A VIDA DOS LIVROS
De 5 a 11 de junho de 2023
“Madalena Perdigão (1923-1989): Vamos Correr Riscos” permite conhecermos a obra de quem defendeu com determinação e entusiamo o ensino artístico em Portugal.
O VALOR DO ENSINO DAS ARTES
Nunca é demais valorizar o Ensino Artístico como peça fundamental de uma Educação para todos e como fator de democracia cultural. Quando celebramos o centenário do nascimento de Madalena de Azeredo Perdigão, com notável ação na Fundação Gulbenkian, no serviço de música e no ACARTE, devemos recordar as propostas que fez no âmbito das reformas do ensino artístico, quer no período de Veiga Simão (1971-1974) quer em 1979, no plano entregue ao então Ministro Luís Veiga da Cunha, no governo de Maria de Lourdes Pintasilgo. Devo salientar o trabalho desenvolvido por Rui Vieira Nery e Inês Thomas Almeida na exposição “Madalena de Azeredo Perdigão (1923-1989): Vamos correr riscos”, agora patente na Fundação Gulbenkian, e na antologia a publicar, a partir do amplo levantamento de fontes nos arquivos da própria Fundação e em coleções privadas, que permitiu identificar um conjunto de documentos que nos ajuda a compreender o pensamento e a ação de uma figura excecional que deixou uma marca profunda em toda a evolução das Artes Performativas. O primeiro encontro de Madalena, jovem viúva de um bolseiro, com José de Azeredo Perdigão no seu gabinete da Fundação foi providencial. Até aí não havia por parte da instituição uma prioridade dada às questões da Música, apesar do apoio ao I Festival Gulbenkian de Música, em 1957, sem um envolvimento direto na organização, já que esta não pretendia substituir-se às responsabilidades do Estado e de outros privados neste setor. O entusiasmo e as qualidades de organização da futura responsável pelo setor da música abririam um novo horizonte no pensamento do Presidente da Fundação. É multifacetada a ação de Madalena Perdigão, responsável pelos Festivais Gulbenkian de Música até 1970, além da criação da Orquestra (1962), do Coro (1964) e do Grupo de Bailado – depois Ballet Gulbenkian (1965); da organização de Cursos de Educação e Didática, de Direção Coral e de Iniciação Musical Infantil, sob a direção de pedagogos como Edgar Willems, Carl Orff, Pierre Koelin, Michel Corboz; ou da catalogação dos fundos musicais das Bibliotecas e Arquivos Portugueses e publicação da coleção de obras de música portuguesa antiga. Tudo isto, com a apresentação de propostas de valorização do ensino artístico na política educativa.
COMEÇAR PELAS ARTES
Perante a existência no país de poucas escolas de ensino artístico, de poucos professores e de uma procura cultural crescente, sendo necessária mais e melhor formação de docentes e mais oferta educativa, para que os estudantes pudessem ser beneficiários de educação artística de qualidade, a ausência de um ensino artístico integrado obrigava a medidas concretas relativas à criação de uma rede que pudesse corresponder ao desenvolvimento educativo exigido até pela integração no espaço europeu. O relatório de 1979, apresentado pela comissão a que Madalena Perdigão presidiu, pôs a tónica nos temas essenciais. “O conceito de ensino artístico integrado pode levar-se mais longe, considerando-se que as disciplinas artísticas constituem o fulcro da aprendizagem, o polo no qual convergem e donde irradiam os vetores dos diferentes ramos do conhecimento”. Assim, o ensino artístico integrado implicaria alterações de programa e obrigaria a um esforço por parte dos professores, permitindo uma maior concentração e aproveitamento pelos alunos nas disciplinas artísticas, facultando-lhes uma exigente motivação para o estudo das restantes disciplinas, fornecendo melhor preparação e uma visão global dos problemas artístico-culturais. Aos professores do primeiro ciclo, deveriam ser fornecidos conhecimentos indispensáveis para poderem motivar estudantes e assinalar as crianças com predisposição e gosto pela música, dança e artes, com atenção ao problema da orientação precoce para a profissão, nestes domínios. Haveria que garantir aos jovens dotados a possibilidade de uma realização profissional futura, com benefício individual e da sociedade. Dever-se-iam formar bons artistas e contribuir para uma reserva de talentos. De facto, os estabelecimentos do ensino artístico particular e cooperativo supriam carências e lacunas do ensino oficial, mas tal era insuficiente. E, sendo o ensino artístico de qualidade necessariamente caro, haveria que criar um sistema de bolsas de estudo para contrariar as disparidades sociais. E punha-se o tema da descentralização, já defendido nos alvores da República (1911), quando se afirmava “o fito de nacionalizar a nossa arte, regionalizar o ensino, tanto quanto o permite a atual educação artística”. E assim a descentralização e a regionalização serviriam os projetos de valorização do património cultural, nos aspetos popular ou erudito, no sentido de uma democracia cultural. O ensino superior artístico deveria abranger a longa e a curta duração, sendo esta de carácter profissionalizante, permitindo a formação de artistas profissionais, de técnicos de apoio ao exercício das artes e de docentes do secundário, de elevada competência, de que o país urgentemente carecia. O relatório lembrava que a Música fazia parte do “quadrivium”, que se ensinava nas Universidades medievais, recordando os lentes de Música de Coimbra e o alvará de D. João II que declarou obrigatória, em 1546, a representação anual de comédias por mestres e alunos da Universidade, tendo a pintura sido reconhecida oficialmente como arte, e não só como ofício, em 1577.
UMA APOSTA CORAJOSA
A subalternização do ensino artístico devia-se ao desconhecimento da situação nos “países altamente civilizados”; à ignorância da importância do artista na sociedade de hoje; e à falta de dados sobre as características da formação de um artista em termos de exigência, de duração e de conhecimento. E dava-se o exemplo da Slade School de Londres, escola eminentemente prática de Pintura, Escultura, Gravura e Cinema, integrada na Universidade. A história dos últimos cento e cinquenta anos mostrava que em Portugal, e apesar de alguns esforços importantes, a educação artística não mereceu dos poderes públicos atenção devida, ou sequer idêntica à que tem sido dispensada a outros ramos do conhecimento. A inserção da educação pela arte no sistema educativo português representaria o reconhecimento do valor deste conceito e seguiria o movimento internacional tendente à livre expressão estética. A experiência do ACARTE na Gulbenkian seria uma afirmação notável desta prioridade, projetando-se dentro e fora da escola: com animação cultural, realização de exposições, concertos, espetáculos de Teatro, de Bailado e de Cinema, leituras poético-dramáticas, utilização de meios audiovisuais, vivências artístico-culturais de toda a ordem. O plano de Educação Artística pretendia evitar que nos convertêssemos em cidadãos insensíveis, numa sociedade que “nos deforma ‘fisicamente’ durante o processo de educação, de modo que os nossos corpos não se possam exprimir por meio do movimento e sons naturais, ou ‘psiquicamente’ porque nos vemos obrigados a aceitar um conceito social que exclui a livre expressão dos impulsos estéticos”. Eis o essencial!
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença