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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS


De 21 a 27 de abril de 2025


Recordamos hoje um grande amigo, destacado intelectual brasileiro – Marcos Vinícios Vilaça, membro da Academia Brasileira de Letras.


As lembranças não são apenas memórias passadas, são referências da própria existência presente que fazem reviver as relações humanas na sua plena representação. Quando recebemos a notícia da partida de um amigo dileto, como Marcos Vinícios Vilaça (1939-2025), fica-nos a recordação de encontros inolvidáveis, animados por um espírito brilhante e versátil e por uma incontida generosidade, completada pela presença inesquecível de sua mulher, Maria do Carmo, que constituía sempre uma companhia que nos enchia, a seus amigos, de uma verdadeira alegria. O nosso conhecimento foi muito fácil e natural, até porque depressa encontrámos memórias comuns, através de meu avô, conferencista, no Recife, nas celebrações do Tricentenário da Restauração Pernambucana (1954), tendo-se tornado a partir de então amigo de Jordão Emerenciano (1919-1972), brilhante intelectual e orador, que conheci em Lisboa e sobre quem falámos longamente de vastas memórias pernambucanas. 


Nascido no município de Nazaré da Mata, no estado de Pernambuco, Marcos Vilaça foi justamente considerado como um ensaísta brilhante, consciente da importância da relação estreita entre a cultura e a iniciativa económica, tendo desempenhado importantes responsabilidades, como no Conselho Federal de Cultura. Por designação do Presidente José Sarney, foi ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) durante mais de duas décadas. Desde 1950, viveu no Recife, onde estudou no tradicional Colégio Nóbrega, fazendo o “Curso Clássico”, onde aprofundou os campos das Letras e das Humanidades. Depois de 1958, foi professor de História do Brasil no Ginásio de Limoeiro, no Recife, e ingressou no curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde se licenciou em Direito e obteve o grau de mestre, o que lhe permitiu tornar-se professor daquela instituição no ano de 1964. Marcos Vilaça lecionou as disciplinas de Direito Internacional Público e de Direito Administrativo, o que foi de grande utilidade para o desempenho de suas funções quando se tornou ministro de TCU. Na década de 1960, dedicou-se à literatura, à reflexão e ao ensaísmo, áreas que o consagraram no mundo cultural. Um pouco antes, em 1958, publicou Conceito de Verdade, o discurso que pronunciou no Salão Nobre do Colégio Nóbrega em dezembro de 1957, na condição de orador da turma de finalistas do Curso Clássico.


Em 1961, Marcos Vilaça publicou um dos seus trabalhos literários de maior sucesso e originalidade: Em torno da Sociologia do Caminhão, que recebeu o prémio Joaquim Nabuco da Academia Pernambucana de Letras. Na Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira 26, sendo eleito em 1985 na sucessão de Mauro Mota, seu conterrâneo, e recebido pelo académico José Sarney. Recebeu os académicos Ariano Suassuna, Alberto da Costa de Silva e Marco Maciel, tendo sido Presidente da ABL no biénio 2006-2007. Além do ensaio sobre a juventude de Gilberto Freyre (1980), escreveu o impressivo “O Coronelismo no Nordeste Brasileiro” (2004), que nos permite compreender como a influência política e social se repercutiu na evolução cultural da região. Marcos Vinícios era um conversador nato, uma companhia inigualável, as conversas com ele interligavam-se de modo ininterrupto e com uma cadência de grande vivacidade.


NOITE INOLVIDÁVEL
Tanto falávamos da sua experiência política no Recife e sobre José Sarney, grande artífice com Mário Soares da génese da CPLP, através do Instituto Internacional de Língua Portuguesa ou do papel desempenhado por José Aparecido de Oliveira, assim como invocávamos o ambiente dos romances de Eça de Queiroz, como aconteceu num jantar inolvidável no Grémio Literário, com José Carlos de Vasconcelos, Alfredo José de Sousa e José Tavares, em que Luís Santos Ferro nos pôde falar deliciosamente de Manuel Vilaça, a personagem romanesca fidelíssima de “Os Maias”, de quem ouvimos dizer: “Eu sou um homem de princípios e os princípios não se vendem” ou chamar a atenção para a importância do amor à casa em que se nasceu. Mas o prazer das palavras e da memória viva do ambiente queirosiano, ali mesmo onde o romancista terá lido pela primeira vez “Les Fleurs du Mal” de Baudelaire, culminou nas esperadas gargalhadas para o Taveira, amanuense do Tribunal de Contas. "Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara para o relógio. E eu aqui, empregado público, tendo deveres para com o Estado, logo às dez horas da manhã. - Que diabo se faz no Tribunal de Contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaqueia-se? - Faz-se um pouco de tudo, para matar tempo... Até contas!" E o efeito não se fez esperar. E Luís Santos Ferro com o seu humor e conhecimento das coisas animou aquela charla, lembrando, de seguida, naturalmente Maria Eduarda. E a descrição foi pontuada por natural volúpia, lembrando que a morada dela era a dois passos de onde se encontra o Grémio, hoje rua Ivens, outrora rua de S. Francisco. E todos relembrámos esse momento crucial da obra de Eça: ela era «uma senhora alta, loira, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de oiro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do peristilo brilhou o verniz das suas botinas». Estava tudo dito. Maria do Carmo saudava o estilo irrepreensível de escrita e Marcos Vinícios a arte enaltecida pelo Luís. Todos aplaudíamos.


E a conversa continuava no elogio da nossa língua de um lado e do outro do Atlântico, com a lembrança de Machado e do extraordinário domínio das palavras e dos sentimentos. “Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies”… E se Machado de Assis foi a alma da Academia Brasileira de Letras, Marcos Vinícios Vilaça fazia questão de pôr a tónica no convívio e no diálogo cultural, como centro da criatividade, institucionalizando o chá como ponto de encontro para o necessário ambiente de acolhimento e encontro capaz de reunir vontades e lembranças, desejos e esperanças. Nas nossas memórias ficou gravado para sempre o tom dessa amizade, verdadeira matéria-prima da língua comum e da cultura enquanto realidades indestrutíveis.   


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De 7 a 13 de abril de 2025


António Cícero (1945-2024) foi um poeta, compositor, pensador e escritor, com uma obra multifacetada que merece ser lido e pensado como representante da mais moderna capacidade criadora dos brasileiros e dos cultores da língua portuguesa.
 


O último número do ano de 2024, a “Revista Brasileira” da Academia Brasileira de Letras, dirigida por Rozisca Darcy de Oliveira, dedicou um importante conjunto de textos e de depoimentos à memória do académico recentemente falecido Antonio Cícero (1945-2024), compositor, poeta, filósofo e crítico literário, titular da cadeira 27. Como letrista celebrizou-se junto do grande público ao acompanhar com os seus poemas sua irmã Marina Lima bem como outros artistas como Adriana Calcanhotto, José Miguel Wisnik, João Bosco e Waly Salomão. Prestigiado investigador, coordenou na Universidade Federal Fluminense com Alex Varella Cursos de Estética e Teoria da Arte realizados no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Em colaboração com Waly Salomão, desenvolveu o Banco Nacional de Ideias, promovendo ciclos de conferências e discussões com artistas e intelectuais consagrados, como João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, John Ashbery, Derek Walcott, Caetano Veloso, Richard Rorty, Tzventan Todorov, Hans Magnus Enzensberger, Peter Sloterdijk e Darcy Ribeiro.


Na antologia organizada por Italo Moriconi “Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século”, o seu poema “Guardar” foi um dos escolhidos. E ao ouvirmo-lo, sentimos a força e a alma da sua palavra: “Guardar uma coisa  não é escondê-la ou trancá-la. / Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se coisa à vista. / Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por / admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. / Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. / Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / Do que um pássaro sem voo. / Por isso se escreve, por isso, se diz, por isso se publica / por isso se declara e se declama um poema: / Para guardá-lo: / Para que ele, por sua vez, guarda o que guarda: / Guarde o que quer que guarda um poema: / Por isso o lance do poema: / Por guardar-se o que se quer guardar”. Merece referência especial a iniciativa em que participou com Gabriel o Pensador, Chico Buarque, Ronaldo Bastos e Fernando Brant da publicação de quatro CDs de homenagem a Carlos Drummond de Andrade (2002). Com José Saramago, Wim Wenders e Hermeto Pascoal participou no documentário “Janela da Alma” de João Jardim e Walter Carvalho. Em 2007 proferiu em Lisboa na Fundação Gulbenkian a conferência “Da atualidade do conceito de civilização”, no âmbito do encontro “O Estado do Mundo”, publicado em “A Urgência da Teoria”. Ainda em Lisboa, proferiu em 2008 a conferência de encerramento do Congresso Internacional Fernando Pessoa com o título “Fernando Pessoa – Poesia e Razão”, publicado em 2010. A Imprensa Nacional publicou “Guardar. A Cidade e os Livros. Porventura” (2020), uma reunião fundamental integrada na coleção Plural, com direção literária de Jorge Reis-Sá e o poeta teve participação relevante na Póvoa de Varzim nas Correntes de Escritas.


Pensador de uma fina inteligência aberta e livre, Antonio Cícero, ao tomar posse na Academia, afirmou:: “O cânone literário positivo, sendo produzido por uma sociedade aberta, é, ele próprio, aberto, expansivo, sempre sujeito a questionamentos, discussões e modificações. Convém ressaltar  que o reconhecimento de um cânone  não é absolutamente incompatível com a valorização da inovação na literatura. Assim, os movimentos de vanguarda não eram necessariamente contra o cânone. (…) Penso que a importância do cânone está, em primeiro lugar, no facto de que é através dele que sabemos o que é a literatura e o que é a boa literatura.. Não é através de nenhuma definição que sabemos o que é poesia, mas sim através da leitura de poemas e, em primeiro lugar, de poemas que têm sido considerados bons, modelares, clássicos, canónicos pela sociedade aberta de poetas, escritores, teóricos da literatura, críticos, professores, jornalistas, leitores etc.”. Ao longo das páginas dedicadas ao poeta homenageado, sentimos um percurso de rara coerência, bem demonstrada até ao seu último gesto. Simbolicamente, para além do dossiê de homenagem e dos diversos textos que o compõem, há uma página que estava destinada ao texto do poeta, que de algum modo, adivinhamos, relendo o que nos deixou. Como diz Rosiska Darcy de Oliveira: “Exercendo a sua última liberdade, ele escolheu colocar o ponto-final em sua história. Na sua ausência essa página em branco ilustra o vazio que ele deixou”.


Ilustrando a importância da vitalidade da cultura, o académico António Carlos Secchin, a propósito da Semana de Arte Moderna de 1922, demonstra como os caminhos da criação são insondáveis dando, afinal, razão a António Cícero sobre a importância da sociedade aberta e das suas diferenças. E fala-nos paradoxalmente de “Os Sapos” de Manuel Bandeira como possível símbolo dessa célebre Semana (de que não participou), quando o poema de Carlos Drummond “No meio do caminho” seria porventura mais coerentemente “hino” da Semana…Mas a mitologia desenvolveu-se de outro modo. “O Olimpo em Chamas”, eis as repercussões de uma sessão académica agitada pelas polémicas sobre a Semana modernista, com troca de argumentos corrosivos e a saída de Graça Aranha em ombros, em rutura anunciada com a Academia… Contudo, por momentos, a sessão modernista da ABL cairia no olvido. Mas ocorreu a seguir um volte-face. «Ainda assim, a despeito de tudo isso (diz A.C. Secchin), a Semana de Arte Moderna se consolidou miticamente como o maior acontecimento da história brasileira. Se Oswald de Andrade fosse vivo e eu lhe indagasse por quê, ele, irreverente, talvez respondesse: ‘Ora, você não conhece a profunda verdade de um verso paradoxal de Fernando Pessoa? O  mito é o nada que é tudo’».


A “Revista Brasileira” está cheia de motivos de interesse como o importante ensaio de Lília Schwarcz  sobre Amália Augusta de Lima Barreto, exemplo das estratégias conhecidas de certas famílias afro-brasileiras para ganharem a liberdade jurídica e conquistarem o reconhecimento social pelo acesso à educação. Por fim, a recensão da obra de Edgar Morin, “De Guerra em Guerra – de 1940 à Ucrânia”, permite-nos ouvir o centenário sócio correspondente da Academia dizer-nos: “A certeza de políticos e economistas de que o neoliberalismo seria produtor de um crescimento continuo era ilusória; a pandemia mundial, que provocou uma crise planetária gigantesca e multidimensional, foi mal compreendida pelo pensamento reinante, mecanicista e linear, que se mostra incapaz de conceber a complexidade dos fenómenos. Enquanto nos felicitamos por ter conseguido chegar à sociedade do conhecimento, estamos mergulhados numa cegueira que, quanto mais acredita possuir os meios adequados do saber, mais aumenta”…    


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 24 a 30 de março de 2025


Helder Macedo, Maria Filomena Molder e Adelino Cardoso publicam um notável conjunto de ensaios intitulados “Melancolia, Tristeza e Cura da Alma no Renascimento Português” glosando a obra de Filipe Elias Montalto “Arquipatologia” (1614).


Melancolia, Tristeza e Cura da Alma no Renascimento Português
de Adelino Cardoso, Helder Macedo e Maria Filomena Molder (Húmus, 2025), com a capa de António Dacosta, intitulada Melancolia II, é constituído por um conjunto de ensaios belíssimos que nos permitem encontrar as antigas raízes da cultura portuguesa, graças à evocação de autores fundamentais dos séculos XV, XVI e XVII. Partimos do texto de Filipe Elias Montalto, judeu português exilado, nascido em 1567 como cristão-novo, que publicou em 1614 Arquipatologia, composto por tratados clínicos sobre os mecanismos da mente, escritos em latim e recentemente traduzido para português. É uma obra de charneira que, na descrição de estados psíquicos frequentemente antecipa o que veio a ser retomado pela psicologia moderna, embora recorrendo a tratamentos derivados da antiga medicina galénica, mesmo quando põe em dúvida a sua pertinência. Falamos da melancolia como forma agravada de tristeza, com a presença de três autores portugueses de primeira relevância – D. Duarte, Bernardim Ribeiro e Francisco Sá de Miranda. Além destes, outros houve que merecem referência, como Luís de Camões, contemporâneo mais velho de Montalto, que, segundo os seus biógrafos tendo sido “na conversação muito fácil, alegre e dizidor, já sobre a idade deu algo tanto em melancólico”, ou como o cristão-novo e quase exato contemporâneo de Filipe Montalto, Francisco Rodrigues Lobo, cuja Corte na Aldeia, publicada pouco depois da Arquipatologia é uma ampla meditação sobre a melancolia individual amplificada na coletividade nacional.


O HUMOR MELANCÓLICO DE D. DUARTE
Mas D. Duarte merece uma atenção especial, numa análise pioneira do “humor merencório”, de que ele próprio padeceu e do modo como se curou. Como diz na dedicatória do Leal Conselheiro: “o entendimento é a nossa virtude mui principal”. E o certo é que o futuro rei pôde recuperar, por sua própria iniciativa, o gosto de viver e ficou “perfeitamente são, como se de tal sentimento nunca fora tocado”, mesmo sentindo-se na maturidade adquirida através desse penoso percurso “mais ledo do que era antes”. Já Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda oferecem-nos dois poemas tornados clássicos na nossa literatura, que não podem ser esquecidos: do primeiro: “Entre mim mesmo e mim / não sei que se alevantou / que tão meu imigo sou”… E do segundo, temos as palavras com que todos nos deliciámos – “Comigo me desavim / sou posto em todo o perigo / não posso viver comigo / nem posso fugir de mim”… O criptojudaísmo do autor de Menina e Moça apresenta um modelo de criação, anunciador dos caminhos renascentistas, que não esquecem a raiz medieval, encontrando o mesmo “pecado da tristeza” de D. Duarte, com o trilhar do caminho da cura; enquanto o humanista cristão Sá de Miranda se aventura por domínios novos, avaliando as ambiguidades do conhecimento e a importância das mudanças e o “domínio da desrazão”. O espírito inovador valoriza, afinal, a devoção interior em contraste com a materialidade das obras, relacionando o entendimento com a liberdade, a equidade, a razão, a consciência e o conhecimento, mas também: o encantamento, o engano, o sentimento, a loucura, a ilusão e o cativeiro. E Paulo Tunhas apresenta-nos, de um modo pujante, as Condições de Descrer, ainda em Francisco Sá de Miranda – para quem a verdadeira liberdade seria o poder tudo sobre si. Fernando Gil entenderá essa autonomia individual, na sua ideia de convicção, como adesão a si do eu… E assim encontramos o seu ensaio notável sobre as “inevidências do eu”, publicado inicialmente, em 1998, com Helder Macedo em Viagens do Olhar. Retrospeção, visão e profecia no renascimento português (por nós referido no JL de 8.1.2025) onde refere que “a perda do amor por si é uma maneira de dizer que o sujeito perdeu a confiança. Não espera mais dar corpo ao desejo, que se des-realiza pouco a pouco, nem fazer-se ouvir e do silêncio nasce o mutismo e a mudez”. E Sá de Miranda apresenta-se como um poeta “absolutamente moderno”, bem para lá do doce stil nuovo que trouxe para Portugal. E é notável como encontramos num autor quinhentista intuições que só o tempo futuro viria a revelar e a desenvolver, onde há semelhanças com Montaigne, mas enquanto este descobre a unidade do sujeito, o português refere a  desunião do eu.


PECADO DA TRISTEZA EM SÁ DE MIRANDA
Adelino Cardoso apresenta nas suas considerações uma revelação importante sobre o pioneirismo renascentista do pensamento dos portugueses, atentos às ideias novas e às preocupações humanas em torno do eu, considerando a melancolia “como compleição estudiosa, inquieta e fantasiosa” na Arquipatologia de Filipe de Montalto. Aos ouvidos do leitor contemporâneo sentimos algo de pertinente e familiar quando ouvimos Montalto a aconselhar-nos a contrariar a “desrazão”: «Evite a ira, a tristeza e os desgostos, oriente a vida para a alegria e a tranquilidade do ânimo, oiça frequentemente o canto e a música instrumental, tire proveito das fábulas e dos jogos tradicionais. Afaste as imaginações prolongadas sobre a doença”. E, por momentos, compreendemos como D. Duarte, Bernardim, Sá de Miranda se houveram com o “pecado da tristeza”. E Maria Filomena Molder ajuda-nos a compreender como esses caminhos puderam ser trilhados, pondo-nos a ouvir Bernardim na Écloga de Pérsio e Fauno – “como pode repousar / quem traz a morte consigo?” e a recordar a fala de Bruno Huca na peça concerto Da Felicidade (de Cristina Carvalhal de João Henriques):Proponho um brinde à melancolia a esse pequeno distanciamento da vida confrontado a nascente e sul pelo alvéolo do desejo a fazer caminho. Limitado a poente pelo aborrecimento, com o intuito de se encontrar o norte”.  A melancolia surpreende os pontos cardeais, desde o tédio até ao chamamento do norte, podendo falar-se de cura neste “intuito de encontrar o norte”. O ensaio merece leitura atenta e ponderada. E eis que se confrontam Heraclito e as suas lágrimas e Demócrito e o seu riso, a propósito da Elegia a uma Senhora muito lida em nome de um seu servidor de Sá de Miranda. “Estas seriam as desventuras / que Heraclito chorava em vida andando, /e Demócrito ria por loucuras, / com muitas outras que fazem grão brando, / mas haviam de ser as principais / dos que perdendo vão-se outrem buscando”. Não se vislumbra aqui, porém, preferência do poeta por Heraclito. As lágrimas e o riso são tomados como modos de resistir ao desacerto do mundo e como forma de avaliação crítica… Os sentimentos coexistem. E Maria Filomena Molder revela-nos num remate esclarecedor: “Do que gosto em Sá de Miranda e Bernardim Ribeiro? Dos meios reduzidos, das palavras que se repetem incessantemente (…), do ritmo criado pelo espaço que as circunda e que elas engendram, dos precipícios que se abrem profundos em cada verso da evitação do desperdício, das obscuridades francas. Tudo bons condimentos para alimentar  saudade, a mágoa e o luto e não ser submergido por eles”.    


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 17 a 23 de março de 2025


Passam dois séculos sobre o nascimento do genial romancista Camilo Castelo Branco. Com uma obra riquíssima que ilustra a força e a diversidade da identidade da nossa cultura, podemos dizer que a sua leitura continua a ser indispensável.

 


Ao José Viale Moutinho, em solidariedade camiliana


Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.


COMPREENDER QUEM SOMOS
Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que Camilo fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamo-nos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.


IRONIA E CONHECIMENTO HISTÓRICO
Com ironia e profundo conhecimento histórico, Camilo Castelo Branco fala-nos de um tempo longo, apreensível nos pequenos pormenores. Veja-se na apreciação da obra histórica de Oliveira Martins, o caso do Mestre de Aviz, que não poderia ser marido legítimo de D. Filipa de Lencastre sem dispensa de votos de clérigo, de que apenas foi libertado quatro anos depois do casamento… Há misteriosas condicionantes que influenciam inesperadamente os acontecimentos. E o romancista conclui na análise da obra que “nesta História de Portugal há a largura dos grandes aspetos sociais dados a factos que pareciam pequenos e escurecidos em meio de outros mais característicos”. E o historiador generaliza luminosamente “com uma grande harmonia de plano organizador, agrupando factos desconexos talvez com a cronologia, mas moral e politicamente harmónicos. Em poucos traços essenciais resume-se um período de história, uma anedota, um caso despercebido e sem o selo de notável importância sociológica, tratado (…) consoante o modo familiar de Taine, abre-nos a porta da vida íntima de uma época”, juntando ironia e realismo. E se um crítico disse que a História se lia aprazivelmente como um romance, o certo é que tal não pode ser levado à conta de um demérito. Contudo, esta História lê-se devagar e atentamente, devendo ser melhor entendida e apreciada por aqueles que houvessem colhido uma imperfeita, senão falsa, compreensão da vida portuguesa no estudo das crónicas. E Camilo não se impressiona com as quebras eruditas, já que na obra no seu todo prevalece a argúcia crítica e a visão do conjunto e do fundamental. Se há lapsos seriam de influência nula e outras consultas, “com um grande e malogrado escrúpulo”, não dariam ao autor novos elementos relevantes. E assim descobrimos no genial romancista o leitor atento do poderoso cultor da História com compreensão do essencial das personagens e dos acontecimentos.


FIGURA FUNDAMENTAL
Probo romancista, bibliógrafo irrepreensível, cultor da língua como poucos, leitor exemplar, comentador dos acontecimentos com sentido prospetivo, conhecedor da História do País e dos seus povos, Camilo Castelo Branco é um caso especial nas literaturas da língua portuguesa, digno de ser exemplo por tudo quanto nos deixou numa escrita viva e atraente, servida por uma panóplia ampla de personagens que caracterizam em termos dinâmicos a sociedade portuguesa, num panorama que abrange o Portugal antigo e o Portugal moderno em cada uma das suas especificidades. Eis a sua atualidade como referência fundamental da perenidade da arte e da literatura. Ao assinalar os dois séculos do nascimento do romancista de Seide  e quando se encerram as comemorações do quinto centenário de Camões, é oportunidade para celebrarmos a língua que se projeta no mundo através de quantos fazem da palavra o meio por excelência para afirmação da liberdade, do respeito mútuo, do sentido solidário e de uma vontade emancipadora.


NOTA – O presente texto está desenvolvido no número 218 da revista Colóquio - Letras


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 24 de fevereiro a 2 de março de 2025


Maria Teresa Horta é uma referência fundamental da moderna literatura da língua portuguesa.


Ao assinalar os cinquenta anos da Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, o Presidente da República de França destacou o caso da publicação das “Novas Cartas Portuguesas” como um exemplo de combate cívico pela liberdade cidadã, homenageando as suas autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. É significativo que seja uma referência da literatura e da liberdade criadora a identificar o que Samuel Huntington designou como o início da Terceira Vaga da democratização. Quando Maria Teresa Horta nos deixa, essa recordação ganha especial importância, uma vez que a História portuguesa, desde as suas origens, foi marcada por referências literárias – lembrando-nos dos trovadores na génese da nação e da língua que nos define e projeta globalmente pelo mundo até Camões. E o certo é que as “Novas Cartas Portuguesas” significam um grito de alerta em nome da liberdade do pensamento e da defesa intransigente da dignidade humana, considerando a igual consideração e respeito de todos. 


Conheci bem as três autoras dessa obra emblemática. Maria Teresa Horta foi uma amiga a que me ligam laços de mútua admiração que nunca poderei esquecer. Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram próximas colaboradoras no Ministério da Educação, a quem devo testemunhos vivos de entrega à ideia generosa e necessária de fazer da Educação um fator de emancipação cidadã, de cosmopolitismo e de partilha de responsabilidades. Concordo com Helena Vasconcelos que Maria Teresa é uma “autora ímpar”, assentando a sua singularidade em vários fatores, “nos quais se incluem uma linguagem inconfundível, fluida e apaixonada, um imaginário riquíssimo, uma vasta cultura humanista – de raízes clássicas – e uma capacidade invejável de escrever continuamente, sem limites nem amarras, reinventando em cada linha as mais profundas e inefáveis questões que desafiam – e angustiam – a humanidade” (Público, 5.2.2025). Foi sempre assim que a encontrei. Era inconformada e inconformista, rebelde e iconoclasta, mas quase paradoxalmente profundamente consciente das raízes e da importância da dimensão histórica da vida. Quando Patrícia Reis encontrou a palavra “desobediente” para dar título à sua biografia deu, propositadamente, apenas um traço da sua extraordinária personalidade, mas quando fechamos o livro, ao terminar a leitura entusiasta e motivadora, percebemos que é apenas um começo aquilo de que se trata, porque, ao longo da vida, facilmente percebemos que estamos perante uma personalidade multifacetada capaz da determinação e da extrema coragem (demonstrada em vários momentos da vida, perante a violência absurda do Estado policial), mas também de uma extrema sensibilidade e doçura, bem evidentes na sua poesia. O jornalismo atraiu-a desde muito cedo. Gostava do acontecimento e da tensão do contraditório – e desde cedo foi uma cinéfila militante. Foi a primeira mulher a liderar um Cineclube, o ABC. “A Capital” e o “Diário de Notícias” estão no seu currículo, bem como os textos dispersos nos “Diário de Lisboa”, “República”, “O Século”, e naturalmente o “JL”. Na revista “Mulheres” entrevistou Maria de Lourdes Pintasilgo, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e Maria Betânia. Na Faculdade de Letras foi amiga inseparável de Fiama Hasse Pais Brandão. “Espelho Inicial” foi o primeiro livro, graças a António Ramos Rosa, com a capa de Manuel Baptista, antes deste partir com uma bolsa da Gulbenkian para Paris. O livro suscita comentário positivo de João Gaspar Simões: elogiando a originalidade e dizendo que era uma nova voz a surgir no meio literário português. Em 1961 participa na “Poesia 61” com Gastão Cruz, Luiza Nerto Jorge, Fiama e Casimiro de Brito, com “Tatuagem”. Gastão Cruz dirá: “A novidade da poesia de Maria Teresa Horta manifesta-se (…) em vários planos e setores: o da linguagem e da construção do poema; o social e político; o sexual”. Pouco depois conhece Leonor Cunha Leão, a alma dos Guimarães Editores. Era a primeira mulher  editora em Portugal que publicava Agustina Bessa-Luís, que convida Teresa para publicar na coleção “Poesia e Verdade”. Conhece escritores como Sophia de Mello Breyner, Yvette Centeno, Ana Hatherly; mas também David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Pedro Tamen e António Gedeão. Maria Teresa Horta entrava nos meios literários com uma marca própria que o tempo irá revelar em toda a sua riqueza e maturidade, para além de qualquer lógica puramente circunstancial.


Em 1971, a publicação de “Minha Senhora de Mim”, nas Publicações Dom Quixote, sob a direção de Snu Abecassis, abre um processo de denuncia da ausência de liberdade de expressão, que se soma à participação de Maria Teresa Horta na “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” de Natália Correia. Segue-se a apresentação e proibição das “Novas Cartas Portuguesas” apenas vem confirmar a ausência de “abertura política”, que contribuiria para acelerar o processo que culminaria na Revolução de Abril. Inspiradas nas “Cartas Portuguesas” de Mariana Alcoforado (1640-1723) o método epistolar, conduzido pelas três escritoras, vai tornar claro como se acumulam fatores de bloqueamento relativamente à evolução democrática no tocante aos direitos fundamentais, em especial das mulheres, com repercussões em toda a sociedade, no sistema judicial, na pressão migratória, na violência do regime ou na guerra colonial… Estamos perante uma obra reveladora da exigência de abertura política e social, como questão de sobrevivência. Não estamos perante um epifenómeno, mas de um problema crucial. Na obra de Maria Teresa Horta encontramo-nos, assim, num momento decisivo, que no entanto revela, no conjunto da sua obra, um percurso que conduzirá à afirmação de uma identidade cultural emancipadora e aberta, servida por uma literatura segura e aberta, reconhecida desde o início internacionalmente por Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Iris Murdoch ou Doris Lessing… Deste modo, a obra de Maria Teresa culminará numa obra-prima, o romance biográfico “As Luzes de Leonor”, revelador a um tempo da importância da Marquesa de Alorna e da interpretação atualista do seu pensamento iluminista, lido à luz da contemporaneidade, com inteligência e sentido humanista. “Não sei o que em mim é memória ou recriação. E nesse meu engenho de poeta, julgo-me no inventar dos versos, postos mais na intimidade do peito e bem menos no alento do corpo e seu fogo; e nele mal se reacende a chama logo me apresto a apagá-la, faço-o sem o menor regozijo, desejando eu pelo contrário ateá-la. Mas a razão sempre se encarrega de me lembrar quanto o coração está debilitado, a ponto de me levar a esquecer como o bem e o mal se assemelham, tal como o mar e o rio que na sua branda fusão na mesma foz se misturam”.    


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 10 a 16 de fevereiro de 2025


Luís de Camões (1524-1580), cujo centenário comemoramos foi um verdadeiro intérprete de Portugal, assim o procuramos demonstrar.


UM CENTENÁRIO QUE REFLETE
Em 1880, por ocasião do terceiro centenário da morte de Camões, houve uma onda de entusiasmo que percorreu o país. Contudo o jovem Oliveira Martins, como os seus companheiros de geração, pondo-se de sobreaviso relativamente a todas as ilusões, afirmava: “Nós que abusamos demais das glórias conquistadas por nossos avós, supondo que elas bastam para nos justiçarem a fraqueza e os vícios, devemos considerar o Centenário como um incitamento a melhor vida; um Confiteor e não um Glória. Penitenciemo-nos, pois. Se o Centenário ficar como expressão nova de uma bazófia velha, melhor fora não se ter feito”. Esse foi, no entanto, um momento alto na tomada de consciência cívica. De facto, “o melhor modo de consagrar os heróis é repetir-lhes as façanhas. (…) São o carácter, a virtude, o heroísmo, que valem decerto mais que todas as luminárias”, e lembrava o historiador que as festas de Atenas só foram maiores depois da tomada pelos romanos, porque as celebrações póstumas são nostálgicas. E assim na década de noventa, passado o entusiasmo imediato este ardeu como a palha e “Os Lusíadas” voltaram a ser apenas uma saudade, dissipada a esperança de um momento. “A crítica tornava a exercer o seu papel de consoladora e mitigante, nas horas de desalento em que sentimos os braços quebrados para a ação. Camões tornava a pertencer à história de um passado extinto”, enquanto se varria para longe “a imagem desenhada nos horizontes luminosos de um dia”. Muitas e muito boas obras puderam, porém, enriquecer a literatura camoniana, salientando-se os estudos do visconde de Juromenha, de Teófilo Braga, bem como as traduções de Storck e de Burton, bem como, em paralelo, a edição da obra de Garcia de Orta e sobre a «Flora” de “Os Lusíadas”» pelo conde de Ficalho ou a edição de Sá de Miranda da autoria de Carolina Michaelis de Vasconcelos.


UMA HISTÓRA PRESENTE
Depois de o historiador ter escrito, quando estava em Espanha, em meio de charnecas bravias da Mancha, a dirigir as minas de Santa Eufémia, «Os Lusíadas: Ensaio sobre Camões e a sua obras, em relação à sociedade portuguesa e ao movimento da Renascença» (Porto 1872), refundiu-a quase vinte anos depois num notável trabalho de releitura, dado à estampa em 1891 - “Camões – Os Lusíadas e a Renascença em Portugal”, com uma estrutura semelhante à anterior mas com uma maturidade que demonstra bem a compleição cultural e literária do pensador e do artista da História - sem alterar “nem os lineamentos primitivos, nem o tom juvenilmente exuberante que lhe encontrava no estilo”. E o certo é que no fecho do prólogo da nova edição podemos ler uma afirmação que traduz bem o espírito de quem, ciente da decadência que se vivia, considerava que haveria razões para uma exigência de redenção, baseada num trabalho necessário de preparação do futuro: “Neste acabar de século, por tantos lados semelhante ao fim fúnebre do século XVI, quando morreram Camões e Portugal, o vivo desejo da minha alma é que, se efetivamente, está morta a esperança inteira e temos de abandonar a ideia de voltarmos a ser alguém digno de nome vivo sobre a terra, este livro seja como um ramo de goivos deposto no altar do poeta que, morrendo com a pátria, lhe cantou o glorioso passado, legando-nos o testamento de um futuro não cumprido”.


Importava, no fundo, compreender a circunstância que rodeara em 1572 a publicação de “Os Lusíadas” – porque “as grandes eras poéticas nunca são as da plena expansão enérgica das sociedades”. De facto, o poema épico foi publicado quando a pátria agonizante estava debruçada sobre a cova de Alcácer Quibir. E também Virgílio escreveu na época clássica de Augusto «quando Roma, terminada a época da sua expansão e grandeza, buscava nas instituições imperiais e na “imensa majestade da paz” o triclínio dourado e cómodo para ir passando os séculos da sua digestão apoplética. A incomparável epopeia virgiliana exprime, na sua perfeição, no seu rigor, no seu saber artístico, esse meigo descair de um sol que não dardeja mais os raios fulgurantes do meridiano, com uns longes de cansaço anunciando a doença».


ESPÍRITO DA RENASCENÇA
E no caso português, o espírito da Renascença centra-se no seguinte: “Toda a energia deste povo cristaliza em três atos: o imperialismo político, as descobertas e conquistas e o absolutismo religioso”. Na “História da Civilização Ibérica”, Oliveira Martins encontrará, a um tempo, as causas de decadência dos povos peninsulares e as características próprias de uma experiência crucial na história da humanidade. Fomos, assim, os romanos da Renascença, como dirá Camões, ao invocar a proteção de Vénus (“Afeiçoada à gente Lusitana, / Por quantas qualidades via nela / Da antiga tão amada sua Romana” – Canto I). E partilhando o idealismo espiritualista, capaz de exigência crítica, “Camões não é só o épico português da força e da fé, nem o épico da ciência e do comércio; é também um vate do pensamento filosófico moderno”. E deste modo “por um ato de vontade coletiva, Portugal quis ser e foi uma imitação de Roma” – e essa é uma chave que a visão camoniana consagra. “E esse ato de vontade, semente da sua energia heroica, deu fisionomia própria a um pequeno povo que primeiro vivera indistinto entre os vários reinos  da Espanha, apenas porventura caracterizado diferencialmente pelo lirismo da sua alma céltica, igual em todo o caso dos dois lados do Mondego, mais igual ainda em ambas as margens do Minho”. E a bela Vénus diz da língua portuguesa que, ao ouvi-la, “com pouca corrupção crê que é a latina” (Canto I). Por outro lado, reforçando essa semelhança heroica, “o foro português, à semelhança do romano, não era o atestado de uma ascendência consanguínea, mas sim o batismo em uma fé que não distinguia nacionalidades, nem origens naturais de raça, ou de religião”. E aqui temos o carácter paradoxal da herança camoniana que a geração de 1870 deseja que funcione como um desafio de vontade – cientes das vicissitudes várias e dos fumos da Índia de que Albuquerque falava. “É por isso que os Lusíadas, escritos em letra de ouro, sobre a candura de um mármore são (na expressão do historiado) o epitáfio de Portugal e o Testamento de um povo. Como Israel, com os seus cativeiros sucessivos, o português, abraçado à sua bíblia e enlevado no sonho messiânico do sebastianismo, amassado com lágrimas, balbuciará as estrofes de Camões sempre que vir apontar no céu uma aurora fugaz de renascimento, e sempre que contemple melancolicamente o crepúsculo saudoso do seu passado perdido”. No Portugal oitocentista, o épico apresentava-se como intérprete da história pátria num sentido profético, não com pendor fatalista, mas como futuro de esperança.    


Guilherme d'Oliveira Martins
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NOTÍCIAS DO PARAÍSO

  

David Lodge (1935-2025) foi um mestre do romance satírico britânico e a sua obra encerra uma análise plena de ironia da sociedade em que vivemos, desmascarando a vaidade, a hipocrisia e a mesquinhez que a cada passo encontramos. Discípulo de Jonathan Swift ou de Henry Fielding, seguiu as pisadas de Evelyn Waugh, de Graham Greene ou até de Chesterton, fazendo chegar até nós o saudável espírito de um cristão inconformista, empenhado em distinguir o essencial e o acessório, pondo em primeiro lugar o sentido crítico e o respeito mútuo. Os seus maiores êxitos editoriais tornaram-se referências que ultrapassaram as contingências do tempo em que surgiram. Quando publicou O Museu Britânico vem Abaixo (1965) partiu da sua experiência como professor universitário, seguindo o percurso de um jovem estudioso de língua inglesa às voltas com uma dissertação com tema muito complicado sobre “A estrutura de frases longas em três romances ingleses modernos”. Contudo o investigador deixou-se distrair com as circunstâncias mais diversas e estranhas. No caso de Lodge como autor da tese sobre “O Romance católico desde o movimento de Oxford até aos nossos dias”, ele fez da carreira universitária o seu ganha-pão, aproveitando o facto para poder criticar, com humor e sentido crítico, a perversidade dos labirintos universitários e das suas endogamias. Em A Troca (1975), romance passado nas Universidades fantasiosas de Rummidge e Euphoric, em Inglaterra e nos Estados Unidos, dois professores de literatura inglesa trocam as suas posições durante seis meses, e deparamo-nos nesse cenário com o cabotinismo e a preguiça generalizados em busca de reconhecimento intelectual, entre congressos e conferências, à mistura com devaneios amorosos. Com um humor feroz, encontramo-nos perante o que Umberto Eco designou, cheio de ironia, como “picaresco académico”.  

Em How Far Can We Go (Até Onde Podemos Ir) (1980) o romancista põe em diálogo, com inteligência, ironia e até ternura, vários católicos que se conheceram nos anos cinquenta do século passado e que se veem confrontados com uma evolução dramática da espiritualidade, com as mudanças não apenas ditadas pelo Concílio Vaticano II, mas também pela sociedade contemporânea no tocante à tomada de consciência do corpo, a uma maior permissividade sexual e ao surgimento da pílula, no contexto de um confronto entre o tradicionalismo e a modernidade. Graham Greene dirá tratar-se de uma obra magnífica. Segundo David Lodge: “Ler é submeter a curiosidade e o desejo a um continuo movimento de uma frase para outra. O texto desvenda-se diante de nós, mas não permite que o possuamos. Mais do que desejarmos possuí-lo, deveremos obter o prazer de usufruir das suas traquinices”. De facto, a descoberta do prazer e dos jogos de sedução, permitindo compreender o que muda no mundo e na vida em cada momento, constitui uma permanente preocupação do escritor, na relação com a literatura e os seus leitores, como analisará nos casos de Henry James e H. G. Wells. Com efeito, as notícias que recebemos do paraíso obrigam a limitar os entusiasmos. Não nos devemos enganar. Daí a importância de uma boa dose de ironia, para que percebamos que não há mundo perfeito, mas a necessidade de termos sentido de autocrítica, para caminharmos com sinceridade e sabedoria...     


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  
De 20 a 26 de janeiro de 2025


Preparando o segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco que ocorrerá no dia 16 de março a Imprensa Nacional e o Pato Lógico lançaram o livro “Camilo Castelo Branco – Amores de Perdição” da autoria de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada com ilustrações de Jorge Margarido.



O ELOGIO DA LEITURA
O incentivo à leitura, designadamente dos mais novos, obriga a uma atenção especial à divulgação dos autores clássicos e das suas obras fundamentais. A Imprensa Nacional criou uma nova coleção intitulada “Grandes Vidas Portuguesas – Portugal de Ontem, de Hoje e de Sempre, através de Vidas de quem o fez Grande” e no âmbito dessa iniciativa, acaba de publicar um pequeno volume dedicado a um dos maiores romancistas portugueses de sempre – Camilo Castelo Branco. Em vésperas de se iniciar a comemoração dos duzentos anos do seu nascimento, estamos perante a melhor oportunidade para dar ao grande público uma pequena mas sugestiva biografia para os mais jovens do primeiro escritor português que fez da escrita uma profissão exclusiva. Numa linguagem acessível e cuidada e com elevado sentido pedagógico, as autoras usam a sua experiência para nos apresentar não só os momentos fundamentais de uma vida atribulada, mas também as linhas essenciais de uma obra multifacetada que projeta para a opinião pública o testemunho de vida do seu autor. Pode dizer-se, assim, que podemos usufruir simultaneamente de duas dimensões – a vida e a obra de alguém que representou de modo exemplar o período atribulado em que viveu – abrangendo a guerra civil entre D. Pedro e D. Miguel, a implantação do regime liberal após a Convenção de Évora Monte (1834), a revolução de Setembro, a Patuleia e a Maria da Fonte e a acalmação ditada pela Regeneração. O percurso seguido por Camilo Castelo Branco compreende a tensão existente entre as ideias liberais dos meios urbanos e as resistências conservadoras dos meios rurais. O ambiente familiar, a memória da infância e da adolescência, o conhecimento de vida adquirido entre Lisboa e Vila Real vão fornecer ao romancista matéria-prima que lhe permitirá dar aos seus leitores um panorama extremamente rico nos temas e nas personagens.


UM TEXTO NECESSÁRIO
Temos, assim, um texto de grande utilidade, dando-nos um pano de fundo muito rico apto a caracterizar o país profundo na sua diversidade, obrigando a uma síntese entre as tradições vetustas do mundo rural e as influências dos ventos europeus da modernidade. De facto, a criatividade do romancista permite prender a atenção dos leitores ao tratar de temas envolvendo amores contrariados, conflitos familiares ancestrais, resistências em relação ao progresso, caciquismo, chegada dos emigrantes de torna-viagem, confronto entre campo e cidade. Contudo, Camilo é também um inovador na escrita e no estilo, não sendo o romântico de escola, antecipando-se mesmo nos terrenos naturalistas. Durante quase 40 anos, entre 1851 e 1890, escreveu mais de 260 obras, ou seja, mais de seis livros por ano. Prolífero e fecundo escritor, deixou, assim, obras de referência que se singularizam na literatura portuguesa. Quando esteve preso na Cadeia da Relação do Porto, sob a acusação de crime de adultério pela relação com Ana Plácido, legou-nos em “Memórias do Cárcere” (1862) um retrato duro mas pleno de interesse vital sobre as duras condições de vida no histórico estabelecimento, onde se vivia a pesada justiça oitocentista, tendo como fio condutor a experiência vivida na primeira pessoa em confronto com outros testemunhos de vida, que Camilo quis deixar para a posteridade, desde as histórias de um falsário à biografia de Zé do Telhado, passando por parricidas e infanticidas e ainda pelo pobre homem que matou o burro dum abade.


UM ENCONTRO HISTÓRICO
Visitando a Cadeia em 23 de novembro de 1860, o Rei D. Pedro V não regateou elogios ao romancista, declarando desejar vê-lo libertado, para poder prosseguir o seu brilhante percurso literário. Nesse período, apenas entre 1862 e 1863, Camilo publicará onze novelas e romances, atingindo uma notoriedade dificilmente igualável. É deste período “Amor de Perdição”, escrito na Cadeia em quinze dias, inspirado numa história familiar, mas, como esclareceu oportunamente, totalmente original, longe de qualquer tendência autobiográfica. Simão Botelho e Teresa Albuquerque protagonizam um intenso amor, elogiado na sua sinceridade plena. Em termos literários e considerando uma obra notável,  Jacinto do Prado Coelho considera Camilo «ideologicamente flutuante […] mantendo-se um narrador de histórias românticas ou romanescas com lances empolgantes e situações humanas comoventes». Assim, o seu romantismo é «um romantismo em boa parte dominado, contido, classicizado», havendo ao «lado do seu alto idealismo romântico a viril contenção da prosa, um bom-senso ligado às tradições e a certo cânones clássicos, um realismo sui generis, de vocação pessoal que parece na razão direta da autenticidade do seu romantismo».


De facto, esta visitação da vida e da obra do romancista de S. Miguel de Seide permite compreender a importância de Camilo, dando aos seus leitores oportunidade para beneficiarem da genialidade de um grande narrador.


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  
De 13 a 19 de janeiro de 2025


Ao atribuir a Helder Macedo o Prémio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural, o júri afirmou que o poeta, romancista, ensaísta, crítico, e professor, apresenta um percurso exemplar no campo da cidadania.

 


O PRIMADO DA LIBERDADE
“Vivendo em Moçambique, desde a sua juventude afirmou-se como uma consciência livre, considerando a liberdade como abrangendo a criação literária e artística, mas também o reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência. Exilado em Londres a partir de 1960 foi colaborador da BBC e lecionou no King’s College onde ensinou Língua e Cultura Portuguesas, afirmando-se como prestigiado investigador. Após a Revolução de 25 de Abril exerceu em Portugal importantes funções na área cultural, tendo prosseguido, a par da criação literária e ensaística, uma ação persistente na cultura e educação em prol da língua portuguesa no mundo». A cidadania cultural constitui um modo de afirmação da liberdade e da justiça social como consequência natural da dignidade humana. A defesa dos direitos fundamentais e do Estado de Direito constitui, assim, uma experiência orientada para o respeito mútuo e para um saber de experiências feito centrado não em abstrações, mas na consideração de valores éticos enraizados na vida e numa prática dialógica em que eu e o outro se completam naturalmente.


UM PERCURSO DE RARA COERÊNCIA
Quando seguimos o percurso de Helder Macedo, verificamos que o intelectual faz da sua ação algo de coerente e complementar, como acontece quando lemos o romance Partes de África (1991), onde a fronteira entre os acontecimentos e a invenção é propositadamente ténue para que melhor se compreenda a importância da memória como verdadeiro artífice da História. À infância em Moçambique, segue-se a adolescência passada em Lisboa, tendo frequentado a Faculdade de Direito em finais de cinquenta. O primeiro livro de poesia Vesperal é de 1957 e foi saudado por Jorge de Sena como dos mais perfeitos “que por esse tempo se publicaram”, como domínio da expressão e do ritmo. Participa então no Grupo do Café Gelo, ainda que numa atitude de original independência, sempre crítica da situação e do conformismo político. Foi coorganizador com António Salvado das Folhas de Poesia (1956-58). Crítico do regime, exila-se em Londres, com Suzette Morgado de Aguiar, onde entre 1960 e 1971 colabora com a BBC. Aí encontra Luís de Sousa Rebelo, que desempenhou em Londres um papel fundamental na afirmação da cultura portuguesa, numa perspetiva aberta e livre. Em termos académicos Helder Macedo prefere obter as necessárias qualificações académicas, estudando Bernardim Ribeiro e Cesário Verde, e prosseguindo uma carreira docente ativamente portuguesa no King’s College. A primeira tese de doutoramento que orientou será sobre Herberto Helder.


Organiza Antologias de poesia portuguesa em língua inglesa (em 1973 e 1978, esta com E. M. de Melo e Castro). Funda a revista Portuguese Studies, que será premiada nos Estados Unidos (1987) e dirige o departamento do King’s College que inclui os estudos brasileiros e se expande para abranger estudos africanos e História – com muitos alunos que exerceriam cargos docentes relevantes em escolas e universidades inglesas, americanas e portuguesas. Após a revolução portuguesa de 1974 regressou a Portugal, quando, na sua expressão, deixou de ter de haver para os portugueses o “lá fora”. Foi assim diretor-geral dos Espetáculos (1975), Secretário de Estado da Cultura (1979). Em 1976, organizara a importante antologia Camões Some Poems (com Jonathan Griffin e Jorge de Sena). E entre 1981-82 foi professor visitante na Universidade de Harvard, tendo ainda lecionado em França, e no Brasil, nas Universidades de Campinas, S. Paulo e Federal do Rio de Janeiro. Regressado a Inglaterra foi titular da cátedra Camões no King’s College (1982-2004), função que acumulou com a de diretor do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros, até 1991, sendo hoje Emmeritus Professor. Dirigiu ainda a revista da Associação Internacional de Lusitanistas. Em 1998 publicou Pedro e Paula, romance que é saudado positivamente pela crítica e em 2005 obtém o Prémio do Pen Club português pelo romance Sem Nome, dando à estampa ainda Tão Longo Amor Tão Curta a Vida (2013).


EM PROL DA LÍNGUA PORTUGUESA
Além de vasta produção poética, o grande ensaísta produziu textos fundamentais sobre o “Cancioneiro de Amigo”, a “Menina e Moça”, obtendo neste caso o prémio da Academia das Ciências (1977), e ainda sobre Camões e Cesário Verde, sendo autor com o seu amigo de infância Fernando Gil do notabilíssimo Viagens do Olhar: Retrospeção, Visão e Profecia no Renascimento Português, em 1998, que obteria os Prémios da Associação Portuguesa de Críticos Literários e do Pen Club português. Pode dizer-se que esta obra é indispensável (ainda para mais neste ano de Camões) para podermos ter uma visão de conjunto da cultura da língua portuguesa, na sua dimensão universalista. E assim se abrange: o efeito-Lusíadas, a sobrerrealidade do olhar em Camões, a poética da verdade na obra maior da nossa cultura, a História como profecia em Fernão Lopes e nos Príncipes da Ínclita Geração, as Crónicas portuguesas do século XVI, os enganos do olhar, Sá de Miranda e as ambiguidades do conhecimento, os modos do amor ausente nos mistérios do romance de Bernardim e nas suas obscuras transparências – por entre convergências e dissidências -, o apetite e a razão em Camões, envolvendo a distinção entre nacionalismo e pastoralismo, e culminando com dois estudos magníficos sobre o Padre António Vieira – desde o silogismo da Profecia á interrogação sobre dedução ou abdução no futuro tornado presente, culminando na consideração da profecia bíblica na Apologia das Coisas Profetizadas. O diálogo entre o filósofo Fernando Gil e o mestre da História Literária Helder Macedo – com uma bela incursão de Luís de Sousa Rebelo pelos cronistas - produz uma obra fascinante e inesgotável, tendo como centro irradiante Camões, em ligação com o extraordinário Imperador da Língua Portuguesa…


De facto, “o Renascimento português levanta problemas particulares, como sejam a viagem, o novo, o encontro com a diferença e como a pensar. As crónicas de viagem e de império constituem a sua expressão mais direta e aparente, e a sua importância fica devidamente assinalada no estudo que lhe consagra Luís de Sousa Rebelo. (…) Ver claramente visto põe simultaneamente o problema de ver o que ‘lá está’ e de como o que lá estivesse poderia ser visto. Este interrogar do exterior ia a par com modos novos de lidar consigo e com os outros”. Estamos, assim, no coração de um pensamento que se transforma. “As metamorfoses do eu através do amor” constituem, com efeito, temas que conduzem estas “viagens do olhar”. Ligando as considerações de Bernardim, Sá de Miranda, Fernão Lopes e Camões, descobrimos que a originalidade da posição do contributo português, culmina no Quinto Império, que é mais do que um sonho próprio uma ideia de refundação da humanidade. “Com efeito, os textos de Vieira mostram claramente que, menos do que Portugal, é antes o futuro do homem que se trata. (…) A evidência é ao mesmo tempo fundadora e insustentável: no amor como na profecia, na fundamentação da nação como nos fundamentos do eu” – como afirmam magistralmente os autores. E assim encontramos uma forte via racional no nosso Renascimento, que matiza o sentimento…  E eis como temos aqui uma marca de cidadania em que a cultura compreende a complexidade da vida, para além do sonho.


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 6 a 12 de janeiro de 2025


Na semana em que ocorrerá a justíssima trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, recordamos a publicação da autoria de Alfredo Campos Matos de “Eça de Queiroz – Fotobiografia – Vida e Obra”, Caminho, 2007.

 


OPORTUNIDADE ÚNICA
A leitura desta fotobiografia constitui oportunidade única para conhecermos melhor não só a vida e obra de José Maria Eça de Queiroz (1845-1900), mas também a história do seu tempo, uma vez que poucas personalidades culturais portuguesas tiveram uma influência tão grande sobre o país, no tempo da sua existência e no século que se lhe seguiu. Como aconteceu tal? Através da capacidade excecional de retratar Portugal e os portugueses com argúcia e ironia, estabelecendo uma relação próxima com as grandes referências intelectuais do seu tempo. Nas suas personagens está o retrato de um País que ainda não desapareceu… Lembremo-nos da fotografia tirada no velho Palácio de Cristal do Porto em 1885, onde se encontram as cinco maiores referências culturais de então – Antero de Quental, Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. Depois de um encontro aparentemente fútil, em torno de um leque a oferecer à noiva de Eça, foi possível reunir lado a lado o suprassumo da elite desse tempo.


UM ROTEIRO NECESSÁRIO
Definindo um percurso rigorosamente delineado, o autor permite-nos seguir a par e passo quem foi o grande romancista, permitindo-nos ter contacto com o meio em que nasceu e viveu, a família, a Universidade de Coimbra, os amigos, a atividade diplomática que desenvolveu e a atenção que prestou ao país e ao mundo. Não faremos aqui uma análise exaustiva desta obra indispensável, limitar-nos-emos a seguir um breve roteiro de Lisboa do escritor. Quando se faz um roteiro, escolhemos alguns pontos focais que nos permitem fazer a peregrinação. No caso de Eça de Queiroz, na cidade de Lisboa, o Jardim de S. Pedro de Alcântara, o Chiado e o Rossio são os polos naturais. E nessa varanda sobre a cidade, onde, os amigos vindos de Coimbra estabeleceram o que designaram como Cenáculo, Jaime Batalha Reis explica: “E como Antero e eu nos tivéssemos habituado a estar juntos dia e noite, pensando em voz alta, conversando , discutindo esquecidos muitas vezes, quase, de tudo que não fossem as ideias em conflito dos mil sistemas, fomos viver ambos para S. Pedro de Alcântara, em frente da Alameda, na sobreloja de uma casa que foi depois substituída por um palácio moderno, perto do convento alto”. E que era o Cenáculo? Um ponto de encontro com desígnios elevados da mudança do mundo. E lá se encontraram ainda Eça de Queiroz, Teófilo Braga, Oliveira Martins e José Fontana. E as ideias germinavam. Aí nasceram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, ao mesmo tempo que em Paris, acabada a guerra franco-prussiana, tinham lugar os acontecimentos dramáticos da Comuna de Paris. Antero de Quental, Eça de Queiroz e Adolfo Coelho ainda puderam fazer as suas palestras, mas Salomão Saragga já não pôde, perante a proibição governamental. E a iniciativa que poderia ter passado discretamente, tornou-se um acontecimento, que continuou o grande debate sobre o Bom Senso e o Bom Gosto, de Coimbra, alargando-o, com o protesto veemente de Alexandre Herculano, não em nome de qualquer programa político, mas na defesa da liberdade de pensar e de falar. E se falamos das Conferências do Casino, não esquecemos a Revista Ocidental, onde começou a ser publicado o romance iconoclasta de Eça “O Crime do Padre Amaro”. E ao descermos a atual Rua da Misericórdia até ao Largo de Camões, seguindo a muralha fernandina, artéria que se chamou Rua Larga de S. Roque e Rua do Mundo, passamos à porta do Restaurante Tavares, onde Eça jantava com os seus amigos Vencidos da Vida, enquanto numa rua paralela no Largo da Abegoaria (hoje Largo Rafael Bordalo Pinheiro) se situava o Casino Lisbonense.


CHIADO LUGAR COSMOPOLITA
O Chiado é o segundo ponto por nós escolhido. Aí podemos encontrar as principais personagens dos romances de Eça. Paremos na esquina da casa Havanesa, loja refinada de tabacos, ponto de encontro dos janotas da altura. Nesta esquina o senhor Guimarães encontrou João da Ega a quem revelou a chave do mistério de “Os Maias”, entregando os papeis que provavam que Carlos Eduardo era irmão de Maria Eduarda. Por cima da Havanesa havia o Hotel Aliança, cujas persianas eram constituídas, na velha tradição lisboeta, por tabuinhas verdes descidas nas janelas, como “pálpebras pesadas de langor e de sono”, como Eça dirá em “A Relíquia”. Aqui encontramos o Conselheiro Acácio, despedindo-se apressadamente de Luísa em “O Primo Basílio” à porta da Basílica dos Mártires. Aqui estão as grandes lojas, o Jerónimo Martins, que representou o célebre azeite de Herculano, a Livraria Bertrand, a mais antiga da Europa, o restaurante Marrare do Polimento, lugar de muitos compromissos. Um pouco adiante o Teatro de S. Carlos, onde Carlos foi apresentado à condessa de Gouvarinho e onde Artur de “A Capital!” ficou deslumbrado por aquilo que viu na grande sala da ópera. No Chiado temos na atual Rua Ivens, antiga Rua de S. Francisco, o Grémio Literário e ao lado a casa onde morou a Maria Eduarda. O Grémio, fundado por Garrett, é referido em “O Primo Basílio”, “A Capital!” e “Os Maias” e foi aí que Eça primeiro leu “Les Fleurs du Mal” de Baudelaire. Descemos a Rua Garrett, antiga Rua Larga de Santa Catarina e aprestamo-nos a chegar ao terceiro ponto por nós escolhido – o Rossio. É um dos cenários principais da ficção queiroziana. Aí está a casa de seus pais num quarto andar, onde o escritor morava quando vem à capital. A varanda oferece sobre a praça um panorama surpreendente, que nos dá a sensação de termos a cidade a nossos pés. Aqui passeiam o Padre Amaro, o Conselheiro Acácio, Luísa, o Raposão ou Gonçalo Mendes Ramires. O consultório médico de Carlos Eduardo da Maia tinha janelas para o Rossio, tal como o dentista de Luísa, o Dr. Vitry, personagem real. Para o Rossio dava também o escritório do Dr. Vaz Caminha, patrono do nosso conhecido Alípio Abranhos. Foi aqui que na passagem do cortejo comemorativo da chegada à Índia de Vasco da Gama que Eça foi reconhecido e teve uma inesperada ovação popular. E, voltando à varanda do quarto andar da casa dos pais de Eça, avistamos, a norte, o que foi a entrada do Passeio Público, sacrificado pela abertura da Avenida da Liberdade, onde hoje é a Praça dos Restauradores. O Passeio foi cenário obrigatório em “O Primo Basílio” - aí Jorge conheceu Luísa, Luísa encontrou-se com Basílio junto do tanque e D. Felicidade esperou pelo Conselheiro Acácio afrontada pelas flatulências… E há reminiscências do velho Passeio Público um pouco por toda a parte na cidade, como o coreto do Jardim da Estrela concebido para o antigo sonho pombalino à imagem dos parques londrinos. E falando do roteiro lisboeta de Eça, temos de ouvir João da Ega a gritar “Lisboa é Portugal – Fora de Lisboa  não há nada. O País está todo entre a Arcada e S. Bento”…     


Guilherme d'Oliveira Martins

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