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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  

ATORES, ENCENADORES (II)
O ESPETÁCULO NO PRÓPRIO TEXTO – CAMÕES, CHIADO, JORGE FERREIRA DE VASCONCELOS
por Duarte Ivo Cruz


Nesta série de artigos, evocamos sobretudo os que fazem o espetáculo, a partir de textos expressos ou mesmo improvisados, mas suscetíveis de fixação e de expressão teatral. A referência específica a atores profissionais inicia-se e desenvolve-se, como veremos em próximos artigos, ao longo do século XIX mas com grande relevância no século XX e até aos nossos dias: mas a partir dos séculos XVI/XVII, os textos já muitas vezes definem, expressamente e diretamente, a sua dimensão de espetáculo.


Vejamos dois exemplos breves mas relevantes, quanto mais não seja pela qualidade e projeção dos autores respetivos.


E desde logo Camões. Tenho escrito que o teatro de Camões, independentemente de atingir o nível e o significado incomparável de Os Lusíadas ou mesmo da Lírica, além de breve - três peças – assume larga projeção no contexto do teatro renascentista, pela sua óbvia qualidade ou não fosse uma criação camoniana - e pelo próprio sentido “de espetáculo”, o que normalmente não é tanto sublinhado. Aliás é caso para dizer que “sentido de espetáculo”, no mais nobre e qualificado alcance do termo, encontramos também na restante obra de Camões.


Só como mero exemplo, e são tantos ao longo dos 10 Cantos de Os Lusíadas, veja-se a estrutura cénico -  dramática do episódio de Fernão Veloso inclusive no contraste entre o trágico e o irónico (Canto V- Estrofe 35):


«Disse então a Veloso um companheiro/ (Começando-se todos a sorrir): / “Olá Veloso amigo, aquele outeiro/ É melhor de descer do que de subir”/ Sim, é respondeu o ousado aventureiro; /Mas quando eu para cá vi tantos vir/ Daqueles Cães, depressa um pouco vim/ Por me lembrar que estáveis cá sem mim”.


Este episódio, repita-se, apresenta um conteúdo em si mesmo teatral, no sentido cénico e de espetáculo. Contem o diálogo, as indicações cénicas (“começando-se todos a sorrir”) e a própria direção/ caracterização do personagem (“o ousado companheiro”) – e ainda, a ironia e graça do texto, que contrasta com a situação em que se enquadra e até – mas não é caso único – com o incomparável sopro épico de Os Lusíadas.


Mas vejamos agora o Auto de El-Rei Seleuco, representado entre 1543 e 1549. Para alem da genialidade do texto, ou não fosse de quem é, traz-nos a curiosidade de dramatizar uma representação do próprio Auto em casa de Estácio da Fonseca, Cavaleiro Fidalgo de D. João III, almoxarife e recebedor das aposentadorias da Corte. Um alto funcionário, diríamos hoje.


E o auto inicia-se com  o diálogo irónico do próprio Estácio com o seu moço-criado, acerca dos atores que iriam representar a  peça:


«Estácio – São já chegadas as figuras? / Moço – Chegadas são elas quase ao fim de sua vida./  Estácio_ Como assim? / Moço - Porque foi a gente tanta, que não ficou capa com frisa nem talão de sapato que saísse fora do couce. Ora viram aí uns embuçadetes e quiseram entrar por força: ei-lo arrancamento na mão: deram uma pedrada na cabeça do Anjo e rasgaram uma meia calça ao Ermitão; e agora diz o Anjo que não há de entrar até lhe não derem uma cabeça nova, nem o Ermitão até lhe não porem uma estopada na calça. Este pantufo se perdeu ali: mande-o Vossa Mercê domingo apregoar nos púlpitos, que não quero nada do alheio/ Estácio– se ela fora outra peça de mais valia tu botares a consciência pela porta fora para a meteres em tua casa»…


Assim seria o chamado meio teatral no século XVI…


Ora, pela mesma época, entre 1545 e 1557, escrevia António Ribeiro Chiado o seu Auto da Natural Invenção. E também aqui se recorre a uma cena de presentação na Corte ou na alta classe mercantil. Temos aqui também o dialogo entre o dono da casa e o seu criado:


“Dono – Almeida!/ Almeida – senhor?/ Dono – Vem cá, vem cá!/ sabes se há –de tomar o porto/ hoje este auto, ou se é morto./ Almeida – E o autor onde está?/ Dono – Em casa de teu avô torto/ ou marmelo pela perna!/ Quem por rapazes governa/ sua casa é mais rapaz/ e  rapaz que tratos traz, / com quem a malícia inverna./ Que te mandei todo hoje?/ Almeida – Que mandou vossa mercê?/  Dono – Já nada, pois que assim é, /Não mande Deus que te noja»…


Já havia pois, nesta época, comediantes profissionais e companhias. Aliás Camões, no Rei Seleuco cita o Chiado, quando o Escudeiro Ambrósio diz que “o Moço Lançarote (…)   uma trova, fá-la tão bem como vós ou como eu, ou como Chiado”.


E pela mesma época, Jorge Ferreira de Vasconcelos, na comédia Aulegrafia também cita Chiado e põe na boca do personagem D. Ricardo este elogio ambíguo: “Em algumas cousas teve veia esse escudeiro”!


Termino com três citações.


Hernâni Cidade encontra nos Anfitriões de Camões uma “ternura que Plauto desconhece” (in Obras Completas de Camões vol.III); Clarice Berrardbnelli e Ronaldo Menegaz comparam a peça do Chiado com a de Camões, na convergência “de uma auto (B), dentro de um outro(A), mas enquanto Camões nos dá uma trama unida (…) o Chiado vai ao sabor da sua natural invenção traçando os fios e deixando as pontas soltas” (in Autos de António Ribeiro Chiado, ed. Rio de janeiro 1968); e Maria Odete Dias Alves assinala que Jorge Ferreira de Vasconcelos “povoa o palco de figuras portuguesas da sua época: é o ambiente de Quinhentos que vive nas suas paginas” (in A Linguagem dos Personagens de Jorge Ferreira de Vasconcelos  - U Coimbra 1972).  


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 17.12.14 neste blogue.

A VIDA DOS LIVROS

  

De 20 a 26 de fevereiro de 2022.

 

Na celebração dos 450 anos da publicação de “Os Lusíadas” de Luís de Camões, importa não apenas recordar o épico e a sua obra, mas também o lugar que ocupa no desenvolvimento e afirmação da cultura da língua portuguesa.

 

UMA ESCOLHA SINGULAR
Quem considera a escolha como símbolo da identidade portuguesa do nosso mais notável poeta, cuja data da morte foi escolhida para Dia Nacional, manifesta alguma surpresa, uma vez que segundo a regra da maior parte das nações essa escolha relaciona-se com um facto histórico, uma batalha, uma conquista ou uma revolução. A escolha de um vate é motivo de admiração. Mas há razões antigas para tal essa escolha. Não por acaso, pouco depois do início da monarquia dual, o recém entronizado Filipe I, quando veio a Lisboa, quis encontrar-se com o poeta, só então tendo conhecimento da sua morte. E Severim de Faria relata o sucedido: “sabendo que era falecido mostrara disso sentimento, porque desejava de o ver por sua fama, e fazer-lhe mercê”. O episódio leva-nos a lembrar como Camões não foi suficientemente reconhecido em vida, ao invés do que aconteceria depois da sua morte. E o certo é que, com o decurso do tempo, o poeta foi-se tornando um verdadeiro símbolo, venerado pelos admiradores do seu talento e da sua qualidade poética, mas também por quantos erigiram a sua obra épica como um sinal de resistência, de autonomia e de sentido de independência. E ainda Severim de Faria fala da importância da narrativa de “Os Lusíadas”, porque relata a viagem de Gama até à Índia e o seu regresso, incluindo no curso dos acontecimentos os episódios mitológicos, as referências fabulosas, como a da Ilha dos Amores, mas também notas científicas e alusões a uma plêiade de varões ilustres. E assim encontramos as lições de Virgílio e Horácio no tocante ao culto da Arte Poética, à fidelidade aos acontecimentos e à apresentação de imagens, capazes de motivar os leitores para a compreensão da importância de uma viagem que abriu novos horizontes na história do mundo. E se dúvidas houvesse, não podemos esquecer como Diogo do Couto admirou a obra de seu amigo Luís de Camões, que, com a “Peregrinação” Fernão Mendes Pinto, constitui um meio essencial para o conhecimento dos portugueses, mas, essencialmente, da humanidade.


O EXEMPLO DE CAMÕES
Ao longo dos séculos, o exemplo de Camões foi-se fortalecendo. Nos alvores do romantismo e da defesa da liberdade, Bocage e Garrett apontaram com clareza o papel fulcral desempenhado pelo genial poeta, cuja obra congregava qualidades essenciais para a emancipação dos portugueses. E entende-se por que razão, em 1880, num momento em que à decadência havia que saber contrapor uma nova Renascença, liberais, democratas, republicanos e socialistas reclamaram mudanças, levantando a bandeira de Camões, como sinal de emancipação, progresso e humanidade. E assim Luciano Cordeiro, secretário perpétuo da Sociedade de Geografia e jornalista, deu início aos preparativos de uma verdadeira celebração cívica, com extraordinários efeitos sociais e políticos. A partir desta iniciativa, a imprensa lisboeta tomou a dianteira na defesa de uma causa emancipadora, pela divulgação por meio de jornais e revistas da ideia de que urgia comemorar Camões, pois esta era uma "festa na nação" e não uma festa de partido, de escola ou de grupo. Segundo os promotores, o evento "tinha o objetivo de estabelecer a convergência de todos os indivíduos em torno da Pátria de que Camões era símbolo".


UMA MENSAGEM EMANCIPADORA
E como se chegou ao ano de 1880 e ao dia 10 de junho, em vez do que se entender, como até então, no esteio da ideia de Gonçalo Coutinho, a ideia de que o ano da morte era o ano de 1579? Luciano Cordeiro baseou-se nos documentos encontrados nos arquivos, segundo os quais a 24 de setembro de 1571, Camões obteve de D. Sebastião o alvará que lhe permitiu imprimir “Os Lusíadas” por um período de dez anos, saindo a obra em 1572, em Lisboa, em casa do impressor António Gonçalves. Em 28 de ju­lho desse mesmo ano, D. Sebastião concederia ao poeta uma tença anual de 15000 réis, a pagamento desde 12 de março, pelos serviços que este lhe havia prestado na Índia, e não apenas para o compensar pela publicação de “Os Lusía­das”. A tença foi paga irregularmente, mas sempre na sua totalidade, dela beneficiando, por ordem de Filipe I, rei de Portugal, a mãe do poeta, que ainda vivia. Foi graças a esta documentação que ficou a saber-se que a morte de Camões ocorreu na cidade de Lisboa, a 10 de junho de 1580. E foi essa chave que se tornou decisiva para assumir plenamente a celebração do grande símbolo cultural, que o Brasil também comemora, lembrando a proclamação libertadora de Joaquim Nabuco. Eduardo Lourenço disse, por isso: «Camões não é apenas um poeta com mais talento que outros para adaptar à ainda inadaptada língua nossa a música de Petrarca filtrada por Garcilaso, e com que consumado brilho e artificio, pois sem eles não se pertencia à juventude dourada e boémia que, por breves e eternamente lamentados momentos frequentou. Felizmente (para nosso egoísmo póstumo), os mais famigerados erros, a inconstante fortuna e o amor ardente impuseram-lhe a errante vida que aprofundando e trasmudando em ouro o destino mundano a que porventura estaria votado o converteram no autor de “Os Lusíadas”». Como afirma Ivo de Castro, Camões é o criador de uma obra superiormente comprometida com um estádio decisivo da língua pátria. É a maturidade poética do português que aqui se encontra, gerada na confluência dos valores da tradição medieval peninsular (num idioma afirmado originalmente na criação trovadoresca), das inovações quinhentistas e da capacidade e originalidade renovadora do genial poeta. Afinal, a obra épica revela-se premonitória na compreensão de outras culturas e civilizações e na legitimação de novas tendências nas trocas transcontinentais. Conhecem-se hoje pouco menos de quatro dezenas de exemplares de “Os Lusíadas” com data de 1572 espalhados por diversas bibliotecas de Portugal e do Mundo. A edição prínceps deverá ser a que apresenta o pelicano do frontispício virado para a esquerda, tendo o sétimo verso da primeira estância a redação “E entre gente remota edificarão / Novo Reino que tanto sublimarão”. Mas segundo Kenneth David Jackson, da Universidade de Yale, as diferenças que encontramos no interior das coleções encontradas poderão dever-se à introdução de correções nas provas tipográficas no processo longo de impressão da obra por António Gonçalves. Como diz José Carlos Seabra Pereira, o legado próximo de Camões atesta a “qualidade interpelativa e gerativa do épico”. Camões tornou-se figura projetada em mito. Não entraremos, porém, no debate sobre o mistério da edição (e de uma eventual contrafação), mas verificamos que a paixão existente neste debate demonstra bem a importância icónica de uma obra tornada símbolo nacional.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

 

 

(X) CAMÕES E «OS LUSÍADAS»

 

Camões é um todo que, se soubermos lê-lo, nos enche de ventura, não sendo por acaso símbolo pátrio. A sua obra multifacetada está na encruzilhada das grandes componentes culturais das nossas letras. A lírica é inultrapassável, na tradição trovadoresca, a épica ombreia com a melhor tradição clássica, e todos os géneros que o autor pratica são seguramente cultivados, sempre com mestria. E até o fino humor é usado com a melhor ironia, como no delicioso episódio de Fernão Veloso… Não admira o verdadeiro culto que lhe votava Jorge de Sena, sempre com tão exigentes critérios de julgamento. Vítor Aguiar e Silva e Vasco Graça Moura demonstram a suprema valia, a cada passo. Infelizmente a leitura de Camões não tem sido servida pela melhor pedagogia. Seja na lírica, seja na épica dá sempre para entrar em Camões pela porta grande. Basta ler com olhos de ver e sem tentações formalistas. Com sólida formação e conhecimento da vida e do seu tempo, embebeu-se não só da existência comum, mas também da cultura greco-latina como nenhum dos nossos escritores e, segundo Rodrigues Lapa, teve “a felicidade de viver e ser criado num tempo excecional, em que as disciplinas humanísticas, trazidas até cá por grandes professores, florescia entre nós intensamente”. E oiçamos sempre: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me, e novas esquivanças; / que não pode tirar-me as esperanças, / que mal me tirará o que eu não tenho…”. Luís de Camões em “Os Lusíadas” representa a maturidade poética da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Deveremos, por isso, ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heróicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e  Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II,  narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é crítico dos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordâcia de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “gloria de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao citado relato picaresco do Fernão Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo.  No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contém as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. Como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema tão sublime é tratado…

 

GOM

 

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A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de março de 2020

 

A «Lírica» de Luís de Camões é imortal. O Dia Mundial da Poesia deste ano não pôde ser assinalado como habitualmente. Estava prevista a celebração com a poesia de Amália. O nosso texto de hoje invoca Camões e lembra essa homenagem devida. «Lianor» é o belo mote de que partimos.

 

 

«VOLTAS» IMORTAIS…
«Descalça vai para a fonte / Lianor pela verdura; / Vai formosa, e não segura. / Leva na cabeça o pote, / O testo nas mãos de prata, / Cinta de fina, escarlata, / Sainho de chamalote: / Traz a vasquinha de cote, / Mais branca que a neve pura; / Vai formosa, e não segura, / Descobre a touca, a garganta, / Cabelos de ouro entrançado, / Fita de cor de encarnado, / Tão linda que o Mundo espanta: / Chove nela graça tanta, / Que dá graça à formosura; / Vai formosa, e não segura!». Trata-se de uma das célebres voltas que Camões nos deixou com a melhor arte da palavra – como em “Verdes são os campos / De cor de limão; / Assi são os olhos / Do meu coração” ou como, em tom jocoso: “Perdigão perdeu a pena / Não há mal que lhe não venha”… E às vezes quase nos esquecemos de que “testo” é uma vasilha, “chamalote” um tecido de lã e seda e “vasquinha de cote” um “casaquinho justo usado no dia-a-dia”… A língua é-nos familiar e Camões nosso contemporâneo. Amália teve o génio de trazer para os dias de hoje uma poesia que nos aproxima das raízes sem perdermos a sua clara compreensão… Mas não esquecemos como Alain Oulman compreendeu, melhor que ninguém como um texto do século XVI estava bem vivo. E quem melhor do que Amália para dar as suas voltinhas, àquilo que o poeta no íntimo quis imprimir de originalidade e força às suas palavras amorosas. E Camões foi ligado naturalmente ao Cancioneiro Geral, a David Mourão-Ferreira, a Alexandre O’Neill ou a Pedro Homem de Melo. O melhor fundo lírico juntou o seu sentido a uma voz inconfundível que afirmou e fortaleceu o Fado, fazendo-o encontrar as suas múltiplas raízes de arte e movimento, de lembrança e desejo, numa palavra, refundando-o.

 

UM CÉLEBRE DISCURSO
Camilo Pessanha lembrou num célebre discurso proferido no dia 10 de junho de 1924 o debate sobre “a questão de se Camões residiu ou não em Macau, se esteve ou não preso no tronco da cidade, se ali desempenhou ou pôde ter desempenhado as apagadas funções de provedor dos defuntos e ausentes. A polémica há de decerto renascer mais animada algum dia e provável é que o problema venha a decidir-se finalmente pela negativa. É a sorte de todas as tradições consagradas. A crítica histórica, a história-ciência, positiva e experimental, vem sendo tábua rasa de quanto é anedótico e pessoal das atitudes esculturais, dos gestos dramáticos, das frases eloquentemente concisas, em que tradições lentamente evoluídas haviam definido, em termos quase sempre de inexcedível beleza, um carácter, um acontecimento ou uma época. (…) Mas discussões são essas de carácter puramente académico, só interessando a investigação. Se as tradições estão bem arreigadas e vivas não será a demonstração de sua inexatidão histórica que as poderá destruir. É que não foi nas dissertações dos sábios que elas germinaram e medraram, nem é delas, mas do sentimento popular, que tiram a seiva. (…) A vitalidade das tradições lendárias ou quase lendárias depende essencialmente de dois requisitos. É necessário que o objeto a que se referem se imponha na sua grandeza à admiração contemplativa de todos os tempos. É-o igualmente que a própria tradição nos diversos fatores que a constituem, seja adequada a esse objeto. (…) É a Gruta de Camões com o seu cenário irremediavelmente mesquinho (…) esse lugar, sobre todos prestigioso, dedicado ao culto de Camões que é também o culto da Pátria. Culto e prestígio que não podem extinguir-se enquanto houver portugueses; e enquanto não se extinguem há de ser verdade intuitiva, superior a todas as investigações históricas, que o maior génio da raça lusitana sofreu, amou, meditou, em Macau, aqui tendo composto em grande parte o seu poema imortal e que o local predileto aos devaneios do seu espírito solitário era essa colina então erma sobre o porto interior, junto das penhas com aparência de dólmen em cujo vão foi colocado há anos o seu busto, de proporções reduzidas, fundido em bronze». Numa palavra, Camilo Pessanha vem-nos dizer, que independentemente de qualquer confirmação histórica, Camões está naquele lugar pela força da sua memória, muito superior em importância a qualquer justificação formal. O mesmo se diga da presença do poeta em toda a extensão das manifestações das culturas da língua portuguesa. E diga-se que aqui o plural é propositado, uma vez que como símbolo da língua e do seu culto, Camões se afirma como elo indiscutível de uma realidade que é partilhada universalmente e que se projeta no futuro como expressão de diversos povos e culturas, numa lógica de emancipação que só o futuro poderá fazer compreender.

 

O CASO DE CONSTÂNCIA
Quando nos referimos a Constância, a antiga Punhete, estamos também a falar de Camões, de uma memória que não pode confundir-se com qualquer exclusivismo ou demonstração histórica, mas sim de uma partilha natural e exigente relativamente a uma importância histórica que nos remete para o patriotismo prospetivo que tem a ver com a ligação ao que nos define e afirma culturalmente. Mais do que orgulho, trata-se de pertença; mais do que ambição, é memória. A língua-pátria ama-se como é, pelo que faz em nós, definindo-nos como somos, sem tentação de ir além desse afeto, como nos nacionalismos. E Camões é um símbolo, e como todos os símbolos, é o que une (ao contrário do diábolo, que divide). E neste ponto não esqueço o entusiamo militante de Manuela de Azevedo sobre a Casa-Memória de Camões de Constância. Por isso, faz sentido lembrar o discurso de Camilo Pessanha. De facto, é de memória que falamos na aceção mais fecunda e rica. Por isso, lembramos Amália Rodrigues e Alain Oulman, e todos os poetas que ombrearam com Camões. A memória viva, matéria-prima do património cultural, obriga a encontrarmos todas as referências relevantes, reais ou míticas, relativamente às culturas da língua. Lianor, poderemos encontra-la no mais improvável e inesperado dos lugares, como Camões, o seu genial retratista. E deixem que fale da ligação íntima entre arte, memória, e educação. Quando lemos os nossos poetas, quando sentimos a musicalidade das suas palavras, quando transmitimos às novas gerações, nas escolas, o conhecimento das palavras e a sua sabedoria, estamos a realizar a mais rica cidadania, comunicando do melhor modo a força do espírito. Essa mesma força que torna viva a presença dos nossos maiores.   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

 

"OS LUSÍADAS" DE LUÍS DE CAMÕES (XVI)

 

Camões e “Os Lusíadas” representam a maturidade da língua portuguesa. Toda a obra do grande épico constitui oportunidade para lidarmos com uma riquíssima convergência entre os maravilhosos pagão e cristão, servidos pelo domínio exemplar da palavra e da imagem. Vasco Graça Moura deu-nos, aliás, essa demonstração, pondo a obra camoniana ao nosso alcance e afirmando que estamos na linha dos grandes clássicos, tendo Virgílio, como referência. Deveremos, por isso, voltar a ler Camões, ao menos nos seus momentos mais marcantes. O poema divide-se em 10 cantos, compostos em oitava rima, totalizando 8.816 versos, na chamada medida nova, predominando os decassílabos heróicos, com a 6ª e a 10ª sílabas tônicas. “Os Lusíadas” têm cinco partes, segundo a tradição clássica: Proposição, Invocação das Tágides, Dedicatória ao Rei D. Sebastião, Narração e  Epílogo. A narração compreende três ações: a viagem de Vasco da Gama, a narrativa da história de Portugal e as intervenções dos deuses do Olimpo. Nos Cantos I e II,  narra-se a introdução e o Concílio dos Deuses, para deliberar sobre o destino dos novos Argonautas. Baco é contrário aos portugueses, Vénus e Marte, tomam a sua defesa, com a concordâcia de Júpiter. Vasco da Gama está no Índico, próximo de Moçambique. Baco, inconformado, instiga o governador de Moçambique contra os portugueses e põe a bordo um falso piloto, mas graças a Vénus, às nereidas, a Mercúrio e à coragem de Gama, os portugueses chegam a Melinde. No Canto III, começa o relato ao rei Melinde da história de Portugal, “onde a terra se acaba e o mar começa” e das origens, de Viriato, da Reconquista, da Primeira Dinastia, da Casa de Borgonha, de Ourique até à morte de Inês de Castro. No Canto IV, prossegue a narrativa, fala-se da revolução de 1383, de Nuno Álvares Pereira, de Aljubarrota, do Mestre de Avis, de Ceuta. E começam os episódios do início da viagem. D. Manuel sonha com os rios Indo e Ganges, a profetizarem sucessos e perigos no Oriente, e pede a Gama que monte a esquadra para concretizar a visão, mas na partida, o velho Restelo previne contra a “gloria de mandar e a vã cobiça”. No Canto V, Gama fala do Cruzeiro do Sul, do fogo-de-santelmo, até ao relato picaresco do marinheiro Veloso. No Cabo das Tormentas, o Adamastor simboliza a superação do medo.  No Canto VI, Baco desce ao palácio de Neptuno e incita os deuses marinhos contra Vasco da Gama, mas Vénus intervém. Veloso entretém os companheiros com a narrativa cavalheiresca dos Doze de Inglaterra. E os navegadores avistam Calicute. Nos Cantos VII e VIII, o samorim determina que o governador receba Gama, que o visita e oferece a amizade dos portugueses. Paulo da Gama esclarece o governador acerca do significado das figuras desenhadas nas bandeiras e conta os feitos dos heróis da pátria. Mas os muçulmanos intrigam, Gama é preso e tem de negociar a liberdade, em troca de mercadoria. Nos Cantos IX e X, depois de diversos incidentes, o samorim ordena que a armada possa levantar ferro e iniciar o regresso. E temos o longo episódio da Ilha dos Amores, já que Vénus decide premiar os navegadores numa ilha paradisíaca. O epílogo do poema contém as lamentações, como que um desabafo de Camões por todas as incompreensões sofridas. Mas fica-nos a reflexão sobre a exigência de porfia e de trabalho aturado para se alcançarem os sucessos necessários. Não por acaso, Camões inicia o poema épico citando o início de “A Eneida”: “Arma virumque cano, Trojae qui primus ab oris…”. Como em Dante, é sob a invocação de Virgílio que um tema sublime é tratado…

 

Agostinho de Morais

REFERÊNCIAS A TEATROS LUÍS DE CAMÕES

 

Evocamos hoje e atualizamos em simultâneo dois textos oportunamente aqui divulgados, em situações que, para cada um deles, enquadrava a atualidade: atualidade essa que obviamente não se perdeu.

 

Trata-se então do estudo de dois modernos Teatros Luís de Camões, um eles denominado hoje Teatro LU.CA, ambos em Lisboa. Importa ter aliás presente que no início do século XX existiam em Portugal pelo menos um Teatro Camões em Bragança, inaugurado em 1892, e dois Teatros Luís de Camões, um em Belém, inaugurado em 1880, o outro na Ilha do Pico, inaugurado em 1888.

 

Ora, há cerca de 10 anos, aqui referimos o Teatro Luís de Camões surgido da renovação urbana decorrente da Expo 98, no Parque das Nações em Lisboa, e que nesse contexto foi aliás também evocado com o nome de Júlio Verne.

 

Trata-se, este Teatro, de um projeto de Manuel Salgado e Marino Fei, notável nos dois blocos que em si mesmos, pela perspetiva cenográfica, marcam desde logo a vocação da arquitetura de espetáculo.

 

E precisamente: como de espetáculo se trata, nada mais adequado do que a citação de José Augusto França, a propósito deste Teatro, quando evoca “o segundo espetáculo que o grande átrio, com as suas escadas simétricas, oferece do exterior, pela transparência da parede que o fecha ou abre, de tal modo que os utentes do espetáculo da sala são usados também por quem passe e olhe as suas deambulações” (“Lisboa, História Física e Moral”, ed. Livros Horizonte 2008).

 

Por nosso lado, referimos já aqui o Teatro Luís de Camões da Calçada da Ajuda. Este foi inaugurado em 1880 com a peça “Camões e o Jau” de Casimiro de Abreu. A iniciativa ficou a dever-se a um comerciante local, de nome João Açúcar. Sobre este Teatro evocamos a sua relevância sobretudo na época, mas não só.

 

Pois como tivemos ensejo de referir, o Teatro passa em 1899 a servir de sede ao Belém Clube. Lá se estreou e se despediu, muitos anos passados, a atriz Adelina Abranches. Por lá passaram grandes nomes da cena, como João Villaret, Mirita Casimiro, Sales Ribeiro, Procópio Ferreira, Bibi Ferreira.

 

E até Tomás Alcaide lá iniciou uma fulgurante carreira que duraria até à sua morte. Evocaremos Tomás Alcaide em outro texto.

 

E da fase mais recente do Teatro Luis de Camões e do atual Teatro LU.CA falaremos também noutro artigo.

 

DUARTE IVO CRUZ