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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
OS ANOS DE MÁRIO SOARES


1 -
 Quando, em 1940, restauraram os chamados "Painéis de S. Vicente" (…) alguém observou certas semelhanças entre um dos rostos do hipotético "Painel dos Pescadores" e o semblante do Dr. Oliveira Salazar. Ao que se contava (sobre os Painéis não juro nada), quem reparou não resistiu a mandar dar uma "mãozinha" e pediu ao restaurador que retocasse a figura por forma a tornar a parecença mais sensível. Quando eu era criança e me mostravam os Painéis, o suposto Salazar era uma atração quase idêntica ao suposto Infante D. Henrique. Se a história só tem interesse em termos hagiográficos, como manifestação do culto da personalidade, não deixa de ser verdade que Salazar, paramentado à século XV, não destoaria nos Painéis. Ele bem podia ter figurado - se fosse já nascido- entre os 58 personagens que se apertam em torno da imagem duplicada do santo. Não lhe faltava a "malinconia", a austeridade, a severidade, a solenidade, até a rudeza. Se, um dia, se vierem a identificar, com rigor, os protagonistas e figurantes dos Painéis, não me espantava nada que me viessem dizer que um avoengo do homem de Santa Comba se conta entre eles. Falei de Salazar, por causa da história que contei. Se se pensar em Vasco Gonçalves ou em Cunhal, em Freitas do Amaral ou em Cavaco, também os podemos ver prefigurados nessas tábuas. Um há, contudo, que absolutamente, não descende dos vultos dos Painéis. Esse é aquele que se chama Mário Soares e que, na próxima terça-feira, 7 de dezembro, completa 80 anos. Porque é menos português do que os outros? Muito pelo contrário, poucos, como Mário Soares, serão tão retintamente portugueses e tão inseparáveis do nosso passado e do nosso presente. Mas é de outra família. O Vicente de quem descende não é o tristérrimo santo que nos Painéis é figura central. É o Vicente da Barca e dos Almocreves, do Juiz da Beira e dos Farelos, que passa por fundador do nosso teatro. 


Nos tempos em que andei pelo Convento de Jesus a cursar Histórico-Filosóficas - Mário Soares também por lá andou -, o prof. Delfim Santos, ao explicar-nos as diferenças entre os tipos caracterológicos EAS (Emotivo-Ativo-Secundário), os chamados "apaixonados", e EAP (Emotivo-Ativo-Primário) os chamados "coléricos", costumava dar como exemplo dos primeiros Salazar, e como exemplo dos segundos, Francisco da Cunha Leal, então (era isto em 1955 ou 1956) o vulto mais conhecido da oposição democrática. Para grande escândalo das minhas colegas marxistas, via nessa oposição caracterial parte da razão das suas oposições políticas. Nunca conheci pessoalmente Cunha Leal, mas não tenho qualquer dúvida de que, se Mário Soares, nesses anos, já fosse famoso, Delfim Santos teria tido um bem melhor exemplo de antagonismo visceral, não desfazendo nos viscerais antagonismos ideológicos. 


Para tudo resumir: a melancolia e o pessimismo lusitanos nunca pegaram em Mário Soares. Para quase todos nós, a contrição. Para ele, o júbilo. É dos raros políticos nossos de quem nunca ouvimos o fado do sacrifício, ou o fardo do dever. Fados e fardos não são com ele. Sacrifícios, ainda menos. Lembro-me de uma hora mais amarga (não lhe faltaram) em que eu o lamentei. Respondeu-me rápido: " Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele." E ele soube sempre confundir hábito com habitação. Ou, como escreveu algures Carlos Queiroz: "Só na nossa cama / É que se dorme bem / Só dorme quem ama / a cama que tem."


2 -
 Quando eu "acordei" para a política (maio de 1958, campanha do general Humberto Delgado), Mário Soares, embora já com vasto "curriculum" político para um homem de 33 anos, era ainda, para o "vulgo" em que eu me situava, um nome relativamente desconhecido. Só o vim conhecer pessoalmente em 1962 e em circunstâncias que nada tiveram de político. Eu era, à época, professor eventual do Liceu Camões, e Rui Grácio, que eu tinha substituído no ano anterior no Liceu Francês, escreveu-me a dizer que Mário Soares procurava um professor de História para o Colégio Moderno (então dirigido pelo pai dele) e que lhe sugerira o meu nome.


Fui visitá-lo. Entre os 27 e os 37 anos, dez anos são grande diferença, que senti mais acentuada pela pose "diretorial" com que Soares me recebeu. Ele conhecia bem o meu "curriculum" de "católico progressista" do grupo da Morais e do António Alçada (de quem era muito amigo) e conhecia até, como vim a verificar pelo decorrer da conversa, o meu "curriculum" como professor errático, com três anos de inexperiência.


Mas não procurou "pontes". Fez-me um interrogatório cerrado (meramente pedagógico) que me deixou pouco à vontade. Fiquei com a impressão de que não me ia entender com aquele homem (impressão que foi prevalecente durante coisa de vinte anos) e declinei o convite em que ele não insistiu. Se relato este insignificante episódio, é para salientar dois outros traços da personalidade de Soares que o futuro tão largamente confirmou: a autoridade natural, que três anos depois (em 1965) o catapultou para líder da oposição não comunista e o gosto de jogar ao gato e ao rato, quando lhe aparecia pela frente alguém com mais olhos que barriga. Mal sabia eu "que ce n'était qu'un début". Dois meses depois, quando o grupo fundador de "O Tempo e o Modo" decidiu abrir-se a não católicos, o António Alçada avançou imediatamente com os nomes de Mário Soares e Salgado Zenha, com quem julgava mais fácil estabelecer o famoso "diálogo" crentes-não crentes. Assim nós achámos todos (depois daquela história da "Avé-Maria" que eu tornei célebre) no conselho consultivo da revista, onde também tinham assento, além dos católicos da Morais, os jovens expoentes da crise universitária desse ano: Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Vítor Wengorovius, etc. Nessa altura, aprendi, depressa e muito, as clivagens entre esses vários grupos: o que era a ASP (Ação Socialista Portuguesa), como desconfiava dela a geração de 62, em tempos do MAR (Movimento de Ação Revolucionária), e como havia mais medos de um conluio "democrata-cristão" (nós) e "sociais-democratas" (Soares-Zenha) do que de quem guardava domingos e dias santos de guarda. Aprendi a admirar, em Soares, a diplomacia e o otimismo. Quando se tratava de engolir coisas que eu queria fazer passar, como "primado do espiritual" ou "primado da pessoa humana", Soares deixava essas guerras ao quezilento Zenha e distanciava-se ironicamente delas. Muito mais do que as reuniões, até altas horas da noite, interessavam-lhe os convívios ao jantar ou, depois das ditas, de que era o grande animador. O regime estava sempre a acabar. "Não dura até ao fim do ano", foi uma frase que invariavelmente lhe ouvi, entre 1963 e 1974. À 12ª vez acertou. Outras vezes, eram histórias heroicas da oposição, em Nelas ou em Vila Pouca de Aguiar.


"Tínhamos connosco todas as forças vivas da terra." "Oh, dr. Bénard" - interrompia, sarcástico, Salgado Zenha - "o que o dr. Mário Soares chama 'forças vivas' era um farmacêutico e um notário que se borravam de medo de cada vez que ouviam falar da PIDE." Quem não tinha medo da PIDE era ele, apesar das oito ou nove prisões que já contava. Eu já conhecia, de ouvir contar, os míticos silêncios de Cunhal e a célebre história da inofensiva chave, que se recusou a identificar durante doze dias de tortura do sono. "Para perceberem que eu não falo nunca." Soares escolhera a tática inversa. Preso, falava sem cessar, mas nunca ninguém o apanhou numa palavra que não devesse ser dita. Resistiu até a uma acareação com um denunciante, que acabou com este a desdizer-se e a pedir-lhe desculpa por ter inventado uma história que era mais do que verdadeira. Quando o deixavam isolado na cela durante meses, ocupava o tempo a escrever romances. "Quando me mandaram cá para fora, estava tão entretido, que até me apeteceu pedir-lhes que me deixassem acabar o capítulo." Algumas vezes me passou pela cabeça que aquele homem viria a ser Presidente da República? Nunca. E no entanto... E, no entanto, há um instantâneo que eu nunca mais esqueci e me está tão gravado na memória como se fosse ontem. Foi em 1964, no Cinema Europa, ali a Campo de Ourique, por ocasião de um festival de cinema qualquer. Eu estava à porta da sala e, de repente, algo me fez olhar para a entrada.


Mário Soares vinha a entrar, vagarosamente, acompanhado por alguns amigos, vestindo um sobretudo de pelo de camelo. Não se passou nada de especial, a maior parte dos presentes nem sequer o conhecia. Mas eu disse ao Nuno de Bragança: "Parece que chegou o Presidente da República." E no entanto... A despedida que Salazar lhe preparou, em 1968, quando o exilou para São Tomé, com a carga pidesca sobre quem ousara despedir-se dele (foi a única vez que fui sovado pela polícia, com requintes de humilhação) mostrava que o ditador estava menos distraído do que eu e media melhor a perigosidade daquele homem, que regressou, meses depois, quando o outro caiu da cadeira abaixo. Em 1969, andámos às bulhas entre a CEUD a CDE.


Vi-o tão duro a atacar como magnânimo a esquecer. Como é que ele dizia? "Enquanto o regime durar não tenho inimigos à direita; depois, não terei inimigos à esquerda." Ou era ao contrário? Já não me lembro bem, mas tanto faz. Ele mudou sempre, mas foi sempre o mesmo. "Mudar só não mudam os burros", foi outra frase dele. O resto é conhecido. Em 1985, findas muitas desavenças, aceitei, desde a primeira hora, integrar a Comissão de Honra dele e vi-o a passar de candidato dos dez por cento a vencedor, em janeiro de 1986. Aos 61 anos, chegava ao lugar em que eu o vira, por uns segundos, em 1964. E foram dez anos de uma gloriosa presidência, jubilosamente vivida. Da última vez que falei com ele, citou-me um adversário que, fulo com ele, começou por protestar elevada consideração pelo pai da nossa democracia e - continuou Soares - "desfiou aquelas balelas todas". Balelas? Quando um homem chega aos 80 anos e fez o que ele fez, dele e do país, e viveu o que ele viveu, ele e o país, "balelas" só mesmo na boca dele. Parabéns, Mário Soares! Todos, sempre, lhe deveremos tudo. Mesmo os que não o sabem.


por João Bénard da Costa
3 de dezembro 2004, Público

POLÍTICA E LITERATURA

  


Recebi sempre de Mário Soares as melhores provas de amizade e estima pessoal, num período largo sem sombras e com provas de confiança inexcedíveis. O mesmo devo dizer de Maria de Jesus Barroso, que foi sempre de uma generosidade a toda a prova. Trabalhei de perto com o então Presidente da República na sua Casa Civil na Assessoria Política e fui membro da Comissão Política do MASP em 1985 e 1991 e porta-voz nesta última campanha. Estive na administração da Fundação Mário Soares, a cujos órgãos continuo a pertencer. Foram, assim, quarenta anos de uma relação que jamais esquecerei. Tive oportunidade de recordar em testemunhos pessoais esses tempos, ficando muito por dizer do que usufrui dessa amizade. Em Belém, almoçávamos todas as semanas e devo dizer que havia uma verdadeira partilha de pontos de vista e de ideias. Mário Soares ouvia atentamente, e deixava claro o seu ponto de vista – cuidava da liberdade como o contrário da indiferença e do relativismo. Os valores republicanos ilustravam o culto da liberdade de consciência.

Mário Soares sempre teve uma preocupação com a questão religiosa que envenenara a Primeira República. E lembro a relação saudável que estabeleceu com o Cardeal-Patriarca D. António Ribeiro, crucial para a institucionalização da democracia, aliada ao contacto, vindo da resistência, com D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, sem esquecer a admiração que tinha por D. Alexandre Nascimento, futuro Cardeal de Luanda e a amizade profética com António Alçada Baptista e os democratas católicos. A sua coerência era exemplar, não esquecendo o equilíbrio nas relações institucionais importantes. Sophia de Mello Breyner falava de uma coragem que nos dava ânimo. E as suas casas eram lugares de hospitalidade plena e recordo muitas horas de genuíno encontro, no Campo Grande, em Nafarros ou no Vau. Eram momentos extraordinários. Muito se tem dito sobre Mário Soares, no entanto, salvo o testemunho do meu amigo José Manuel dos Santos, poucas têm sido as referências ao escritor. E a verdade é que estamos perante alguém que viveu sempre a paixão da escrita e da grande literatura. Num passeio pelos alfarrabistas da Rua da Misericórdia ofereceu-me um dia a biografia de Garrett, de Gomes de Amorim, e esse foi motivo para falarmos longamente sobre o dramaturgo e sobre Herculano, à sombra de cujo busto conversávamos em Nafarros. Leiam-se o “Portugal Amordaçado”, as “Incursões Literárias” ou “Um Político Assume-se” – aí se encontra, numa escrita clara e atraente, a demonstração da ligação incindível entre a responsabilidade cívica e a paixão literária. Desde Péricles, Tucídides e Cícero, de Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Burke ou Tocqueville, até Tolstoi resulta a ideia de que nada há de mais digno do que o compromisso com a polis na sua expressão mais nobre. Mário Soares foi um grande escritor e o futuro confirmá-lo-á. A proximidade dos acontecimentos não permitiu aferir plenamente essa qualidade, de quem teria gostado de ser romancista. Contudo, a vida cultural e literária encontra grandes políticos que se singularizam na escrita. E o tempo revelará para Soares essa faceta, do mesmo modo que hoje, ao relermos o diálogo entre Garrett e José Estevão sobre o Porto Pireu, temos ecos do mais puro uso da língua como sinal de cidadania.     


GOM 

A VIDA DOS LIVROS

  

De 2 a 8 de dezembro de 2024


No centenário de Mário Soares lembramos a amizade com António Alçada Baptista e a fundação de “O Tempo e o Modo”.

 


Regresso sempre com muito gosto ao magnífico diálogo biográfico sobre uma vida plena entre Maria João Avillez e Mário Soares, agora reeditado pela Imprensa Nacional. E permito-me recordar o momento em que o futuro Presidente da República integrou o corpo da revista “O Tempo e o Modo”. Foi um momento especial, em que se nota uma certa premonição sobre a institucionalização da democracia. Aliás, a capa do primeiro número da revista é um raro prenúncio do futuro de liberdade que onze anos depois se tornou realidade. Mas comecemos pelo início dessa história, citando o próprio Mário Soares… “Só conheci o Senhor D. António (Bispo do Porto) (…) quando ele se encontrava já no exílio, em Roma, para participar no Concílio Vaticano II. Depois vim a encontrá-lo em Lourdes e, mais tarde em Tormes, perto de Salamanca. Mas isto já no consulado de Marcelo Caetano. Logo que apareceram os chamados ‘católicos progressistas’, compreendi a sua enorme importância política para o combate a um regime que se reclamava do catolicismo e que, pelo menos na sua fase inicial, tivera a bênção da Igreja. Nessa época, tive grande contacto com o Francisco Lino Neto, que conheci durante a campanha de Delgado. Antes, havia já conhecido o Francisco Sousa Tavares, a Sophia, o padre Felicidade Alves. O António Alçada Baptista, conheci-o quando era ainda proprietário da Livraria Morais, e tive contactos com ele desde os tempos em que era advogado. (…) Achei que o corte de setores significativos da Igreja portuguesa com o regime salazarista tinha uma enorme importância estratégica, porque retirava ao regime o seu principal argumento: dizer que a Oposição Democrática era constituída tão-só por comunistas e por velhos republicanos ultrapassados que, por despeito faziam o jogo dos comunistas”. De facto, no princípio dos anos sessenta, algo muda, é o tempo do Concílio Vaticano II, sob o signo renovador do grande Papa João XXIII. E um dia, conta Mário Soares, António Alçada pergunta-lhe se queria participar numa revista de cultura que desejava fundar, “O Tempo e o Modo”. “Não hesitei um momento, apesar da minha posição de ‘laico, republicano e socialista’, que ele conhecia. Disse logo que sim”. Nesse tempo, tentou empurrar o grupo fundador no sentido da democracia cristã. Falou com Giorgio La Pira, síndaco de Florença, e outros democratas-cristãos, mas sem sucesso. “Se os católicos tivessem ajudado pelo seu lado, teria sido muito mais rápido e fácil. Não quiseram, por razões de coerência ideológica, que, aliás, compreendo”. Se tivesse havido esse passo, teriam sido criadas outras condições para um abalo mais rápido da situação. Francisco Sousa Tavares foi o único que compreendeu a ideia de Mário Soares, ele que se envolvera no golpe da Sé com Jorge de Sena. Mas nessa altura ainda era monárquico, “o que atrapalhava um pouco as coisas”. Mesmo assim, entrou em contacto com o grupo de monárquicos democratas, desiludidos com o fracasso do Integralismo Lusitano, cujos melhores acabaram todos anti-salazaristas confessos, de Luís Almeida Braga a Vieira de Almeida – estabelecendo-se ainda a grande amizade com Gonçalo Ribeiro Telles.


Para Soares, o fundamental desse encontro e dessa abertura era dar credibilidade à Oposição Democrática, alargando-a para além do que Manuel de Lucena designava como um “grupo de velhos”, dividido entre o “reviralho da baixa” e a “social-democracia”. Havia que levar a água ao seu moinho, sentindo-se satisfeito por estar no grupo de “O Tempo e o Modo” – “janela aberta para outra geração e outra realidade”. E Nuno Bragança compreendeu bem esse entendimento. Porém. se alguns amigos o acusavam de andar “metido com os católicos”, Mário Soares respondia: “Não se preocupem! Sei o que quero e o que estou a fazer”. E Francisco Salgado Zenha concordava inteiramente. Em 1963, houve uma violenta diatribe que envolveu Sottomayor Cardia, então ainda no PC, contra uma “aliança encapotada” entre os católicos e a social-democracia, mas tudo seria passageiro e a coerência de Mário Soares não saiu abalada. E Cardia entraria no PS. Ficou, contudo, sempre uma profunda admiração e amizade com António Alçada – “uma figura humana encantadora e um grande escritor. A política sempre o interessou secundariamente, como mero imperativo ético. (…) arruinou-se alegremente, com a Livraria Morais, O Tempo e o Modo e a revista Concilium. Mas realizou uma obra extraordinária! (…) A par de Lino Neto, de Teotónio Pereira e de Sousa Tavares, desempenhou um papel corajoso e importantíssimo na tentativa de separar a Igreja do salazarismo. Como, décadas antes, tinham ensaiado os irmãos Alves Correia, o grupo Metanoia, com Ferreira da Costa e João Sá da Costa e o Professor Vieira da Luz, entre outros”. Quando realizou a entrevista com Marcelo Caetano, foi criticado e incompreendido. “Não foi grave, mas pagou-o caro, depois do 25 de abril. Alguns apressados ‘revolucionários’ voltaram-lhe então a cara, com muito mais oportunismo do que convicção. Sempre o estimei muito e tive ocasião, nessa época difícil, de lho demonstrar. Consolidámos então uma amizade muito grande, que perdura (estava-se no ano de 1996), e a que, pelo meu lado, se junta a admiração muito sincera pelo Homem, pelo maravilhoso contador de histórias e pelo escritor”. Sou pessoalmente testemunha disto mesmo sem qualquer dúvida.


No primeiro número de “O Tempo e o Modo” (janeiro de 1963), Mário Soares tratou do tema “Oliveira Martins e a Questão do Regime”. Mais do que um ensaio histórico, tratou-se de situar a génese do republicanismo em 1910, perante a crise do final do regime monárquico. Não poderiam, porém, confundir-se os aspetos ideológicos dessa conjuntura com as novas circunstâncias perante o salazarismo. Por isso, salientou a proximidade socializante de António Sérgio e Oliveira Martins, demarcada de uma lógica jacobina. Contudo, Mário Soares pensava na conjuntura do início dos anos sessenta, com a guerra colonial a despontar, a questão social a desenvolver-se e a renovação religiosa a ter lugar – como salientei a propósito de D. Alexandre Nascimento. Por isso, distinguia a diferença dos tempos e considerava as razões que levaram à vitória republicana, perante a incipiência socialista. “Só a história (que está por fazer!) das ideias vistas no seu contexto económico e social, nos poderia dar resposta para este problema” (quem teria razão sobre a resposta à crise do regime do princípio do século XX – Oliveira Martins, Antero e Eça contra Teófilo Braga ou Junqueiro?). “No entanto, apenas como solução provisória – seja-me lícito chamar a atenção (dizia M. Soares) para o seguinte facto sintomático: a adesão popular inegável que encontrou a doutrinação republicana, especialmente a partir do centenário de Camões, em 1880 – adesão que sobretudo avulta em confronto com o fraco eco que respondeu, mesmo nas massas operárias, às aspirações socialistas dos nebulosos doutrinários do século XIX! Não nos inculca esta fácil constatação – que resulta, aliás, de dados incontroversos – o problema da viabilidade do socialismo numa sociedade retrógrada como a do nosso século XIX e o da sua difícil articulação aos anseios mal definidos e às necessidades vitais do português comum?” E havia que compreender a existência de diversas correntes republicanas, devendo ficar claro que a questão do regime se tornava num “autêntico problema de sobrevivência nacional. É condição prévia de qualquer esforço renovador”. Nestes termos, a escolha da “questão do regime” para tema era um alerta para a urgência da construção da democracia, representada pela tentativa da geração de 1870, e em particular de Oliveira Martins para a criação de uma vida nova. A alusão histórica funcionava como uma verdadeira metáfora para os novos tempos, sem criar suspeitas para a censura, que tão duramente atingiria a nova revista. E o ponto de encontro para esse debate era uma iniciativa de ideias que abria caminhos novos, em nome de uma Oposição democrática plural, onde havia, além das oposições tradicionais, católicos inconformistas, que punham em causa o eurocentrismo e chamavam a atenção para a descolonização e para a autodeterminação e independência dos povos africanos, que davam importância ao Estado Social e aos movimentos emancipadores da sociedade e que estavam distantes do velho anticlericalismo. Aliás, a finalizar o texto que referimos, uma nota desenvolvida citava Bernardino Machado sobre a necessidade da tolerância em matéria religiosa. Por outro lado, a presença de um jovem dirigente estudantil, como Jorge Sampaio (também ele futuro Presidente da República), com o título inequivocamente atual, “Em torno da Universidade”, não poderia ser mais significativa. A renovação geracional era (e é) fundamental e a prioridade educativa exigia-se.


Assim, a presença de Mário Soares é, a vários títulos, marcante, como o tempo viria a demonstrar amplamente. Se politicamente a construção da democracia resultou de um compromisso complexo a partir do Movimento da Forças Armadas e do seu desenvolvimento e consolidação, tornando o 25 de abril uma data emblemática (que Francisco Sousa Tavares comparou ao primeiro de dezembro de 1640, do alto da guarita do Largo do Carmo), incompreensível sem o entendimento do processo dinâmico que se lhe seguiu e que permitiu a aprovação da Constituição da República fruto de dois grandes compromissos, envolvendo as Forças Armadas (e lembramos a coerência de Ernesto Melo Antunes) e os partidos políticos, que levaram ao respeito escrupuloso, apesar das naturais vicissitudes, por uma transição do poder militar para o poder civil democrático. Como dizia o primeiro editorial da revista, “o mal-estar geral e não localizado” existente entendia-se “como um estado de crise de consciência coletiva, mas partimos certos de que não enunciaremos todas as perguntas, nem estamos seguros de que as respostas que daremos serão as melhores”. A participação de Mário Soares e Salgado Zenha nesse projeto, que, seguindo a lição de Emmanuel Mounier, deveria envolver crentes e não crentes, constituiu uma espécie de premonição e de profecia – antecipando a institucionalização de uma democracia plural centrada numa cidadania inclusiva pela qual tantos cidadãos se bateram em nome, afinal, do que Mário Soares designou como uma questão de sobrevivência nacional. 


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

"PORTUGAL AMORDAÇADO"

  


A publicação pela Imprensa Nacional de Portugal Amordaçado da autoria de Mário Soares e a sua apresentação na Fundação Gulbenkian, no dia em que o antigo Presidente da República completaria 99 anos, são motivo de séria reflexão, já que se trata de um texto político fundamental para a história contemporânea. Daí a grande importância desta coleção dirigida por José Manuel dos Santos. Como salientaram João Soares e Jaime Gama, em intervenções de grande oportunidade, não poderemos compreender a institucionalização da democracia sem o entendimento do contexto e dos termos em que se situou o papel fundamental de Mário Soares, quer quando correu o risco do exílio, quer quando decidiu a fundação de uma nova força política, que se tornaria matricial para a afirmação da liberdade, de um consenso nacional, do pluralismo e de uma opção europeia.


Temos de lembrar que Mário Soares, quando decidiu avançar com o livro, estava num momento difícil da sua trajetória política. Como afirmou Jaime Gama, o Portugal Amordaçado "não é um livro escrito no quadro de um percurso de normalidade ou de facilidade, porque Mário Soares tinha não só o problema de se confrontar com uma ditadura, mas tinha também o problema de gerir o seu espaço como líder político". E assim "usa este livro em estado de necessidade", procurando "evitar que o seu exílio fosse um passo mais no sentido da sua destruição. Porque os exílios podem ser - e muitas vezes são - passos mais degradativos para a destruição de um político do que a própria prisão”. E Mário Soares teve a agudíssima consciência disso. “O livro ficou pronto em 1972, teve boa imprensa. (…) Escrevi-o com determinação (disse-o a Maria João Avillez), sempre de jacto e de memória, embora com grandes interrupções. Sempre fui visceralmente incompatível com a Ditadura, sentindo o dever moral, irrecusável, de a combater por todos os meios ao meu alcance (…). Mas nunca tive ilusões acerca da dificuldade do caminho. Para dizer a verdade, até pensava que o Governo de Salazar era bem mais sólido do que, finalmente, se revelou ‘a posteriori’”. E acrescentava: “As ideias estão certas. São as mesmas de sempre e estão certas. O livro dá uma larga panorâmica da Oposição durante o tempo de Salazar e de Caetano. O contraponto da propaganda oficial. (…) É um livro que constituiu um marco”. Importava, afinal, definir a autonomia estratégica do “socialismo democrático”. Por isso, houve que estabelecer com as outras forças políticas, boas relações, pontes, diálogo. A preocupação fundamental era “ganhar forças e apoios de toda a ordem para bater e derrubar o fascismo – um regime gasto, serôdio e de traição nacional aos interesses de Portugal”. Assim se exprimia quem conhecia a história, designadamente da Primeira República, tendo consciência de que havia um campo complexo para explorar. Portugal Amordaçado antecipa os acontecimentos. Depois, Francisco Sá Carneiro e Miller Guerra denunciam que a “evolução na continuidade” não tinha futuro, e renunciam aos lugares de deputados da “ala liberal”, nos inícios de 1973, por manifesta falta de condições para o exercício da livre expressão do pensamento. No Congresso da Oposição Democrática de Aveiro de abril de 1973, José Medeiros Ferreira levanta, premonitoriamente, a hipótese da intervenção militar para abrir caminho à democracia e em setembro iniciar-se-iam as ações do Movimento das Forças Armadas, que culminariam em 25 de abril de 1974 com a operação coroada de êxito, antecedida pela declaração “O Movimento das Forças Armadas e a Nação”, em cuja redação Ernesto Melo Antunes teve papel determinante, antecipando o Programa do Movimento, num percurso que culminaria na nossa democracia civil de perfil constitucional europeu. Nos dias de hoje, a releitura do livro de Mário Soares tem, assim, de ser feita como memória de um caminho de coerência e determinação, que foi o de uma vida inteira, como exemplo para a democracia contemporânea.


GOM

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

OS ANOS DE MÁRIO SOARES

 

1 - Quando, em 1940, restauraram os chamados "Painéis de S. Vicente" (…) alguém observou certas semelhanças entre um dos rostos do hipotético "Painel dos Pescadores" e o semblante do Dr. Oliveira Salazar. Ao que se contava (sobre os Painéis não juro nada), quem reparou não resistiu a mandar dar uma "mãozinha" e pediu ao restaurador que retocasse a figura por forma a tornar a parecença mais sensível. Quando eu era criança e me mostravam os Painéis, o suposto Salazar era uma atração quase idêntica ao suposto Infante D. Henrique. Se a história só tem interesse em termos hagiográficos, como manifestação do culto da personalidade, não deixa de ser verdade que Salazar, paramentado à século XV, não destoaria nos Painéis. Ele bem podia ter figurado - se fosse já nascido- entre os 58 personagens que se apertam em torno da imagem duplicada do santo. Não lhe faltava a "malinconia", a austeridade, a severidade, a solenidade, até a rudeza. Se, um dia, se vierem a identificar, com rigor, os protagonistas e figurantes dos Painéis, não me espantava nada que me viessem dizer que um avoengo do homem de Santa Comba se conta entre eles. Falei de Salazar, por causa da história que contei. Se se pensar em Vasco Gonçalves ou em Cunhal, em Freitas do Amaral ou em Cavaco, também os podemos ver prefigurados nessas tábuas. Um há, contudo, que absolutamente, não descende dos vultos dos Painéis. Esse é aquele que se chama Mário Soares e que, na próxima terça-feira, 7 de dezembro, completa 80 anos. Porque é menos português do que os outros? Muito pelo contrário, poucos, como Mário Soares, serão tão retintamente portugueses e tão inseparáveis do nosso passado e do nosso presente. Mas é de outra família. O Vicente de quem descende não é o tristérrimo santo que nos Painéis é figura central. É o Vicente da Barca e dos Almocreves, do Juiz da Beira e dos Farelos, que passa por fundador do nosso teatro. 


Nos tempos em que andei pelo Convento de Jesus a cursar Histórico-Filosóficas - Mário Soares também por lá andou -, o prof. Delfim Santos, ao explicar-nos as diferenças entre os tipos caracterológicos EAS (Emotivo-Ativo-Secundário), os chamados "apaixonados", e EAP (Emotivo-Ativo-Primário) os chamados "coléricos", costumava dar como exemplo dos primeiros Salazar, e como exemplo dos segundos, Francisco da Cunha Leal, então (era isto em 1955 ou 1956) o vulto mais conhecido da oposição democrática. Para grande escândalo das minhas colegas marxistas, via nessa oposição caracterial parte da razão das suas oposições políticas. Nunca conheci pessoalmente Cunha Leal, mas não tenho qualquer dúvida de que, se Mário Soares, nesses anos, já fosse famoso, Delfim Santos teria tido um bem melhor exemplo de antagonismo visceral, não desfazendo nos viscerais antagonismos ideológicos. 


Para tudo resumir: a melancolia e o pessimismo lusitanos nunca pegaram em Mário Soares. Para quase todos nós, a contrição. Para ele, o júbilo. É dos raros políticos nossos de quem nunca ouvimos o fado do sacrifício, ou o fardo do dever. Fados e fardos não são com ele. Sacrifícios, ainda menos. Lembro-me de uma hora mais amarga (não lhe faltaram) em que eu o lamentei. Respondeu-me rápido: " Quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele." E ele soube sempre confundir hábito com habitação. Ou, como escreveu algures Carlos Queiroz: "Só na nossa cama / É que se dorme bem / Só dorme quem ama / a cama que tem."

 

2 - Quando eu "acordei" para a política (maio de 1958, campanha do general Humberto Delgado), Mário Soares, embora já com vasto "curriculum" político para um homem de 33 anos, era ainda, para o "vulgo" em que eu me situava, um nome relativamente desconhecido. Só o vim conhecer pessoalmente em 1962 e em circunstâncias que nada tiveram de político. Eu era, à época, professor eventual do Liceu Camões, e Rui Grácio, que eu tinha substituído no ano anterior no Liceu Francês, escreveu-me a dizer que Mário Soares procurava um professor de História para o Colégio Moderno (então dirigido pelo pai dele) e que lhe sugerira o meu nome.

 

Fui visitá-lo. Entre os 27 e os 37 anos, dez anos são grande diferença, que senti mais acentuada pela pose "diretorial" com que Soares me recebeu. Ele conhecia bem o meu "curriculum" de "católico progressista" do grupo da Morais e do António Alçada (de quem era muito amigo) e conhecia até, como vim a verificar pelo decorrer da conversa, o meu "curriculum" como professor errático, com três anos de inexperiência.

 

Mas não procurou "pontes". Fez-me um interrogatório cerrado (meramente pedagógico) que me deixou pouco à vontade. Fiquei com a impressão de que não me ia entender com aquele homem (impressão que foi prevalecente durante coisa de vinte anos) e declinei o convite em que ele não insistiu. Se relato este insignificante episódio, é para salientar dois outros traços da personalidade de Soares que o futuro tão largamente confirmou: a autoridade natural, que três anos depois (em 1965) o catapultou para líder da oposição não comunista e o gosto de jogar ao gato e ao rato, quando lhe aparecia pela frente alguém com mais olhos que barriga. Mal sabia eu "que ce n'était qu'un début". Dois meses depois, quando o grupo fundador de "O Tempo e o Modo" decidiu abrir-se a não católicos, o António Alçada avançou imediatamente com os nomes de Mário Soares e Salgado Zenha, com quem julgava mais fácil estabelecer o famoso "diálogo" crentes-não crentes. Assim nós achámos todos (depois daquela história da "Avé-Maria" que eu tornei célebre) no conselho consultivo da revista, onde também tinham assento, além dos católicos da Morais, os jovens expoentes da crise universitária desse ano: Jorge Sampaio, Manuel de Lucena, Vítor Wengorovius, etc. Nessa altura, aprendi, depressa e muito, as clivagens entre esses vários grupos: o que era a ASP (Ação Socialista Portuguesa), como desconfiava dela a geração de 62, em tempos do MAR (Movimento de Ação Revolucionária), e como havia mais medos de um conluio "democrata-cristão" (nós) e "sociais-democratas" (Soares-Zenha) do que de quem guardava domingos e dias santos de guarda. Aprendi a admirar, em Soares, a diplomacia e o optimismo. Quando se tratava de engolir coisas que eu queria fazer passar, como "primado do espiritual" ou "primado da pessoa humana", Soares deixava essas guerras ao quezilento Zenha e distanciava-se ironicamente delas. Muito mais do que as reuniões, até altas horas da noite, interessavam-lhe os convívios ao jantar ou, depois das ditas, de que era o grande animador. O regime estava sempre a acabar. "Não dura até ao fim do ano", foi uma frase que invariavelmente lhe ouvi, entre 1963 e 1974. À 12ª vez acertou. Outras vezes, eram histórias heróicas da oposição, em Nelas ou em Vila Pouca de Aguiar.

 

"Tínhamos connosco todas as forças vivas da terra." "Oh, dr. Bénard" - interrompia, sarcástico, Salgado Zenha - "o que o dr. Mário Soares chama 'forças vivas' era um farmacêutico e um notário que se borravam de medo de cada vez que ouviam falar da PIDE." Quem não tinha medo da PIDE era ele, apesar das oito ou nove prisões que já contava. Eu já conhecia, de ouvir contar, os míticos silêncios de Cunhal e a célebre história da inofensiva chave, que se recusou a identificar durante doze dias de tortura do sono. "Para perceberem que eu não falo nunca." Soares escolhera a táctica inversa. Preso, falava sem cessar, mas nunca ninguém o apanhou numa palavra que não devesse ser dita. Resistiu até a uma acareação com um denunciante, que acabou com este a desdizer-se e a pedir-lhe desculpa por ter inventado uma história que era mais do que verdadeira. Quando o deixavam isolado na cela durante meses, ocupava o tempo a escrever romances. "Quando me mandaram cá para fora, estava tão entretido, que até me apeteceu pedir-lhes que me deixassem acabar o capítulo." Algumas vezes me passou pela cabeça que aquele homem viria a ser Presidente da República? Nunca. E no entanto... E, no entanto, há um instantâneo que eu nunca mais esqueci e me está tão gravado na memória como se fosse ontem. Foi em 1964, no Cinema Europa, ali a Campo de Ourique, por ocasião de um festival de cinema qualquer. Eu estava à porta da sala e, de repente, algo me fez olhar para a entrada.

 

Mário Soares vinha a entrar, vagarosamente, acompanhado por alguns amigos, vestindo um sobretudo de pêlo de camelo. Não se passou nada de especial, a maior parte dos presentes nem sequer o conhecia. Mas eu disse ao Nuno de Bragança: "Parece que chegou o Presidente da República." E no entanto... A despedida que Salazar lhe preparou, em 1968, quando o exilou para São Tomé, com a carga pidesca sobre quem ousara despedir-se dele (foi a única vez que fui sovado pela polícia, com requintes de humilhação) mostrava que o ditador estava menos distraído do que eu e media melhor a perigosidade daquele homem, que regressou, meses depois, quando o outro caiu da cadeira abaixo. Em 1969, andámos às bulhas entre a CEUD a CDE.

 

Vi-o tão duro a atacar como magnânimo a esquecer. Como é que ele dizia? "Enquanto o regime durar não tenho inimigos à direita; depois, não terei inimigos à esquerda." Ou era ao contrário? Já não me lembro bem, mas tanto faz. Ele mudou sempre, mas foi sempre o mesmo. "Mudar só não mudam os burros", foi outra frase dele. O resto é conhecido. Em 1985, findas muitas desavenças, aceitei, desde a primeira hora, integrar a Comissão de Honra dele e vi-o a passar de candidato dos dez por cento a vencedor, em janeiro de 1986. Aos 61 anos, chegava ao lugar em que eu o vira, por uns segundos, em 1964. E foram dez anos de uma gloriosa presidência, jubilosamente vivida. Da última vez que falei com ele, citou-me um adversário que, fulo com ele, começou por protestar elevada consideração pelo pai da nossa democracia e - continuou Soares - "desfiou aquelas balelas todas". Balelas? Quando um homem chega aos 80 anos e fez o que ele fez, dele e do país, e viveu o que ele viveu, ele e o país, "balelas" só mesmo na boca dele. Parabéns, Mário Soares! Todos, sempre, lhe deveremos tudo. Mesmo os que não o sabem.

 

por João Bénard da Costa
3 de dezembro 2004, Público

A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de janeiro de 2017.

 

A longa entrevista realizada por Maria João Avillez, intitulada «Soares» (1996-1997) e publicada em três volumes - «Ditadura e Revolução», «Democracia» e «O Presidente» - constitui um importante percurso, esclarecido a par e passo pelo seu protagonista. É uma obra fundamental, reveladora dos mais ínfimos pormenores de um percurso riquíssimo, sem o qual não é possível compreender Portugal hoje. A releitura dessa obra é assim obrigatória para quem queira conhecer e compreender o homem e a sua ação.


MEMÓRIA RICA E MULTIFACETADA
É difícil ser completo na invocação da memória de Mário Soares. Falta ainda muito para dizer relativamente a quem deu o melhor de si à causa da liberdade e da democracia. Como político de corpo inteiro foi ao longo da vida alguém que soube assumir a qualidade de cidadão ativo, sempre disponível para assumir o risco de dizer o que pensava, de modo a contribuir para o bem comum no pensamento e na ação. Sendo a democracia o modo de assumir construtivamente a imperfeição – com respeito dos direitos humanos, do pluralismo e da limitação mútua de poderes – Mário Soares impôs-se como o cidadão comum que sabia tirar lições dos erros que, como qualquer um, poderia cometer. Apresentava-se, pois, como cidadão disponível para partilhar as dificuldades e as dúvidas, sempre empenhado em pôr a responsabilidade em primeiro lugar e em correr riscos com coragem, para defender os valores democráticos em que acreditava. Foi, desse modo, no seu tempo, um dos grandes políticos europeus, com um papel fundamental na consolidação da democracia portuguesa e na afirmação do projeto europeu de paz e de desenvolvimento. Profundo conhecedor da história portuguesa, filho de uma personalidade marcante da I República e do mundo pedagógico, pôde, antes da Revolução democrática de 25 de abril de 1974, preparar o terreno para uma «República moderna» onde todos pudessem ter lugar, para além das oposições tradicionais. Quando, ao lado de Salgado Zenha, Jorge Sampaio, graças à iniciativa de António Alçada Baptista, participou na criação de «O Tempo e o Modo», estava em causa a prefiguração de um regime aberto, de liberdade e pluralismo – capaz de mobilizar todos. Foi nesse momento que esteve profundamente ligado ao Centro Nacional de Cultura. Prevenindo os erros da Primeira República, em especial no tocante às questões religiosa e social, preservando a matriz democrática, Mário Soares congregou os republicanos históricos, o Diretório democrato-social de António Sérgio, os jovens dos movimentos estudantis, os católicos inconformistas, os defensores do socialismo democrático e da social-democracia (na linha de Willy Brandt, Helmut Schmidt, Mendès-France e Olof Palme), os marxistas não-dogmáticos - compreendendo os movimentos de emancipação das jovens nações de língua portuguesa. Assim pôde lançar as bases de um compromisso heterogéneo e amplo, baseado no respeito mútuo e na consolidação de uma cidadania ativa e de uma democracia inclusiva. Maria de Jesus Barroso teve, aliás, um papel fundamental nesse caminho – como resistente serena, determinada e inteligente, capaz de ser um porto de abrigo e de suscitar caminhos novos. Simbolicamente a amizade do casal Soares com Sophia de Mello Breyner e Francisco Sousa Tavares foi um excelente exemplo desse espírito autenticamente democrático, de diferença e complementaridade.

 

DEFESA INTRANSIGENTE DA LIBERDADE
O meu querido e saudoso António Alçada Baptista tantas vezes me disse que era a defesa intransigente da liberdade que mais admirava em Mário Soares. E sabia que este tinha a coragem necessária para tirar todas as consequências desse combate fundamental. Posso dizer, por isso, com o conhecimento de causa, pelo longo período de convívio e de trabalho em comum que tivemos, que a liberdade e a cultura foram as duas marcas indeléveis da ação do antigo Presidente da República. Sophia de Mello Breyner na Assembleia Constituinte definiu lapidarmente essa marca inesquecível: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça. E, se o homem é capaz de criar a revolução é exatamente porque é capaz de criar a cultura” (2.9.1975). Entende-se, assim, que a autora de “Mar Novo” tivesse a maior confiança política e pessoal no seu amigo Mário Soares. Afinal, a democracia – e esse é o grande desafio do presente – precisa de estar apta a responder aos anseios dos cidadãos, como sistema sempre incompleto, mas suscetível de se aperfeiçoar permanentemente. Não há democracia sem partidos, não há liberdade sem o voto livre dos cidadãos, mas é preciso ir ao encontro da legitimidade do exercício, garantir o cumprimento das responsabilidades – ou seja, prestar contas dos compromissos assumidos, garantir uma permanente avaliação do serviço público e assegurar uma ligação efetiva entre o Estado e a sociedade, o Governo e os cidadãos. Se hoje há uma crise nas sociedades democráticas, que suscita a emergência dos populismos, tal deve-se ao défice de orientação política e à tentação de governar para contentar no imediato a sociedade, como se os cidadãos fossem clientes e a governação um mero fornecedor de benefícios de curto prazo. Na questão europeia ou na intransigência quanto à democracia pluralista (contra as tentações vanguardistas), prevaleceu a determinação política da participação de Portugal num espaço de desenvolvimento e de modernidade e da criação de defesas contra o autoritarismo.

   

EUROPA, DEMOCRACIA, LIBERDADE E CULTURA
Quando Mário Soares levantou a bandeira «Europa Connosco», entendeu que a democracia obrigaria a termos uma voz respeitada internacionalmente. José Medeiros Ferreira compreendeu-o muito bem. Só seríamos ouvidos no mundo, se tivéssemos lugar e relevância entre os países mais desenvolvidos. No entanto, o projeto europeu sofreu nos últimos anos um nítido enfraquecimento. Em lugar do cosmopolitismo e da abertura, temos fechamento e idolatria. Isso preocupava profundamente o antigo Presidente, que reclamava uma União mais política e a necessidade de mais justiça bem como de coesão social e económica. Ao invés da tendência que se vem impondo, torna-se necessário haver um maior orçamento europeu, capaz de aumentar o crescimento, o investimento reprodutivo e o emprego. Com desgosto, via, no entanto, prevalecerem os egoísmos nacionais e uma lógica do salve-se quem puder – em lugar da solidariedade. O ideal europeu de paz e desenvolvimento desvaneceu-se… Daí a concordância com os alertas de Bento XVI contra as economias de casino, e com a posição do Papa Francisco contra as desigualdades, as injustiças e o mercado que mata. Infelizmente, os últimos acontecimentos só agravaram as perspetivas futuras, confirmando os alertas oportunamente lançados. “Só é vencido quem desiste de lutar”. Em diversas circunstâncias na sua vida política Mário Soares demonstrou como o lema tem de ser compreendido e vivido. Na resistência democrática, na implantação da democracia, na luta contra todas as ameaças à liberdade, na afirmação da Economia Social, na crítica ao mercantilismo – houve altos e baixos, vitórias e derrotas, no entanto o legado fundamental é o do constitucionalismo da Res Publica, que tem de continuar a ser aprofundado. O primado da Liberdade e da Cultura significa, no fundo, que a cidadania se deve preservar através da autonomia, da responsabilidade, da inovação e da criatividade. Educação, Ciência e Cultura são cada vez mais cruciais. São essas as marcas verdadeiras do patriotismo prospetivo…  

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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CRÓNICA DA CULTURA


O ESQUECIMENTO NÃO TEM LUGAR

Na paleta das cores o anoitecer não acontece. Existe uma espessura para quem entende a luz que impede que se possa perder a vista das razões; e dentro desta, é fabuloso o grande cérebro que nunca entenderá os cérebros das diminutas melgas que se tormentam para deixar rasto.

 

Julgo existir um alívio absurdo em quem deita fora o tempo da própria vida numa total indecifração do mundo e de si. Para eles a cor imensa da paleta das cores, nunca foi uma coragem para pensar sem restrição. É um sonso regímen aquele que se auto impõem ou um xadrez inepto? Não sei, ou talvez o entenda como um grande silêncio inculto onde e aonde tudo começa e acaba.

E disse ao soldado

Não o esperava a meditar nas fotografias não tiradas

Pois eu também não, mas os negativos de tudo o que os meus olhos viram, estão aqui algures dentro de mim. Penso muito nisto e quando penso, não sei explicar. Mas está cá.

Pois é, nunca sabemos tudo e muito menos explicar tudo ou olhar as coisas como se fossem uma paisagem à nossa frente, ali, clara, óbvia e dizê-la. Por exemplo, o âmbar engole insetos e mostra-os depois, muitíssimos tempos depois e sempre com o mesmo aspeto. É um lado estético, inquietante, e intriga-nos, soldado pensador. Aqui o rio Nilo nunca se desvia. E agora sou eu que não sei dizer as coisas de outro modo. Mas disseram-me que gosta de pintar, é certo?

Sim, agora ando a pintar a Europa.

A Europa? E como o faz?

Olhe, perguntando-me como chegou ela a este estado? É tão incompreensível. E para mim soldado nascido na aldeia escondida atrás da serra que às escondidas brincava comigo, ainda menos entendo hoje como se fala da cultura ou dessas coisas complicadas, sendo fácil de entender que tudo está cortado ao meio como se nada estivesse a acontecer. Olhe, a este facto dei duas cores: o amarelo e o amarelo-vivo.

Curioso. Tonalidade e uma cor.

Deixe- que lhe diga, soldado, continue a pintar o coração dos tornados e encontrará muitos países sorvedouros dos engenhos das ideias, e, talvez por aí, a paleta das cores mais exatas à Europa de hoje e que procura dizer nos seus quadros. Mas olhe, eu conheço pessoas da Europa do ontem e do hoje que até intuem o tanger das águas no meio das barulhentas multidões; eu sempre as soube nem presas da caça nem das guerras, mas lutadoras como soldados que provam harmonias, e recordam com coragem o que nos foi subtraído, e de um tal lidar com o mundo, delas a paleta das cores será sempre a audácia que só pertence a quem, o esquecimento nunca ocupará lugar.

Assim Mário Soares. Assim a História que tem sempre um lado de restituição: um átomo que conhece a hora certa do esbanjar de vida numa alegria, quando todos estão exaustos.

 

Teresa Bracinha Vieira

Janeiro 2017