Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Franz Joseph Haydn, quartetos e sinfonias, sonatas, "A Criação!" O equilíbrio em tudo, não por receita, mas como procura. Até nas admiráveis "Sete últimas palavras de Cristo na cruz"! Assim, ao som da música, nos balançamos entre a vida e a morte, o sofrimento e o perdão, entre o que julgamos saber e o que definitivamente ainda não conhecemos, entre a escassez e a plenitude. Tudo é graça neste concerto do ser que aspiramos com o estar que somos. Humano é desafiar o caos, o absurdo. Há sempre música na vida quando no silêncio encontramos a música inicial que nos harmoniza. Há sempre uma qualquer hora em que, em cada um de nós, se revela, tão intimamente que só cada um o pressente, esse mistério antigo que levou Antero a falar na "mão de Deus, na sua mão direita" ou Pessoa da "noite antiquíssima e idêntica...igual por dentro ao silêncio"... E fez o Eça exaltar os "regatos espertos" e outros assombros dos campos de Portugal que, ele mesmo, Zé Maria, de tão longe saboreou...
João Ameal não terá sido um historiador maior. Mas, há mais de meio século, deixou no prefácio à sua “História de Portugal” uma afirmação que nunca esqueci: "A História é a nossa vida antes de nós". Lembro-me de ter lido, por essa altura (teria já quinze anos?), da biblioteca da minha Mãe, um livro intitulado "Le Prestige du Passé", que me abriu os olhos para o facto de, no liceu, andar a estudar uma história que prestigiava o passado e enaltecia os nossos antepassados...
Todavia, hoje ainda, esse facto me não incomoda. Marcou um tempo da minha vida, tal como os movimentos culturais, com os seus conhecimentos científicos e técnicos, as suas ideologias e sistemas políticos e sociais, as suas religiões, como relação ao transcendente e aos outros (amigos e inimigos), marcaram o tempo das civilizações na história. Para mim, com maior ou menor prestígio, mais ou menos enaltecido, o passado que a investigação histórica nos vai revelando, desta ou daquela maneira, é sempre "a nossa vida antes de nós". Fui lendo com gosto as histórias da vida privada que, na senda de Georges Duby, tantos historiadores por esse mundo foram percorrendo; entre nós, ainda incipientemente e recentemente, com impulso de José Mattoso, Apesar da escassez de crónicas que registem o quotidiano com a ênfase que outras dão aos factos e feitos militares, políticos, científicos e religiosos, com a ajuda de alguns pormenores que vão surgindo, da arqueologia de sítios de habitação de objetos utensílios de uso comum, bem como das obras de arte e literárias ilustrativas de modos, hábitos e costumes, é possível ir imaginando e reconstruindo, com alguma fidelidade, atitudes e comportamentos, condições de vida, valores e organizações sociais.
Sobretudo, vamos entendendo como o engenho humano foi reagindo e resolvendo situações de abastança e de penúria, de saúde e de doença, na paz e na guerra, em períodos de fixação ou de migração. Desses afrontamentos se tiraram valores orientadores da vida de todos os dias, bem documentados no acervo dos nossos provérbios e ditados. Estes tantas vezes a merecerem o entendimento e a concordância de recém-chegados à nossa terra. Por vezes, através de pequenos ensaios monográficos, tenho-me aberto à perspetiva que junta o quotidiano à "Grande História": a narração de aventuras reais a partir de objetos representados numa pintura de outro tempo pode levar-nos à descoberta de mundos que um olhar, atento ao quotidiano que nos rodeia, encontra... Que prazer me deu ler, por exemplo, o "Vermeer´s Hat" de Timothy Brook!
A escrita e a leitura da História já não são, como na perspetiva romântica da afirmação das nacionalidades, uma exaltação do ego étnico, político ou popular, mitológico. É, sim, cada vez mais, a descoberta de um passado com feitos melhores e piores, com as suas contradições e as suas esperanças, a experiência dessa dialética da condição humana, onde nascem e se transmitem os valores em que nos reconhecemos. Também, o exercício contemporâneo da historiografia tem vindo a recorrer a fontes externas às propriamente nacionais, facultando-nos um entendimento de nós pelo olhar dos outros: Kirti Chauduri ou Sanjay Subramanyam e outros ajudam-nos a compreender melhor situações e figuras históricas que julgávamos só nossas, mas que são mais universais e complexas. Maiores por isso. A chegada dos portugueses à India, que já existia e se agitava quando o Gama lá aportou, surge também, vista do outro lado, como um tecido de encontros, conflitos e alianças, fidelidades e traições, enganos e desenganos, afrontamentos e aculturações que foram construindo a casa-mundo que habitamos. Goa não existe sem Portugal e a Índia. Portugal não é inteiro sem Goa. E quanto, quanto, da Índia só em Goa se revela?
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 03.10.2021 neste blogue.
"Rigoletto", uma das óperas mais cantadas em todo o mundo, situa-se cronologicamente a pouco mais do meio das compostas por Verdi (é 16ª em 27), imediatamente antes de "Il Trovatore" e de "La Traviata", ambas terminadas dois anos depois, em 1853. Na "Rigoletto" está quase todo Verdi, é como o ponto sublime das invenções já anteriormente anunciadas e, simultaneamente, o anúncio do que está para vir. Não é já só uma sucessão de cenas, pois toda a expressão dramática se traduz em música que, mesmo quando só orquestral, é também narrativa. O libreto, como sabes, foi retirado pelo Francesco Maria Piave (que também escreveu os de "Macbeth" e de "Ernâni", e o de "La Traviata" e mais outros seis) de um drama de Victor Hugo: "Le roi s’amuse" que, levado à cena vinte anos antes, em Paris, só teve uma representação, por intervenção da polícia, e esperou cinquenta anos para voltar ao teatro. Conta a história do abuso, pelo rei Francisco I de França, da filha do seu bobo Triboulet (em italiano, Triboletto e, mais tarde, Rigoletto - inspirado pelo francês "rigoler" ou divertir-se à custa de...). Também a censura austríaca se opôs à estreia da ópera, com a mesma história, no La Fenice, em Veneza. Após negociações várias, Piave e Verdi conseguiram a necessária autorização, mediante a mudança do título inscrito no libreto ("La Maledizione") para "Rigoletto" e, sobretudo, a mudança dos nomes das personagens e do local do drama: ficou-se em Mântua, com um duque local, inventado. No mesmo teatro foram estreadas outras óperas de Verdi com libreto de Piave, entre elas "La Traviata" e "Ernâni", esta também inspirada numa peça de Victor Hugo: "Hernani". Ao grande francês foi, pois, o compositor do "risorgimento" buscar dois temas, tal como três a Shakespeare ("Macbeth", ainda por Piave, "Othello" e "Falstaff", ambas por Arrigo Boito). É interessante observá-lo, quando sabemos que o bardo inglês do séc.XVI/XVII era o dramaturgo preferido de Hugo como de Verdi. Pessoalmente, senti sopros shakespeareanos no "Rigoletto". Não do ator-autor teatral que, em tantas das suas obras e atuações, procurou superar com bom humor e até alguma bonomia, o clima de suspeições e desconfianças que, na Inglaterra elizabeteana, envenenava as relações entre pessoas e grupos, anglicanos, papistas, puritanos...e alimentava tensões, conspirações e conflitos, aliás com alguma tradição, por esta ou aquela razão, no reino insular. Mas senti o Shakespeare do início do século XVII, o que perde o pai e é traído no amor, e sofre o fracasso dos condes de Essex e de Southhampton: patronos do bardo, o primeiro seria executado por Isabel I, o segundo encarcerado na Torre de Londres, de onde seria libertado por Jaime I, depois da morte da Rainha-Virgem. São anos em que William Shakespeare escreve em empatia com o gosto popular pelo drama sórdido, pela violência horrível que pesa sobre os homens como uma inevitabilidade, um castigo, ou, simplesmente, pela expressão do maligno que lhes habita o coração: Hamlet, Othello, Lear, Macbeth serão, entre 1602 e 1607, os heróis dessa desumanidade ou da tragédia dos homens que se acham esquecidos de Deus... Rigoletto, feio bobo, disforme e sarcástico, é criatura de Hugo, não de William. Mas recebe deste a fé na maldição, pois quem nasceu malfeito, ridículo e repugnante, tem de ser maldito e amaldiçoar o bem dos outros e regozijar-se com o mal deles: assim, é o ódio à beleza que ele não tem que o leva a detestar o duque e a corte, sem distinção alguma, nem sequer compaixão pelos condes de Monterone e de Ceprano, cujas filha e mulher soçobraram à luxúria cúpida do duque de Mântua. E que o impele a negociar com um bandido o assassinato do duque, que lhe seduziu a filha: Gilda que, por misteriosa fidelidade ao sedutor que a enganou e abandona, em segredo o substituirá no sacrifício a que o pai dela o condenara. É-me difícil compreender tal entrega de si em tão sinistro contexto: só no grito final de Rigoletto - "Ah! la maledizione!" - talvez... Mas é belo, como oásis no deserto - ou esse raro brilho dos teus olhos, que tão bem conheço - o dueto entre pai e filha que te referi no início desta carta, quando Rigoletto, temendo o mal que paira sobre Gilda, canta que a Deus pedira que sobre si só caísse a maldição, e à filha pede que lhe chore em cima do coração: "piangi, fanciulla, piangi"... É o grande momento de grandeza humana - quase divina - da ópera, em que o bobo se transfigura em pai, por um impulso de sentida generosidade e compaixão. Nesse instante, Gilda deixa de ser um objeto de paixão possessiva, de que ele ciosamente se apropria, e transforma-se também - ao ponto de reconhecer no pai um anjo consolador - em ser humano desamparado que só o carinho de outro conforta. Antes, já o mentiroso duque declarara à menina reclusa que "il Dio d´amore stringeva tuo fato al mio!" O teu fado e o meu, inseparavelmente, ligados pelo Deus do amor. "É il sol dell’anima, la vita é amore, sua voce é il palpito del nostro core..." Ocorreu-me aí o tema de "La Traviata": "L’amor é palpito del universo intero...". Com as mesmas palavras se dizem, até em música, palpitações diferentes. As palavras, como os gestos e as obras dos homens, em qualquer caso, são sempre artifício. É próprio da natureza do homem comunicar com as coisas todas, e com os outros, por artifício. A "fábrica" que cada um de nós é transforma tudo aquilo em que toca. E por muito rigorosas que sejam as regras impostas ao nosso comportamento - e por muito convencionais que possamos parecer - a verdade de cada um, só os olhos de Deus a vê no fundo dos corações. O "palpito" do coração do duque de Mântua vai mudando de velocidade e estímulo consoante "la donna é mobile: qual piuma al vento, muta d’accento e di pensiero...". O bater dos corações de Violetta e Alfredo acompanha o ritmo íntimo e misterioso do universo sem fim, para lá do visível, do imediato, do possuível. Na cena final de "La Traviata", a morte dela levanta-se como ressurreição. Olha, Princesa, lembra-me esse verso do Ungaretti: "M´illumino d’inmenso...". Camilo Maria voltou várias vezes a Milão e ao Scalla. Quase dez anos deste "Rigoletto", passara por Lisboa e levou-me a S. Carlos, a uma inesquecível "La Traviata", com a Maria Callas e o Alfredo Kraus, dirigida pelo Claudio Scimone. Escreveu sobre isso à Princesa. Guardo essa carta para mim.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 27.08.13 neste blogue.
SIC TRANSIT GLORIA MUNDI… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Prolongo esta estadia em Viena, "noblesse oblige". Mas também me dá tempo para voltar à ópera, desta vez na Grosses Spielhaus, em Salzburg. Ontem, tive uma "Salomé", do Richard Strauss, dirigida pelo Karajan. Valeu muito mais pela música e pela direção nervosa do maestro do que pela encenação. De certo modo, o Herbert von Karajan parece ser feito para esta "Salomé" que, aliás, dirigiu pela primeira vez há quase meio século, tinha ele 21 anos, e eu poucos mais. Então, como agora, tremi naquele monólogo final da filha de Herodíades, dirigindo-se à cabeça cortada de S. João Baptista: "Ah! Ich habe deinen Mund geküsst, Jochanaan!" Beijei a tua boca e os teus lábios tinham um sabor amargo... Seria o gosto do sangue? Não! Talvez fosse o gosto do amor, dizem que o amor tem um sabor amargo. Hoje, aproveito a minha folga da noite para ficar no quarto do Hotel Sacher a ler as notas do programa e o libreto. E sou recordado do drama de Oscar Wilde que inspirou a trama da ópera, e da sua relação ao poema "Hérodiade" do Mallarmé e ao "À Rebours" do Huysmans, onde se descrevem duas pinturas do Gustave Moreau: uma representando a dança dos sete véus - a que Strauss dedica, na partitura, uma suite para orquestra que durará cerca de dez minutos - e outra intitulada "L’Apparition", em que a Salomé, vinda do Evangelho de S. Mateus, ganha novas proporções: "Ici, elle était vraiment fille; obedecia ao seu temperamento de mulher ardente e cruel; vivia,mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais delicada; despertava mais energicamente os sentidos em letargia do homem, enfeitiçava, domava com mais segurança as suas vontades, com o seu encanto de grande flor venérea, crescida em solos sacrílegos, cultivada em estufas ímpias". E Oscar Wilde, achando demasiado dócil a Salomé das escrituras, dirá que será por isso que os séculos seguintes foram depositando a seus pés sonhos e visões que a convertessem na "cardinal flower of the perverse garden"... Assim me ocorreu a tese do Jean Guitton, de que já te falei, sobre o tema do amor na literatura, a transgressão de Tristão e Isolda divinizada pela tradição romântica ou romanesca. Finalmente, talvez pela evocação de Huysmans ou de Mallarmé (já verás porquê), chego ao Tolstoi de "O que é a arte?", que vou lendo agora. Confesso que é bem possível que este encontro se deva a ti, que me habitas o pensamento e o coração e comigo percorres estas divagações... Foste tu quem me sugeriu esta visita a Tolstoi. Para ele, o apagamento da consciência religiosa e a perda da fé nas classes mais altas da sociedade europeia, em conjugação com a separação entre a arte que lhes dá prazer e a tradição da arte popular, reduziram a emoção estética ou artística a três sentimentos básicos e pobres: orgulho, desejo sexual e tédio da vida. O sentimento do orgulho surge na Renascença, com a arte paga pelos ricos feita em seu próprio louvor e enaltecimento; depois veio a exaltação da carne como motor da produção artística e literária; finalmente, o cansaço de tudo isso, o tédio de viver. E nessa viragem do século XIX para o XX - em que, quiçá?, as filosofias de Nietzsche e Schopenhauer serão já proféticas do orgulho, do pessimismo, do medo e da destruição resultante - o Leão russo ruge e zanga-se com os literatos (sobretudo franceses), Mallarmé e Huysmans, Baudelaire e Verlaine, Zola, etc... Com os compositores, desde a última fase de Beethoven ao Richard Strauss, passando por Wagner, Brahms e Liszt... Para ele, tudo lhe parece pornografia e decadentismo, bem longe do que foram as obras de Goethe, Schiller, Victor Hugo, Dickens, Mozart, Bach, Chopin, da Vinci, Rafael ou Miguel Ângelo... muito embora morda nalgumas dessas ou encontre a desculpa de que as massas populares não as teriam sempre entendido por estarem deficientemente educadas! Subjacente a esta raiva crítica está a inspiração evangélica e a profunda solidariedade humana do desejo tolstoiano de um mundo novo. Será utópico, talvez risível. Mas vindo de um aristocrata russo que morreu sete anos antes da revolução de 1917 - curiosamente, em 1910, quando Sir Thomas Beecham dirigiu, no Covent Garden de Londres, a "première" da "Salomé" de Strauss - tem ela, pelo menos, o mérito de nos incomodar... Nós que, diletantemente, nos entregamos ao gozo privilegiado de tanta literatura, espetáculo e artes plásticas, que o dinheiro paga para nosso bel-prazer, e não nos apercebemos de como a celebração de novidades, efemérides ou gostos raros - tal como certas práticas e ritos bacocos de pietismos em que pretendemos encerrar, para consumo próprio, a grandiosidade generosa e abundante do divino - nos afastam dos outros e nos reduzem. A arte, em todas as suas formas e manifestações, deve ser uma procura - simultaneamente dolorosa e alegre, como um parto - da comunicação. É partilha. Leio contigo este passo de "O que é a arte?" de Tolstoi: "Em consequência da descrença das pessoas das classes altas, a arte dessas pessoas tornou-se pobre em conteúdo. Mas, além disso, tornando-se cada vez mais exclusiva, tornou-se por esse motivo mais complicada, extravagante e obscura. Quando um artista do povo - como eram os artistas gregos e os profetas hebreus - criava a sua obra procurava evidentemente dizer aquilo que tinha para dizer de maneira a que a obra dele fosse compreendida por todas as pessoas. No entanto, quando o artista criava para um pequeno círculo de pessoas que viviam em condições excecionais, ou até para um indivíduo e os seus cortesãos, para um papa, um cardeal, um rei, um duque, uma rainha, uma amante do rei, empenhava-se naturalmente em produzir efeito apenas sobre essas pessoas que lhe eram conhecidas e que viviam em condições que também lhe eram conhecidas. Este método mais fácil de despertar sentimentos conduzia involuntariamente o artista a expressar-se por alusões incompreensíveis para todos a não ser para os iniciados..." (Tradução do russo por Ekaterina Kucheruk, para a Gradiva). Sem concordar com todos os pressupostos da análise de Tolstoi, confesso que, muitas vezes, até a simples leitura de crónicas ou resenhas críticas publicadas nos jornais me causa o desconforto de me sentir metido numa conversa que não me diz respeito. E é verdade que os círculos artísticos e literários tendem a produzir linguagens e modos herméticos e "sectários". Um pouco como aqueles adolescentes que se reúnem na zona de Shibuya, em Tokyo, e falam entre si um "japonês" inacessível até para seus pais... Não creio que a arte possa ou deva ser elitista e exclusiva. Antes penso que a arte é a procura da perfeição, de modo a que a expressão do belo se torne numa mensagem universal, comunicante e libertadora. O artista não impõe nem define. Desperta. Nesse sentido a obra de arte é, como a graça de Deus, um apelo, uma chamada. Quem contempla uma gravura ou escuta uma sonata não sentirá exatamente o impulso ou a ideia do autor, mas é pela obra deste libertado para o sentimento ou a contemplação de uma perfeição sempre imperfeita, porque sempre procurada. Volto ao nosso Ortega y Gasset: "El hombre es un trânsfuga de la naturaleza". Somos viandantes, precisamos de estrelas. E para as vermos, temos de olhar para cima. A importância da educação literária, musical e artística é esse convite a olhar para cima. E, também, a de ensinar que a busca da perfeição das coisas e das belezas do espírito é - como o amor e a ternura - difícil. Nesse sentido, o artista, como artesão, é um asceta. Um canteiro de flores ou uma horta bem cultivada, tal como uma mesa ou uma ponte bem construídas, ou um saboroso almoço, são obras de arte também. Feitas pelo trabalho dos homens, sujeito ao gosto e à disciplina de fazer melhor. Vou buscar ao "Pour une Théologie du Travail" do Padre Marie-Dominique Chenu um texto do teólogo oriental São Máximo (morto em 668) que o teólogo dominicano apresenta assim: "Ao contrário dos Padres latinos, que, sobretudo com Santo Agostinho, se agarraram à interioridade do homem contra as dispersões do mundo exterior, os Gregos prestavam grande atenção à relação do homem com a natureza. Retomando um dos grandes temas antropológicos da Antiguidade, definiam o homem como um "microcosmos": o homem recapitula em si os elementos e os valores do cosmos; recapitula-os estaticamente, no cimo de todas as naturezas; recapitula-os, graças a essa comunhão física e vital, dinamicamente, numa escalada hierárquica para a Unidade suprema." Minha Princesa: eu diria, do artista, isto que São Máximo aqui diz do homem: "O homem é uma oficina viva, em permanente continuidade de ação, em todos os seres. Através das realidades mais diferentes e segundo toda a sua diversidade, ele é, por si mesmo e em natureza, no bem e na beleza, segundo a génese de cada ser, o artesão da unificação delas... ...Essa potência unificadora, exercendo-se na causalidade do devir desses diversos seres, revela, cumprindo-o, o grande mistério do plano divino; porque determina harmoniosamente a coerência mútua dos seres opostos, dos mais próximos aos mais longínquos, dos menores aos maiores, e assim os conduz por um regresso progressivo à sua unidade em Deus...” Nas suas viagens pelo mundo, Camilo Maria, além de uma maleta de cabine em que levava alguma leitura e papel para escrever, e da mala da roupa, tinha sempre outra, mais pesada, cheia de livros. Quando lhe perguntavam o que nela trazia, invariavelmente respondia: "É a minha maquilhagem!"
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 13.08.13 neste blogue.
1. Apesar de se assumir, em primeiro lugar, como brasileiro, houve sempre em Caetano Veloso (CV) uma admiração e deslumbramento pela língua portuguesa. Não há nele ressentimentos em relação ao nosso idioma, que não tem como “imperialista”, “colonialista”, neocolonialista”, “racista”, aceitando-o como um mosaico de falas dos mais variados lugares, pois não há Portugal sem Brasil, sem África, sem as Índias, o Extremo-Oriente, sem o mundo por onde nos deslocalizamos e dispersamos geograficamente, sem uma vocação de extroversão, porque como profundamente o compreendeu Fernando Pessoa, não há o português e a lusofonia sem a língua portuguesa.
Há décadas, quando no seu país natal havia declarações desfavoráveis sobre a língua portuguesa, isolada da dos falantes dos países vizinhos e de todo o continente sul americano, CV foi uma das vozes que se fez ouvir para afirmar que tinha todo o orgulho em falar português, dada a sua singularidade na diversidade e ser um elemento diferenciador dos outros povos da América Latina e das Américas.
Este sentimento de amor e afeição ao Brasil e à língua portuguesa, e por arrastamento a Portugal e aos lusófonos, manifestou-o no decurso da sua vida e sólida carreira, ao afirmar: “O nome do Brasil não apenas me parece, por todos os motivos, belo, como tenho dele desde sempre uma representação interna una e satisfatória”, “Santo Amaro não tinha ricos nem pobres e era bem urbanizada e tinha estilo próprio: todos se orgulhavam com naturalidade de ser brasileiros. Achávamos a língua portuguesa bela e clara” (Verdade Tropical, edições quasi).
Não há melhor exemplo, para celebrar o idioma cmum, que a canção “Língua”, onde têm cabimento e se evocam Camões, Pessoa, Carmen Miranda, Chico Buarque de Hollanda, Glauco Mattoso, Arrigo Barnabé, Maria da Fé, a Flor do Lácio Sambódromo, a Lusamérica, Guimarães Rosa, a Mangueira, Luanda, Scarlat Moon Chevalier, sendo dela os versos: “Minha pátria é minha língua”, “A língua é minha Pátria/E eu não tenho Pátria, tenho mátria/Quero fátria”.
Como escritor fala-nos da “bela carta de Pero Vaz de Caminha narrando a viagem ao rei de Portugal”, no movimento Tropicália e a preocupação que houve em não se confundir com o luso-tropicalismo de Gylberto Freire que tem “como algo muito mais respeitável”, de Agostinho da Silva, “o fascinante português fugitivo da salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização”, que “Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações”, sem esquecer que “A extraordinária cantora de fados portuguesa Amália Rodrigues já era conhecida desde muito antes de a bossa nova surgir e parecia eterna”.
Em 1985, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, cantou o fado “Estranha Forma de Vida”, em português de Portugal, desconhecendo que Amália estava presente, subindo esta ao palco, perante uma ovação emocionada da assistência, gesto decisivo para o ressurgimento do fado e um reencontrar do público com a fadista, numa atitude desafiante e ousada, tanto mais que, segundo CV, “(…) eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as plateias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações”.
2. Foi este artista que universalizou canções como “Alegria, Alegria”, “Você é Linda”, “Leãozinho”, “Língua”, que recentemente (19.09.23) recebeu a medalha de Mérito Cultural do governo português, que assim se apresenta: “Meu nome é Caetano porque nasci no dia de são Caetano, em louvor do qual minha mãe manda celebrar missa todos os anos, mesmo na minha ausência. Nunca me senti uma exceção por causa disso”.
Criada “(…) para distinguir pessoas singulares ou coletivas, nacionais ou estrangeiras, pela sua dedicação ao longo do tempo a atividades de ação ou divulgação cultural” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 123/84, de 13.04), a medalha de Mérito Cultural atribuída a CV, embora merecida, é insuficiente, dado o seu destinatário, in casu, ser um dos maiores defensores e divulgadores da nossa língua, como cantor e músico, além de compositor, produtor, escritor, como património comum lusófono e da humanidade.
A distinção, meritória, peca por “inacabada”, embora reforçada pela atribuição a agraciados, entre outros, como Maria Bethânia, sua irmã (música/língua portuguesa), Agustina Bessa Luís (literatura), Álvaro Siza Vieira (arquitetura), António Ramos Rosa (poesia), Campo Arqueológico de Mértola (património cultural), Centro Nacional de Cultura (divulgação cultural), Eduardo Lourenço (filosofia/ensaio), Eugénio de Andrade (poesia), Eunice Muñoz (teatro), Fernanda Montenegro (teatro), Jorge Borges de Macedo (história), Manoel de Oliveira (cinema), Maria João Pires (música), Orquestra Gulbenkian (música) Roberto Barchiesi (língua portuguesa).
Daí ser justo questionarmo-nos duma eventual atribuição da Ordem de Camões, de um doutoramento honoris causa (em que a universidade espanhola de Salamanca se antecipou), incluindo o prémio Camões, este na sequência de uma interpretação mais ampla do prémio atribuído a Bob Dylan (Nobel da literatura) e Chico Buarque (Camões), por critérios não movidos por uma interpretação literal e estritamente literária.
Portugal e a língua portuguesa não se complementam nem realizam tão só na Europa, havendo um compromisso e desígnio estratégico atlântico e global que se afirma levando a Europa e o Mundo à lusofonia e esta à Europa e ao Mundo, sendo a língua portuguesa o seu motor e veículo primordial, havendo que reconhecer, a esse nível, o contributo crucial de CV.
ONDE SE FALA DO «RAPTO DO SERRALHO»… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Já passou meia semana da minha estadia em Viena, no Sacher. Encontrei cá, imagina!, o nosso Camilo português, que integra uma delegação a uma reunião interministerial da EFTA, cuja presidência é, neste momento, austríaca. Íamos todos a sair - eu e uns cinco portugueses - aqui do hotel para... (é só atravessar a rua!)... a Wiener Staatsoper, onde assistimos a uma magnífica "Die Entführung aus dem Serail", dirigida pelo Karl Böhm. "O Rapto do Serralho" tem sido, desde a sua estreia no Burgtheater de Viena, a 16 de julho de 1782, uma (senão a) das mais populares e representadas óperas de Wolfgang Amadeus Mozart. Tem um sabor especial vê-la aqui, nesta cidade que os turcos otomanos tentaram por quatro vezes conquistar, a última das quais em 1683. Vive-se mais esse sentimento do "turco", como receio de ameaça secular, mas como curiosidade também, e gosto do exótico e certas modas, incluindo a pastelaria que até toma a forma do crescente ("croissant"). E essa desforra popular ("folclórica") que faz do tema do sultão apaixonado pela bela europeia cristã, que o repudia e engana, o "leitmotiv" de contos e peças de teatro, de inúmeras "singspiele" e óperas... O mesmo Mozart, antes do "Rapto", compusera uma "singspiel", cuja heroína é Zaïde - nome que daria, mais tarde, o título a essa opereta incompleta - escrava cristã do harém do sultão Solimão, de onde foge com o seu amante Gomatz, com a cumplicidade de Allazim, "renegado" cristão, hoje braço direito de Solimão. Apanhados pelo feroz Osmin (que reaparecerá no "Rapto"), capitão da guarda do sultão, serão, mais uma vez, salvos pela intercessão do "renegado". Este, na verdade, quando comandava um navio espanhol no Mediterrâneo, livrara a galera turca - em que Solimão, ainda jovem, seguia - de um ataque de piratas. Mas, enquanto a galera turca pôde assim fugir do perigo, o vaso de guerra espanhol foi surpreendido por uma esquadra de piratas, e Allazim, depois de preso, vendido como escravo ao próprio sultão e obrigado a converter-se... Surpreendido pela revelação de que Allazim fora o seu salvador, Solimão é clemente e salomónico: Zaïde e Gomatz são perdoados e poderão partir; mas Allazim deverá ficar com ele, pois maior amigo não tem nem pode ter! "Dein Edelmut, Allazim, hat den weg zu meinem Herzen gefunden... A tua nobreza, Allazim, encontrou o caminho para o meu coração. Um muçulmano pode ser tão generoso como um espanhol! Libertai-os, portanto, e conduzi-os a um navio que veleje até à pátria deles. Adeus Zaïde, adeus Gomatz. Procura ser digno dela. Mas tu, Allazim, não me deixes. Ajuda-me a tornar-me tão nobre como tu. Isto não é ordem de senhor, é pedido de irmão." Assim acaba a "Zaïde". Esta história leva-me à bacia do Mediterrâneo nos séculos XV a XVIII, tal como a descreve Fernand Braudel. E a outras histórias de corsos, razias, raptos, apostasias e regressos, escravizações e resgates, conflitos, tréguas e alianças. Lá irei, é fabulosamente tentadora a viagem por esse mundo em que judeus, muçulmanos e cristãos - e tantos povos e etnias da Europa, do Médio Oriente e do Norte de África - se relacionaram. Mas vou primeiro ao tema das óperas: a paixão não correspondida do sultão pela europeia, a tentativa de fuga desta com o seu namorado, a perseguição movida pelo carrancudo, vingativo e ambicioso capitão de guardas, o inesperado intercessor, a magnanimidade final do altivo soberano muçulmano, tudo isto se repete - desde a "singspiel" de Christoph Friedrich Bretzner "Belmonte und Konstanze oder die Enfuhrung aus dem Serail", levada à cena em Berlim com música de Johann André - em inúmeras realizações de compositores do século XVIII. E tem analogias com obras de Gluck ("La Rencontre Imprévue"), Haydn (“L’Incontro improviso”) e ainda "L’Italiana in Algeri" ou "Il Turco in Italia" do Rossini (onde a heroína, aliás, se chama Zaida)… A "ameaça" otomana pesou seriamente sobre a Europa cristã durante século e meio, desde a tomada de Constantinopla em 1453 até ao tratado de Carlowitz, em 1699, que devolveu a Hungria e a Transilvânia aos Habsburgos austríacos. Pelo meio, estiveram os reinados de Carlos V (1516-1556) e de Solimão, o Magnífico (1520-1566), com a autoridade do imperador cristão contestada por Francisco I de França, que se aliou aos turcos, com desfeitas de um e de outro lado. Antes e depois da batalha naval de Lepanto (1571), quando a coligação da Santa Liga, organizada pelo papa S. Pio V e comandada pelo bastardo João de Áustria, travou o avanço otomano. Já Carlos e Solimão não estavam cá. Nem François. Por entre conquistas e reconquistas, vitórias tão efémeras como derrotas, movia-se o corso e a pirataria, o comércio "internacional", com e sem carta. Como o dos Barbaroxa. E iam caindo nas redes dos interesses políticos e mercantis uns surpreendidos pela ganância dos outros. Mais ou menos inocentes ou aventureiros, desde meninos e meninas colhidos nas razias costeiras até tripulantes e guerreiros em navios de combate ou comércio. Ou prisioneiros de guerra, como portugueses depois de Alcácer-Quibir (1578). Surge daí um universo de destinos vários, tratados, muitas vezes, mesmo pela Santa Inquisição, de modo mais tolerante e benévolo, do que o reservado aos hereges cristãos, ou aos judeus e marranos, na cristandade: protestantes e judaizantes eram uma sabotagem interna; renegados, circuncisos conforme a lei islâmica, podiam ser um alívio, uma diminuição das forças do inimigo. Mas também me parece que o grau de miscigenação - aliás estimulada, curiosamente, por ambas as partes, muito embora os maometanos tivessem alguma vantagem na oferta, aos homens, de um estatuto de relacionamento sexual mais...agradável - apontava para a possibilidade de assimilação afetiva, tanto mais eficaz quanto, em tempo de guerrilhas e incertezas, cada um poderia guardar no coração a sua fé, desde que convencionalmente praticasse publicamente os rituais próprios da religião do seu príncipe... Já agora: não foi assim que se resolveram guerras de "religião" na Europa cristã coeva? Entre papistas e reformados: "Ejus religio cujus regio". Li algures que Gaspar Ramos, um pagem português, feito prisioneiro em Alcácer-Quibir, foi levado à conversão à fé maometana pelo seu novo senhor, alcaide do rei vencedor El Mansour. Anos mais tarde, depois de circunciso, foi-lhe dada em casamento uma jovem moura. Com ela terá regressado a Portugal, ao cabo de trinta anos, em 1610, para viver na cristandade. Contei esta casualidade ao nosso Camilo. Sorriu e disse: "Por essas e outras, o tio ainda vai levar na touca..." Retorqui: "Na minha idade, posso levar à vontade, tenho cabeleira robusta. Mas tu, meu rapaz, já estás muito careca: não desenvolvas este nem outros temas, no teu jeito platónico de que a ideia tem sempre prioridade..." Mudei-lhe o sorriso em riso amigo. Mas receio que, quando chegar à minha idade, tenha desgostos. Sobretudo se não corrigir esse gosto de abrir, sem preconceitos, os olhos ao mundo. É tarde, vou dormir, bem preciso. Mas voltarei a partilhar contigo estas e outras histórias, em mil e uma noites...de insónia, em que só as estrelas nos falam."
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 09.08.13 neste blogue.
SAUDADES DE BRENDEL A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
1 - Como tantos da minha geração, fui educado, senão a apoucar, a secundarizar Johannes Chrysostomos Wolfgang Gottlieb Mozart, que só aos 14 anos, em 1770, por ocasião da sua primeira viagem a Itália, passou a usar o nome de Wolfgang Amadeo Mozart. Amadeo é a tradução italiana de Gottlieb ("o amado de deuses" "o que ama a Deus" ou, mais prosaica e simplesmente, o "amor de Deus"). Nessa altura passou ele a assinar as suas cartas: "Gottlieb na Alemanha, Amadeo em Itália. De Mozartini." Mal começo, logo vario. Não faz mal, que de variações vou falar muito, neste variado texto. Dizia eu que fui educado a secundarizá-lo. Havia três grandes, diziam-me: Bach, Beethoven e Wagner. Mozart era música de salão. O menino-prodígio. As cabeleiras empoadas. Os minuetes. Tudo mudou - tão radicalmente mudou - em 1956, ano dos meus 21 anos e das comemorações do segundo centenário do nascimento de Mozart. Eu frequentava o 2º ano do curso que então se chamava Histórico-Filosóficas na Faculdade de Letras, à época habitante do velho Convento de Jesus. Sei lá porquê, achei-me metido numa comissão que, nessa faculdade, assumiu a organização da efeméride. Subitamente - comigo foi sempre subitamente - Mozart, que até então seguira distraído em concertos, óperas e nalguns poucos discos, fez-me cair do cavalo abaixo e revelou-se-me como o maior. O maior dos maiores, entre todos os mortais nascidos depois de Cristo. Acho que tudo começou em S. Carlos, com as récitas de "Le Nozze di Fìgaro" K. 492 e de "Don Giovanni, ossia: Il Dissoluto Punito", K.527, dirigidas por Alexander Krannhals. Erich Kunz no Fìgaro e no Leoporello. Hilde Zadek na Condessa e na Donna Anna. Magda Gabory no Cherubino e na Zerlina. O "Lá ci darem la mano", cantado por Ernest Blanc e Magda Gabory, confunde-se-me na memória e na imaginação com as variações para piano "Ah vous dirais je maman", tocadas por Clara Haskil, num velhíssimo disco amarelo da Deutsche; com a ária K. 21 (de 1765, tinha ele 9 anos) "Va dal furor portata", numa gravação de árias de óperas por Leopold Simoneau para a Phillips que nunca mais consegui encontrar; com os Concertos para piano e orquestra K. 466 e K. 503 (os nº 20 e 25) com Gieseking ao piano, ou no Rondó em fá para piano, K. 494, que chegou até mim tocado por Carl Seeman. Desse mesmo ano data a vera fundação da minha discoteca Mozart e, a revelação, pelo Fernando Gil, numa noite em casa dele, do livrinho de Jean-Victor Hocquard da coleção "Solfèges" das Éditions du Seuil. Hocquard era um "terrorista", de um terrorismo afim ao dos "Cahiers du Cinéma" que eu descobri pelos mesmos maravilhosos anos 50. O livro tinha a forma de um diálogo entre M ("o mozartiano fervoroso") e A ("o amador esclarecido"). O segundo era cético e relativista. O primeiro fervia de paixão. "Mozart é o único deus e você o seu profeta (...). Já reparei que os fanáticos de Mozart são quase todos como você: ninguém mais existe para vocês. Só o divino Wolfgang", dizia o "amador". "A música de Mozart é um jardim secreto onde se entra. Mas ninguém pode prever nem quando nem como se abrirá a porta, nem mesmo se ela se abrirá. A chave está no interior (...). É uma espécie de predestinação (...). Não se é apenas marcado por Mozart. É-se marcado para Mozart." Mal sonhou o Fernando Gil como eu ia decorar páginas inteiras desse livro. Era um dos predestinados. Estava marcado para Mozart. Desde aí, li quase tudo e ouvi tudo da imensidade de uma obra com cerca de 800 títulos (os 623 do catálogo de Köchel, mais os quase duzentos outros acrescentados depois). Vinte anos mais tarde, em 1976, dediquei um ano da minha vida a ouvir tudo o que nessa altura estava gravado, do K. 1 ao K. 623, mais os suplementos de Alfred Einstein, assim mesmo por ordem cronológica, com notas e comentários, num monumento "radiofónico" em que fui o único emissor e o único recetor, com fanática escolha dos intérpretes de eleição.
2 - No livro de Hocquard, havia uma discografia antológica, recomendando os intérpretes predestinados e expurgando outros, celebérrimos, mas que o não eram. Não descobri nunca uma falha de gosto ou um gosto que não coincidisse com o meu. Mas havia um capítulo que, dentre todos, me fascinou. Foi aquele a que Hocquard chamou "obras de pura intimidade". Era uma lista de peças, relativamente desconhecidas, que o ouvinte podia escutar com indiferença "faute de l'attention recueillie qui seule permet d'être sensible au dépouillement final de l'art mozartien". Foi essa lista que me revelou os Nocturnos Vocais de 1783, os Canon Vocais de 1788 (e os meus filhos mais velhos iam para a cama ao som do Bona Nox, K. 561), as Danças Alemãs, K. 571, sobretudo a última, o Adagio-Rondó em dó menor, para harmónica, flauta, oboé, alto e violoncelo, K. 617, o "Lied" maçónico "Lasst uns", K. 623 a, etc., etc., etc. Devo a Hocquard a descoberta de Teresa Stich-Randall, sobretudo no "Et Incarnatus" do Credo da Missa em dó menor, K. 427, como lhe devo a dos grandes pianistas mozartianos, para chegar ao que aqui me trouxe, que se vai fazendo tarde e o espaço começa a apertar: Edwin Fischer, de todos o maior, Arthur Schnabel, Clara Haskil, Badura-Skoda, Wanda Landowska, Lilli Krauss, Jörg Demus, Ingrid Haebler e alguns poucos mais. À excepção de Badura-Skoda e de Demus, todos deram há muito a alma ao criador, mas ainda hoje continuo a ouvir a obra de Mozart para piano por esses intérpretes, sem descobrir quem os tenha suplantado ou igualado na segunda metade do século findo ou neste. Nem uma excepção? Uma e uma só. Começou a carreira alguns anos antes do meu ano de 56, mas só nos anos 60 atingiu a celebridade e só nos anos 70 o conheci ao vivo e em discos. Chama-se Alfred Brendel e a sua última visita a Lisboa data de sábado passado, 29 de novembro, no Grande Auditório da Gulbenkian. Brendel é o único intérprete mozartiano tão "predestinado" como os que acima citei, o único que eu conheço, tocado pela Graça com G muito grande, essa Graça que com Mozart se funde. Duas vezes gravou os 27 concertos para piano, gravou também a integral das sonatas e esses discos Phillips são os únicos a pôr ao lado do que nos ficou de Fischer, Schnabel ou Clara Haskil. Tão grande como.
3 - Brendel, como muitos saberão, não é só o maior intérprete mozartiano vivo. De Beethoven, de Schubert, se não é o maior, é um dos maiores. Entre os meus máximos momentos musicais está a "Hammerklavier" ouvido o ano passado em Salzburgo, como de resto contei numa destas crónicas. Infelizmente, o único outro português então presente não o pode agora confirmar, tragado que está por sanhas cruéis e terrivelmente injustas.
O programa de Brendel em Lisboa foi de uma inteligência prodigiosa. Abriu com algumas das Bagatelas e Rondós de Beethoven para piano, que, nas mãos de Brendel, mais mágicas foram. Prosseguiu com a Sonata em lá maior, K. 331 de Mozart, de todas a mais "perigosa", como já vou explicar. De Mozart passou a Schubert, com a "incompleta" D. 840, a mais abissal e noturna das sonatas de Schubert. E terminou, como começara, com Beethoven e com a sonata da decisiva transição, que é a "opus" 22. Em extra, voltou a Schubert, para uma das valsas sentimentais. Mas é em Mozart - evidentemente - que me fixo para acabar. Só lhe chamei a mais "perigosa", porque o último mandamento da K. 331 é o celebérrimo "Allegreto: alla turco", vulgo "Marcha turca", que, de todas as peças de Mozart, devido à sua aparente simplicidade, é a mais tocada e assassinada pelos aprendizes de piano. Grande parte dos preconceitos antimozartianos radicam nela. Foi também com Hocquard que aprendi que só um pianista - Edwin Fischer - foi capaz de perceber que, para além da "leveza" desse andamento, havia nele uma pureza e uma "luz" que são o próprio cerne da música de Mozart, que escreveu essa sonata em julho de 1778, em Paris, pouco antes ou pouco depois da morte da mãe, num dos momentos mais trágicos da sua vida. Com um começo inusitado - um andamento lento com variações, sobre um "Lied" do Sul da Alemanha, "Rechte Lebensart" -, esta sonata, para mim, sempre foi um adeus à infância, uma espécie de "never more" ao som das canções que, em criança, a mãe lhe terá cantado. O modo como Brendel separou e destacou cada uma das variações, sem em nada agravar o tom, repassou da nostalgia e saudade. E, quando chegou à "marcha turca", eu nunca ouvi, depois de Fischer, um tal milagre. Como um dia escreveu Bruno Walter, tudo foi tão alegre, tão alegre que dá vontade de chorar. A "pura intimidade" foi atingida aí, nesse momento entre todos mágico, por aquele homem com cara de desenho animado e de mãos de duende, possuído, como Mozart, pelo mesmo espírito de infância e pela mesma infinita saudade do que não mais voltará. Até hoje, só de disco sabia o que podia ser esse andamento. Graças a Brendel soube-o em carne e osso, dele e minha. De agora em diante, a todas as minhas saudades juntam-se as saudades de Brendel. Tenho o disco? Tenho. Mas não é, não, a mesma coisa. As saudades, se sempre se repetem, nunca se repetem como foram ou como são.
O MEU SONHO VESTIU-SE DE TURANDOT por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
O meu sonho vestiu-te esta tarde de Turandot... Vê tu bem, sonho muitas vezes acordado, até em charlas à hora do chá, com senhoras japonesas! Cabias imensa no abraço da nossa ternura, quando a Callas, na gravação de 1957, no Scala de Milão, clamava cantando: "Padre Augusto...connosco il nome dello straniero! Il suo nome é... Amor!" Vencida pelo amor de Calaf, que acertara na resposta aos três enigmas e assim escapara à morte reservada aos seus pretendentes, Turandot, a filha do imperador da celeste China, todavia tivera o destino dele preso pelo capricho dela. Se tivesse querido, denunciaria ao povo o verdadeiro nome desse príncipe desconhecido, não por tê-lo descoberto mas porque ele lho confessara. Confissão feita, não por obrigação, mas por renúncia à reclamação do direito que sobre ela já tinha como consequência do acerto com que respondera aos enigmas. Calaf, o príncipe desconhecido, não a quisera por direito de conquista, e por isso lhe dera, a ela, a oportunidade de o repudiar e condenar à morte, já fora do prazo estipulado no concurso: se Turandot adivinhasse o seu nome, ele renunciaria e entregar-se-ia à fatal sentença da Filha do Céu. É assim a entrega do amor: faz-se em função da pessoa amada, não em função de si mesmo. Na ópera de Puccini, a revelação final, o apocalipse do nome dele é também a descoberta do íntimo nome dela, que nunca quisera ou sempre receara proclamar. As perguntas enigmáticas, falam mais de desejo de vida do que de sentença de morte: "que fantasma alado vagueia pela noite, se abriga no coração, mas morre pela manhã?" Calaf responde: "La speranza!" E depois: "O que é que surge como chama, se enche de febre ou enfraquece, vermelho como o sol poente?" Hesitante, ainda grita: "Il sangue!" Finalmente, a terceira e última pergunta, a que define a pessoa: "Gelo e fogo, claridade e escuridão, fazendo de vós um escravo ou talvez um rei?" O príncipe contesta: "Turandot!" A princesa não aceitará de bom grado a verdade forte que a venceu. Ele não teima em reclamar, antes a põe, à quase deusa, perante o dilema de lhe descobrir o nome (e ele aceitará a morte) ou de se revelar o nome íntimo dos dois... "Amor omnia vincit". O libreto da ópera, por Giuseppe Adami e Renato Simoni, adapta uma peça do veneziano Carlo Gozzi, escrita no século XVIII, já fora alvo de diversas adaptações, até operáticas, algumas delas inspiradas na tradução de Gozzi por Schiller. Para mim, expliquei eu às madamas nipónicas, nesta ópera - aliás terminada por Alfano, por escolha de Toscanini, depois da morte (e aproveitando notas) de Puccini em 1924 - ressalta, mais do que o conflito da crueldade com o amor e a vitória deste, a descoberta do amor inscrito no coração dos homens, como princípio de criação e de vida nova. Daí saí para a "Lohengrin", em que sinto o inverso: Wagner vai buscar à mitologia teutónica as forças que se aniquilam, aquele misterioso impulso para a destruição que encontraremos também na "morte de Deus" de Nietzsche ou na barbárie nazi. Não deixa de ser curioso que ele - familiarizado com a poesia medieval alemã, onde aliás encontrou também inspiração para os "Meistersinger", "Parsifal", "Tannhäuser" e o próprio "Lohengrin" - não se tenha deixado tentar pelas promessas de um lirismo mais doce que, mesmo quando ensombrecido pelo pressentimento de algo que se possa recear, cantava o encanto chão das coisas humanas e possíveis. Como nestes versos de Walther von der Vogelweide, cujo alemão arcaico tanto lembra o inglês que conhecemos (a inversa é que é verdadeira, claro...) que recitei às minhas ouvintes atentas, pelo seu clima " japonês" (a natureza envolvente): "Unde der linden / an der heide, / dâ unser zweier bette was, / dâ mugt ir vinden / schône beide / gebrochen bluomen unde gras. / Vor dem walde in einem tal, / tandaradei, / schöne sanc diu nachtegal..." Debaixo da tília, no chão onde foi a cama da nós dois, podereis achar, lindamente pisadas, as flores e a erva. Na orla do bosque, num talude, riu piu piu, que bem cantava o rouxinol! Contemporâneo de Vogelweide é Wolfram von Eschenbach, que celebra uma dama que, ao nascer do dia, acorda nos braços do seu nobre amigo, e grita ao dia: "Já não pode o meu amado ficar ao pé de mim. Pois de mim o afasta a tua luz". É ele o autor do " Niebelungenlied", em que "se narram inúmeras maravilhas, que falam de gloriosos heróis e de penosas provas..." Há aí evocações de távolas redondas e amores proibidos, tabus antigos como a Grécia, em que - o próprio Wagner o refere pelo mito de Zeus e Semelé - não podem durar as relações entre os deuses e os homens, pois a satisfação do desejo é destruidora. Quando Kriemhild, "cujo coração puro quisera renunciar ao amor, e vivera muitos dias sem conhecer um só homem que quisesse amar... ...desposou um muito valente homem de armas", tudo a conduziu à verificação real do sonho em que "certa noite vira um belo falcão, forte e ousado, que ela criara, ser despedaçado por duas águias". É mais ao pessimismo germânico, a esse medo de deuses malévolos e espíritos malignos, espreitando-nos do frio escuro de misteriosas florestas e pântanos, que Wagner vai buscar a inspiração para contar amores humanos, excessivos e desprotegidos. Na "Lohengrin", uma maldição paira sobre os cavaleiros do Graal, um freio posto por poderes luminosos mas obscuros os trava e proíbe de pronunciar o nome e a linhagem. Como Kriemhild, Elsa von Brabant apaixona-se: eis que, no momento exato da humilhação final da dona por Friedrich von Telramund - o rejeitado pretendente à dama e à coroa que, sob o feitiço da bruxa Ortrud, a acusa de ter morto o irmão, herdeiro do Brabante - a salva um guerreiro desconhecido (aí tão ignoto como o príncipe da Turandot), que lhe conquista a mão e o amor que, afinal, já a habitava (tal como Turandot reconheceria Calaf já dono do seu coração...). A celebração do enlace dos amantes obedece a uma condição: Elsa nunca deverá perguntar a Lohengrin qual o seu nome, nem a sua linhagem. Mas qual Orfeu, olhando para trás para ver se Euridice o segue no regresso à superfície da terra da vida, Elsa pede uma resposta. Lohengrin poderia ter respondido como Turandot dando um nome a Calaf. Neste caso: o meu nome é amor! Mas não confessa. Fica sujeito à lei da cavalaria a que pertence. Ponho a tocar a "Lohengrin" que trouxe, uma gravação de 1964, com a Wiener Philarmoniker, dirigida pelo Rudolf Kempe, sendo Jess Thomas o Lohengrin e fazendo de Elsa a Elisabeth Grümmer. As madamas nipónicas ouvem de olhos cerrados e coração presente, o pranto suplicante de Elsa: "Bist du so göttlich,als ich dich erkannt,sei Gottes Gnade nicht aus dir verbannt!" Sei agora que vens de Deus, não rejeites a sua misericórdia! Se esta infeliz pelo sofrimento, expia a sua culpa, não a prives da tua presença! Não me repudies, por maior que seja o meu crime! E a resposta "justiceira" do guerreiro: Já o Graal se irrita com a minha demora! Assim terá de ser, assim terá de ser: seremos separados, arrancados um ao outro! As damas gostam da música, impressiona-as o rigor do mito. Para alívio lhes conto a história de Cupido, filho de Vénus, e de Psyché, de quem a deusa do amor inveja a beleza. Psyché também quer conhecer a verdadeira identidade do seu amante, mas Cupido não quer revelar-se. Instigada pelas irmãs, ela tenta apunhalá-lo, durante o sono, para lhe descobrir a alma. Mas ele acorda e ela foge. Ele persegue-a, não para se vingar, mas para lhe pedir que se case com ele. E Zeus acederá a uni-los. Tranquilas, mais confortadas, as senhoras pedem-me mais uma história bonita. Conto-lhes o encontro de Zéfiro com Flora, e como o vento levou a Primavera para se casar com ela e depois a deixou ser rainha das flores e dispensadora do mel. Sorriem. E eu com elas, a pensar no que lhes não digo e te recordo agora: Mandaste-me, há anos muitos, um postal de Nova Iorque, com o casamento de Cupido e Psyché do Andrea Schiavone, exposto no Metropolitan. Dizias só: "Cupido serás, mas eu de Psyché nada tenho. Que nome me darias?" Respondi-te de Frankfürt, num postal ilustrado com outro quadro de um italiano de quinhentos, Bartolommeo Veneto: "Flora". E repito de cor o que te escrevi então: "Esta minha cabeça, Santo Deus! / (Será da idade ou do muito amar?) / Não acerta os pensamentos meus / na oportunidade de os acertar... / O Olimpo percorro sempre à procura / do nome que a minha deusa tem... / Mas tonto, em desvario, nessa altura / não dou com nome que te fique bem! / Quedo-me desgostoso, sem dormir / (Eu, feito pr’ó sono e pr’à preguiça!) / mas, mesmo sem cabeça, eu acho agora / um nome que me alegra e me faz rir, / promessa, primavera tão noviça: / fosse eu sempre Zéfiro...e tu Flora!" E não lhes disse. Fiz duas boas ações: fui-te fiel e poupei-lhes ciúmes escusados. Para encerrar a sessão, voltei à Turandot que grita "Il suo nome é Amor!" e o povo rejubila: "Amor! O sole, vita, eternitá! Luce del mondo é amore! Ride e canta nel sole l´infinita nostra felicitá! Gloria a te! Mas, de regresso ao hotel, com saudades tuas, ia cantarolando o lamento de Orfeu na música de Gluck: "Ché faró senza Euridice..." Traduzi esta carta de Camilo Maria ao som das mesmas músicas...mas em CD!
LITERATURA E MÚSICA por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
"Regresso de Kyoto a Tokyo, mas não escapo às associações recreativas de senhoras japonesas. Num jantar na embaixada de França, fico à mesa presidida pela embaixatriz, ao lado da Senhora Totomi, próxima da família imperial e presidente de "Les Amies de la Langue Française", clube de senhoras da "alta", que reúne japonesas eruditas e outras francófonas do corpo diplomático. A dama é do tipo arredondado - de corpo e espírito - esperta e bem humorada. Fala-me do seu grupo de cultura e recreio, e desafia-me a entretê-las, num chá, com uma charla sobre literatura e música francesa. Animado pelo Château Margaux, digo-lhe que mais facilmente lhe diria sim se o grupo antes se chamasse "Les Joyeuses Filles de la Langue Française" ou "Les Parlantes de Français Galant"... Ri-se, com a mão gordinha, como terceira bochecha, a esconder-lhe a boca gulosa, e concede: "Chame-nos o que lhe parecer bem, mas tenha a gentileza de nos falar de literatura e música!" Assim me arrancou um assentimento condicional: proponho-me levar-lhes algumas poesias em várias línguas europeias, todas elas traduzidas em música, ou temas que a literatura e a música tenham coincidentemente tratado. E prometo não esquecer discos que as reproduzam. Não recorrerei sempre a libretos de ópera, nem a letras propositadamente feitas para canções... Assim se desenhou o programa que contigo aqui partilho. Apetece-me começar pelo alemão, não por me dirigir a francófonas, nem por me ser familiar, mas por me ocorrer a semelhança dos apelidos do poeta (Christian Schubart) e do compositor (Franz Schubert). Ou por me acontecer trautear a "Die Forelle" quando estugo o passo na pressa de ir fazer chichi. Brinco. O "lied" de Schubert - que ouvi pela primeira vez adolescente ainda - canta as palavras de Schubart, começando ledamente assim: "In einem Bächlein helle, / Da shoss in froher Eil/ Die launige Forelle, etc... Num límpido ribeiro, alegremente, a truta foge, viva, veloz e caprichosa. E eu na margem, em doce sossego observava o alegre banho da bela na clara água do ribeiro. Ein Fischer mit der Rute, etc... Resumindo: esse pescador à linha, da margem vê o peixinho a mover-se, e o poeta pensa que ele não apanhará a truta com o anzol. Mas eis que esse ladrão, num movimento de onda, a prende, e o poeta sente, com o coração aos pulos, o debater da presa. Depois, o poema conclui com um aviso à juventude sobre o perigo da inconsciência, e com uma evocação erótica, que o "lied" de Schubert não retoma: "Denkt doch an die Forelle;/ Seht ihr Gefahr, so eilt!/ Meist fehlt ihr nur aus Mangel/ Der Klugheit. Mädchen, seht/ Verführer mit der Angel! Sonst blutet ihr zu spät...". Pensem pois na truta e se um perigo vier, fugi! A mais das vezes é por falta de prudência que pecais. Sede vigilantes, meninas de olhos doces, com os pescadores! Podereis sangrar tarde demais.
Uma das senhoras pergunta-me porque não escolhi antes a "Ode à Alegria" do Schiller, que é, afinal, um hino à amizade (seria então "An die Freunde" em vez de "Freude") que coroa a 9ª sinfonia de Beethoven. Respondo que "Die Forelle" me parece muito próximo do espírito da poesia japonesa pelo recurso à natureza como metáfora. E recito "tobu ayu no soko ni kumo yuku nagare kana", um "haiku" de Onitsura, que se pode traduzir mais ou menos assim: "um peixe voador...nuvens por debaixo, fluindo na corrente..." Ou seja: o peixinho, saltando, sobe o ribeiro (para ir desovar a montante)... e, refletindo-se nas claras águas, as nuvens parecem deixar-se levar para o mar... Alusão à efemeridade da vida: estes peixes ("sweetfish", em inglês) nascem no alto dos rios donde depois descem, na Primavera, até ao mar donde regressam, no Verão, para subirem contra a corrente e porem acima os seus ovos (como o peixinho do "haiku"). No Outono, regressam ao mar, para morrer. Vivem um ano só. Ponho a tocar no gira-discos "Die Forelle", cantada pela Elisabeth Schwarzkopf, acompanhada ao piano por Gerald Moore. E logo salto do alemão para o castelhano, da Germânia para a Hispânia. De Franz Schubert para Manuel de Falla, de peixes e nuvens, que as águas da vida percorrem, para flores e pássaros que a terra pára, porque é assim o tempo: corrente ou quieto, somos nós que passamos por ele. E ocorre-me a "arte poética" do Jorge Luis Borges: "Mirar el rio hecho de tiempo y agua / Y recordar que el tiempo es otro río, / Saber que nos perdemos como el río / Y que los rostros pasan como el agua." Antes de ouvirmos todos (devia dizer todas, sou o único homem na sala!) uns trechos de "La Vida Breve" do Falla, pela Orquestra Nacional de España, dirigida por Rafael Frühbeck de Burgos, e com Victoria de los Angeles no papel de Salud, leio-lhes uns versos da seguidilha, que são, como todo esse drama musicado por Falla, de Carlos Fernández Shaw: "Flor que nace con el alba / se muere al morir el dia. / Que felices son las flores,/ que apenas puen enterarse, / de lo mala que es la vía! / Un pájaro, solo y triste, / vino a morir en mi puerta; / cayó y se murió en seguía. / Pa vivir tan triste y solo / mas le vale haberse muerto!" Enquanto as damas escutam, em concentrado arrebatamento, calado vou pensando no meu próximo passo, numa ponte para um tema japonês. E surge-me a "Glover Mansion", em Nagasaki, que se celebra como sítio do amor letal de Cio-Cio San por Pinkerton, na "Madama Butterfly" do Puccini: "mutatis mutandis" (a localização e uns pormenores) está ali o tema de "La Vida Breve". Que é, penso eu, mais do que o do amor humano " traído", o da perplexidade enquanto incredibilidade onde a esperança morre. Porque, afinal, nem Salud nem Cio-Cio morrem, muito embora partam deste mundo. Permanecem na memória de muitos corações e testemunham o desengano, essa pena terrível. Será isso o inferno: não haver esperança? As madamas da sala lembram-se logo da "Madame Chrysanthème" do Pierre Lotti, que também inspirou outra ópera: a "Lakmé" do Delibes. Uma das senhoras, todavia, alvitra que o fogo inicial da japonesa abandonada se acendera já no século XVI, por um português marinheiro... A ária mais conhecida da "Butterfly" - e quiçá a mais bonita - é um canto de esperança que lhe sai do fundo da alma: "Un bel di vedremo / levarsi un fil di fumo / sul estremo confin del mare. / E poi la nave appare - poi la nave bianca / entra nel porto, romba / il suo saluto. Vedi? / È venuto!" Aproveito a emoção inesperada daquelas senhoras instaladas em vidas onde o amor, muitas vezes, é um episódio passageiro ou uma convenção, para lhes falar de uma perspetiva escatológica, que lhes é culturalmente estranha: o amor humano, porque gerador e portador de esperança, é uma promessa. E promessa é compromisso. Para um cristão, adianto, é um sacramento, um sinal do que se há-de cumprir um dia. "Un bel di vedremo...". Com tanta conversa e música, esqueci o tempo e esse jeito de as mulheres japonesas levarem a água ao seu moinho. Ficou combinado voltar e falar-lhes do nome que se diz ou não deve dizer: de Turandot e de Lohengrin. Depois te contarei. Vou agora escrever ao nosso Camilo Português: penso dar-lhe conselhos, mas afinal desabafo-lhe inquietações. Envelheço.
Adeus Princesa!"
A carta que Camilo Maria me escreveu e aqui refere manifesta a sua preocupação com a deterioração da consciência ética no governo das sociedades ocidentais. Publicá-la-ei, apesar de lhe sentir algum cansaço, que nem a ironia com que sempre nos fazia rir consegue disfarçar.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 07.06.13 neste blogue
PROCURA DE HARMONIA… por Camilo Martins de Oliveira
Minha Princesa de mim:
Onde li eu, sobre a música de Haydn, que nela nascia a harmonia, não de receita, mas como procura? Ou fui eu que o disse ou alguém o terá dito por mim... Ocorre-me agora essa reflexão, quando silenciosamente contemplo este jardim japonês. Voltei a Kyoto, a Primavera vai-se alongando, as pétalas de "sakura" vão-se espreguiçando pelo ar, como se dissessem "é tarde!", efémeras traviatas dançando ao sopro musical de brisas que as afagam e logo apagam, varrendo o chão em que adormecem. Este ano, a Primavera das cores teima e atrasa a vinda das chuvas que anunciam o Verão verde e húmido, respirando a terra... Hei de ir a Horiyuji, ao templo da cor escura do tempo, feito de madeiras milenárias, firmado no cinzento negro das lajes, levantado entre o verde poderoso da natureza que transpira para o céu a humildade dos homens... Pois é de humildade feita a harmonia das artes nipónicas. Da tigela de barro do artesão ao gesto caligráfico do erudito, procura-se, humildemente, essa respiração por dentro da natureza, em que o tempo de cada gesto seja, na alma, o tempo eterno do mundo. Circular, incessantemente retornando, ao ritmo das estações que obedecem aos astros, e levam a vida na morte e trazem a morte na vida. O que, para nós, é um destino escatologicamente realizável é, para eles, a repetição tentativa da harmonia inicial das coisas. A harmonia que se procura não é ordem, é a da coexistência necessária (diríamos nós: de tudo em todos) das forças díspares, e até antagónicas, que sustentam e constroem, de um caos que desconhecemos, um universo que ainda não vemos em plenitude. Reconheço que, ao dizer-te isso, me afasto da minha meditação japonesa e tenho a alma cheia da visão de uma missa sobre o mundo, da escatologia cosmo-genética de Teilhard de Chardin. Mas volto os olhos para este "meu" jardim japonês: é do estilo "Tsukiyama", uma espécie de microcosmo cultivado e arranjado, à volta e sobre um manto de água, como se fosse um mar semeado de ilhas, correntes e bosques. Poderia ser um "Karensansui", calvo e seco, em que a água se representa por pedrinhas ou areias penteadas em ondas, como nos jardins "Zen"... Assim também, na elaborada cerimónia do chá, a razão da natureza ensina a humildade. Não só pela porta de entrada na "chashitsu" (a sala da cerimónia do chá), chamada "nijiriguchi", com apenas 67 cm de altura e 60 de largura, de forma a impedir o ingresso de armas, armaduras e vestidos de espavento... nem porque se deixa o calçado lá fora. Mas porque ali se procura o ideal estético do "wabé", como despojamento "zen", simples e calmo. Ora este também se traduzirá na beleza, limpa de adornos, dos utensílios que servem uma cerimónia litúrgica que aliás, dizem, o grande mestre Sen no Rikyu, foi buscar aos ritos dos jesuítas portugueses no século XVI. A "chawan" (tijela ou chávena,sem asas nem pegas) é objeto de apreço, antes de muitas se term tornado objecto de preço. Ao rodá-la e mirá-la nas nossas mãos, antes e depois de a levar à boca, contemplamos a natureza que ela encerra nos quatro elementos que a conjugaram (ar, fogo, terra e água) e aqui nos serve o chá em sinal de igualdade e partilha entre os homens. Na "chashitsu", durante o "sadô" ou "cha no yu" (a cerimónia do chá) somos todos iguais e estamos em harmonia com a natureza. Há ainda, nessa comunhão natural (quiçá telúrica até, em país de vulcões, terramotos e outras erosões) - que é um esteio tão vivo na tradição da cultura japonesa, mesmo em tempos modernos de motores e eletrónica - outros aspetos do pensamento e sensibilidade das gentes que se revelam pela visão estética: a economia de desenho e materiais na construção de utensílios, móveis e edifícios, por exemplo: o "design" japonês já no tempo medievo preconizava, com elegância fina e forte intuição abstrativa, o que, entre nós, seria, já no século XX "art-déco" e abstracionismo. Tal como, na viragem do século XIX para o nosso, os desenhos florais japoneses, nas artes decorativas, influenciaram as nossas "artes novas", e as gravuras japonesas os nossos cartazes. Mas o que, para o europeu, seria, quase sempre, um artifício, era, para o japonês, a estética enquanto sensação, sentido, percebimento, comunhão da natureza. Estética não é só, acho eu, a conceção da harmonia de um objeto ou superfície material, ou de um seguimento de sons... de acordo com leis que concebemos com a intenção de organizar ou reformar a natureza que se reproduz ou copia. A emoção estética - e afinal será isso que a arte procura - é, antes de tudo mais, o ato de contemplação, do artista, do artesão que, pela obra que a materializa, se comunica. Esteta, no seu grego de origem, é o que sente, o que percebe. Será, pois, o que está do lado inicial - que ele não começou - ou do lado final - que não se esgota aí - duma comunicação. Que é partilha. O artista que se exprime, no fundo se si, quer partilhar. Um percurso pela história da arte europeia, ajudar-nos-ia a entender o processo genético daquilo a que atualmente chamamos a liberdade de expressão artística. Receio que estejamos a enveredar por um processo autista, como se os "círculos de artistas" entrassem num remoinho. "Mutatis mutandis", lembra-me a decadência escolástica da nossa filosofia medieval ou o especiosismo maneirista no tratamento de tantos temas pela oficialidade católica... A "fuga para a frente" é, muitas vezes, o enrodilhar-se sobre si. Essas "descobertas", em sucessivas efemérides, de compositores e artistas plásticos contemporâneos, já não têm os pés no chão da natureza e dos homens, tal como certos pietismos e pretensões doutrinais da Igreja já não têm assento nas almas. Se eu chegasse ao fim deste século XX, talvez ainda visse o esplendor do barroco e da renascença nas salas de concertos, como sacramento da natureza num mundo de ruído automóvel e industrial, de poluição eletrónica, sonora e visual. Pois é sempre paradoxal a condição humana: como poderia eu discernir por aí o triunfo da vulgaridade na cultura das massas, se por aí também não encontrasse os contempladores de deuses?" Há, entre muitas outras cartas do Marquês de Sarolea à Princesa de... (isto lembra-me o título de um filme de que o João Bénard da Costa gostava muito: "Madame de..." não era?) uma, sobretudo, por onde deambula, através do Japão, um prazer estético incontido...
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 24.05.13 neste blogue