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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O AMOR DOS LIVROS E DA CULTURA

  
    José Afonso Furtado © Fundação Calouste Gulbenkian


José Afonso Furtado foi um exemplo de inteligência e entrega plena ao serviço público da cultura. Foi um estudioso e um militante sereno e determinado da promoção do livro e da leitura, para além do prazo curto. O produto do seu labor e talento está bem vivo, e todos quantos lidam com o mundo dos livros e do conhecimento sabem o muito que beneficiaram do seu contacto. O trabalho que realizou na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (1992-2012) foi notável, na modernização tecnológica e na criação do serviço de referência, completando o que também fez na rede nacional de bibliotecas públicas municipais. Lembramo-nos da sua obra fundamental A Edição de Livros e a Gestão Estratégica, que continua ser um livro referencial. Quem o conheceu, sabe quanto era entusiasta, generoso, disponível e exaustivo no estudo e compreensão daquilo que o interessava. A partilha de conhecimentos era motivo de genuíno prazer, e todos quantos beneficiaram do saber que cultivava não podem esquecer o que lhe devem. Mas, além, da entrega à causa do livro e da leitura, José Afonso Furtado foi um artista, um criador, com provas dadas no domínio da fotografia. A sua obra põe-no no centro da melhor criação do seu tempo. As suas paisagens serenas e rigorosas permitem uma inevitável ligação à terra e ao tempo. Cada fotografia sua obriga-nos à observação atenta do conjunto e do pormenor. Dir-se-á que uma paisagem ganha, assim, todo o esplendor, tornando-se verdadeiro diálogo entre humanidade e natureza.

Ao seguirmos o seu caminho profissional, encontramos a presidência do Instituto Português do Livro e da Leitura (1987-91), a participação no Conselho Superior das Bibliotecas, a docência nos cursos de ciências documentais e de técnicas editoriais e na disciplina de Sociologia do Livro e da Leitura. Participou na Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e fazia parte da Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura. Como prova da profunda atenção que dava á evolução do mundo digital e da comunicação cultural, foi referido em 2011 na revista “Time” como um dos mais influentes utilizadores do Twitter (hoje X). Na vasta bibliografia que nos deixou conta-se O Que é o Livro (1995), Os Livros e as Leituras. Novas Ecologias da Informação (2000) ou Uma Cultura e Informação para o Universo Digital (2012), além de Canção das Crianças Mortas (com Clara Pinto Correia, 1989). Sobre fotografia são inesquecíveis Das Áfricas (com Maria Velho da Costa); Os Quatro Rios do Paraíso (com Clara Pinto Correia e Cristina Castel-Branco); Mundos da Fotografia – Orientações para a Constituição de uma Biblioteca Básica (com Ana Barata); Contaminações. Minas Abandonadas – Fotografias 1994-2009 (2019). De modo emblemático, sobre o Livro, a sua importância e fragilidade, José Afonso Furtado disse de modo sublime: “Nestes momentos de turbulência muitas predições já falharam, muitos fenómenos vertiginosos surpreenderam a comunidade dos especialistas. (…) As verdades inquestionáveis mais não seriam do que um compêndio de banalidades. Tal como outros, em outros tempos, ‘navegavam sem o mapa que faziam’, também agora ‘os homens sábios tinham concluído / que só podia haver o já sabido: / para a frente era só o inavegável’, como escreveu, admiravelmente, Sophia de Mello Breyner Andresen. Resta-nos, então, navegar os novos espaços”.   


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  

De 27 de outubro a 2 de novembro de 2025


«Novas Fases da Lua» de João de Melo (D. Quixote) é um diário dos anos de 2017 a 2024 (com exceção de 2020 e 2022) no qual encontramos o pulsar da vida cultural pela pena de um grande escritor.


O diário de um escritor é sempre a revelação apetecível de um retrato do mundo através do testemunho de quem procura ir além das aparências e do prazo curto. João de Melo é um excelente cicerone, que nos conduz por caminhos muito sedutores que nos ajudam a compreender o tempo e as pessoas. A cada passo encontramos autores e acontecimentos que seguimos com um incontido prazer, pois além da sedução da escrita podemos usufruir de uma leitura qualificada da realidade cultural que nos cerca. Em 17 de fevereiro de 2019, ouvimos o autor: “Ponho-me a imaginar a minha biblioteca sem mim, ou seja, depois de mim. Todos estes livros têm a marca das minhas mãos, uma história silenciosa que um dia se calará comigo. Dói-me imaginar o destino que os levará a outros olhos e a mãos diferentes das minhas. Perder-se-ão as dedicatórias dos autores, a minha leitura deles, os milhares de livros lidos sobre os quais se apagará a luz e a gratidão dos meus olhos. Houve um tempo em que as bibliotecas representavam pequenos tesouros familiares que os filhos herdavam com proveito e alegria. Hoje ninguém quer bibliotecas particulares: todos os lugares estão cheios e saturados delas – acabarão num sótão ou numa cave escura e coberta de pó, ou nas mesas de rua dos vendilhões de livros em segunda mão, comprados a pataco como pechinchas de ocasião. (…) Toda a vida a comprar e trazer livros para casa, e depois este logro, esta inutilidade alheia”. Estamos aqui no coração deste diário, de modo a que possamos usufruir da essência da memória, para além do desaparecimento do tempo. Olhe-se a lembrança de “Ana Karénina”, aprendendo “com os mestres a simplicidade profunda, o segredo discreto do génio, a linguagem natural da literatura. A grande literatura faz-se com a paciência laboriosa do inventário, com atenção e rigor máximo no pormenor”. Eis como um livro se mistura com a vida do leitor, e a biblioteca é a grande representação do mundo em que cada um de nós se insere. Tolstoi torna-se, assim, nosso companheiro. E lembramos Vargas Llosa a ensinar-nos que “devemos organizar a vida como se fossemos viver indefinidamente. De maneira que a morte seja como um acidente”. Assim a literatura e os livros tornam-nos participantes de um tempo eterno…  “A literatura mudou o curso dos meus dias. Deu-me no mundo um conhecimento bem mais vasto do que as minha origens. Nem eu sei que espécie de vertigem explica a minha necessidade vital de cultura, dos livros próprios e alheios, do que mim se irmana ao ler e amar os livros dos outros e de ser lido e amado por eles”. E assim nos deparamos com a fascinante leitura de “Astronomia” de Mário Cláudio, em que as personagens não têm nomes: são os Pais, os Tios, as Criadas, o Menino, o Rapaz e o Velho. Assim, o leitor descrê do teor pessoal da leitura e fixa-se na ficção biográfica. A realidade e a imaginação misturam-se, e entramos de pleno no mundo de uma realidade que nos faz assumir a transição entre o sonho e o mundo concreto, como sombra de várias sombras.


E de súbito encontramos a criada de Herculano, convencida de que o historiador era um preguiçoso, por levar os dias sentado  a escrever. Assim convivia com essas sombras míticas, projetando-as para além do tempo. No diário os temas sucedem-se, e o memorialista depara-se num passeio ao Sol de Inverno com um bairro novo cujas ruas têm nomes de escritores. Rua Vitorino Nemésio é paralela à de Jorge de Sena, e perpendicular à Alameda António Sérgio. Numa bela metáfora, os habitantes das estantes de uma biblioteca ocupam os espaço público. Tudo a partir da recordação do “poeta preclaro e secreto no seu género miúdo, prosador de luxo em várias frentes de escrita”. Temos, pois, o genial autor de “Mau Tempo no Canal” e dos contos magistrais de “O mistério do Paço do Milhafre”. E a escrita do diário flui, rápida e apaixonante. Depois de Nemésio, vamos ter com Raul Brandão e as suas “Memórias”. “Vê-se quando se fixa em testemunhos de bastidores. Não faltam motivos de interesse a prenderem-me à leitura desta obra sintomática: lá está o prosador emérito, tão subtil como expressivo, com uma linguagem dúctil e surpreendente, que nunca nos deixa indiferentes. Às vezes diz mais uma frase isolada do que alguns de nós em longos e amargos parágrafos”. E não se esconde a admiração por Aquilino, o sábio criador verbal que remexer fundo na linguagem e traz a superfície a nova língua portuguesa”.


Lembrando o seu tempo em terras de Espanha, o cronista afirma: “Pudesse eu ter meios para tanto, vinha viver aqui, podendo em Barcelona ser português, espanhol e catalão, em simultâneo, desde sempre, para sempre”. Há um sentido especial de grandeza, na arquitetura e no urbanismo, que nos aproxima de sermos ibéricos. Eu conheci melhor João de Melo nas andanças da Educação. Tive grande gosto em contar com a sua colaboração numa ideia com virtualidade indiscutíveis – usufruir da experiência dos escritores e artistas em itinerância nas escolas. Diz-nos João de Melo: “Fui um professor seguro da sua competência e dos seus deveres. E dos seus afetos. Revi nos alunos não a minha juventude mas a deles num país a abrir-se a novas práticas pedagógicas, novos direitos no exercício da experiencia escolar e democrática. A vida dividiu-me entre a docência e a literatura. Passei a ser o ‘escritor da Escola’”. A escola primária da Achadinha não se esquece e as raízes estão sempre presentes, entre mil afetos. Essa ligação à terra e à casa que o viu nascer e crescer é muito forte. A cada passo vem essa recordação intensa. Mas o escritor não esquece a imposição consumista do público e a influência desse modismo nos editores. “As editoras pedem-nos romances, só romances e nada mais que romances. Instalou-se de tal ordem esta ditadura do gosto sobre a condição literária, que tudo parece adverso e exige coragem, afinco, resistência ao lado da pequena minoria que frequenta a chamada short story e ainda dela se orgulha. Como eu”. E ainda esta mentalidade resistente sente-se quando o autor se rebela quanto ao conselho de poupar por não adquirir livros em papal, em benefício de obras no império digital. João de Melo partilha connosco pertinentes reflexões sobre o mundo contemporâneo. Não esconde preocupações com as tergiversações do Presidente Trump, com as estranhas cumplicidade com Putin e com a evolução da China: “Converteu-se o PC em conquistador do capitalismo dos outros. Não se percebe o que vai lá dentro, que regime é o deles com o partido único, um regime pouco ou nada comunista que catapulta sobre nós um imperialismo económico, algo de obscuro que nos vem de longe e de cima, lá de um alto a que não chega o orgulho europeu de cada pais, e menos ainda a união da velha Europa”. O Médio Oriente é também motivo de atenção. “Em Gaza morre-se por tudo e por nada. Morrem crianças, mulheres e gente velha só por isso: por existirem”. Por outro lado, “Ninguém sabe até onde irá Putin na sua sanha antieuropeia. O déspota do Kremlin começo a ameaçar-nos com as suas bombas atómicas. E com uma terceira guerra mundial. Morre gente tão boa, dia a dia – e o escroque sempre tão cheio de saúde e de veneno”. O perigoso mundo continua a rodar e as perplexidades vão-se acumulando, ao ritmo de um diário… É tempo de atenção e cuidado.   


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  
De 20 a 26 de outubro de 2025


No encerramento das comemorações do segundo centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco (1825-1890), a sua memória deve ser recordada.


Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.


Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.


O romancista compreendia bem que não é possível entender o teatro humano sem referências históricas. Nesse sentido, quem melhor conhece Camilo sabe que era um bibliófilo com provas dadas e que o estudo da História foi sempre uma constante da sua vida intelectual. Por exemplo, Oliveira Martins tinha especial admiração por Camilo e considerava o parecer do romancista como marca de grande rigor, quer quanto ao conteúdo quer à formulação e ao idioma. Sabemos mesmo que no caso da História de Portugal o historiador procedeu a correções ou precisões a partir da opinião camiliana, já depois da publicação da primeira edição da obra. E o certo é que estamos perante um exímio leitor e um criterioso crítico. É exemplar o modo como presenciamos a integração dos textos na matéria e no período a que dizem respeito. O profissional da escrita surgia assim como um executor exímio da sua arte e um mestre artífice disponível para partilhar com outros que ele respeitasse os seus conhecimentos e as fontes de que dispusesse. A feitura da História de Portugal constitui exemplo sobre como o autor constrói as suas obras. Os elementos disponíveis que chegaram aos nossos dias não mostram a versão original da obra, que se terá perdido nas andanças tipográficas, mas permitem tomar contacto com uma cuidada e meticulosa intervenção do escritor, em especial na revisão e nos acrescentos a que procede. Como diz Eduardo Lourenço, dando sequência à leitura camiliana: «num século tendencialmente positivista, Oliveira Martins é ao mesmo tempo hiper-racionalista e intuicionista. Ou mesmo mitólogo. […] Sobretudo, num tempo genericamente eufórico e culturalmente humanista a ele propõe — a meio caminho entre Schopenhauer e Nietzsche — uma espécie de pessimismo não niilista, mas trágico pelo papel que confere aos indivíduos e em particular aos representativos — de responder à Fatalidade em termos de vontade e de energia, introduzindo assim o humano, mesmo se precário ou vão, no não humano». E o romancista afirma que “nesta História de Portugal há a largura dos grandes aspetos sociais dados a factos que pareciam pequenos e escurecidos em meio de outros mais característicos”. O historiador generaliza luminosamente “com uma grande harmonia de plano organizador, agrupando factos desconexos talvez com a cronologia, mas moral e politicamente harmónicos. Em poucos traços essenciais resume-se um período de história, uma anedota, um caso despercebido e sem o selo de notável importância sociológica, tratado (…) consoante o modo familiar de Taine, abre-nos a porta da vida íntima de uma época”, juntando ironia e realismo. E se um crítico disse que a História se lia aprazivelmente como um romance, o certo é que tal não pode ser levado à conta de um demérito. De facto, e esta História lê-se devagar e atentamente, devendo ser melhor entendida e apreciada por aqueles que houvessem colhido uma imperfeita, senão falsa, compreensão da vida portuguesa no estudo das crónicas. E Camilo não se impressiona com as quebras eruditas, já que na obra no seu todo prevalece a argúcia crítica e a visão do conjunto e do fundamental. E assim descobrimos no genial romancista o leitor atento do poderoso cultor da História com compreensão do essencial das personagens e dos acontecimentos. Camilo Castelo Branco está vivo na sua obra e no seu testemunho. Olha-nos ainda com intuição extraordinária, e não o esquecemos. 


