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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SUL, SOL, SAL – UMA CASA DO MEIO DIA


Falo-vos de uma Editora algarvia, de Loulé!

A última conversa com o meu amigo Manuel Brito, há cerca de uma semana, terminou com a combinação de que avançaríamos nos vários projetos em carteira. Estava um pouco cansado fisicamente, mas não lhe faltava o entusiasmo de sempre. Com votos de melhoras, encontrar-nos-íamos dentro de dias para acertar os pormenores. Por isso, não me perdoaria se hoje fizesse aqui um obituário. O que importaria sempre mais seria o futuro e os novos projetos. Nos vários domínios em que se empenhou ao longo da vida, era um exemplo de competência, de rigor e de solidariedade. Nos últimos anos, tivemos um contacto permanente, na sua função de auditor financeiro. Nunca falhava e estava sempre disponível para as mais complexas tarefas ou para os mais diversos pormenores. Como algarvio dos quatro costados, além da sua principal ação profissional, lançou-se nos últimos anos em dois projetos que o apaixonavam. A editora “Sul, Sol, Sal” e a “Casa do Meio Dia” depressa ganharam a ribalta no campo da criação e das artes e da defesa do património cultural. E insistia em dizer: “o nosso objetivo é editar obras que valorizem a cultura e o património algarvio e façam com que a visão exterior do Algarve saia reforçada e deixe de ser tão negativa… Os projetos que tenho (dizia) não obedecem a critérios financeiros de rentabilidade, vivo do que já trabalhei e com o conforto que considero adequado. O que eu procuro são projetos que sirvam e valorizem o Algarve”. O mesmo entusiasmo tinha com a empresa de embarcações movidas a energia solar, a “Sun Concept”, em cujo desenvolvimento colocava a maior esperança. Mas, como sonhador realista, dizia-me que a “Sul, Sol e Sal” é um “embrião cultural improvável para o Algarve”. E era sua intenção editar obras em várias áreas, em especial nos domínios da história e do património, mas também do urbanismo, da agricultura biológica e da ecologia. Escolheu uma designação quase mágica e como símbolo a maravilhosa canoa da Picada, embarcação veleira de tradição mediterrânica, utilizada até finais do século XIX que, devido à sua rapidez e facilidade de manobra, transportava o peixe vindo do alto mar para chegar às cidades.  A metáfora da pesca milagrosa adaptava-se plenamente à difusão do livro e da leitura. Aliás, logo no início, o saudoso professor Joaquim Romero Magalhães propôs uma “Algarviana Breve”, lembrando Mário Lyster Franco, e projetou a publicação da “Crónica da Conquista do Algarve”, nunca editada, ou dos textos de Raul Proença no “Guia de Portugal”. Essa a linha estratégica de um projeto pleno de virtualidades que envolverá a cooperação da Universidade do Algarve e dos melhores especialistas. Não por acaso, a tónica em que Manuel Brito insistia era que a editora “é um projeto que não procura o lucro, mas tem de ser sustentável”. E o Algarve bem precisa da valorização do que tem de mais rico – as raízes, a economia, a natureza e o desenvolvimento humano. As obras editadas, como “Olhão fez-se a si próprio” do também saudoso António Rosa Mendes, ou “A Pesca no Algarve Medieval” de José Marcelino Castanheira e o texto fundamental de Joaquim Romero Magalhães “O Algarve Económico durante o século XVI” constituem bons exemplos da defesa do património cultural como realidade viva, não numa lógica retrospetiva, mas sempre como conceito em movimento. Por tudo isso, refiro o exemplo de alguém que nos deixa como legado um desafio de responsabilidade, ligando a memória das raízes antigas, o diálogo entre culturas e a necessidade de encarar o desenvolvimento humano como uma ligação permanente entre o conhecimento, a compreensão, a ciência, a educação, as artes e a cultura. Tenho no ouvido a nossa última despedida “até ao nosso próximo encontro”. É duro dizê-lo, mas vamos continuar!


GOM 

PEGA AZUL OU CHARNECO – UM BOM SÍMBOLO


TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Nova série. 9.10.2018

 

Em Loulé, no sábado passado, o meu amigo Arquiteto Fernando Pessoa fez uma sugestão algo revolucionária. Falou-nos de uma pequena ave comum no Algarve e no sul português, mas também no distante Japão – a pega azul, rabilongo ou charneco (cyanopica cyanus). Ora, considerando que a dita avezinha apenas persiste, depois de mil vicissitudes, em territórios tão distantes geograficamente entre si, no extremo ocidental e no extremo asiático mas tão próximos no diálogo histórico e cultural, é caso para perguntar se não poderia tornar-se um símbolo do património natural e da paisagem… Afinal, acompanhou a nossa projeção global – e D. João II enalteceu-o.  Se o património cultural não deve ser fechado, mas disponível e aberto, eis um bom exemplo de ligação natural entre o que é próprio e diferente… Esta pega azul bem pode tornar-se um símbolo. Vejo-a correr em busca de novidades. E que é o património senão essa curiosidade permanente perante o que é vivo?

Nas minhas deambulações percebo bem a sugestão do Arquiteto. Também tendo a adotar um símbolo. Para já fiquemos com ele… E oiçamos o poeta de Alte.

 

Cheios de paz e cheios de doçura,

Dão-me os teus olhos tanta claridade

Que a minha tormentosa noite escura

Se rasga em Vias-lácteas de bondade!

 

E vou na trajetória da ventura,

E sigo a linha reta da verdade,

Por ti guiado, oh frágil criatura,

Tão forte em tua simples humildade!

 

Que o amor vos traga aonde o amor me trouxe,

Cegos que enveredastes pelo mal,

Pois nesta estrada chã, direita e doce,

 

A morte ajoelhará quando vier,

Ante a Vida, que a Vida é imortal,

Reflorindo num seio de mulher!

(Cândido Guerreiro)

 

Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

 

A VIDA DOS LIVROS

De 8 a 14 de outubro de 2018.

 


«Loulé – 630 Anos de Poder Local»
(edição da Câmara Municipal de Loulé, 2014) constitui um repositório valioso, envolvendo uma exposição e os textos apresentados a esse propósito – onde se documenta um acervo precioso onde avultam as Atas de Vereação mais antigas do País.

 


UMA HISTÓRIA PLENA

Esse conjunto de elementos e reflexões de prestigiados autores (como Joaquim Romero Magalhães, Maria Helena Cruz Coelho, Maria de Fátima Botão, Eduardo Vera-Cruz Pinto e António Ramos Preto) serve de base às notas que apresentamos, no momento em que teve lugar um frutuoso périplo nos municípios de Faro e Loulé. No âmbito do ciclo “Viagem na Minha Terra”, a escolha incidiu sobre dois municípios fundamentais para a compreensão do Algarve. O périplo iniciou-se em Faro, “Vila Adentro”, em ameno convívio ao almoço, para recordarmos as origens da cidade e as suas vicissitudes - as origens fenícias, a criação e a afirmação de Ossónoba, as intensas trocas comerciais e culturais, a ocupação romana, a presença dos visigodos e de Bizâncio, bem evidente nas muralhas, recentemente consolidadas, a cultura árabe, numa cidade que se designaria como Santa Maria do Ocidente e depois como Santa Maria de Harum. Esta referência à família árabe de Beni Harum é que dará origem à designação moderna de Faro. Damião de Góis foi dos primeiros em falar de Faro, como hoje dizemos. A reconquista cristã foi controversa, até que o rei de Castela, no Tratado de Badajoz (1267), reconheceu a legitimidade do nosso D. Afonso III. O seu sogro Afonso X considerava-se como protetor da taifa de Niebla, onde o Al Gharb do Al-Andalus se integrou, mas o rei Sábio viria a ceder, considerando ser D. Dinis, futuro rei de Portugal, seu neto e de seu sangue. Uma curiosidade: diz a tradição que aqui nasceu D. Brites de Almeida, a célebre padeira de Aljubarrota…

 

O PRIMEIRO LIVRO IMPRESSO
A comunidade judaica de Faro foi ativa e interveniente, tendo sido aqui impresso e publicado em hebraico o primeiro livro português com caracteres móveis de Gutemberg – o “Pentateuco” (1487). Faro foi elevada a cidade em 1540 e em 1577 D. Sebastião tornou-a sede episcopal, com o primeiro Bispo D. Afonso Castelo Branco (1577). Cidade do litoral, num oceano infestado de piratas e corsários, Faro foi saqueada pelos ingleses em 1596, já no reinado de Filipe I, tendo o precioso arquivo da Sé sido roubado ou destruído e levado para a Universidade de Oxford, onde se encontra na Biblioteca Bodleiana. Avulta nele a documentação riquíssima de D. Jerónimo Osório, Bispo de Silves, intelectual marcante do século XVI. Num breve périplo dentro das muralhas, na cidade antiga, pudemos lembrar os dois terramotos que destruíram a cidade em 1722 e 1755 e a figura marcante, cuja estátua se encontra diante da Catedral, do Bispo D. Francisco Gomes Avelar, falecido em 1816, que assumiu a tarefa de reedificar a cidade destruída. A ele se deve a construção do Arco da Vila, do Hospital da Misericórdia e o acabamento do Seminário. Em frente da Torre da Sé recordamos uma das poucas edificações que resistiu aos diversos terramotos. A Catedral é um monumento da Renascença quinhentista com três naves de quatro tramos divididas por colunas dóricas e tetos de madeira, alberga o célebre relicário de talha do século XVIII, com o santo lenho, graças ao empenho do Bispo D. António Pereira da Silva. E não esquecemos a alusão ao órgão barroco do Coro Alto, com chinoiseries, do reinado de D. João V. O que foi a Judiaria deu lugar ao Convento de Nossa Senhora da Assunção, fundado pela rainha D. Leonor… A cidade desenvolveu-se como capital do Algarve, que perdeu a designação de Reino em 1910, mas nunca teve órgãos soberanos. Em nome da memória, não esquecemos Cândido Guerreiro, António Ramos Rosa, Gastão Cruz, a “Poesia 61”, Teresa Rita Lopes, e lembramos passagens marcantes na obra de Manuel Teixeira Gomes, em especial em “Gente Singular”. O estranho calor de uma tarde do feriado de Outubro não nos deixa parar durante muito tempo em cada um dos lugares nesta capital, que sucedeu a Silves, quando o rio Arade deixou de ser navegável e o eixo de gravidade algarvio passou para Sotavento. Damos um salto até Milreu, para recordarmos a presença romana, lembrando a extraordinária riqueza cultural da região, onde Estácio da Veiga deu, no século XIX um impulso decisivo para o desenvolvimento da Arqueologia, abrindo pistas, ainda por explorar plenamente.

 

INFLUÊNCIAS MÚLTIPLAS
Na encruzilhada de influências, desde o mar do Norte até ao Mediterrâneo, facilmente percebemos o património cultural como realidade viva. O turismo cultural tem, de facto, no Algarve potencialidades que não podem ser esquecidas. E que nos revelam as ruínas de Milreu? O exemplo de uma villa romana rustica ligada à intensa atividade económica do Algarve – desde as pescas à agricultura – que culmina num edifício de luxo que ainda hoje nos surpreende: entrada com peristilo, termas, pátio central, jardim, tanque, triclinium com abside, lagares de azeite e vinho, casa rural, edifício religioso… A visita ao centro arqueológico, com a Drª Alexandra Gonçalves, Diretora Regional da Cultura, foi ilustrativa do progresso económico alcançado, das riquezas adquiridas e do esmero artístico alcançado. Por isso, fizemos questão de ler o poema de Jorge de Sena alusivo à cabecinha romana encontrada em Milreu, que se encontra no Museu Nacional de Arqueologia. E, ao fim do dia, no Hotel EVA de Faro, quando nos encontrámos com o Presidente da Câmara de Faro Dr. Joaquim Bacalhau, pudemos invocar um diálogo tão rico entre os vários tempos vividos pela capital algarvia…

 

PEREGRINAÇÃO LOULETANA
Na manhã de sábado iniciamos a peregrinação na Praça da República de Loulé, no Café Calcinha, depois de lembrarmos que estamos no maior concelho do Algarve, composto pelas três zonas tradicionais – litoral, barrocal e serra. Aqui invocamos o poeta António Aleixo, representado pela estátua da autoria do Mestre Lagoa Henriques. O Presidente da Câmara Dr. Vítor Aleixo e a Drª Dália Paulo dão-nos as boas-vindas. E a Drª Luísa Martins, na tradição do Professor Manuel Viegas Guerreiro, invoca o ambiente deste histórico Café (1929), que é o exemplo da memória viva, do património imaterial – e que se chamou Central, Carioca e Louletano. Lembramos nas tertúlias do Calcinha o Doutor Bernardo Lopes, o nosso João Semana, com lugar certo neste ponto de encontro, que celebrizou os folhados de doce de ovos, que são imperdíveis. Falamos do Dr. Frutuoso da Silva, ilustre jurista, que também tinha aqui lugar certo… Seguimos para a maravilhosa Igreja da Senhora da Conceição das Portas da Vila, mandada erigir aquando da Restauração da Independência (1640) – com altar precioso de talha dourada, cobertura de azulejos de grande qualidade artística representando cenas da vida da Virgem e referências aos resultados das investigações arqueológicas sobre as muralhas e as portas da Vila. E segue-se a entrada na autêntica gruta das Mil Maravilhas – com a Drª Isabel Luzia. Fazemos o percurso arqueológico e histórico deste território riquíssimo e deparamo-nos com o célebre “Metoposaurus Algarviensis”, com 227 milhões de anos, antepassado dos dinossauros, e exemplo único descoberto na Rocha da Pena (em Salir). É natural a emoção posta na alusão a esta descoberta que abre perspetivas científicas, que a UNESCO segue com atenção. O sentido pedagógico ressalta neste núcleo onde seguimos do Paleolítico até ao Neolítico, reconhecendo a importância da presença megalítica do Ameixial com as Antas da Pedra do Alagar e de Beringel. Anuncia-se o desenvolvimento de um centro interpretativo onde a Ciência e a Cultura se encontram naturalmente e continuarão a aprofundar essa relação.

 

MILHARES DE VISITANTES
É reconfortante ver milhares de pessoas pedestres, motards, cicloturistas…), visitando os monumentos, frequentando o mercadinho, sentindo o património cultural como presente. E é o momento de chegarmos aos Banhos Islâmicos, projeto de Loulé, como não encontramos outro em Portugal. O edifício «Hammam» -, no coração da cidade constitui um fator essencial para o melhor conhecimento do período anterior à reconquista cristã, sabendo-se da importância para a cultura muçulmana do ritual da limpeza, corporal e espiritual. De facto, mesmo depois da reconquista e do foral concedido por D. Afonso III as práticas tradicionais mantiveram-se, sendo reservada para o rei a posse dos banhos públicos. Atente-se, aliás, na sala quente, na sala temperada e na pequena parte da sala fria, ou nas chaminés… E antecipamos a possibilidade de usufruir a memória. Antecipamos o que será no futuro próximo um verdadeiro exemplo de como se deve cuidar da memória histórica, arqueológica e patrimonial… E sentimos o projeto “Loulé Criativo”, com os caldeireiros, os oleiros e a oficina da empreita de palma, para culminarmos nos ateliês do Convento do Espírito Santo do “Loulé Design Lab”. Património material e imaterial e criação contemporânea – como a Convenção de Faro nos ensina. Almoçamos na Quinta do Moinho, junto da Mãe Soberana, vemos o Centro Cultural de Almancil e a fulgurante igreja de S. Lourenço com os azulejos de Policarpo de Oliveira Bernardes e da sua oficina – e vamos até ao Paço do Concelho para debater os “Itinerários Culturais e o desenvolvimento local”, com o Arquiteto Fernando Pessoa – que propõe como símbolo para o património natural e paisagem: a pega azul ou charneco, que o Algarve apenas partilha com o Japão… Urgia ilustrar a força mobilizadora do património cultural. E merecemos um delicioso jantar no Monte da Eira, como um simpático javali suculento e macio… E no domingo de manhã, como não poderia deixar de ser, foi Alte de Cândido Guerreiro que recebeu principescamente a nossa missão – para dizer que o património cultural tem a dimensão humana, tradição e entusiasmo.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

 

De 10 a 16 de julho de 2017.

 

A exposição do Museu Nacional de Arqueologia intitulada “Loulé: Territórios, Memórias, Identidades”, com coordenação de António Carvalho, Dália Paulo e Rui de Almeida, constitui uma oportunidade única para tomarmos contacto com o riquíssimo passado do Sudoeste Ibérico, uma das zonas da Europa mais ricas em termos arqueológicos, em razão de estarmos numa encruzilhada de povos e de influências, que muito tem para contar… 

 

 

PARTIR DO PIONEIRISMO
O trabalho pioneiro de Estácio da Veiga (1828-1891) tem de ser lembrado, quando visitamos a exposição do Museu Nacional de Arqueologia intitulada “Loulé: Territórios, Memórias, Identidades” (como dissemos com a competente coordenação de António Carvalho, Dália Paulo e Rui de Almeida). Partindo da riqueza histórica e patrimonial algarvia, como encruzilhada entre o Mediterrâneo e o Atlântico, temos um conjunto de informações, materiais e conhecimentos, inicialmente destinados a um Museu Arqueológico do Algarve. Estamos diante de uma narrativa que conta a evolução das comunidades que constituíram o cadinho deste extremo ocidente mediterrânico, desde a Pré-História à Idade Média, a partir de vestígios arqueológicos e fontes documentais recolhidos e conservados ao longo do tempo, com persistência e rigor científico. Como diz Lídia Jorge: “Aqui tudo fala de um tempo antes da História, em que a África estava unida à Europa, e ao mesmo tempo tudo esconde. Depois, muito mais tarde, quando as ervas deram flores, e já existiam homens para colhê-las, levas sucessivas de povos do mundo pré-histórico aqui vieram fixar-se, porque ali havia terra boa, sol brilhante e mar tranquilo, e era após era, foram deixando o rasto das suas mãos fabricadoras no solo generoso que habitaram. Hoje, passados milhares de anos, o movimento é semelhante…”. Estas palavras são as de quem ama e lembram aquele pequeno azulejo com que meus avós acolhiam os forasteiros: “Bem-vindo seja quem vier por bem”. Ao encontrar agora Joaquim Romero Magalhães, lembrei-me das conversas com seu Pai, a invocar a terra vermelha que acolhe a cultura destes campos de fecundidade exigente, as memórias antigas de muitas gerações de gentes diversas e heterogéneas, para quem a rede de pesca e o arado, a proa da embarcação de inspiração grega e fenícia, a açoteia e a nora se complementam naturalmente, de modo milenar e as identidades abertas capazes de unir e complementar judeus, cristãos e árabes, na riquíssima herança moçárabe.

 

DESDE AS MAIS ANTIGAS RAÍZES
Das antigas sociedades camponesas, entre 6 mil e 2 mil antes da nossa era, encontramos a bilha da Retorta (Boliqueime), os menires do Serro das Pedras, o sítio do Forte Novo, o povoado do Cerro do Castelo de Corte João Marques (Ameixial) com uma instimável riqueza desde a cerâmica e pedra à metalurgia do cobre. Para a Idade do bronze, apesar da míngua de elementos, temos da necrópole da Vinha do Casão (Vilamoura) cerâmicas, artefactos metálicos e de pedra. Na Idade do ferro, temos os fantásticos vestígios da cultura que possuía uma forma de escrita gravada sobre estelas, a escrita do Sudoeste, derivada do alfabeto fenício, cuja decifração constitui grande desafio para os dias de hoje. É a “pedra com letras que não se dá conta de ler”, de que o povo fala. No tempo do império romano instalam-se as villae e propriedades agrícolas, que vão permitir a ligação dos produtos da terra aos preparados de peixe, exportados em ânforas de barro. Para este tempo, o Cerro da Vila (Quarteira) é um caso de requinte e progresso (lembremos a belíssima cabeça feminina de mármore dos séculos II-III d.C.). Depois, bizantinos, visigodos e árabes continuarão aqui, com novas culturas, para além da oliveira, como a alfarrobeira, a figueira ou a laranjeira. E, na chamada Vila Moura, que deu origem ao moderno topónimo, foram encontradas esculturas, mosaicos, vidros, cerâmica fina, lucernas e adornos femininos.

 

QUINHENTOS ANOS…
Os povos de língua árabe estiveram 500 anos no Algarve, mas continua a haver um grande desconhecimento da sua influência. Loulé não tem uma matriz romana, mas muçulmana – daí o processo lento da sua construção. As cidades de influência moura ou árabe ou nascem da vontade política ou de uma dinâmica local. No caso de Loulé prevalece a riqueza agrícola do barrocal e, como Tavira, singulariza-se pela dimensão mercantil – daí abranger as três zonas algarvias e ter das principais vias usadas pelos almocreves em direção ao Alentejo. Agricultores, pescadores, mercadores movimentavam-se intensamente no maior concelho meridional. Sinal de progresso está nos banhos árabes de Loulé, para lazer e purificação do corpo, a que se refere a poesia árabe, que demonstram estar-se em Madinat al-‘Ulyà no auge da época almóada (séculos XII-XIII) muito para além da economia de subsistência. É uma identidade aberta a que aqui se encontra… No século XI, Loulé ainda era uma aldeia ou alcaria que se desenvolveu num vasto território com 45 por cento de serra xistosa e de mato, 40 por cento de barrocal calcário e 15 por cento de litoral. E se Loulé não tem porto, o litoral permitiu o contacto com as navegações de fenícios, gregos, cartagineses, romanos e normandos. Os pescadores algarvios irão nas caravelas e o Morgado de Quarteira servirá de laboratório para as ilhas Atlânticas a cultura da cana-de-açúcar. Compreende-se a afirmação de Orlando Ribeiro: “A civilização mediterrânica é (…) uma civilização da pedra, consequência da intimidade do homem com este elemento, que ora elimina nas terras de cultura ora utiliza na maior parte das suas obras materiais; daí o carácter construído da paisagem mediterrânica, tanto nas formas de povoamento como na organização do campo”. Ora, a pedra usada em valados, muros de suporte e de resguardo, caminhos, pontes, aquedutos, forro de poços é um precioso elo com a longa duração. A cada passo descobrimos vestígios antigos, onde se manifesta a sobreposição de gerações e de tempos. “Mas o Algarve não é o jardim do Éden” – ensinava ainda Mestre Orlando. “Olhe-se como os campos e os arvoredos estão encerrados por afloramentos de calcário estéril. Repare-se como, por toda a parte, os muros de pedra, as belas sebes de opúncias, a casa esparsa e o entrecruzar de caminhos, mostram até que ponto a terra está ocupada”. Foi a fragmentação dos reinos taifas que facilitou a reconquista cristã… O Al-Gharb do Al-Andaluz compunha-se de distritos militares (Faro e depois Silves), comarcas civis e rurais, casais e aldeias (alcarias), cidades amuralhadas e castelos, de pedra ou de taipa. O Mediterrâneo funcionou como ponto de encontro, como zona de intenso relacionamento do Oriente e do Ocidente, que se interpenetram. Aqui encontramos as cerâmicas finas da Gália, o azeite de Sevilha, o preparado de peixe da Bética – e daqui saem os figos secos, as amêndoas e as laranjas… Isto, enquanto culturalmente o moçarabismo permite o diálogo fecundo entre judeus, cristãos e árabes – sendo a Península Ibérica, com Constantinopla, eixo da renovação do pensamento europeu, graças ao progresso técnico vindo da Ásia, através do Levante, e à redescoberta da filosofia grega. Perante este repositório apaixonante de referências antigas, desde as raízes aos tempos de memória mais próxima, “de todos recebemos pedaços da história local, regional, nacional e todos, todos, são Loulé”.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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A VIDA DOS LIVROS

De 24 a 30 de novembro de 2014.

 

«Al-Úliá» é a revista do Arquivo Municipal de Loulé, dirigida por Manuel Pedro Serra, que reaparece, depois de quatro anos de interrupção, (nº 14, 2014) representando um bom exemplo de qualidade científica e cultural, bem como de uma assinalável persistência, digna de muito apreço.

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 UM NÚMERO SUCULENTO
O sumário deste número é bastante suculento e atrai não apenas o leitor comum, mas também o especialista, o historiador, o arqueólogo ou o professor. De facto, o que se pretende é levar o Arquivo Municipal até junto dos interessados e cidadãos, permitindo dar a conhecer a documentação existente ou os elementos históricos e arqueológicos disponíveis, mas, mais do que isso, permitir incentivar os investigadores e os estudiosos no sentido de promover nos diferentes campos do saber o aprofundamento e o desenvolvimento de diversas ciências. Por isso, faz sentido a proposta do dr. Manuel Pedro Serra orientada para uma maior exigência na investigação e nos critérios de aferição da qualidade dos textos publicados, de modo a garantir que os mesmos sejam considerados nos currículos científicos dos seus autores, segundo as regras internacionais de avaliação. Antes de mais, o texto relativo ao tema antigo e misterioso das «estelas» com escrita do Sudoeste presentes em monumentos funerários no concelho de Loulé dá-nos um repositório sobre as diversas interpretações relativas à controversa questão. Por um lado, a chamada escrita do Sudoeste (associada a tartéssios e turdetanos) representa uma referência mediterrânica, na qual as civilizações do Levante se projetaram na Península Ibérica. Por outro, e esse é o ponto essencial do texto, verifica-se que a integração das estelas na construção das sepulturas pode eventualmente ser vista como uma intenção de atribuir aos espaços funerários um valor simbólico relacionado ou diferente do que teriam os referidos elementos no seu contexto original e primário. José Leite de Vasconcelos, Estácio da Veiga, Mário Lyster Franco, Abel Viana são referenciados nas suas investigações, completadas pelas mais modernas descobertas sobre a controvérsia antiga. Um segundo texto refere-se aos assentamentos rurais romanos no Barrocal algarvio, com especial ênfase para os primeiros trabalhos no sítio romano do Espargal. Trata-se de um projeto internacional da maior importância, envolvendo a coordenação da Universidade alemã de Jena, com apoio do município de Loulé. É exemplar hoje este tipo de cooperação, já que permite maiores avanços da investigação, mercê da comparação e da circulação de resultados relevantes. Neste caso, só trabalhos futuros permitirão saber quais as especificidades das unidades agrícolas romanas no interior do Algarve por comparação com a colonização do litoral. O terceiro tema tem uma especial atualidade, uma vez que se refere à escavação arqueológica da «casa das bicas» e dos estabelecimentos balneares do período islâmico – o edifício «Hammam» de Loulé. A referida investigação ocorre no centro de Loulé, no coração da cidade, constituindo um fator essencial para o melhor conhecimento do período anterior à reconquista cristã, sabendo-se que para a cultura muçulmana o ritual da limpeza, corporal e espiritual, é determinante. Mesmo depois da reconquista e do foral concedido por D. Afonso III essa função manter-se-á. Atualmente é já visível parte da sala quente, grande parte da sala temperada e uma pequena parte da sala fria, além das chaminés no interior dos muros…

 

O CÉLEBRE REGUENGO DE QUARTEIRA

O artigo sobre o Morgado do Reguengo da Quinta de Quarteira, desde a Idade Média até ao século XIX, constitui um excelente repositório histórico que permite compreender a evolução de um espaço fundamental que hoje é ocupado pelo empreendimento turístico de Vilamoura. Historicamente, o Reguengo de Quarteira liga-se à evolução do Algarve no contexto da história portuguesa. Não podemos deixar de lembrar a importância que essa propriedade teve no período dos Descobrimentos e no povoamento das ilhas do Atlântico. E, se houve controvérsia entre Vitorino Magalhães Godinho e Armando de Castro sobre a cultura da cana-sacarina, a verdade é que o antigo Morgado teve sempre uma importância significativa. Tratou-se de uma propriedade régia reservada para si por D. Afonso III no citado foral de 1266, que foi sendo objeto de aforamentos ao longo do tempo. Gonçalo Nunes Barreto obterá Quarteira por contrato de escambo com o rei D. João I, sucedendo-lhe os seus herdeiros por várias gerações, até que em final de seiscentos o Morgado ficará na linhagem dos condes de Vale de Reis, depois Duques de Loulé. Em meados do século XVIII, Quarteira é referida como um lugar «povoado de cabanas em que vivem os moradores que quase todos são pescadores que, com as suas artes, pescam abundante sardinha…». Joaquim Romero Magalhães fala de «choças de palha e junco», ocupadas no verão, num porto em que só entravam pequenas embarcações e em que grassava muita malária para os seus moradores. Compreende-se, através deste bosquejo, como se desenvolve a economia algarvia, desde o reinado de D. Afonso III até ao período liberal. Outros textos merecem cuidada atenção, como o respeitante a «Maninhos, baldios e bens do concelho no Algarve Medieval» ou o relativo à «Magia e sociedade no Algarve na quarta década do século XVII». Por irónica coincidência, Lídia Jorge situa o seu «Dia dos Prodígios» em Vila Maninhos e faz da magia o motivo do romance. Se maninho significa lugar inculto e baldio propriedade comunitária, a verdade é que o Algarve é um lugar onde a imaginação se desenvolve, em torno de temas mágicos e prodigiosos. Já Frei João de S. José dizia em 1577, haver «neste reino do Algarve muitas cousas notáveis e maravilhosas e tão particulares dele só, que não se acham em outro algum, assi, na própria natureza da terra como também nos costumes de que usam os moradores dela». O texto dá-nos uma ampla panóplia de situações, bem como de dissuasores sociais, que revelam uma evidente especificidade…


PATRIMÓNIO MATERIAL E IMATERIAL
O caso da Ermida de Nossa Senhora da Conceição de Loulé é um caso especial de qualidade artística que é apontado como exemplo da valorização do património na oferta turística algarvia. Poderá, aliás, associar-se a este pequeno exemplo o caráter inovador da Convenção do Conselho da Europa, assinada em Faro em 27 de outubro de 2005, que relaciona património material e imaterial, criação contemporânea e cultura de paz. Num registo diverso o Prof. Luís Reis Torgal apresenta-nos um documento da propaganda do Estado Novo, o filme de António Lopes Ribeiro (que chegou a ir até Eisenstein – de «O Couraçado Pontemkin» - , para colher ensinamentos) sobre «A morte e a vida do Engenheiro Duarte Pacheco». O ilustre louletano e a obra são apresentados como referências modelares do seu tempo… Os elementos biográficos do Professor Joaquim Magalhães («um algarvio natural do Porto ao serviço da cultura e do próximo»), professor, escritor, divulgador do talento de António Aleixo, homem de cultura e diálogo, dão-nos um paradigma do cidadão e do educador, que tão intensamente marcou a sociedade algarvia do seu tempo. Sobre a atividade tipográfica no concelho de Loulé, poderemos recordar o papel fundamental desempenhado pela imprensa local (merecendo referência especial José Maria da Piedade Barros e a «A Voz de Loulé). Por fim, além da invocação pelo Prof. Melo Sampaio sobre o Instituto Superior D. Afonso III, Maria Aliete Galhoz, grande referência da cultura de Loulé (pessoana da primeira hora e estudiosa das tradições culturais) apresenta-nos um romance de Reis na tradição oral do concelho de Azambuja dispondo do mesmo paradigma de um vilancico produzido na Lisboa seiscentista. Os temas são todos apaixonantes… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins