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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

De 18 a 24 de novembro de 2019

 

A obra de Mário Cláudio é multifacetada e rica. Eis por que os cinquenta anos de vida literária merecem especial atenção. Desde a poesia de “Ciclo de Cypris” (1969), encontramos uma criteriosa escolha de temas e uma permanente interrogação sobre vida, sentimentos, pessoas, artistas, escritores, poetas – certos de que o autor vai sempre descobrindo novos fatores para a compreensão do género humano.  


ESCREVER E TRANSFORMAR-SE
Tenho uma especial estima pessoal por Mário Cláudio, como o próprio bem sabe. Sou um seu leitor fiel, de há muito, e não esqueço a sua hospitalidade, em outubro de 2010, em Paredes de Coura, com Manuel Villaverde Cabral e Maria João Avillez, quando também pudemos falar dos edifícios desenhados por Joaquim Pedro Oliveira Martins, graças à influência do Conselheiro Miguel Dantas, sogro de Bernardino Machado. E, falando do Centro Mário Cláudio, não esqueço a longa evocação que fizemos dos nomes da literatura galaico portuguesa cuja memória encontramos dos dois lados da fronteira do Rio Minho: Aquilino Ribeiro, com a Casa Grande de Romarigães, Tomaz de Figueiredo, com a casa de Arcos de Valdevez; e do outro lado da fronteira, Camilo José Cela, Rosalía de Castro, Ramón del Valle-Inclan, Emília Pardo Bazán. Poderá, pois, compreender-se que a minha admiração por Mário Cláudio tenha raízes fundas… “Escrever é transformar-se continuamente. Não só escrever. A vida é uma constante transformação. Digamos que a escrita é mais o espelho dessa mutação em que nós estamos inseridos e que nos acompanha ao longo de toda a vida, e é um espelho onde se reflete uma imagem que, inclusivamente, não pode ser proveitosa, porque nos dá conta da dinâmica dessa evolução e nos permite corrigir determinados caminhos, aqui ou além, e enveredar por aquilo que nos parecer mais adequado, também de vez em quando” (JN, 19.7.17). Isso é evidente, quer quando o romancista descobre uma personagem histórica, quer quando se debruça sobre si mesmo, criando figuras imaginárias, que beneficiam da sua própria experiência. Lembramo-nos de Tiago Veiga e compreendemos como muitos leitores ficaram perplexos, com uma tão grande soma de elementos reais. Se Tiago Veiga não existiu, poderia ter existido; e se existiu é composto de vários elementos concretos, que encontramos nos meios literários e em figuras que resultam de vários elementos que se associam de modo verosímil, numa recriação notável da realidade humana.

 

AUTOBIOGRAFISMO…
Se lermos “Astronomia” (2015) é, no entanto, a perspetiva claramente autobiográfica que prevalece, no sentido propriamente dito. Mas também deparamos com as verdadeiras biografias romanceadas de personalidades marcantes reveladoras não apenas de figuras reais, mas também de uma descrição rigorosa dos ambientes e da vida quotidiana – como nos casos de “Amadeo” (1984), “Guilhermina” (1986) e “Rosa” (1988). Como prosador dotado, Mário Cláudio faz da literatura um modo de compreensão da vida e da sociedade. Daí partir nestes três casos de perspetivas diferentes da criação artística – desde o modernismo erudito de Amadeo de Souza Cardoso à uma dotadíssima expressão popular de Rosa Ramalho, passando pelo talento único que tinha Guilhermina Suggia. E a aura da genial intérprete fica enriquecida com a prosa de Mário Cláudio. E sentimos que estamos a participar numa ação parcialmente verídica e imaginosa, que sentimos como possível. “Camilo Broca” (2006) é a invocação da genialidade de Camilo Castelo Branco através do meio em que viveu desde a sua infância. Mais do que a história é também uma subtil homenagem ao universo de Agustina, com que Mário Cláudio tanto se compara e que admira (com cuidosas distâncias), em estreita relação com o romancista de “Estrelas Propícias”. Quando lemos “Triunfo do Amor Português” (2004), prefaciado por Agustina, vemos como a culpa assume papel fundamental no intenso fundo lírico desta cultura aberta ao Atlântico, com a presença de Pedro e Inês, Leonor Teles e Andeiro, Camões e a Infanta D. Maria, Mariana Alcoforado e o Conde de Chamilly, D. João V e Madre Paula, Tomás António Gonzaga e Marília de Dirceu, a Severa e o Conde de Marialva, Camilo e Ana Plácido, D. Pedro V e D. Estefânia, António Nobre e Alberto Oliveira… E assim a imaginação do romancista resulta da capacidade de associar elementos aparentemente contraditórios que procuram fazer sentido, como no caso de “Memórias Secretas” (2018), no qual recorre à “banda desenhada” e reinventa personagens – Corto Maltese, Bianca Castafiore e o Príncipe Valente aproximam-se de nós e descobrimos relações inesperadas. E falando, por fim, do “Tríptico da Salvação” (2019), em que intervêm figuras históricas, como Lutero e Lucas Cranach, não é tanto o romance histórico que interessa, mas a consideração das personagens envolvidas. Lutero é o homem inconformista, a um tempo conservador e reformista, que interessa ao romancista, até porque entra em choque simultaneamente com o Imperador e o Papa. Por outro lado, a admiração de Lutero por um grande pintor como Cranach, leva-o a evoluir na reflexão sobre o sentido da representação de imagens contra o entendimento inicial.

 

ESCRITOR E PEDAGOGO
A propósito de “Astronomia”, Mário Cláudio afirmou: “Quando digo que sou escritor incluo nisso todas as dimensões de atividades da minha vida. A docência é a continuidade da minha atividade de escrita. É como se estivesse a escrever a vida com outras pessoas ou a escrever na alma delas e elas na minha alma. Aprende-se muito através da docência. Aquilo que se recebe é talvez mais do que aquilo que se dá. Não era um professor facilitante, era bastante exigente, muito austero. Havia pessoas que se davam bem, outras não. Sempre validei as pessoas que trabalhavam mais. Não há que fugir a isso. E isso às vezes cria atritos. Mas devo dizer que olhando retrospetivamente, nos encontros com ex-alunos, tenho consciência que ficou uma réstia de amizade e afeto com todos eles”. É muito importante esta afirmação, de quem faz da sua escrita um caminho permanente de aprendizagem, vista como uma permanente troca de experiências. Longe da ideia do “magíster dixit”, o escritor, como o educador e o romancista têm de ganhar autoridade no modo como exercem o seu magistério – e o escritor que assim se apresenta refere a exigência como algo de natural e necessário, e o certo é que literariamente encontramos a mesma preocupação, bem evidente numa escrita rigorosa e atraente… Nesse ponto, apesar de admirar a figura e a obra e Agustina, põe as distâncias que o levaram naturalmente a trilhar caminhos diversos, nalguns pontos convergentes mas menos filosofantes, que um dia testemunhei, quando pudemos, de algum modo, partilhar um extraordinário convívio, com a própria Agustina, num memorável jantar portuense.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

 

De 6 a 12 de agosto de 2018

 

«Memórias Secretas» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2018) encadeia textos inesperados, onde se dá vida a personagens célebres da Banda Desenhada (BD).

 

 

 

FAZER REVIVER OS HERÓIS
São três documentos publicados, que têm autonomia e vida própria e, sem uma única ilustração, dão vida a personagens de ilustração, para além do que seria esperável. De facto, não são glosas das aventuras que conhecemos as que verdadeiramente estão em causa, mas um outro lado dessa vida que entusiasma os cultores da nona arte, para usar a classificação de Ricciotto Canudo. Hugo Pratt, de quem iremos falar, referia a “literatura desenhada” e quando comecei nestas andanças falávamos de Histórias aos Quadradinhos (HQ). Com o meu amigo e mestre José Ruy, andamos por vezes às voltas sobre a melhor designação. Mário Cláudio consegue um verdadeiro milagre – faz-nos entrar em pleno no tema e põe-nos perante a literatura, que afinal é madre de tantas cousas. E devo dizer que me deleitei deveras nestas viagens para além do que já se sabia sobre estas personagens a quem Memórias Secretas dão vida. E vieram naturalmente à memória Max e Moritz, o impagável Yellow Kid, os Sobrinhos do Capitão, o Little Nemo e os seus sonhos inverosímeis, as viagens de Becassine, os pioneiros Quim e Manecas de Stuart (que chegaram à minha geração no saudoso “Cavaleiro Andante”), além de Zig e Puce, Tintin, Blake e Mortimer e tudo o mais… Limito-me a escrever ao correr da pena, pois o tema é inesgotável. E lembro “O Mosquito”, “O Papagaio”, “O Senhor Doutor”, o “Mundo de Aventuras”, “O Diabrete”, “Cavaleiro Andante”, “Foguetão”, “Zorro”, “Tintin”… e nomes essenciais como Rafael Bordalo Pinheiro, Cottinelli, Emmérico, Botelho, Júlio Resende, Eduardo Teixeira Coelho, Fernando Bento, José Garcês, José Ruy, Vítor Péon, Adolfo Simões Müller, ou ainda Maria Teresa Andrade Santos (Mitza), Maria Isabel Mendonça Soares, além da célebre “tribo dos pincéis” (Roque Gameiro e Martins Barata)… Quantos nomes esquecidos. Mas ficamos gratos a Mário Cláudio por ter podido suscitar estas lembranças.

 

FANTASMAS OMNIPRESENTES
É um mundo de fantasmas – uma plataforma de ironia e pesadelo com “Casanova, saltando da masmorra para uma coluna, e depois para um telhado, Scarlatti vogando de rosto velado por tules vermelhos, cautério para a sua incurável antropofobia, quem poderá garantir que não resultante da obsessão cultivada pelas ninfetas órfãs, e cantoras de um coro de querubins”. Falamos da Sereníssima República dos Doges – Veneza, naturalmente. E entre Byron e George Sand, Ruskin e Hemingway, aparece-nos o improvável Corto Maltese, que Mário Cláudio, como eu próprio, só conhecemos tardiamente por não ter feito parte da nossa infância, já que só em 1967, na revista “Sgt. Kirk”, Hugo Pratt deu-lhe corpo e história. Mas a verdade é que o adotámos como mito romanesco – nascido a 10 de julho de 1887, filho de Vânia “la Niña de Gibraltar” na ilha de Malta, sede da Soberana Ordem, na descendência atribulada de um português célebre mas controverso, o Grão-Mestre Frei Manuel Pinto da Fonseca (1681-1773), em honra que quem Qormi em Malta se designou como Cittá Pinto. Lembremos os outros três Grão-Mestres: Frei Afonso de Portugal (falecido em 1207), Frei Luís Mendes de Vasconcelos (falecido em 1623) e Frei António Manoel de Vilhena (1663-1736). Pinto da Fonseca fora milagrosamente salvo, depois de um grave acidente de saúde, pela sedutora Severiana, mãe da avó de Corto, Maria de los Milagros – não fadada para as glórias que seu pai gostaria de lhe ter reservado, em virtude do sucessor de Pinto da Fonseca ter posto fim a um tal sonho, arredando-a de quaisquer honras. E assim pudemos descobrir a estirpe portuguesa de Corto, que ganhara tal nome dada a exiguidade do seu corpo à nascença – por ser curto. Novas luzes podemos ter, nesta leitura de Memórias Secretas – e talvez compreendamos melhor um fundo aventureiro, de quem se apaixonara pela obra-prima de Thomas Morus, ou não fosse português Rafael Hitlodeu, a cujo epílogo não chegaria… E como chegou a Portugal? Pela mão de Dinis Machado e Vasco Granja – que, contra ventos e marés, decidiram apostar em Corto Maltese. Dir-se-ia que agora Mário Cláudio legitima essa escolha e completa-a. Hugo Pratt faz desaparecer Corto Maltese durante a guerra de Espanha, mas agora vamos adiante… Não desapareceu então. A 3 de novembro de 1941, apesar da guerra sangrenta, arrendou uma casinha na Ilha de Burano mesmo defronte do Adriático, onde também moram, com Maltese, Tarao, Pandora, Abel e Sephora. Mas aí temos matéria para mais mistério, porque também aqui o testemunho do herói termina abruptamente.

 

DO PRINCIPE VAENTE A CASTAFIORE
Há um momento em que graças à natureza desta arte nona, Bianca Castafiore irrompe no testemunho de Maltese, numa missiva enviada de Lisboa por Pandora Groovesnore, que perdera o marido, rico herdeiro de armadores e médico voluntário da Cruz Vermelha na batalha de Sicília… Bianca (Castafiore, claro) afirma-se satisfeita por aqui estar, mas não esquece toda sua a petulância e antipatia, de que são vítimas Haddock (em cujo nome a diva nunca acerta) e o próprio Hergé, pela insistência nos traços caricaturais. E descobrimos um abundante repertório para além de querido Gounod e das tranças de Margarida na “Ária das Joias” do “Fausto”. E, muito mais do que a Sildávia e Klow, o que aparece é a Europa em plena guerra, com a angústia de quem foge e a soberba de quem detém o efémero poder do tempo. O encontro com Mussolini explica muita coisa. Subitamente é Portugal que surge nas noites do S. Carlos de Lisboa. Castafiore é, por exemplo, Sélika de “L’Africaine” de Meyerbeer, numa peça em que os portugueses e Vasco da Gama se evidenciam. Até Corto Maltese aparece… Ah! temos os éclairs e babás, merengues e duchesses que lhe “encheriam as medidas”, com heroicos quatro quilos a mais. E Bianca torna-se paradigma de certos panegíricos que se aproveitam das dificuldades momentâneas e as confundem com momentos de glória, quando, de facto, do que se trata é de uma sucessão de momentos sombrios. A terceira parte leva-nos até ao “Príncipe Valente nos Dias do Rei Artur” de Harold Foster, que começou a publicar-se nos Estados Unidos em 1937 – e que Mário Cláudio descobriu em tiras em “O Primeiro de Janeiro” (a partir de 1959), sendo que antes fora em “O Mosquito” que primeiro apareceu em Portugal (1948), seguindo-se os continuados do “Mundo de Aventuras”. O protagonista é filho do rei de Thule, lugar mítico do norte europeu que vai até Camelot. A reconstrução da História baseia-se em Geoffrey Art, o cronista de Thule. As aventuras não se limitam ao cenário de Camelot ou Avalon, referem-se à transição para o período medieval. Reino expectante, enigmas do tempo, ilhas de Bruma. O Príncipe Valente torna-se cavaleiro da Távola Redonda, encontra Merlin, Lancelote, a rainha Genebra, numa glosa da História das Guerras do Imperador Justiniano, de Procópio de Cesareia. Mas não é a escrita que interessa, e sim a imagem fulgurante. Sente-se o nosso fundo céltico, tão presente em D. Sebastião… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

 

De 18 a 24 de setembro de 2017.

 

«Os Naufrágios de Camões» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2017) é uma hipótese romanesca que nos obriga a repensar o mito sebastianista e a interrogarmo-nos sobre a figura de Camões.

 

UM OUTRO CAMÕES
Mário Cláudio permitiu-me, entre tantas provas de amizade, conhecer Tiago Veiga e, além do mais, contactar, através dele, com a cultura portuguesa viva – plena de surpresas e de inesperados protagonistas. Quando há uns meses recebi, com amável dedicatória, Os Naufrágios de Camões (D. Quixote, 2017) li-o imediatamente e prometi a mim mesmo aproveitar o mês de Agosto para voltar à prosa, a fim poder gozá-la lentamente, com lápis e caderno de notas, já que me pareceu ser excelente exercício para seguir os passos da complexa investigação imaginada pelo escritor para seu e nosso deleite. Cumpri escrupulosamente o intento. E o livro seguiu-me e seguiram-me Timothy Rassmunsen, neto de Tiago Veiga, Richard Francis Burton, o descobridor das nascentes do Nilo e inesperado camonista, e Ruy, o escrivão de bordo da nau anual da China. Acontece, porém, que para facilitar o exercício, acompanhei com pormenor a preparação da grande viagem deste ano do Centro Nacional de Cultura, “Os Portugueses ao Encontro da sua História” – à Cochinchina e ao Camboja – e, segundo a conjetura romanesca, foi em Phu Quocq, a maior ilha do Vietname, nas proximidades do Mekong, que Luís de Camões deixou o mundo dos vivos… Portanto, tudo se conjugava para tirar o máximo partido desse reencontro com o universo de Tiago Veiga. E, para tornar as coisas mais apetecíveis, uma vez que Mário Cláudio cultiva a necessária ambiguidade entre a ficção e a realidade, foi-me possível, em dado passo do romance, confundir uma diligência real com o meu amigo José Carlos Seabra Pereira com uma consulta literário-filosófica a propósito do clima que perpassa no “Banquete” de Platão e em Camões, confirmando-se que este leu o comentário de Marsílio Ficino sobre a obra do grego. Afinal, estamos sempre a circular da lá para cá e de cá para lá no espelho que nos é dado quando falamos de literatura… E, falando de moderna investigação, está já demonstrado que no Rossio está mesmo D. Pedro IV e não Maximiliano, por causa do colar da Torre e Espada… Enfim, pormenores.

 

O OUTRO LADO DO SEBASTIANISMO
A experiência de Os Naufrágio de Camões é do puro romance, em que a realidade se mistura com a ficção, mesmo sabendo que estamos no domínio do sonho. E o que encontramos? Uma autêntica revisitação do “sebastianismo” – não só porque o próprio Desejado é enganado no decorrer dos acontecimentos do enredo, mas também porque Camões se vê envolvido na ilusão, do mesmo modo que mais tarde D. Sebastião voltaria falsamente à Ericeira ou a Penamacor. Nesta trama é o próprio épico a ser substituído por um biltre, que se apresenta como se fosse o poeta, podendo mesmo (na conjetura discutível mas estimulante) ser autor da parte final do genial poema. De facto, o enredo parte da hipótese de Camões ter morrido no Oriente. Rassmunsen é claro: “estou em crer que um enorme naco de texto, digamos as últimas estâncias do Canto VIII e os Cantos IX e X, ainda por realizar à data da tragédia marítima, não resultam do punho de Luís de Camões, mas são com toda a verosimilhança da lavra do capitão da nau anual da China”. E o cerne do romance parte da ideia de que o poeta morreu no Camboja. E o capitão, Bartolomeu de Castro, oriundo de Ponte da Barca e amigo de Diogo Bernardes, faz-se passar por Camões. Foi recolhido pelos nativos, rumando a Goa, a Malaca, Chaul e à Ilha de Moçambique, dando continuidade ao poema e mandando-o imprimir em 1572. E assim Os Lusíadas participam, como obra referencial, do drama sebástico. Não é só o rei jovem que desaparece nas areias de Alcácer-Quibir, tornando-se reencarnação do Rei Artur, esperado em manhã de nevoeiro, é também o poema imorredouro que sofre a dúvida sobre a sua plena autoria. Mário Cláudio faz, assim, de Os Naufrágios de Camões uma revisitação do mito das conquistas. E quando seguimos as reflexões e as demonstrações de Rassmunsen o que está em causa? De facto, há uma menor fulgurância da escrita da parte final do poema. “Que as imortalidades, que fingia / A antiguidade, que os ilustres ama…”. Esta vulgaridade choca o neto de Veiga (como Aquilino). Bartolomeu de Castro teria míngua de talento e é exemplo do oportunismo mercenário dos “fumos da Índia”. E o romance dá-nos na primeira parte as deambulações testemunhadas pelo próprio autor… O relato é alucinante, envolvendo diligências científicas e pseudocientíficas, espiritismo, estudos sobre textos em língua tâmil, manuscritos em folha de palmeira, budismo, missionação cristã etc. E o fim do desarvorado Rassmunsen é dramático e patético.

 

A SOMBRA DE UMA SOMBRA
Morto o neto de Tiago Veiga a dizer “Não sei quem sou, nem onde e quando estou”, o romancista põe-se na peugada de Richard Burton, ao perceber que era este que Timothy perseguia no final de sua vida transtornada. E chegamos a Dinamene, “Aquela cativa, / que me tem cativo…”, o amor derradeiro de Camões. Compreende-se como o grande épico pôde atrair a figura do explorador inglês, herói atual – pela sua personalidade pioneira, aventureira e moderna. Burton admirava Camões, de quem se considerava quase um émulo, pelo carácter corajoso e culto: “desordeiro e erudito, familiar de alcouces, desabrido no trato e tão pronto a acariciar as coxas de uma nativa de África ou da Ásia, como a mimosear um camarada com dois murros aplicados na fronha”. E num sonho mediúnico, Bartolomeu de Castro, capitão da nau anual da China, é desmascarado: “É tempo de pormos ponto final à falcatrua, as derradeiras estâncias do grande poema foram de facto escritas pelo nosso homem”… Tratava-se da sombra de uma sombra… E é o relato de Ruy que nos dá a chave do mistério. “Embarcámos em Macau na São Lourenço, a nau anual da China, por entre uma vozearia de adeuses, de pilhérias e imprecações, e mirados de longe pelos nativos”. Iam conduzir Luís de Camões à prisão de Goa. O poeta era acompanhado da jovem Dinamene e de Jau, escravo de Java. E há o naufrágio. “A última imagem de que me restaria consciência haveria de ser a do cavername que, emergindo como um Adamastor, se erguia à minha frente enquanto a barca se empinava até desaparecer connosco, ou sem nós, nas tenebrosas goelas da tormenta”. Era na Cochinchina e o padre-pregador Gaspar da Cruz ali passara. Dinamene morreu. Camões não teria resistido. Dele rapidamente se perdeu a memória, segundo “a tradicional desmemória lusitana”. Em Lisboa, na Rua Nova apareceu um vate a recitar versos com uma pala a tapar a vista cega… Descobriu Ruy que era o comandante da nau da China que fazia das suas. Até ameaçara com violência Antónia Braz, já muito velha, antiga amásia do épico… Seguiu então os passos do farsante. O próprio rei D. Sebastião seria levado a ouvir o biltre a recitar o poema roubado. Veio o desastre de Marrocos e Filipe I tornou-se rei. As coisas mudaram e misteriosamente lemos em Os Lusíadas: “Este receberá plácido e brando, / no seu regaço o Canto, que molhado / vem do naufrágio triste e miserando, / dos procelosos baixos escapado” (Canto X, CXXVIII)…

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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