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 6 a 12 de outubro de 2025


A Escritaria de Penafiel homenageia este ano Maria do Rosário Pedreira e a sua obra.


«Os meus livros são quase sempre terapêuticos. Quer os romances quer os livros de poesia correspondem sempre a momentos em que preciso tirar de dentro de mim coisas que me estão a fazer bem. O romance “Alguns Homens, duas Mulheres e Eu” (1993) correspondeu a uma morte na minha família, a primeira ‘importante’ e pesada. Acho que precisei escrever esse livro para poder falar dessa morte com outras pessoas, que também não eram capazes de falar. Um romance é uma coisa muito exigente. Como dizia uma famosa escritora, num romance os personagens levantam-se connosco de manhã e deitam-se connosco à noite. Eles não nos abandonam um único minuto do romance, enquanto estamos a escrever o romance. O mesmo não acontece com a poesia. Um poema pode-nos ocupar uma semana, mas nunca ocupará três anos”. Quem o diz é Maria do Rosário Pedreira dando-nos um sinal de sinceridade, de exigência e de rigor não só na criação literária, mas também numa espécie de cidadania cultural, que nos obriga a olhar a literatura como um modo de participar na emancipação da humanidade. De facto, quando se recria a vida participamos num esforço vital de nos assemelharmos ao Criador das religiões. Fazemos reviver o “Deus ex Machina” que nos coloca na situação singular de encararmos o mundo da vida não como um lugar de determinismos, mas como um horizonte de liberdade em que cada um de nós procura encenar condições para podermos ser melhor libertando-nos de um cego fatalismo.


Vivendo numa sociedade imperfeita, temos sempre a nosso cargo a tarefa de nos tornarmos melhores, através do respeito mútuo e da liberdade. O livre arbítrio é assim a matéria-prima do romancista mesmo que condene as suas personagens a seguir um qualquer determinismo. Com efeito, o romancista tem a possibilidade de recompor a realidade num diálogo entre ele, as pessoas que cria e o mundo que o cerca. Todos estes ingredientes estão sempre presentes na criação romanesca. Considerando o caso de Maria do Rosário Pedreira, a obra da poeta, da romancista, da ensaísta e da editora, ou seja, descobridora de novos talentos literários, liga-se intimamente à capacidade de desassossegar os espíritos em nome da atenção e da aprendizagem da vida. Ouvindo-a, cada passo, a autora apresenta uma coerente preocupação com o superar da mediocridade e da indiferença. Assim afirmou há pouco: “as redes sociais, como dizia Umberto Eco, deram voz a todos os imbecis e portanto hoje toda a gente acha que pode publicar um livro”. Ora, deste modo, torna-se fundamental considerar a necessidade de ultrapassar o corriqueiro. Para tanto, importa ler, e ler melhor. Só poderemos ser anões aos ombros de gigantes, se soubermos considerar a qualidade da diferença. Compreendemos que a leitura significa o contacto e o conhecimento de quem nos antecedeu – a memória significa entender o movimento da vida, o que recebemos e o que transformamos, naquilo que Edgar Morin considera ser a metamorfose como a ligação complexa entre a raiz e a utopia. Desde onde provimos até ao horizonte de exigência para sejamos melhores.


«Desde muito cedo que escrevo poesia (diz-nos a escritora) e, portanto, diria que é a minha forma presencial de comunicar as coisas que preciso tirar de dentro de mim. Devo dizer que me sinto muito mais criadora a partir do que me é dado, do que uma criadora a partir do zero». No entanto essa tábua rasa não existe. Daí recordar que a literatura em todos os tempos “fala basicamente de duas coisas: o amor e a morte”. Por isso, não seria precisa muita coragem para falar de amor, que engloba todos os desejos… Há um poema, em “Nenhum Nome Depois” (2004), que é bem revelador do grande mistério da comunicação poética de Maria do Rosário Pedreira – o encontro entre a memória e o desejo. Dir-se-ia que a solidão reclama o encontro impossível.  “Pai, dizem-me que ainda te chamo, às vezes, durante / o sono – a ausência não te apaga como a bruma / sossega, ao entardecer, o gume das esquinas. Há nos / meus sonhos um território suspenso de toda a dor, / um país de verão onde não chegam as guinadas da morte e todas as conchas da praia trazem pérola. Aí / nos encontramos para dizermos um ao outro aquilo que pensámos ter, afinal, a vida toda para dizer; aí te / chamo, quando a luz me cega na lâmina do mar, com / lábios que se movem como serpentes, mas sem nenhum / ruído que envenene as palavras: pai, pai …”. É o grande enigma da memória que aqui se apresenta. A solidão e o amor reclamam que a impossibilidade do encontro dê origem à revelação pela palavra da grande ausência, pois “o pesadelo é a vida onde já não posso dizer o teu nome”.

 

Escritora multifacetada e fecunda, encontramo-la na literatura juvenil, que captou muitos novos leitores, mas também na pedagogia, até na divulgação científica, e em tudo o que os livros podem revelar. Aliás, ao ouvirmos as suas palavras cantadas na boca de Carlos do Carmo, de Aldina Duarte, de Ana Moura, de Carminho, de António Zambujo ou de Salvador Sobral, podemos entender que elas vão-nos ensinando sobre a essência lírica do fado de Lisboa, que com o tempo deixou de recordar desventuras, para poder ir ao encontro da lírica ancestral…   


Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 29 de setembro a 5 de outubro de 2025


Esta semana, Ruben A. estará presente na Fundação Gulbenkian, com apoio do Centro Nacional de Cultura e da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa num debate que promete muito intitulado “O Incrível Ruben A.”

 


 

“A Torre da Barbela” (1ª edição, 1964) é uma obra-prima barroca desconcertante, no melhor sentido etimológico das palavras. O uso do verbo e do enredo é muito exigente e só um historiógrafo experimentado poderia ter lidado, como lidou, com o anacronismo com tanta inteligência e sem despropósito. Tudo começou na Casa de Esteiró (Caminha), com Maria do Patrocínio e José Manuel Villas-Boas, quando estes “contaram a história virtuosa de duas irmãs, da casa de Sestêlo, que, cansadas de uma longa vida de oração e prática de virtudes, resolveram pecar”. Pouco antes da morte, “confessaram ao Abade de Moutosa que não queriam entrar no Purgatório de almas lavadas”. Por que motivo? “Se assim o fizessem, seria grave ofensa às almas que lá estavam penando”. Pecar seria, afinal, um último ato de virtude – “só assim continuava no outro mundo o seu exemplo de modéstia e humildade”. Ruben A. pegou no tema, desenvolveu-o imaginosamente e criou uma trama fantasmagórica, onde a História pátria surge recontada num exercício onírico, a partir de conversas, comentários, encontros e desencontros de pessoas do reino dos mortos.


“Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela um sentido incógnito da existência”. A torre medieval era um antro de acontecimentos fantásticos. “Existissem ou não estrelas, fosse breu ou luar a jorros pelos campos marginais, o mundo abria-se dividindo o tempo”. Numa palavra, “os Barbelas realizavam-se vindos do sonho e da fantasia para os reais domínios da Torre”. E esse ressuscitar transfigurava a torre. “A procissão saía a pé ante pé dos túmulos de pedra, dos sarcófagos egípcios - trazidos por Dom Payo da Barbela, quando das suas incursões por terras do Prestes João – e também da vala comum”… Ah! Havia um “caseiro papagueando frases”, sobre esses distantes Barbelas, desde Dom Raymundo (que se crê tenha sido “o primeiro grande home da família da Torre”), coevo de Dom Afonso Henriques, seu primo colateral. São 350 páginas de imaginação delirante e de um humor muito fino, capazes de nos explicar limitações ancestrais. Cavaleiros verdadeiros e falsos, honra e prosápia, beatos e hereges, força e decadência, deparamo-nos com de tudo um pouco, até àquele limiar da aurora em que todo esse mundo tinha de regressar ao encanto da imobilidade. O Cavaleiro, Madeleine, Dom Raymundo, Frey Cyro, Dona Mafaldinha, Urraca, Dr. Mirinho… “Os Barbelas, ao aproximar do dia, a vidência da luz, apareciam também humanos na sua imortalidade noctívaga, no reino absoluto impenetrável das suas relações, eles tinha de voltar à morte”. E quem tenha querido passar o umbral proibido que separa a noite do dia, obteve a pena capital do esquecimento. “Desapareceram. A história do seu anonimato está por contar”. Quantos rumores nossos se ouvem na história dessa Torre…


Numa palavra, este debate promete muito, porque Ruben A. teve uma vida plena de reflexão e de ação persistentes sempre em prol da cultura como realidade viva e uma especial atenção ao património cultural, material e imaterial, natureza, paisagem, tecnologias e criação contemporânea. Longe de uma ideia retrospetiva, estamos perante um conceito aberto e dinâmico virado para o futuro, para que se preserve quem somos, donde vimos, para onde vamos.


Guilherme d'Oliveira Martins

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"A PEQUENA BIBLIOTECA"

  


Ao ouvirmos e vermos, semanalmente, Filipa Leal a falar-nos de livros na RTP-2 em “A Pequena Biblioteca”, estamos perante serviço público de televisão ao melhor nível. Além de usufruirmos de textos belíssimos, contamos igualmente com sugestões de leitura essenciais. E uso a palavra essencial no sentido mais puro, que nos reporta aos tempos primordiais da arte. E António Mega Ferreira fala-nos de autores e de livros capazes de abalar os tiranos e os deuses. Num tempo limitado, de um modo sereno e equilibrado, num cenário atraente, podemos tomar contacto com obras-primas da literatura. Estamos perante o melhor método para enaltecer a leitura. Não há excessos, não há palavras a mais, nem temas em excesso. Temos o quanto bastante para o melhor deleite. Parte-se de um pequeno livro, acessível a qualquer leitor, e com esse pretexto abre-se-nos o acesso à obra, ao autor e à evidência sobre o grande prazer na leitura. Quando encontrámos Thomas Mann em “Morte em Veneza” pudemos em poucos minutos ter a demonstração da genialidade do autor, a evocar Platão no “Fedro” e a abrir caminho ao grande debate sobre as ideias e o mundo da “Montanha Mágica”. Nada foi necessário dizer sobre essa obra magna, mas fica a semente da curiosidade para quem ainda não leu ou conhece mal o autor. E assim convivemos com figuras fascinantes, como “Alexis” de Marguerite Yourcenar, “Lappin e Lapinova” de Virgínia Woolf,  “Cândido” de Voltaire, “Ivan Illitch” de Tostoi, “O Estrangeiro” de Albert Camus, “Três Mulheres” de Silvia Plath (que nos permite reencontrar Agustina). Os livros sucedem-se, naturalmente. “Ninguém escreve ao Coronel”  de Gabriel Garcia Marquez; “O velho que lia Romances de Amor” de Luís Sepúlveda; “O Estranho Caso de Benjamin Button” de Scott Fitzgerald; “O Tesouro” de Selma Lagerlof; ou “O Fim de Lizzie e outras histórias” de Ana Teresa Pereira, e seguimos fascinados essa cadeia fabulosa.

Em cada nova terça-feira, preparamo-nos para receber um inesperado presente, compreendendo que um livro é sempre uma janela aberta para a vida e para o mundo. O pensamento torna-se emoção e a emoção que torna-se pensamento. E assim percebemos o antigo papel do poeta ou do contador de histórias, de falar para as pessoas. Com surpresa, deparamo-nos com a ambiguidade certeira do orador de Franz Kafka no “Relatório a Uma Academia”. Quem nos fala? Pode um símio interpretar o género humano? A literatura tem essa virtude de revelar os mistérios escondidos que povoam o universo. Umberto Eco ensinou-nos a entendê-lo e James Joyce, em “Os Mortos”, leva-nos a conviver com todos os que povoam a nossa memória, presentes ou ausentes. Jane Austen escreve “Amor e Amizade” com apenas quinze anos, em 1790. Mas tal é perspicácia que G. K. Chesterton a compara a Shakespeare. É uma romancista realista crítica dos românticos, descrita ironicamente como autora de uma “sátira sobre a fábula em que a mulher desmaia”, aludindo aos efeitos visuais de bombásticas declarações de amor. Muito mais do que isso, Laura e Marion dialogam entre si, na diferença das gerações, e apercebemo-nos dos importantes nadas de que nos falam e que constituem a sua vida. Aí está a virtude da leitura, não como evasão mas como demanda de nós mesmos, nas verdadeiras peregrinações interiores que nos trazem à realidade e ao sonho.   


GOM

A VIDA DOS LIVROS

  

De 8 a 14 de setembro de 2025


Mário Cláudio acaba de publicar “Cruzeiros de Inverno” (D. Quixote) que acompanha os dias finais de três personagens, procurando, de modo impressivo, revelar-nos as razões que acompanharam tais destinos.


Carlos Loureiro Relvas foi o segundo filho de José Relvas, o político republicano que proclamou em 5 de outubro de 1910 o novo regime da varanda dos Paços do Concelho de Lisboa. Nasceu na Golegã em janeiro de 1884 e frequentou em Leipzig o Curso Superior de Piano, vindo a tornar-se um intérprete dotado com um futuro promissor. A partir de 1911 acompanharia seu pai na gestão agrícola da Quinta dos Patudos, deixando assim a carreira de pianista profissional. A célebre Casa de Alpiarça está marcada, assim, pela sua fatídica presença, que constitui a base da primeira novela deste livro, uma vez que foi aí que o protagonista pôs termo á sua vida em condições misteriosas. “Sentado ao lado do pai, mas cada qual à sua secretária, Carlos Loureiro Relvas trilhava, com a segurança possível, a correspondente fortuna, o caminho da gestão de propriedades. Despachava além disso as diligências de que o progenitor o incumbia no respeitante à compra, à venda, ou à troca das antigualhas da prestigiosa coleção”. No entanto, isso era muito pouco, numa sucessão de gerações célebres: Carlos, avô e notável fotógrafo, o grande agricultor; o pai, o ícone da República nascente, diplomata celebrado, sombra que desejava marcar o futuro do filho. Sente-se a pressão paternal, algo doentia, sobre o jovem ex-pianista. Teria de arrumar-se e um casamento arranjado haveria de garantir a continuidade da dinastia.  No espírito do jovem, porém, ouvem-se os acordes dramáticos da “Gôndola Negra” de Liszt. Todavia, “com o casamento previsto do ex-pianista o compositor ficaria liquidado, cadáver dentro de um piano silencioso, convertido em múmia que proferiria a sua maldição pelo abandono a que fora votada”. A correspondência de Carlos com o capitão Francisco Almeida Moreira revela o drama íntimo e a incompletude. E a catástrofe de 14 de dezembro de 1919, o tiro fatal que lhe atingiu o coração, deixou um nebuloso enigma. “A bala não lhe atravessou a têmpora, a punir o cérebro que pensara demais, mas varou-lhe o coração, a ordenar a fuga a um destino de contínuas palpitações”…

O segundo relato, traz-nos a memória de uma mulher extraordinária, cujo nome está assinalado na frontaria da casa da Calçada dos Caetanos onde viveu e morreu, que alberga um número extraordinário de recordações célebres, como não há mais em Lisboa. A “Menina Sentada” constitui o centro desta obra de Mário Cláudio. Ofélia Marques é o símbolo. Se Carlos Loureiro Relvas não foi indiferente aos “Ballets Russes”, que alguns viram com distância, a jovem artista participou ativamente nesse movimento imparável de renovação da Arte que invadiu a Europa e de que “Orpheu” fez parte integrante. Quando se descobre o conjunto da obra de sua autoria, desde as referências infantis até ao humor acutilante, passando pelos autorretratos, pela feminilidade sensual, além de um especial afeto pelos gatos, apercebemo-nos de uma sensibilidade única. Foi pioneira na frequência da Universidade e a sua relação com Bernardo Marques constitui uma referência no segundo modernismo. Na vizinhança de Fernanda de Castro e de António Ferro, aí existiu o “Soviete dos Caetanos”, como ficou conhecido esse ponto de irradiação cultural. No local de tantas alegrias e cumplicidades, ocorreria a morte trágica da menina artista, cujas ilustrações povoavam o “Panorama” e as revistas femininas, como a “Eva”, mas também as publicações infantis, como o “Abecezinho”. Chamada à pressa numa manhã habitual, a amiga subiu a escada sobressaltada e compreendeu o drama sem o entender: “Alguns dos gatos que a finada estremecia, e a que devotava cuidados patentemente maternais, enroscavam-se à volta da senhora imóvel (…) Fernanda de Castro tomou sentido do frasco desarrolhado, e do copo com um fundo de líquido, na mesinha-de-cabeceira e apropriou-se da droga com um rápido gesto, de quase cleptómana…” O médico legista escreveria na certidão de óbito, motivo da morte: ingestão de excesso de barbitúricos. Quando usufruímos dos desenhos gentis de Ofélia e Bernardo Marques não adivinhamos esse final pungente. Contudo, desde que o casal se separara, já Fernanda de Castro notava naquele segundo andar um clima de luto. Morta a artista, seguimos o relato do romancista de uma tentativa de reunir o seu espólio. E adivinha-se a própria existência de Ofélia. “A pintora divide-se assim entre as amigas do piso de baixo, frequentando-lhes as reuniões com fidelidade que roça a tristeza, e o grupo dos companheiros de Bernardo Marques, movendo-se num gregarismo menos difuso, e mais saudável. Proíbe-se de lhe relatar as surpreendentes extravagâncias, e as delícias imprevistas, dos encontros do andar inferior”. Aquele gineceu constituído por cultoras das letras e artes era um lugar de culto da poesia… Ofélia não se recompôs da separação de Bernardo, havia mil recordações e o vazio da maternidade. O tempo era inexorável. Um dia acreditou vislumbrar a mulher com quem Bernardo se casara. Todavia, “a outra não reparou, e de volta a casa, recomposta já, Ofélia subiu devagar os degraus, entreouvindo a recitação das estrofes, e o tinido das chávenas, nos aposentos da poetisa. Uma das gatas parira entretanto, e a pintora ajoelhou, a dispensar à bichana os cuidados, e a agradecer a Deus a preciosa dádiva”. Na noite fatal, numa manhã gelada de Dezembro, deixou duas cartas, uma para a irmã, recomendando-lhe os gatos, e a outra para o Bernardo de outros tempos: “Neste momento quero viver vinte anos atrás, se a imaginação me não atraiçoar”.

Hécate é a divindade grega dos mistérios e do submundo. Os cães são seus fieis servidores. A terceira novela está envolta de incerteza. Um velho Ministro, de existência real, está preso de um amor impossível, de alguém irremediavelmente condenado por uma doença fatal. O destino marca-o definitivamente. Apesar de ter sido influente, com um lugar indiscutível na História, com os louros de abrir o país ao mundo, vê-se no exílio perseguido pelos fantasmas de um labéu infamante e de um destino cruel. “Derrubou-o então a notícia da morte da noiva eterna, ocorrida na assética arrecadação de corpos para que alguém a despachara”. Isso condenou-o definitivamente à ausência de um sentido. E não há forças que permitam reerguer-se. Um quadro de Chagall  fixa a atenção do antigo Ministro, “Les Amoureux de la Tour Eiffel”, que inspirará o seu ato final. Lançado no vazio, “saudoso do anjo impossível, bate no pavimento como demónio que jamais ganhará o Paraíso”.     


Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

  
    De  11 a 17 de agosto de 2025


“Diário da Ucrânia – Ali está o Taras Shevchenko com um Tiro na Cabeça” de Ana França (Tinta da China, 2023) é um relato impressionante e apaixonante do início da invasão russa, que infelizmente continua. Como terminará?

