com gesto vigoroso atirava ao lago com uma destreza certeira que a fazia sorrir – julgo.
Que mais diga deste livro?
Pois que talvez saibamos viver em intimidade com a natureza. Talvez conheçamos a linguagem corporal, até dos habitantes das águas, desses que afinal nunca nos deixam sós, ou não conhecessem afinal as fórmulas melhor do que quem os olha.
Não se descuida pensar que ainda assim, naquele mundo, sempre os enfraquecidos seres suscitam dos predadores a avidez. Haverá sempre que os cansar, digo, conseguir aqui e além secá-los, fazendo do nosso caminho percurso selado nas essências, e remar sempre até à fronteira material entre a vida e a morte.
Do mais fundo de mim, só sei que deste livro me chagaram múltiplos sinais de destinos e que, outro reino do conhecimento, me apontou a não liberdade da origem e a energia imensa da presença, afinal jogadores e mundos e reinos que podem não entorpecer a vida.
Obs. A António Vieira (autor) entre vento e canto, eis as palavras de que fui capaz. À & etc, editora que martela traves de portas por abrir. Às minhas notas de alma reencontradas - deste livro que perdi - e cujo titulo não recordo. A publicação terá sido de fins de anos 80?