CRÓNICAS PLURICULTURAIS
176. É MAIS DIGERÍVEL CONVERTER O MAL HUMANO NUM MAL NATURAL? 2
1. Ao tratarem, por exemplo, os seus bombardeamentos e dos aliados como choques de placas tectónicas e tempestades, as bombas ou mísseis como raios, relâmpagos, trovões, chuva, inundações ou tremores de terra, os alemães despiram a guerra de qualquer peso moral, evitando a reflexão, o arrependimento, o luto, um ato de contrição e de redenção sobre o seu passado agressor e sofredor, com reflexos no presente.
Sebald, entre outros, desaprovou esta metamorfose da memória alemã impeditiva da compreensão do passado e comprometedora do futuro, mais grave que uma amnésia, tendo como condenável que a civilização humana nada possa fazer de melhor se a natureza nos confrontar com o seu mal natural, em detrimento do bem humano que pode haver, e é desejável, em nós.
Adverso dessa visão amoral e naturalista, censurou o esquecimento da maioria dos alemães, dos negacionistas, dos que mentiram e foram incapazes de escrever o horror entre agressores e vítimas, incluindo quem criou o “mito do bom alemão”, sem alternativa e deixar que, paciente e sofridamente, tudo passasse.
Elogia sobreviventes do Holocausto, como Jean Améry, que cumpriu o dever moral de escritor, ao escrever sobre o mal indizível, que não superou, no seu confronto permanente com essa perversidade, acabando por se suicidar.
O que nos questiona de novo: será que com a indiferença ou a metamorfose da memória alemã, é exequível viver uma vida com alegria e superadora de ressentimentos? Se os japoneses não quisessem refletir sobre Hiroxima e Nagasáqui, não seriam convertidos em algo semelhante a um terramoto ou tsunami?
Após escolher a via arqueológica do passado em busca do mal humano, W. G. Sebald não se ausenta, vence a inércia, enfrenta a dor e o mal do passado, faz o luto, procura a transcendência e a redenção, a catarse e o recomeço. Feito o ato de contrição, os alemães sobreviventes à destruição e à derrota da Alemanha nazi, estão marcados pelo pecado, sendo perdoados, o que é reforçado por referências bíblicas.
Diz-se que há impulsos e instintos que não controlamos conscientemente, a que estamos ligados se quisermos ascender, que não podemos erguer-nos sem ter os pés no lodo. Em paralelo com a árvore que tem as raízes na terra e as folhas no céu. Só assim seremos transcendentes, incorporando tudo o que somos compreendendo-o. Ao encontro da reflexão de Sebald.
2. Depois do crime e castigo, da amnésia para amenizar o trauma, das tentativas de superação, da purificação, expiação e perdão há um reinício, uma ressurreição, uma nova Alemanha.
Uma nova Alemanha aberta à universalidade, cosmopolita, emancipada, melhorada, que tenta diluir a sua culpa sendo invisível e não fazendo perguntas, passando cheques, não reclamando e pedindo licença por tudo e coisa nenhuma, em que a salvação é para todos e não apenas para um povo escolhido ou superior.
Segundo uns, esta nova Alemanha, pós-Sebald, teve na ex-chanceler alemã um dos seus maiores expoentes, dando como exemplo maior a sua reação à crise dos refugiados, abrindo portas ao humanismo e à universalidade, contrariando o exclusivismo da cultura alemã do passado.
Segundo outros, há ingratidão e falta de memória, pois apesar do pior país devedor do século XX, várias vezes em bancarrota e ter sido resgatado, foi implacável, por antinomia, na crise das dívidas soberanas. Nem é tido como humanismo, segundo os mesmos, a causa para a entrada massiva de refugiados, mas sim o défice demográfico, falta de mão de obra e o envelhecimento populacional. Rege-se, à semelhança dos Estados, por meros interesses próprios (até agora maioritariamente económicos) e geoestratégicos que uma futura presença no Conselho de Segurança da ONU e um potencial nuclear reforçarão. E há a fuga da razão e a luta do poder pelo poder, que é mais importante que a retórica declarativa da dignidade humana. Há quem pergunte: por que não foi criado Israel à custa de território da Alemanha, penalizando-a e purificando-a, por causa do Holocausto?
Sebald, e bem, deu o seu contributo, deixou o seu testemunho de que, graças à força das ideias, se pode criar uma sociedade melhor, fazendo a sua libertação através da escrita, para quem o quiser compreender e enquanto houver gente para o ler.
E se o mundo é um caos, injusto ou escapa à nossa total compreensão, temos de reconhecer as nossas limitações, embora lutando sempre para que as sociedades sobrevivam moral e eticamente, dignificando a pessoa humana, não convertendo o mal humano num mal natural, mesmo quando os vícios da humanidade são alavancados e ampliados pela técnica e o desastre se tenda a agravar. Se desistirmos, o mal será maior.
24.05.24
Joaquim M. M. Patrício