Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
«Genuína Fazendeira – Os Frutíferos Cem Anos de Cleonice Berardinelli» é uma bela recordação da personalidade fascinante desta verdadeira mestra de muitas gerações.
MESTRA DE MUITAS GERAÇÕES Manuel Bandeira elogiava-lhe a voz bonita e o comentário claro e sábio. E o poeta bem conhecia, desde jovem, Cleonice Berardinelli, não apenas através das considerações sérias e avisadas em matéria literária, mas também das representações de Gil Vicente, cheias de ironia ou de sérios alertas, com voz límpida e expressão viva, animada, rigorosa e compassada. No fundo, para a professora, discípula de Fidelino de Figueiredo, a literatura era muito mais do que uma disciplina científica, fria e desenraizada, mas a expressão humanista dos sentimentos, do pensamento e da ação. Nela a ciência e a cultura fundiam-se, com naturalidade, contribuindo para que a língua como realidade viva fosse expressão fiel da vida humana. O teatro e a literatura completavam-se intimamente e permitiam entender que o idioma e a sua expressão narrativa eram tanto mais ricos quanto se conseguia ir além do formalismo através da melhor comunicação de uns com os outros. E a comunicação torna-se compreensão. Não há literatura repetitiva nem sujeita à inércia e daí que a representação dramática permita compreender melhor os segredos das palavras. Assim aconteceu com Cleonice Berardinelli que é referência fundamental no estudo e conhecimento das culturas da língua portuguesa. E assim a estudiosa compreendeu, melhor que ninguém, que a projeção global do nosso idioma obriga a entender a diversidade e a abertura, num território com muitas raízes e diversas fronteiras.
Luciana Stegagno-Picchio, quando lhe foi pedido que prestasse homenagem a Cleonice Berardinelli, entendeu oferecer-lhe metaforicamente duas ilhas, uma poética e outra cartográfica – uma ilha desconhecida e uma ilha que não há. Uma ilha Utopia e uma ilha Brasil. E se a ideia foi a de ofertar ilhas metafóricas, a razão tinha a ver com o facto de Cleonice, ela mesma, ter sido como que uma ilha no seio da cultura portuguesa na academia brasileira e, na Europa, uma ilha da cultura e da doce fala brasileira no mundo académico português. Assim, no mundo luso-brasileiro, haveria muitas ilhas para oferecer a Dona Cleo – na expressão camoniana, a Ilha dos Amores, na área pessoana, as Ilhas Afortunadas, para a paixão da viajante, a Ilha da Utopia, descoberta, segundo Thomas Morus, pelo português Rafael Hitlodeu, para o mundo da moderna literatura portuguesa uma ilha do Mediterrâneo, em homenagem a Sophia de Mello Breyner, ou a ilha desconhecida para um ilhéu honorário chamado José Saramago… E, invocando, a sua qualidade de italiana, Luciana aventava ainda a hipótese de uma “Ilha não encontrada”, invocando Guido Gozzano. A imaginação poderia chegar a Itaparica ou a Maré, mas a que realmente interessava a Luciana era a referência à Ilha-Brasil. Esta era a “Ilha próxima e remota / que nos ouvidos persiste, / para a vista não existe”, de que fala Fernando Pessoa na “Mensagem”. Já Carlos Drummond de Andrade quando dedicou um extraordinário poema a Cleonice, considerou-a como “genuína fazendeira”, sobretudo em homenagem à imaginada grande ilha, onde se cultiva “a constante maravilha / do linguajar português / tal como sino que soa / no copiar da fazenda / até Fernando Pessoa”.
A BELEZA DA LÍNGUA COMUM De facto, quando Pêro Vaz de Caminha anunciou, primeiro que todos, a magia que se lhe apresentava, falou de uma Ilha, como se tratasse do achamento de uma parte do Paraíso, inesperadamente encontrado. E quando hoje referimos este mundo plural e diverso onde se cultiva a nossa língua, ao lado de variadas culturas, numa nova representação de Babel, esta Ilha-Brasil significa não um lugar de uniformidade, mas um encontro de mil culturas, e de uma demanda das múltiplas expressões do Outro. De facto, para Cleonice Berardinelli, apenas seria possível compreender a cultura do Brasil indo ao encontro das suas origens – da sua multiplicidade. Daí que esquecer qualquer dessas componentes seria ter um desencontro com a própria complexidade e força de uma cultura. Afinal, seria não compreender a relação com o diverso e o esquecimento da corrente que permite entender o património cultural como uma permanente troca de influências. Se os núcleos preferenciais das atenções de Dona Cleo são, literariamente falando, Gil Vicente, Camões e Pessoa é porque essa é sua linha de atenção, que permite perceber uma parte do linguajar “como sino que soa / no copiar da fazenda”. Temos de ir aos trovadores que começaram a construir este idioma de projeção global, mas não podemos esquecer ainda os sermões de Vieira, o romantismo de Garrett e de Camilo, a ficção de Eça de Queiroz, a poesia de João de Deus, os sonetos de Antero de Quental, a chamada geração de 70, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Sá-Carneiro, Teixeira de Pascoaes, Namora, Maria Judite de Carvalho, Vergílio Ferreira, Almeida Faria, José Saramago… Mas este núcleo permite-nos abrir horizontes e ir adiante – entendendo a genuína expressão brasileira de Machado de Assis e de quantos seguiram um caminho próprio de riqueza incalculável, partindo daí para a compreensão da língua e da literatura da língua comum em África. E as pontes que se vão estabelecendo significam não uma mistura ou uma adaptação, mas um encontro ativo, capaz de produzir realidades outras, como fica demonstrado na capacidade de recriação que encontramos em João Guimarães Rosa ou em Mia Couto.
DUAS LITERATURAS Eduardo Lourenço, com a intuição conhecida para descobrir o essencial na realidade cultural, afirmou que Cleonice Berardinelli deixou evidenciado, ao longo de cinquenta anos de ensino e investigação, que a mesma língua dá lugar a várias literaturas. Não há, porém, conflito entre as literaturas portuguesa e brasileira (ou as outras), uma vez que têm em comum a mesma língua. As pequenas diferenças entre elas não fazem com que haja uma dissensão nem colisão. E o ensaísta de “Portugal como Destino”, admirador confesso da Mestra, reforça esse entendimento: “a paixão e o saber dessa cultura em comum (do elo que une as nossas únicas margens do atlântico cultural que há séculos une e separa o antigo cantar da galaica raiz e de imemorial futuro) eram – são – uma espécie de segunda natureza da filóloga herdeira do berço comum da latinidade que tem hoje no Brasil o seu espaço de memória mítica”. No fundo, é essa a Ilha que se torna autêntica na oferta de Luciana Stegagno-Picchio e que se revela como a melhor homenagem à coerência de Dona Cleo. Essa Ilha-Brasil contém e engloba uma história antiga que, longe de ser uniformizadora, é distintiva e constitui um verdadeiro desafio à compreensão da pluralidade e à riqueza nas lusofonias.
“Requiem, Uma Alucinação” (1992), de Antonio Tabucchi (1943-2012), foi escrito originalmente em português e constitui um exemplo da criatividade de um escritor essencial da contemporaneidade, que esta semana foi homenageado pelo município de Lisboa com a atribuição do seu nome a um jardim na freguesia da Misericórdia, por proposta do Centro Nacional de Cultura.
UM SONHO EM LISBOA Este “Requiem” tem um especial significado, tendo sido escrito integralmente em português. Suspenso entre a consciência e a inconsciência, entre a realidade e o sonho, a personagem que protagoniza esta alucinação é apresentada ao meio-dia em ponto de uma data precisa, sem que o próprio entenda muito bem porquê, na cidade de Lisboa, deserta e tórrida, num domingo de julho. Ironicamente, ele sabe vagamente que tem algumas tarefas a cumprir – mas sobretudo deve encontrar-se com um ilustre poeta desaparecido que, como qualquer fantasma que se preze, talvez apareça só à meia-noite, hora do mistério e da surpresa. E o protagonista entrega-se aos ditames do acaso, segundo a lógica das associações do inconsciente. Então, dá consigo a seguir um percurso que o leva a reviver o que foi ao longo da vida, a tentar desatar os nós cegos da sua existência passada, que, de facto, nunca conseguiu compreender verdadeiramente. Tabucchi sempre foi um apaixonado do mistério dos sonhos, jogando com o significado das misteriosas aparições de quem teve importância na sua formação e no seu destino. Essas alucinações, errâncias, aparições, regressos e sonhos duram doze horas. É o tempo de uma vida se comprime e se dilata. Passado e presente confundem-se e os vivos encontram-se com os mortos no mesmo plano, como aliás acontece em diversas circunstâncias documentadas na obra do escritor.
ENTRE RAÍZES E DESCOBERTAS Em “Requiem”, Antonio Tabucchi conta a experiência de uma viagem misteriosa e iniciática. Assim, este livro é um ato de amor relativamente ao país que lhe pertence profundamente por adoção e à língua na qual o romance está escrito, pressupondo uma ligação intensa a uma personalidade multifacetada, que não esquece as raízes, as lições passadas e a descoberta literária de um poeta com várias vidas e personalidades. Foi, aliás, um misterioso poeta que trouxe Tabucchi até à cultura portuguesa e ao mundo dos seus afetos. E se falamos dessa referência, temos de considerar a multiplicação de personalidades que ela comporta. É, de facto, do Engenheiro Álvaro de Campos que falamos, discípulo de Alberto Caeiro, que o poeta ortónimo visita estranhamente, ao lado de outras personalidades consagradas em “Sonhos de Sonhos”, como Dédalo, Ovídio, Apuleio, Cecco Angiolieri, François Villon, Rabelais, Caravaggio, Goya, Coleridge, Leopardi, Collodi, R.L. Stevenson, Rimbaud, Tchekhov, Debussy, Toulouse-Lautrec, Maiakovsky, Garcia Lorca e Freud. Estamos perante um verdadeiro mundo, em que se pode descobrir a complexidade do género humano e os seus mistérios. E “Requiem” é um outro modo de descoberta dessa fantasmagoria criadora, através de pessoas aparentemente comuns que a cidade de Lisboa revela. Aí encontramos: o rapaz drogado, o cauteleiro coxo, o chauffeur de táxi, o criado da Brasileira, a velha cigana, o guarda do cemitério, o escritor polaco Tadeus, o senhor Casimiro, a sua mulher, o porteiro da Pensão Isadora, a Isadora, a Viriata, o Pai Jovem (numa reminiscência perturbadora), o barman do Museu de Arte Antiga, o pintor copiador, o revisor do comboio, a mulher do faroleiro, o maître da Casa do Alentejo, Isabel, o vendedor de histórias, a Mariazinha, o misterioso convidado e o tocador de acordeão. Ah! e não devemos esquecer o gato solitário que passeava entre as primeiras campas dos Prazeres.
UM CONTO DE UM VENDEDOR DE HISTÓRIAS «Estava realmente uma noite magnífica, de lua cheia, quente e mole, com alguma coisa de sensual e de mágico, na praça quase não havia carros, a cidade estava como que parada, as pessoas deviam ter-se demorado nas praias e só voltariam mais tarde, o Terreiro do Paço estava solitário, um cacilheiro apitou antes de partir, as únicas luzes que se viam no Tejo eram as suas, tudo estava imóvel como num encantamento»… Depois de vários desencontros, num bizarro regateio, o vendedor de histórias consegue convencer o interlocutor de que tem um conto para crianças a trezentos escudos – não era um conto de fadas, mas de um mundo mágico, de uma sereia que trabalhava num circo e que se apaixona por um pescador da Ericeira… E ali no cais das colunas, à beira do Tejo, com o cacilheiro a chegar a sereia talvez viesse mesmo a calhar. A deambulação é rica de encontros e desencontros, de realidade e imaginação, de alucinação e sonambulismo… E quando somos chegados ao fim do cais, há um banco como no começo da conversa, que vai tornar-se o fim da mesma. Então o tocador de acordeão torna-se dispensável. Pode terminar e função. E, como por encanto o Convidado desvanece-se, como tinha aparecido. “Quem sabe se um romance escrito numa língua que não é a nossa não poderá nascer de uma minúscula palavra que, essa sim, é exclusivamente nossa e não pertence a mais ninguém. Às vezes uma sílaba pode conter o universo”.
A morte do livro foi anunciada com o digital, às mãos do e-book.
Enganaram-se. O livro persiste, o que é bom, uma boa notícia.
Ler livros não é um mero prazer estético.
Também é um prazer tátil único. Entre outros prazeres…
Tem as vantagens do analógico sobre o digital, pode ser dobrado, guardado no bolso, na mala, na pasta, leva-se para qualquer lugar, não consome energia elétrica, é mais funcional e pessoal de anotar, sublinhar, pode ser lido e relido a todo o tempo à luz do dia, da vela e do candeeiro de tempos idos, à luz artificial atual, adaptando-se à nossa dimensão física e humana e ao tempo e espaço de cada época.
Há um milhão de leituras se um livro for lido por um milhão de pessoas diferentes.
Ler é ser livre, com a nossa imaginação e memória navegando, sonhando e voando.
Os livros não envelhecem, são firmes e leais, são amigos úteis, o que dizem hoje, dirão amanhã, daqui a anos ou séculos.
O hábito de ler e ver, dia a dia ou amiudadas vezes um livro, faz com que acabemos por lhe ter amizade. À força de se nos tornarem familiares, os livros acabam por se tornar nossos amigos, em que um instintivo e estranho animismo nos leva, por vezes, quase a atribuir alma às coisas inanimadas.
Há livros que são transformadores, contagiantes, podendo salvar-nos ou marcar o nosso destino, que nos fazem leitores, provocando uma sensação gratificante de não estarmos sós, amigos inalteráveis e constantes na saúde ou na doença, no trabalho ou no ócio, uma companhia com o seu não ruído em silêncio.
Estimulam a aquisição de conhecimento, o aumento e enriquecimento de vocabulário, o perguntar, interrogar, questionar, uma imaginação e um sonho que nos liberta, um escape, uma fuga, uma compensação.
Quem lê e ama os livros tem espaço e mentalidade para pensar, refletir, questionar, para nos transcendermos, ter asas para voar, ir mais além daquilo que é tido como básico, diário, quotidiano, afastando a lassidão e a rotina, mesmo que esta seja vital para o nosso conforto.
Sem esquecer o arrumar da biblioteca pessoal que conta a história das nossas vidas, o enriquecimento da associação livre de grupos de leitura, as edições de autor e a partilha do seu testemunho, uma liberdade de escolha e de leitura que não nos limita, desde os livros que devoramos, saltamos páginas ou paramos de ler.
E há os amorosos do livro para os quais é uma coisa imprescindível à vida, tendo-o como parte de si mesmos.
Porém, os não amorosos e indiferentes excluem-no de fotos e vídeos para compra e venda de casas endinheiradas exemplificando-o, quase sempre, o sua não visualização nas respetivas buscas via internet, como sinal de declínio, e não prestígio, dominando o culto do dinheiro, ao invés do saber acumulado por milhares de anos de leitura.
Há quem só navegue na net para os ler, quem se recuse, ou faça ambas as coisas, sendo bom saber que o livro sobrevive ao digital, nem sempre este sendo o ideal, pois sendo nós analógicos (não biónicos ou digitais) aquele agarra mais de perto os nossos sentidos que se manifestam em sentimentos e hábitos não substituíveis pelo e-book.
Se perdurou, no decurso de séculos, a ditaduras que inúmeras vezes o tiveram como transgressor e perigoso, espera-se que também resista à digitalização progressiva e seus inconvenientes de fiscalização automática, sendo mais durável e menos sujeito, até agora, a danos físicos do que os dispositivos ou materiais eletrónicos de acessibilidade mais remota.
Como se fora criança, nas suas primeiras experiências a descoberta sempre constituiu hábito e normalidade; diria mesmo que vivia num estado musical de revelação, de aparição de realidades que nada tinham de músculo miraculoso.
E lia.
A escola estava ali: nos livros que a impediam de morrer aos poucos; nos livros que lhe entendiam o rosto e lhe respondiam também aos conteúdos da idade.
Por ora, por entre os livros que lia, era «o Amolador» aquele que mais redonda companhia lhe fazia.
As palavras deste livro eram chispas arrancadas a distâncias que apenas intuía e que desvendavam lendas com cheiro a pão caseiro. E era aí, aí mesmo que queria chegar: ao pão do qual um dia não acordaria mais.
Em rigor, a sua relação com a contratação sentimental que a unia à leitura, nunca lhe subtraíra a clareza.
Nunca me pareceu que falasse de morte, mas antes de um outro final.
Os tempos e o acontecer, eram, às vezes, uma correria tributária de tendências, e por essa razão se espreitava de dentro para dentro e logo via o claro sem qualquer condição enfermiça.
Truques. Truques do ofício de se entender.
E aprendiz de livros, neles se deixava desmaiar num algo parecido a um extremo bem-estar.
Por eles, não seria enjeitada nunca ao caminhar de alma descalça, afinal, ato de seu delírio incolor e só e horizonte.
Uma biblioteca é a melhor metáfora do mundo. É um labirinto cujos caminhos se fazem de perguntas e respostas. E há um misterioso fio de Ariadne que nos leva em cada estante, em cada livro, em cada palavra à descoberta dos enigmas que nos permitem vislumbrar os contornos dos sentidos que a humanidade reveste. O meu saudoso amigo António Pinto da França telefonou-me um dia a fazer um desafio para um projeto aliciante, que estava em curso e tinha como epicentro Tomar, com o título quase mágico de “Bibliotecando”. Em duas palavras, falou-me com entusiasmo de professores, alunos e comunidade, que colocavam na relação com os livros a raiz de um diálogo entre as escolas e a vida. Embarquei logo, com gosto, nessa nave que continua a fazer o seu caminho, graças a uma equipa denodada e à reflexão sobre os temas mais atuais e pertinentes. Entretanto, o António partiu, mas nunca esqueci as suas palavras de alegria e a sua lição de vida, tão presentes na sua ação e na sua obra histórica, em que os acontecimentos e a sua compreensão funcionam como um modo de ir ao encontro das culturas enquanto expressão plural da dignidade humana. Com Agripina Carriço Vieira, António Godinho ou Célio Gonçalo Marques e uma equipa incansável, os anos foram-se sucedendo com os temas e a preocupação de pôr a diversidade, a complexidade e a incerteza no centro das “leituras em diálogo”. No próximo fim-de-semana, terá lugar a 12ª edição do “Bibliotecando em Tomar” e o tema, escolhido, antes que se pudessem adivinhar os desenvolvimentos de uma guerra absurda como a da Ucrânia foi “Presença e Exílio”. E Alberto Manguel lembrou, invocando Dante, como o exílio de Florença constituiu matéria-prima inesgotável para a criação e para a circulação das ideias. A distância aguça o talento, a lembrança dá densidade aos acontecimentos e a memória revela o sentido das existências.
Muitos argumentos podem ser utilizados para demonstrar a importância da leitura e da relação amorosa com os livros, mas nenhum é tão forte como a compreensão da vida pela sua representação e pela narrativa da existência humana. Somos nós que nos encontramos no relato do combate entre Aquiles e Heitor, na rebelião de Antígona, na armadilha de Ulisses ou na viagem de regresso a Ítaca, além da linhagem de Abraão, Isaac e Jacob, da lição de José do Egipto, da libertação de Moisés ou da dúvida de S. Tomé. Aí está a raiz da literatura, projetada no ciclo bretão do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda, na “Divina Comédia”, na “Peregrinação”, em “D. Quixote”, mas também em Camões, Shakespeare, Stendhal, Tolstoi, Dostoievski ou Virgínia Woolf ou Thomas Mann… Jorge Luís Borges falou-nos, assim, das “literaturas que honram as línguas dos homens, as filosofias que procurei penetrar, os entardeceres, os ócios, as solitárias orlas da minha cidade, a minha cidade, a minha estranha vida cuja possível justificação está nestas páginas, os sonhos esquecidos e recuperados, o tempo”… O “Bibliotecando em Tomar”, à sombra da história intensa da cidade, faz-nos reviver a justificação das estranhas vidas, dos sonhos, das interrogações e do indefinível tempo. A pandemia, que nos tolheu, revelou a companhia insubstituível dos livros. A guerra, os refugiados, a violência bárbara apelam à importância da leitura, do entrecruzar das culturas e das suas diferenças, que levam a vermo-nos no olhar dos outros. Este ano o “Bibliotecando” homenageia Lídia Jorge e a sua obra, pela riqueza do testemunho e pelo exemplo da relação entre a literatura e o mundo, entre as pessoas concretas e a sua dignidade. Só compreendendo-nos poderemos partilhar a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Uma sociedade melhor depende da misteriosa capacidade para dialogarmos com os mortos e com os vivos, em nome do respeito dos vivos, para entender o futuro como fecunda espera.
João Paulo Cotrim, fundador da Bedeteca e editor da editora Abysmo, foi um promotor ativo da leitura e do amor dos livros. Aqui representado pelo humor de André Carrilho.
O AMOR DOS LIVROS O amor aos livros é difícil de definir. Não basta gostar, mais do que isso, é preciso amar, sem rodeios. A companhia do livro é necessária, tem um calor especial, uma forma, uma cor, um cheiro, um toque e um chamamento. Um livro tem consigo a vida própria da leitura que nos proporciona, mas é ainda um encontro que integra e envolve a escrita e a mensagem do autor. E desse modo encontramos quem há muito deixou este mundo, mas continua bem vivo. João Paulo Cotrim amava os livros e cuidava especialmente da sua feitura e da sua apresentação. Com a “Abysmo” estávamos diante de um verdadeiro símbolo que invocava o falso arcaísmo de um moderníssimo ípsilon, que significava movimento, surpresa e desassossego. E lembrava Teixeira de Pascoaes: “Na palavra lagryma (…) a forma do y é lacrimal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão gráfica ou plástica e a sua expressão psicológica; substituindo-lhe o y pelo i é ofender as regras da Estética. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério… Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal”. Também Sophia escrevia dança com um s, como dansa, uma vez que só assim se entenderia o movimento como essência da arte. Um livro é um conjunto, em que tudo se complementa – a escrita, a apresentação, a ilustração, a mancha tipográfica, a capa, a consistência, a encadernação, a cosedura e o conteúdo mágico da escrita, que funciona como verdadeiro tesouro… Criador da Bedeteca tornou o que, com especial humor, designou por vezes como Quadricologia, um dos modos de fazer cultura e de amar os livros e a leitura. E a Banda Desenhada ou as Histórias aos Quadradinhos constituíam uma fonte inesgotável de imaginação. Não por acaso, em 2020, fundou, no auge do Covid-19, no âmbito da sua editora, “Torpor. Passos de voluptuosa dança na travagem brusca”, uma revista digital gratuita que procurava exprimir o efeito da pandemia e do confinamento “tanto nas artes como na vida”. Foi uma iniciativa não planeada que “resultou de sucessivos diletantes passeios pelas redes”, nas quais descobriu um mundo que manifestava a força da criação artística… Era o único modo de entender o estranho tempo que atravessávamos.
LIGAR A PALAVRA E A IMAGEM Por outro lado, a Banda Desenhada constituía uma forma de ligar a palavra e a imagem, como um movimento continuado, pleno de intensidade, de diversidade e incerteza. Desde “Les Amours de monsieur Vieux Bois” de Rodolphe Töpffer (1827), de “Max und Moritz” de Wilhelm Busch (1865) ou do nosso Rafael Bordalo Pinheiro com “A Picaresca Viagem do Imperador de Rasilb pela Europa” (1870) podemos falar de uma 9ª Arte (a seguir à fotografia e antes dos jogos digitais), enquanto “arte sequencial” (Will Eisner) ou como “literatura desenhada” (Hugo Pratt). E a história moderna desta arte é inesgotável - “Yellow Kid” de Richard Felton Outcaut (1896), “Katzenjammer Kids” (“Os Sobrinhos do Capitão”) de Rudolph Dirks (1897), “Little Nemo in Slumberland” de Winsor McCay (1905), “Bécassine” de Rivière e Pinchon (1905), “Krazy Kat” de George Herriman (1913), e “Quim e Manecas” de Stuart Carvalhais (1915) são nomes e autores familiares, que representam o início da evolução de uma arte que ganhou foros de importância maior, deixando de ser marginal ou tolerada. A pouco e pouco, passámos a contar com uma nova expressão, que liga a narrativa e a ilustração, numa lógica de incessante movimento. Lembrando-nos do pioneirismo do americano “Yellow Kid”, deparamo-nos com o nosso Manecas de Stuart a sofrer nítida influência gráfica do pequeno herói de Richard Outcaut – até no pioneirismo do uso dos balões que apresentam as falas e os diálogos. Alain Saint-Ogan criaria em 1925 (quatro anos antes de Tintin) Zig e Puce, usando os balões como modo especial de comunicação, que se tornaria típico dos quadradinhos. E daqui seguimos até aos dias de hoje, à escola da linha clara, ao encontro com a arte pop e a tudo o mais. Afinal, as ideias da Bedeteca ou do Salão de Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada e a mostra Ilustração Portuguesa pressupunham a salvaguarda de um espírito sempre capaz de regressar à infância, não como nostalgia, mas como capacidade de nos mantermos despertos e curiosos relativamente a tudo o que nos cerca, contra a tentação da indiferença ou do ceticismo. E se havia esse espírito de permanência de uma jovem memória sempre renovada, também havia o lado cidadão da Quinzena Jean Moulin, a recordar a passagem pela capital do resistente francês, além da capacidade criadora do guionista de filmes de animação, de novelas gráficas, de ensaios, de poesia e de histórias para crianças.
MAIS DO QUE DOS 7 AOS 77… Encontrei a última vez João Paulo Cotrim na Gulbenkian, na exposição de Hergé. Nada faria prever o trágico desenlace. Planeámos a sua participação no ciclo de debates que estava previsto e havia nele o genuíno entusiasmo de quem sabia que a adesão do público de todas as idades (mais do que dos 7 aos 77) correspondia, a um tempo, à demonstração das virtualidades da leitura, como procura e encontro, e da importância que as humanidades exigem ao diálogo entre os vários saberes e artes, entre conhecimento e compreensão. Mais do que entretenimento, tratava-se de ligar o prazer e a reflexão. E lembro o que João Paulo escreveu sobre o livro de António de Castro Caeiro “S. Paulo – Apocalipse e Conversão” (Aletheia): “Saulo, o estudioso sério, homem de leis e de minúcias, passou a ser o portador da palavra, de uma Palavra que não é a sua, de um projeto de loucura e escândalo, que desobedece às leis. Paulo é a crise, como nós hoje somos e doravante seremos a crise. Ou não vivêssemos o apocalipse, agora. Paulo interessa mais ainda por ser alguém que vive sob o signo do tormento. E pouco mais saberemos aqui de Paulo ou Saulo, do ponto de vista biográfico. O terreno que pisamos é o da palavra” (in “7 Margens”, 26.12.2021). Esse também era o terreno que João Paulo pisava, no sentido mais rico e plural da questão. O amor aos livros era o amor da palavra e do encontro entre as pessoas ou da procura da diferença e do Outro. Numa sociedade em que a imagem é cada vez mais importante, compreende-se que a narrativa e a representação se associem. Inconformismo e sentido crítico – eis o que a cultura suscita e exige. “Somos postos a ser pelo olhar do outro neste mundo” – eis o que encontrámos sempre nessa paixão pela literatura e pela imagem, pela criatividade e pela imaginação. “Curiosamente são as palavras o pano de fundo, o cenário maior desta busca de sentido, este trabalho de compreender não as palavras, que de um certo modo nos levariam ao lugar onde estão escondidos os seus múltiplos e prementes sentidos, o coração, mas porque elas próprias se revelam a superfície do mundo, como a pele é a superfície dos nossos corpos”.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
Calcula-se que Ramon Llull tenha nascido nos finais de 1232 em Maiorca.
Recorda-nos Umberto Eco que no local de nascimento de Ramon, se vivia, na altura, uma encruzilhada das três culturas, a judaica, a islâmica e a cristã, o que muito determinou a formação de Llull, bem como o facto das suas iniciais obras terem sido escritas em catalão e árabe.
Crê-se que Llull conheceu a Zairja numa das suas viagens à cultura árabe e por ela desenvolveu a chamada Grande Arte.
A Zairja era um dispositivo dos árabes medievais que combinava as vinte e oito letras do alfabeto árabe para designar vinte e oito categorias filosóficas, respetivamente, e ao combinar valores numéricos com as letras criavam-se associações de pensamento que se podiam desenvolver. Aliás, diz-se, que, por conhecer e bem interpretar a Zairja, Llull criou um templo espiritual de paisagens intelectuais só interpretadas pela chamada Grande Arte que acima citamos.
Llull é considerado um fascinante escritor, filósofo e poeta acutilante já considerado como um dos mais importantes da Idade Média da língua catalã.
No campo espiritual, como missionário e teólogo viaja para conhecer papas, príncipes e reis a fim de obter ajudas aos seus projetos de cruzadas de missionário.
Seguindo para o norte de Africa aos 82 anos, foi apedrejado em Tunes tendo vindo a morrer cerca de um ano depois em Maiorca para onde o transportaram os seus amigos genoveses.
O Livro do Amigo e do Amado surge-nos numa temática de fervor sentimental entre a pessoa humana (o amigo) e a essência do divino (o amado).
De quando em vez volto a este livro das edições Cotovia de 1990 e dele hoje estes parágrafos:
1. Perguntou o amigo ao seu amado se havia nele alguma coisa por amar, e o amado respondeu que aquilo que poderia multiplicar o amor do amigo era amar.
176. Diz-me, doido: Tens dinheiro? Respondeu: Tenho o Amado. – Tens casas, castelos, cidades, condados ou ducados? Respondeu: - Tenho amores, pensamentos, prantos, desejos, penas e dores, que são melhores do que os reinos e os impérios.
188. Perguntaram ao amigo se era possível que o seu amado o desenamorasse. Respondeu que não, enquanto a memória se lembrasse dele e o entendimento entendesse as nobrezas do seu amado.
350. Teologia e Filosofia, Medicina e Direito encontraram o amigo que lhes perguntou se tinham visto o seu amado. A Teologia chorava, a Filosofia duvidava, a Medicina e o Direito alegravam-se. E a questão é:o que significa cada um dos quatro significados para o amigo que procurava o seu amado.
Também lemos a conceção segundo a qual, o amor neste livro, constitui uma fusão entre o amor humano e o amor divino transformando Deus em amante e em amado, como afirma Henry Corbin no Prólogo da obra Le Jasmin des Fidèles d’Amour de Rūzbehān Baqlī Shīrāzī (1128-1209), o grande representante do Sofismo iraniano. Obra esta para a qual nos remeteram e à qual ainda se não acedeu.
Certo é que para iniciarmos o entendimento do fenómeno místico em Ramon Llull, é fundamental compreendermos a importância da “comunicação” entre as culturas do diálogo inter-religioso, sobretudo entre o Cristianismo e o Islão.
Enfim, por pouco conhecermos esta temática de procura sem fim, e por mais atrevimento termos em abordá-la, aqui ficam mil modestas centelhas na procura de infinitos amigos e amados, porque não antecâmara ao contributo do entendimento da fala nas casas do mundo.
“A Intimidade de Um Intelectual Indomável” é o subtítulo da Fotobiografia de António José Saraiva, da autoria de António Manuel P. Saraiva, José António Saraiva e Pedro António P. Saraiva (Gradiva, 2021).
A MARCA DO INCONFORMISMO
O percurso de um dos intelectuais mais importantes da segunda metade do século XX português constitui excelente oportunidade para conhecermos um pensamento complexo, cuja coerência significa uma permanente busca de razões de ser para a história portuguesa, com recusa de conclusões adquiridas. O inconformismo é uma marca indelével que, longe de significar hesitação, representa a clara compreensão de que os factos históricos não têm explicações unívocas, resultando sempre de uma confluência de fatores contraditórios e heterogéneos. Deste modo, percebemos que o caminho de António José Saraiva é de permanente exigência, com aproximações e distanciamentos relativamente a autores e explicações, em resultado de um sentido crítico apurado, essência do fenómeno cultural e da sua compreensão. Ser “intelectual indomável” significa, assim, colocar o pensamento como bussola para uma caminhada capaz de conciliar a liberdade de espírito e o rigor na análise dos acontecimentos. E o irmão, José Hermano Saraiva, revela-nos uma explicação: “a ideia que ele escreveu na minha fita de formatura: quando tiveres encontrado enfim uma verdade, rasga-a e procura outra verdade melhor”. Ao seguirmos a obra de António José Saraiva, encontramos na dissertação de licenciatura o tema da poesia de Bernardim Ribeiro (1938) e no doutoramento em Filologia Românica a referência a Gil Vicente e ao fim do teatro medieval (1942) e em ambos encontramos a originalidade e a relevância das considerações do jovem investigador, em temas cruciais na afirmação da cultura portuguesa. No Liceu Gil Vicente fora aluno de Fidelino de Figueiredo e em 1940 travara conhecimento com Óscar Lopes, seu companheiro na empresa referencial da “História da Literatura Portuguesa”, a partir de 1949 – “vademécum” de muitas gerações na compreensão da nossa identidade literária. Quando hoje lemos textos de 1946 como “As Ideias de Eça de Queirós” ou “Para a História da Cultura Portugal” notamos já uma evidente maturidade, que prossegue não só em “A Escola, Problema Central da Nação”, mas igualmente em “A Evolução do Teatro de Garrett”, em “A Obra de Júlio Dinis e a sua Época” e sobretudo no fundamental “Herculano e o Liberalismo em Portugal – Os Problemas morais e culturais da instauração do regime”. Seguir a produção intelectual do jovem professor é, desta forma, extremamente atraente, uma vez que, apesar das referências ideológicas, nunca perdemos o extremo rigor no lidar com os acontecimentos e a consideração de uma rica dialética crítica, que recusa as explicações unívocas ou simplificadoras. Aliás, a perenidade da obra fica a dever-se a esse permanente viés crítico que tantas vezes corrige as naturais tentações simplificadoras. Dir-se-ia que a fidelidade ao mestre Herculano constitui uma marca que dá atualidade e coerência ao historiador e ao pensador. Quando lemos “O Caprichismo Polémico do Senhor António Sérgio” notamos, é certo, o espírito do tempo e a circunstância política, mas o tempo veio a corrigir a influência ideológica, de que Saraiva ao longo do tempo se soube libertar, como confessará no final da vida. É muito rica a lista dos temas que ocupam o cientista social e o pedagogo, cujo percurso é afetado pelas opções políticas – militância partidária na oposição, apoio à candidatura de Norton de Matos, proibição de ensinar no ensino oficial e prisão por motivos políticos.
TEMAS APAIXONANTES
Os temas estudados não são neutros. A Idade Média portuguesa até à crise social do século XIV, a importância de Fernão Lopes, a Inquisição em Portugal, Fernão Mendes Pinto ou a Sátira Picaresca da Ideologia Senhorial, Luís de Camões, a Ressaca do Renascimento, o “Dicionário Crítico da Algumas Ideias e Palavras Correntes” constituem reflexões ricas, nas quais se nota a preocupação pela prevalência de uma opção de independência e liberdade, nem sempre corretamente compreendidas. Impedido de ensinar em Portugal, exila-se em França no final dos anos cinquenta, integrando a equipa de Marcel Bataillon, e chega a preparar a ida para o Brasil, o que se torna impossível em virtude da ocorrência do golpe militar de 1964. Em 1966 retoma o estatuto de investigador em Paris, no CNRS, por proposta de Fernand Braudel, assistindo aos acontecimentos de maio de 1968, que merecem a sua análise, em muitos pontos se revelará premonitória. Quando obtém um lugar na Universidade de Amesterdão (1970) publica “Maio e a Crise da Civilização Burguesa”, que suscita acesa polémica. Regressado a Portugal em 1975, assume funções na Universidade Nova de Lisboa e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, prosseguindo uma muito ativa intervenção literária: “Épica Medieval” (1979), “O Discurso Engenhoso – Estudos sobre Vieira e Outros Autores Barrocos”, “Filhos de Saturno – Escritos sobre o Tempo que Passa” (1980), “A Cultura em Portugal” (2 volumes) e “O Crepúsculo da Idade Média” (1988).
PENSAMENTO INDOMÁVEL
Fiel ao pensamento indomável, conheci pessoalmente António José Saraiva, quando escreveu e publicou “A Tertúlia Ocidental” (1990), obra de maturidade, de quem tão bem conhecia os homens de 1870, a ponto de poder escrever sobre eles um genial romance. E um dia disse-me que, sem demonstração histórica, era mais cinematográfico que tenha sido José Fontana a apresentar Oliveira Martins a Antero. Por outro lado, a chave da “Ilustre Casa” não era o colonialismo, mas a atração pelo desconhecido. E recordava «As Minas de Salomão», onde Gonçalo foi buscar motivo de inspiração. Ao contrário de Fradique, a geração coimbrã de Antero e dos seus acreditava numa outra relação entre a liberdade e a igualdade, diferente da romântica. A. J. Saraiva considerara em “As Ideias de E.Q.”, o fradiquismo como «uma desistência de agir sobre o meio e as condições sociais». Eça deparar-se-ia com a dificuldade de combater a mediocridade e a plutocracia. E ter-se-ia desinteressado. O próprio «esforçado Oliveira Martins» acabaria a cultivar a «flor da arte» ou outras flores. Seria uma evasão… Os anos passaram, o ensaísta continuou a estudar e a pensar, como inesgotável crítico. E em «A Tertúlia» recusou «uma súmula de clichés então reinantes» sobre a geração de 1870. O certo é que importaria dar uma especial atenção à afirmação de Eça no prefácio a «Azulejos» de Bernardo Pindela: «A arte é tudo, e tudo o mais é nada». O perigo da ilusão perturbava quem ainda acreditava na ação e na política. É certo que Eça dissera a Luís de Magalhães: «Não se deixe levar pelas teorias abomináveis do amigo Oliveira Martins sobre a sinceridade da emoção». Não poderia esquecer-se a fórmula «sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia». O paradoxo tinha como polos não apenas a ação e a indiferença, mas também a vontade e a arte. E Saraiva concluía: «Hoje as ideias de Eça de Queiroz (que não são exatamente as que lhe atribuímos em 1945) aparecem-nos principalmente como temas de arte, tal como na “Correspondência de Fradique Mendes” são pretextos para cartas».
“O Homem que só Queria ser Tóssan” foi editado por João Paulo Cotrim (“Arranha Céus”, 2021). São três volumes um sobre a obra gráfica e dois sobre a produção escrita – “Lógica zoológica. Frutos e desfrutos. Animalia. Contos e Descontos” e “Versos côncavos e com versos”.
O FARO DE UM CÃO
«Se o faro de cão / está mesmo no cão / o cão tem faro. // Se o faro é do cão / o cão é de Faro / o faro é do cão. // Mas se fareja e cheira / é de Albufeira. // E se tem olho o cão / e ladra a ladrão / o cão é de Olhão. // Se curva e vira / é de Espinhaço de Cão / ou de Tavira / ou até de Portimão. // Mas se ferra o cão… / não é algarvio, não!». Em boa hora escolhi como leitura de um fim de semana algarvio bem passado “O Homem que só Queria ser Tóssan”, editado por João Paulo Cotrim, na “Arranha Céus”, com o apoio do Município de Loulé, que me foi oferecido pelo meu amigo Vítor Aleixo. São três volumes imperdíveis, um sobre a obra gráfica e dois sobre a produção escrita – “Lógica zoológica. Frutos e desfrutos. Animalia. Contos e Descontos” e “Versos côncavos e com versos”. Conheci Tóssan, António Fernando dos Santos, em Albufeira nos anos sessenta e sempre me deleitei com o traço fino e irónico dos seus desenhos e a personalidade das suas personagens. Nascido em Vila Real de Santo António, foi nos seus amigos de Coimbra, como António Almeida Santos (cujos contos de “Rã no Pântano” ilustrou), que encontrei inesquecíveis recordações. As caricaturas dos estudantes eram pagas a 30 escudos por unidade ou com latas de quilo de fiambre. E lembramos as caricaturas de José Régio, Teixeira de Pascoaes, Paulo Quintela, Lins do Rego, Alves Redol, Bertold Brecht… Tivemos uma referência comum, o Dr. Joaquim Magalhães, com quem discreteava, caminhando na rua de Santo António em Faro, quando ia entregar a crónica para o “Diário de Notícias”. A memória de António Aleixo e o humor de Tóssan eram temas de conversa – para além da invocação de Antero de Quental, de Eça e desse grupo heroico… Foram o professor do Liceu de Faro e o relojoeiro de Loulé José Rosa Madeira os primeiros a darem atenção ao poeta popular. O caso de António Aleixo impressionou desde cedo Tóssan. “O contacto diário com ‘o poeta-cauteleiro e antigo guardador de cabras’ (…) no Sanatório dos Covões, a partir de junho de 1943, colocou-o perante a descoberta impactante de uma literatura oral com laivos filosóficos e políticos que a todos surpreendia pela acutilância e alcance humanista”, diz Vasco Rosa. O “Auto do Curandeiro” resultou do encontro de Tóssan com Aleixo. É de Tóssan o mais célebre retrato de Aleixo, de 1943, que Manuel Viegas Guerreiro popularizou junto dos estudantes dos liceus.
UMA CORUJA DE CARICATURA
Houve um período em que teve uma função essencial nas relações culturais com o Brasil. O embaixador Alberto Costa e Silva não lhe poupa elogios sobre o tempo do Presidente JK: “Tóssan, grande e gordo, tinha cabelos abundantes e negros que formavam tufos nos lados, usava uns óculos enormes, que aumentavam a vivacidade do olhar e o faziam parecer uma coruja de caricatura”. No Palácio Foz deu vida após 1974 a um breviário da cultura democrática na editora “Terra Livre” e multiplicou ilustrações para as crianças e os jovens, colaborando, por exemplo, com Leonel Neves. Tóssan não se levava a sério: “gordão, bonacheirão, / satisfeito, rezingão. / Carregado de pecados, / viajado, / arreliado, / mal-disposto / malcriado…”. O teatro apaixonou-o sempre, desde o Lethes e do TEUC. O desenho era o modo de pôr a gente em ação, daí o entusiasmo de crianças e adultos com as suas ilustrações. Mário Viegas levou à cena “Tótó” com um conjunto extraordinário de textos de Tóssan. Teatro e vida confundiam-se. “O teatro diminui a luz como quem desce as pálpebras aos poucos (…). Uma mala de senhora atirou-se de um camarote para a plateia. Todos se levantam. Todos se sentam. Todos comentam. Um tosse; tossem todos. (…). Mas mal abriu a cortina, o público ficou natureza-morta – apenas se ouvem os olhos dos espectadores a devorarem a cena…”.
ODE AO FUTEBOL
E o mais célebre dos poemas de Tóssan: “Retângulo verde, meio de sombra meio de sol / Vinte e dois em cuecas jogando futebol / Correndo, saltando, ziguezagueando / ao som dum apito / Um homem magrito, também em cuecas / E mais dois carecas com uma bandeira / De cá para lá, de lá para cá / Bola ao centro, bola fora. / Fora o árbitro! / E a multidão, lá do peão / Gritava, berrava, gesticulava / E a bola coitada, rolava no verde / Rolava no pé, de cabeça em cabeça / A bola não perde, um minuto sequer / Zumbindo no ar como um besoiro, / Toda redonda, toda bonita / Vestida de coiro. / O árbitro corre, o árbitro apita / O público grita / Gooooolllllooooo! / Bola nas redes / Laranjadas, pirolitos, / Asneiras, palavrões / Damas frenéticas, gordas esqueléticas / esganiçadas aos gritos. / Todos à uma, todos ao um / Ao árbitro roubam o apito / Entra a guarda, entra a polícia / Os cavalos a correr, os senhores a esconder / Uma cabeça aqui, um pé acolá / Ancas, coxas, pernas, pé, / Cabeças no chão, cabeças de cavalo, / Cavalos sem cabeça, com os pés no ar / Fez-se em montão multidão. / E uma dama excitada, que era casada / Com um marinheiro distraído, / No meio da bancada que estava à cunha, / Tirou-lhe um olho, com a própria unha! / À unha, à unha! / Ânimos ao alto! / E no fim, / perdeu-se o campeonato!”
Como habitualmente, o Centro Nacional de Cultura escolhe vinte livros para as Férias de 2021.
ROMANCE E CONTO «Embora Eu Seja Um Velho Errante» – Mário Cláudio (D. Quixote) «Águas Passadas» – João Tordo (Companhia das Letras) «Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio» – Julieta Monginho (Porto Editora) «Maremoto» – Djaimilia Pereira de Almeida (Relógio d’Água) «Hífen» – Patrícia Portela (Caminho) «Afastar-se» – Luísa Costa Gomes (D. Quixote) «Devastação» – Eduardo Pitta (D. Quixote) «Quarentena – Uma História de Amor» – José Gardeazabal (Companhia das Letras)
POESIA «Sétimo Dia» – Daniel Faria (Assírio e Alvim) «Voltar» – Luís Filipe Castro Mendes (Assírio e Alvim) «A Noite Abre Meus Olhos» – José Tolentino Mendonça (Assírio e Alvim) «Obra Completa» – Francisco Sá de Miranda (Assírio e Alvim)
MEMÓRIAS «Autobiografia Não Autorizada» – Dulce Maria Cardoso (Tinta da China) «Líbano, Labirinto» – Alexandra Lucas Coelho (Caminho) «Diário da Peste – O Ano de 2020» – Gonçalo M. Tavares (Relógio d’Água)
ENSAIO «Ver é Ser Visto» – Eduardo Lourenço (Gradiva) «Jorge de Sena, Contemporâneo Capital» – Eduardo Lourenço (Gulbenkian), vol. X das Obras Completas «História do Bailado em Portugal» – António Laginha (CTT) «Tudo o que Eu Quero» – Helena de Freitas, Bruno Marchand (coord.) (Imprensa Nacional)
TRADUÇÕES «Todos os Poemas» – Friedrich Hölderlin, tradução de João Barrento (Assírio e Alvim)