 


Conhecemos a Ucrânia e a sua história. Nesta “Vida dos Livros” recordámos a biografia de Taras Shevchenko (1814-1861), símbolo da Ucrânia Independente, poeta, pintor, desenhador, artista e humanista – fundador da Literatura moderna ucraniana. Esse texto data de 2019, na sequência da Revolução da Dignidade, que teve início nas violentas manifestações de protesto conhecidas como Euromaidan contra o Presidente Viktor Yanukovych, que deram lugar à deposição deste.  Este diário permite-nos revisitar a saga deste povo, cuja independência resulta de acontecimentos marcantes que devem ser lembrados. Raquel Vaz-Pinto no Prefácio dá-nos as razões para lembrarmos os acontecimentos recentes e para concluir que a narrativa oficial russa de Putin é errónea e baseia-se na tentativa de adulteração da História. Ana França relatou para o Expresso a invasão da Ucrânia de 2022. Nos primeiros contactos que tive com a Ucrânia não encontrei uma tão evidente consciência nacional como agora. Havia os russófilos e os europeístas, consoante sobretudo estivessem na zona oriental ou na zona do centro-oeste. Mas a invasão russa de 2022 teve uma consequência mobilizadora, pois os ucranianos viram o seu lar invadido e a sua liberdade e autonomia postas em causa.  


Com uma longa história, Kiev ou Kyiv, capital da Ucrânia, é uma das cidades mais antigas e com maior riqueza histórica da Europa Oriental, tendo passado por diversas fases de notoriedade e de decadência. Ucrânia significa, por isso, fronteira. A urbe foi fundada pelo menos no século V da nossa era, como um entreposto comercial, tendo ganho progressivamente importância, a ponto de se tornar o centro da civilização eslava oriental, até passar a ser a capital política e cultural entre os séculos X e XII. Importa lembrar que a Igreja Ortodoxa Russa se afirmou com especial intensidade no século IX em Kiev, lugar onde, segundo a tradição, Santo André teria profetizado a criação de uma grande e influente cidade cristã. A idade de ouro ucraniana correspondeu, assim, aos anos 800 a 1100. Tratou-se do reinado de Vladimir, o Grande, que levou o Estado eslavo no sentido do cristianismo bizantino. Daí que o nascimento da Terceira Roma tenha tido as suas raízes em Kiev, ainda que, com a queda de Constantinopla (1453), Moscovo se tenha afirmado como sucessora de Roma, em virtude de Kiev estar numa fase de subalternização. De facto, Kiev foi completamente destruída pelos mongóis em 1240, tendo então perdido grande parte de sua influência. Tornou-se então uma capital de província de relevância limitada na periferia dos territórios controlados por vizinhos mais poderosos: o Grão-Ducado da Lituânia, a Polónia e a Rússia. Em meados do século XVII o quase Estado cossaco em Zaporíjia foi formado por habitantes do Dniepre e por rutenos fugidos do domínio polaco. E assim os cossacos tornaram-se uma força opositora útil contra os turcos otomanos e os tártaros da Crimeia. Nas partilhas da Polónia do final do século XVIII, entre a Prússia, Áustria e Rússia, o território ucraniano foi dividido entre o Imperio Austríaco (a província da Galícia) e o Império Russo (parte oriental).  Entre 1853 e 1856 teve lugar a Guerra da Crimeia que envolveu o Império Russo contra a aliança composta pelo Império Otomano, França, Reino Unido e Reino da Sardenha. Finda a guerra o Czar Alexandre II reconheceu-se derrotado, aceitando um conjunto de limitações estratégicas no Mar Negro, que viria a recuperar.


A cidade apenas voltou a prosperar com os primeiros sinais da revolução industrial russa no final do século XIX. Após o período turbulento que se seguiu à Revolução Russa de 1917, Kiev passou a ser uma cidade importante da República da Soviética da Ucrânia e, a partir de 1934, sua capital. Durante a Segunda Grande Guerra, Kiev voltou a sofrer danos pesados, mas recuperou no pós-guerra, continuando a ser a terceira maior cidade da Federação Russa. Em 1932-33 teve lugar a grande fome de Holodomor, com cerca de 10 milhões de ucranianos mortos, como penalização imposta pelo regime soviético contra a resistência popular. Em 24 de outubro de 1945, a Ucrânia foi aceite como membro das Nações Unidas com a Belarus, conseguindo assim o então bloco soviético três votos formais. Com o colapso da União Soviética e a independência real da Ucrânia em 1991, Kiev manteve-se como capital do país, recuperando importância. No território ucraniano tinha tido lugar o trágico acidente nuclear de Chernobil em abril de 1986 com um número incerto de vítimas. Em 2004 teria lugar a Revolução Laranja de orientação democrática que trouxe ao poder Viktor Yushchenko e Yulia Tymoshenko. O confronto com a Rússia a propósito da escassez do fornecimento de gás em 2006, abriria nova crise que culminaria com a eleição do pró-russo Viktor Yanukovych como Presidente (2010). Face à recusa deste em assumir uma orientação favorável a uma aproximação à União Europeia, abriu-se uma forte contestação popular, é o Euromaidan (novembro de 2013) que culminaria com a destituição de Yanukovych pelo parlamento, após os tumultos sangrentos. Em março de 2014, a Rússia anexa a Crimeia. Em maio foi eleito Petro Poroshenko, que viria a assinar os acordos de Minsk (2014-15) que marcaram o fim temporário da Guerra em Donbas contra as forças separatistas pró-russas em Donetsk e Luhansk. Poroshenko não foi reeleito em 2019, perante a vitória esmagadora de Volodymir Zelensky.


Apesar de diversas tentativas ucranianas no sentido de evitar o agravamento do conflito, Putin anunciou a 24 de fevereiro de 2022 uma operação militar especial no Donbas. Misseis russos atingiram vários alvos militares na Ucrânia e Zelensky declarou a lei marcial. “Sabíamos que a Rússia podia tentar atacar e conquistar mais território, mas estamos perante uma tentativa de anexação, pura e dura”. Há assim uma operação de conquista, que passa por derrubar o poder legítimo em Kiev. O Presidente Zelensky sobrevive a três tentativas de assassinato: duas perpetradas pelo Grupo Wagner e uma pelo Kadyrovtsy. Putin esperava uma ação rápida com rendição do governo ucraniano e mesmo os serviços secretos norte-americanos previam uma ação relâmpago de 96 horas… Pelo contrário, Zelensky resiste. “Porque realmente há  momentos que mudam um povo inteiro, que oferecem uma luz comum a todos, e para nós esse momento chegou, ninguém sai da linha” – diz um dos ucranianos retratado no livro. Aqui encontramos uma guerra relatada a quente. Cada um dos locais da cidade torna-se quimérico. O Mosteiro das Cúpulas Douradas de S. Miguel lembra mil anos de vida e em dezembro de 2013 Ivan Sydor coordenou o bater dos pêndulos da uma às cinco da manhã sem parar. Desde a invasão dos mongóis que os sinos não dobravam durante tanto tempo. Quase 800 anos depois, 130 pessoas morreram, incluindo polícias, nestas mesmas ruas. “Não há outra capital no mundo onde se tenha morrido pelo desejo de pertencer à União Europeia, que me lembre”. Algures Ana França pode dizer: “Ali está o Taras Shevchenko com um tiro na cabeça. Pode ter sido fogo cruzado, até fogo amigo, mas o busto de Taras Shevchenko, um poeta tão importante que até se mudou o nome de uma rua nova-iorquina, em 1978, no bairro dos ucranianos, em sua honra, tem um tiro do lado esquerdo da testa, de quem olha de frente para a estátua, na Praça Central de Borodyanka”… Este livro é um antídoto indispensável ao “lodaçal de propaganda” que por aí anda… 


Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

  
De 4 a 10 de agosto de 2025


“Muito para Além do Mar – Uma Nova História dos Descobrimentos Portugueses” de José Manuel Garcia (Presença, 2025) constitui oportunidade para compreender a gesta dos Descobrimentos a partir da realidade histórica e não de uma perspetiva idealizada ou de uma mera projeção dos acontecimentos na contemporaneidade.


ESTA PALAVRA DESCOBRIMENTOS
Antes do mais, importa tornar claro que a palavra Descobrimentos é utilizada pelos portugueses desde 1486, com o sentido de revelar e permitir o melhor conhecimento do mundo. Não se trata de fazer tábua rasa dos conhecimentos históricos de muitos séculos e de muitas culturas. Trata-se de assumir a perspetiva científica em termos de partilha de uma humanidade que toma consciência das responsabilidades comuns no tocante ao saber. Quando pensamos em cientistas como Pedro Nunes, Garcia de Orta e D. João de Castro estamos a considerar uma nova perspetiva de estudo e compreensão do que existe. Recorde-se que o Atlântico era desconhecido dos europeus, que sabiam mais da Índico e da Ásia do que daquilo que lhes estava mais próximo. Sobre o conhecimento, Camões disse melhor que ninguém “Não meças o passado com o presente” (Elegia, I). A História humana é sempre uma realidade complexa com claros e escuros, por isso torna-se essencial realizar um estudo rigoroso, capaz de abranger a complexidade, não abstraindo os passos positivos que são dados e que não podem esconder as análises de contexto, de enquadramento e as mentalidades.


A historiografia permite-nos, no fundo, entender as condicionantes diversas com que contamos, sincrónicas e diacrónicas. Ora, as orientações que os portugueses recebem quando vão para a Ásia são no sentido de estabelecer relações pacíficas com os indianos e com as outras populações asiáticas. A população muçulmana constitui uma exceção, em virtude de serem fortemente competitivos, dedicando-se ao comércio do Índico, em vantagem sobre os hindus, em virtude da existência para estes de castas, que dificultavam a organização do transporte marítimo. Se Afonso de Albuquerque nos é apresentado como terrível pelo épico, tal deve-se aos interesses divergentes dos portugueses com os muçulmanos, que correspondem às conquistas de Goa ou de Malaca e à evolução no Golfo Pérsico.


RAZÕES RELIGIOSAS E ECONÓMICAS
Há aspetos religiosos e económicos que prevalecem. O estabelecimento da feitoria de Calecute por Pedro Álvares Cabral, a influência portuguesa em Cochim, bem como a inexistência de resultados prévios da missão diplomática decidida por D. João II com Pero da Covilhã e Afonso de Paiva, tudo isso obriga ao estudo das diferentes condicionantes que determinam a evolução dos acontecimentos. As motivações das viagens são múltiplas e originalmente positivas. Antes do mais, há a curiosidade de conhecer novas realidades, mas as razões económicas tornam-se marcantes. A queda do Império Romano do Oriente, a conquista de Constantinopla pelos turcos, limitando as relações com o Levante e a Ásia tornam-se decisivos. Recorde-se que em 1453, ainda vivia o Infante D. Henrique, que morre sete anos depois. O fator religioso pesa indiscutivelmente. A cristianização do mundo tem importância. Mas a maior consequência é o vislumbre, pela primeira vez, de um mercado global. Daí falar Toynbee da era gâmica a partir de 1498. Assim, foram os descobrimentos “que constituíram a revolução que marcou a passagem da medievalidade para a modernidade”. Mas é a motivação económica que prevalece. Lembramo-nos da afirmação à chegada à Índia: “vimos à procura de especiarias e de cristãos”. Desde muito cedo, a comunidade de S. Tomé tinha-se estabelecido no sul do subcontinente indiano. A Rota do Cabo da Boa Esperança (a partir de Lisboa)  permitiu a realização do comércio diretamente com a população indiana, chinesa e japonesa sem a intermediação das caravanas.


ALÉM DO CABO BOJADOR
Depois de dobrado o Cabo Bojador, com o Infante D. Henrique rumando a sul, as navegações ganham condições de continuidade e financiamento através do ouro, da malagueta, sucedâneo da pimenta, dos escravos e do marfim. A partir das razões indicadas por Gomes Eanes de Zurara, desenvolve-se o que será designado como Plano da Índia de D. João II e D. Manuel. Foi D. Manuel o primeiro soberano à escala global. Lisboa tornou-se o primeiro grande centro de comércio mundial, tinha um poder à escala global – do Brasil até à China, à Indonésia, passando pela Índia e por África, Contudo a população portuguesa na Península Ibérica era apenas de um milhão e duzentos mil habitantes. A obra de José Manuel Garcia está organizadas em três partes – o espaço do Atlântico, o espaço do Índico e o espaço do Pacífico. O autor revisita os feitos emblemáticos dos portugueses desde o tempos do Infante D. Henrique até à chegada ao Japão, passando por grandes momentos como o descobrimento do caminho marítimo para a Índia, a chegada ao Brasil e a discussão das consequências dos Descobrimentos, nos planos nacional e global. Procura-se, deste modo, partir de fontes históricas credíveis e de provas consistentes para corrigir mitos e interpretações erróneas, evidenciando o significado universal da ação dos portugueses, designadamente na ligação entre povos e culturas no sentido do respeito e salvaguarda da dimensão universal da dignidade da pessoa humana. «Nos séculos XV e XVI, os portugueses, ao descobrirem o essencial da forma do planeta, criaram e estimularam uma rede mundial de rotas que passaram a ligar inúmeras regiões que até então não comunicavam entre si. Foram eles quem permitiu a realização de intercâmbios que marcaram a construção da modernidade, com todas a implicações inerentes a tal situação. Os Descobrimentos levaram à génese da economia moderna, a qual passa pela criação do mercado mundial”. Como lemos em Zurara, “a ideia era ultrapassar os limites do sabido e arriscar a revelação completa do mundo, sendo que o mais difícil foi começar, pois de seguida foi continuar empenhadamente e com esforço a arriscar ir sempre mais longe”. É importante ouvirmos Garcia de Orta dizer: Digo que se sabe mais em um dia agora pelos portugueses, do que se sabia em cem anos pelos romanos”. E no mesmo sentido, foi Pedro Nunes quem disse: “Não há dúvida que as navegações deste reino de cem anos a esta parte: são as maiores: mais maravilhosas: de mais  altas e mais discretas conjeturas: que as de nenhuma outra gente do mundo”.


Com grande cópia de informações novas, o autor, historiador com provas dada na Academia, dá-nos um panorama global que nos permite melhor perceber que a propósito dos Descobrimentos poderemos encontrar.


Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

  

De  21 a 27 de julho de 2025


Assinalamos hoje o centenário de Isabel da Nóbrega, referência marcante da literatura portuguesa contemporânea.
 


Isabel da Nóbrega evidenciava-se pelo olhar penetrante que tudo captava, que tudo dominava, como se pudesse ler no interior das coisas e das pessoas. Quando ao lado de Maurício de Oliveira e de Mário Neves participou na fundação de “A Capital” em 1968 trouxe consigo uma já longa experiência literária de Os Anjos e os Homens (1952); O Filho Pródigo ou o Amor Difícil (teatro) (1954), peça representada no Teatro Nacional D. Maria II e sobretudo o romance Viver com os Outros (1964); prémio Camilo Castelo Branco da Sociedade Portuguesa de Escritores. Óscar Lopes saudara com entusiasmo o romance de Isabel da Nóbrega, afirmando que revelava “um equilíbrio estético entre nós invulgar. A narrativa sugere um grande, um inesgotável conhecimento dos casos e das coisas vividas, textos religiosos e literários, terminologias científicas, problemas de casuística familiar, conhecimentos colhidos em campos heterogéneos de convivência ou de informação que os jornais não registam, colhidos em viagens, leituras e arte, uma fina perceção de motivações, sobretudo femininas. Eis uma classificação exemplificativa do senso da realidade que o livro mobiliza. Até as frequentes referências a escritores, artistas e outras personalidades portuguesas vivas contribuem para a sua densa aura de verosimilhança, de sincera inserção social”. Tudo isto era novo e representava uma lufada de ar fresco no panorama nacional.


Conheci Isabel da Nóbrega como uma verdadeira tecedeira da língua portuguesa e da vida cultural, sedenta de vitalidade e ar puro. Ela própria afirmava: “todas somos tecedeiras. O tear é-nos entregue à partida (…), a trama da nossa vida – o desenho, o ponto e o bordado esses são connosco”. Compreendeu deste modo o que Jorge de Sena pensava: “O intelectual é quem em nome da inteligência e da cultura resiste. Mas não esqueçamos que muitos outros resistem sem serem intelectuais”. A resistência e a sobrevivência (de que falaria Nuno Júdice) na vida do comum dos mortais eram a sua matéria-prima. E assim escolheu o campo de batalha, para um combate singular e autónomo, em nome da libertação da literatura e de todos, onde a mulher tinha o necessário lugar. Para Isabel, a resistência era uma atitude natural. Quem a conheceu não poderia ser indiferente a essa sua garra, a essa sua determinação.


Desde muito cedo, encontramo-la em ação. Trabalhou na rádio, assinou milhares de crónicas, porque desse modo ela fazia da vida do dia-a-dia a matéria quotidiana. Assim, escreveu nos jornais: “A Capital”, “Diário de Notícias”, “Diário de Lisboa”, “Jornal do Fundão”, “Vida Mundial”, “O Jornal”. Consciente da importância da televisão, criou na RTP “O Prazer de Ler” e  “Largo do Pelourinho”, em nome do prazer da leitura. Logo aos 17 anos lançou as bases duma família, mas escolheu como meio de intervenção um combate emancipador. Gostava de citar Aragon, e podemos dizer que esse foi o seu lema – “Mon orgueil est d’avoir aimé! Rien d’autre”. Teve sempre uma especial atenção ao universo feminino, com caráter de urgência, com sentido pioneiro e profético. E ouvimo-la a recordar as primeiras lutadoras desse combate, Elina Guimarães ou Cristina Cunha. E sem hesitações perguntava “E nós em que ano vivemos?” Com essa pergunta punha na cidadã e no cidadão comuns a reflexão sobre o atraso em que vivíamos, nos costumes, nas leis, no reconhecimento essencial da dignidade pessoal. E insistia; não se prega a paciência, nem a resignação, mas o estudo, o trabalho, o desenvolvimento de todas as capacidade, incluindo a da lucidez. Ao olharmos as fotografias de Isabel é a luz que sentimos no seu olhar, na sua força. Quando a vemos ao lado de Sophia de Mello Breyner, de Menez ou de Ruben A. sentimos a extraordinária presença de uma luminosidade criadora. “Assustas-me Aninhas! Ao observares assim as pessoas com esse teu olhar grave e redondo, de mocho, pobre humanidade que somos nós, deixas-nos esmagados, não?” – lemos em  Viver com os Outros.


Augusto Abelaira fala de Solo para Gravador (1979) como uma viagem e um convite para não sermos espectadores distantes, para sentirmos as pessoas por dentro. Ver o íntimo de cada um nós, eis a preocupação permanente de quem considerava a literatura um poderoso fator de descoberta da liberdade. Em toda a sua vida levou os leitores e as leitoras a aproximarem-se com simpatia dos livros (que tanto amava). Tudo isso era sereno e natural. O correio dos leitores foi um domínio que cultivou e que lhe interessou especialmente – como aconteceu também com Clarice Lispector. A leitura das suas respostas é extraordinária – procurando, como grande pedagoga, mesmo os leitores mais distantes e resistentes. A cada passo procurava a compreensão dos outros com argumentos de inteligência. “Reparem (confessava), nós mulheres temos uma luta de sobrevivência que custa o dobro da dos homens. O nosso estatuto de seres entendidos (ou consentidos), na sua totalidade, é conquistado dia-a-dia, século a século, palmo a palmo”.


Isabel da Nóbrega era uma leitora insaciável. Não esqueço o seu combate pelo Campeonato da Língua Portuguesa (que gostosamente partilhei), inspirado em Bernard Pivot. A qualidade da língua, não como ofício de gramáticos, mas como dever de cidadãos, foi sempre uma prioridade da sua ação – como salientou Margarida Calafate Ribeiro. Leu Proust, amou Proust e Tolstoi, mas (como disse num dos seus contos) compreendeu bem Angelina, que não tinha lido “À la Recherche”, para quem o mais importante era o tempo em que os lilases a transportavam ao jardim da sua infância. Era a lembrança da velha casa de Campo de Ourique, infelizmente desaparecida, que nos vem à memória, como recorda Ana Maria Magalhães. E eram as Angelinas deste mundo que ocupavam o espírito de Isabel, mais do que as pessoas que tinham bibliotecas, importava as que começavam a amar simplesmente os livros. Na sua escrita há assim uma atenção permanente à mulher e à criança. No Jardim da Estrela quando passava pela pequena escola Freubel, o primeiro jardim de infância, lembrava o direito elementar a brincar, com o difícil caminho de reconhecimento que exigia, pois pressupunha a garantia à vida digna. Afinal, Isabel da Nóbrega continua entre nós, uma vez que viveu e pensou na emancipação de todos pela cultura, pelas artes, pelos livros, pela consciência dos outros e pela força poderosa da beleza e dos lilases.  


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença