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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


176. É MAIS DIGERÍVEL CONVERTER O MAL HUMANO NUM MAL NATURAL? 2


1. Ao tratarem, por exemplo, os seus bombardeamentos e dos aliados como choques de placas tectónicas e tempestades, as bombas ou mísseis como raios, relâmpagos, trovões, chuva, inundações ou tremores de terra, os alemães despiram a guerra de qualquer peso moral, evitando a reflexão, o arrependimento, o luto, um ato de contrição e de redenção sobre o seu passado agressor e sofredor, com reflexos no presente. 


Sebald, entre outros, desaprovou esta metamorfose da memória alemã impeditiva da compreensão do passado e comprometedora do futuro, mais grave que uma amnésia, tendo como condenável que a civilização humana nada possa fazer de melhor se a natureza nos confrontar com o seu mal natural, em detrimento do bem humano que pode haver, e é desejável, em nós.           


Adverso dessa visão amoral e naturalista, censurou o esquecimento da maioria dos alemães, dos negacionistas, dos que mentiram e foram incapazes de escrever o horror entre agressores e vítimas, incluindo quem criou o “mito do bom alemão”, sem alternativa e deixar que, paciente e sofridamente, tudo passasse. 


Elogia sobreviventes do Holocausto, como Jean Améry, que cumpriu o dever moral de escritor, ao escrever sobre o mal indizível, que não superou, no seu confronto permanente com essa perversidade, acabando por se suicidar.   


O que nos questiona de novo: será que com a indiferença ou a metamorfose da memória alemã, é exequível viver uma vida com alegria e superadora de ressentimentos? Se os japoneses não quisessem refletir sobre Hiroxima e Nagasáqui, não seriam convertidos em algo semelhante a um terramoto ou tsunami?   


Após escolher a via arqueológica do passado em busca do mal humano, W. G. Sebald não se ausenta, vence a inércia, enfrenta a dor e o mal do passado, faz o luto, procura a transcendência e a redenção, a catarse e o recomeço. Feito o ato de contrição, os alemães sobreviventes à destruição e à derrota da Alemanha nazi, estão marcados pelo pecado, sendo perdoados, o que é reforçado por referências bíblicas. 


Diz-se que há impulsos e instintos que não controlamos conscientemente, a que estamos ligados se quisermos ascender, que não podemos erguer-nos sem ter os pés no lodo. Em paralelo com a árvore que tem as raízes na terra e as folhas no céu. Só assim seremos transcendentes, incorporando tudo o que somos compreendendo-o. Ao encontro da reflexão de Sebald.   


2.
Depois do crime e castigo, da amnésia para amenizar o trauma, das tentativas de superação, da purificação, expiação e perdão há um reinício, uma ressurreição, uma nova Alemanha.   


Uma nova Alemanha aberta à universalidade, cosmopolita, emancipada, melhorada, que tenta diluir a sua culpa sendo invisível e não fazendo perguntas, passando cheques, não reclamando e pedindo licença por tudo e coisa nenhuma, em que a salvação é para todos e não apenas para um povo escolhido ou superior.   


Segundo uns, esta nova Alemanha, pós-Sebald, teve na ex-chanceler alemã um dos seus maiores expoentes, dando como exemplo maior a sua reação à crise dos refugiados, abrindo portas ao humanismo e à universalidade, contrariando o exclusivismo da cultura alemã do passado. 


Segundo outros, há ingratidão e falta de memória, pois apesar do pior país devedor do século XX, várias vezes em bancarrota e ter sido resgatado, foi implacável, por antinomia, na crise das dívidas soberanas. Nem é tido como humanismo, segundo os mesmos, a causa para a entrada massiva de refugiados, mas sim o défice demográfico, falta de mão de obra e o envelhecimento populacional. Rege-se, à semelhança dos Estados, por meros interesses próprios (até agora maioritariamente económicos) e geoestratégicos que uma futura presença no Conselho de Segurança da ONU e um potencial nuclear reforçarão. E há a fuga da razão e a luta do poder pelo poder, que é mais importante que a retórica declarativa da dignidade humana. Há quem pergunte: por que não foi criado Israel à custa de território da Alemanha, penalizando-a e purificando-a, por causa do Holocausto?   


Sebald, e bem, deu o seu contributo, deixou o seu testemunho de que, graças à força das ideias, se pode criar uma sociedade melhor, fazendo a sua libertação através da escrita, para quem o quiser compreender e enquanto houver gente para o ler.   


E se o mundo é um caos, injusto ou escapa à nossa total compreensão, temos de reconhecer as nossas limitações, embora lutando sempre para que as sociedades sobrevivam moral e eticamente, dignificando a pessoa humana, não convertendo o mal humano num mal natural, mesmo quando os vícios da humanidade são alavancados e ampliados pela técnica e o desastre se tenda a agravar. Se desistirmos, o mal será maior.


24.05.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


175. É MAIS DIGERÍVEL CONVERTER O MAL HUMANO NUM MAL NATURAL? 1


A identidade de uma pessoa é maleável, em grau maior ou menor, segundo aqueles que nos acompanham. A sociabilidade de certas pessoas pode estimular a nossa compaixão, generosidade, humanidade e sensibilidade. A de outras, a nossa crueldade, frieza, desumanidade e indiferença.


Para William Wordsworth, a natureza incute-nos a acessibilidade de procurar na vida e uns nos outros o que há de bom e saudável. A natureza, ser inanimado, tem a capacidade de exercer influência sobre os outros seres que a rodeiam. Cascatas, flores, glaciares, icebergues, montanhas, oceanos, vulcões, um castanheiro ou uma celidónia, têm o poder de nos sugerir certos valores. Há quem veja nas flores modelos de humildade e mansidão, nos lagos de serenidade e nos pinheiros de resolução. 


Estes seres, que temos como desprovidos de consciência, não são apenas arquétipos inspiradores de virtude, mas também instigadores do medo, do terror, do inconquistável e invencível. Muitos deles fazem-nos sentir pequenos e insignificantes na ordem natural das coisas, perante a imensidão do deserto, dos oceanos, a altivez, altitude e imponência de algumas montanhas. Uns, com a sua aura sublime, também suscitam sentimentos de natureza espiritual ou dimensão religiosa. Outros, são indomáveis na sua impensável beleza.     


A hegemonia da natureza também está presente na obra de W. G. Sebald (escritor alemão, 1944-2001), onde as civilizações humanas acabam sempre em ruínas. São sempre reconquistadas pela natureza, que é insuperável e está permanentemente em guerra com o que é humano.     


A natureza determina a visão de Sebald sobre o seu país e a própria natureza humana: a sociedade sobrevive moralmente quando transforma o mal humano num mal natural, ou seja, quando mascara uma catástrofe causada pelos seres humanos com a roupagem de uma calamidade natural. A destruição causada pela guerra, as suas atrocidades e bombardeamentos convertem-se na destruição causada por uma tempestade, um terramoto ou um tsunami.   


Enquanto Wordsworth sustentava que a “amabilidade” da natureza servia de guia a incitar-nos à busca do bem dentro de nós, a Alemanha, em pleno nazismo e segunda guerra mundial, recorria à amoralidade da história natural de molde a justificar o mal que há dentro de nós.     


Ao lado da deslumbrante e idílica beleza dos campos, pode haver a fascinante beleza da ordem, do medo que intimida e aterroriza.


Este recurso a elementos amorais e inconscientes da natureza, como causa de justificação da ilicitude ou da culpa, levou Sebald a revoltar-se contra essa metamorfose da memória, convertendo-a em deturpação, interpelando o silêncio sobre a Alemanha enquanto agressora e, também, enquanto vítima.


Opina que os alemães, com especial responsabilidade para escritores e intelectuais em geral, não souberam ou não quiseram lidar com os bombardeamentos aéreos sobre as suas cidades, com as vítimas civis, os feridos, os órfãos, os que perderam tudo, conduzindo-os a uma sociedade moral desacreditada. Conclui: “parece que ninguém escreveu sobre essas coisas nem se lembrava delas”.


Assumiram a destruição da segunda grande guerra, incluindo a sua derrota e consequências, do mesmo modo que um terramoto ou tsunami, não procurando o luto ou culpados, impedindo qualquer reflexão como agressores e vítimas, o que Sebald censurou, sem querer diabolizar os vencedores e vitimizar os vencidos.


Se não havia responsáveis de ambos os lados, nem reflexão a fazer, aguenta-se e segue-se em frente, transformando o mal humano num mal natural, ou levantamo-nos contra esta perspetiva e, se sim, em que termos?   


Há quem se rebele contra esse consentimento, mesmo que tácito, sendo um deles W. G. Sebald.           


17.05.24
Joaquim M. M. Patrício