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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA


    Maria Barroso e Augusto de Figueiredo em "Benilde ou a Virgem Mãe" de José Régio (in site da C.M. de Vila do Conde)


ATORES, ENCENADORES (XIX)

REFERÊNCIAS A MANOEL DE OLIVEIRA, JOSÉ RÉGIO, MARIA BARROSO
por Duarte Ivo Cruz


Fazemos aqui uma abordagem global a três nomes exponenciais da cena portuguesa – e cada um deles, a seu modo e na biografia respetiva, em muito transcendeu a abordagem específica da arte do espetáculo. Referimos Manoel de Oliveira, na sequência da publicação anterior, mas também, pelas razões que adiante se explicam, José Régio e Maria Barroso.

Como bem sabemos, cada um transcendeu em muito a expressão dramática, aliás, também cada um deles, assumindo-a num nível de qualidade excecional. Mas é o teatro e o espetáculo que aqui os relaciona – e a partir da peça “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça escrita por José Régio em 1947, estreada no Teatro Nacional de D. Maria II em 1947-1948 com Maria Barroso na protagonista, e filmada por Manoel de Oliveira em 1975 com Maria Barroso no papel de Genoveva.

Maria Barroso termina o curso de teatro do então Conservatório Nacional em 1943 e no ano seguinte ingressa na Companhia do TMDM II dirigida, como se sabe, por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Prossegue estudos na Faculdade de Letras de Lisboa, enquanto assume diversos papéis de protagonista no Nacional, com destaque para a Maria de Noronha do “Frei Luís de Sousa” em 1946. No ano seguinte estreia-se no cinema com “Aqui Portugal” de Armando Miranda: mas mais importante do que isso, nessa mesma temporada de 47-48, fará a protagonista da “Benilde” no D. Maria, com Augusto de Figueiredo no papel de Eduardo.

António Braz Teixeira assinala que «tal como o rei de “Jacob e o Anjo”, também a protagonista de “Benilde”, porque foi escolhida por Deus, só na morte serenamente aceite ou desejada (…) alcança a verdadeira liberdade redentora» (in “Teatro I” ed. INCM-2005 pág. 22). E o próprio Régio destacará esta interpretação, quase a última que Maria Barroso assume no Teatro Nacional antes de ser afastada em 1948. A crítica da época é aliás unânime em reconhecer a notável interpretação de Maria Barroso. “É o reconhecimento do seu talento. É a consagração do seu nome. É o ponto iluminado do seu palco” escreverá, meio século decorrido, Leonor Xavier, que reproduz um conjunto relevante de críticas da época. (in “Maria Barroso – Um Olhar Sobre a Vida”, ed. Difusão Cultural - 1995 pág. 98).

Maria Barroso afasta-se dos palcos. Mas em 1965, retoma a carreira em duas interpretações notáveis que marcaram o início de atividade do Teatro Villaret: “O Segredo” de Henry James e a “Antígona” de Jean Anouille, que já evocamos nesta série de artigos. 

Ora bem: em 1975 estreia em Lisboa o filme de Manoel de Oliveira precisamente denominado “Benilde ou Virgem-Mãe”. Aqui, a protagonista é Maria Antónia Mata, e Maria Barroso assume o papel de Genoveva “velha criada da casa”. O texto teatral articula-se na expressão cinematográfica: diz João Bénard da Costa que “é o cinema que invade o teatro, num jogo de alçapões e sótãos, como se sob a profundidade do primeiro se escondesse o espaço do segundo”… (in “Histórias do Cinema” ed. Europália e INCM 1991 pág. 153).

E Eduardo Prado Coelho: «Em primeiro lugar, o filme nunca pretende figurar, melhor ou pior, uma realidade, mas sim registar uma peça de teatro. Quer dizer que, com “Benilde”, Manoel de Oliveira avança sim pouco mais na sua conceção sobre a passividade do cinema. Em segundo lugar, opera-se, neste movimento de câmara, uma passagem para um espaço deliberadamente fechado, onde o exterior adquire uma força simbólica desmesurada (…). Em terceiro lugar, este espaço fechado é o espaço maldito que, na sua velha clausura, assistiu ao enlouquecimento da mãe de Benilde, ao bizarro comportamento do pai, e serve agora como explicação para o mistério que envolve o estado de Benilde”. (in “Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982” ed. ICLP pág. 58).

Entretanto, quero aqui frisar a expressão dramática e a qualidade do texto em si, e a sua “adaptabilidade” digamos assim, a formas de espetáculo em si mesmas distintas: o que em rigor se deve ao extraordinário talento de José Régio, que como sabemos não esteve, ao longo da vida, especialmente ligado aos meios teatrais e/ou cinematográficos… 

Maria Barroso faria pequenas intervenções em dois filmes de Manoel de Oliveira: “Amor de Perdição” (1977) e “Le Soulier de Satin” (1984).

E seja-me permitido terminar com uma citação de texto de minha autoria, a propósito da “Benilde” - peça:

“Luta Benilde pela sua verdade. E só a morte evidente mostra a verdade essencial e subjetiva das suas vozes. (…) Teatro e grande teatro é a tensão doseada e progressiva de «Benilde ou a Virgem-Mãe», o seu remate inesperado, a dúvida que sempre subsiste”… (in “História do Teatro Português”- Verbo ed. 2001, pág.296).


DUARTE IVO CRUZ


Obs: Reposição de texto publicado em 15.04.15 neste blogue.

ANTOLOGIA

  
     Manoel de Oliveira na Mostra de Cinema de Veneza, em 1991


ATORES, ENCENADORES (XVIII)
EVOCAÇÃO DE MANOEL DE OLIVEIRA
por Duarte Ivo Cruz


Faremos aqui referência a Manoel de Oliveira na sua ligação ao mundo do teatro através designadamente da sequência brilhante de filmes que realizou a partir de peças teatrais. Mas também, como ator, destacando precisamente a   marcante interpretação, no clássico “A Canção de Lisboa” (1933) de Cottinelli Telmo.

Manoel de Oliveira surge entretanto em alguns filmes de sua autoria, por vezes “aparições” perfeitamente secundárias ou ocasionais: faz lembrar um pouco, nesse aspeto, o próprio Hitchcock, na figuração instantânea que introduzia sistematicamente nos seus filmes, como uma imagem de marca ou um atestado de autoria.

Não assim, note-se, com Manoel de Oliveira, pois em dois filmes relevantes, um deles, aliás referencial da história do cinema português, desempenhou papéis, não propriamente de protagonista, mas de projeção: na já citada “Canção de Lisboa” e também em “Fátima Milagrosa” (1927) de Rino Lupo, realizador romeno que aliás seria autor, em Portugal, de êxitos meritórios do cinema mudo, como designadamente “Os Lobos”.

Felix Ribeiro considera entretanto que “Fátima Milagrosa” é um filme de pouca qualidade inclusive porque “da parte de muitos interpretes se observava um amadorismo e uma insuficiência dificilmente tolerável”… (in “Filmes, Figuras e Factos do Cinema Português” ed. Cinemateca Portuguesa 1983 pág.225). Ora, dessa deficiência não pode ser acusado Manoel de oliveira, que se limitou, neste filme, a mera figuração, aliás ilustrada no livro citado com uma fotografia.

E esse destaque é testemunho da projeção que viria a atingir Manoel de Oliveira no historial do cinema português. De tal forma que a sua outra participação como “ator profissional” já se revestiu de uma importância destacada. É como se referiu na “Canção de Lisboa” - e nem Cottinelli Telmo seria capaz de confiar a um ator “menor” um papel de relevo neste excelente filme, o primeiro   sonoro totalmente produzido e realizado em Portugal.

Basta ver o elenco: Vasco Santana, António Silva, a jovem Beatriz Costa, e, diz-nos agora Luis de Pina, “a presença jovem de Manoel de Oliveira num belo carro de desporto, já consagrado pelo prestígio de «Douro Faina Fluvial». (in “A Aventura do Cinema Português” -  Veja ed. pág. 39) E é de notar que nomes como Chianca de Garcia, José Gomes Ferreira ou Fernando Fragoso, mesmo alguns deles não referidos no genérico, estiveram ligados à produção.

É altura pois de referir que a longuíssima filmografia de Manoel de Oliveira reflete, em numerosos títulos, uma espécie de evolução da dramaturgia portuguesa, sobretudo a partir de peças, adaptações mais ou menos contemporâneas – e todas elas, contemporâneas do realizador, dada a sua extraordinária longevidade. E é notável que ao longo de dezenas de anos, teve sempre uma noção e visão evidentemente moderna, mas em cada fase, contemporânea das peças e de autores, com a exceção cronológica mas não de espetáculo, do “Acto da Primavera” (1963) representação popular a partir de um texto clássico de Francisco Vaz Guimarães (século XVI).

Mas com essa exceção – e mesmo assim, o espetáculo era na época pelo menos, realizado anualmente -, pode-se dizer que a filmografia de Manoel de Oliveira, no que se refere ao teatro, concentra-se em autores dos nossos tempos... Ora vejamos (as datas referem a produção dos filmes):

1972 - “O Passado e o Presente” de Vicente Sanches; 1974 – “Benilde ou a Virgem Mãea” de José Régio; 1981 – “Visita ou Memórias e Confissões” – diálogos de Agustina Bessa Luis e Manoel de Oliveira; 1981 – “Le Soulier de Satan” de Paul Claudel; 1986 – “O Meu Caso” de José Régio; 1987 - “Os Canibais” ópera de Alvaro Carvalhal sobre libreto de João Paes;  1994 -“A Caixa”  de Prista Monteiro; 1996- “Party” com diálogos de Agustina Bessa Luis; 1998 – “Inquietude” de Prista Monteiro; 2012- “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão.

É por vezes uma cinematografia difícil? Será: mas retomo aqui o comentário de um crítico francês, Jacques Parsi, no livro que dedicou a Manoel de Oliveira (“Manoel de Oliveira – Cineaste Portugais” ed. Centre Culturel Calouste Gulbenkian 2002 pág. 1612):

“Esta forma de escrever o cinema destabiliza alguns espetadores, a ausência do espetacular afasta muitos outros. A dificuldade decorre, no caso, de que é necessário limpar o olhar, desembaraça-lo dos seus reflexos condicionados. Só por aí se pode falar de dificuldade para abordar o cinema de Manoel de Oliveira. Ora paradoxalmente, as pessoas ficam muitas vezes nesta abordagem superficial, sem ver que o que é obscuro, complexo, por vezes insondável, é a vida que é mostrada”.

E no final:

“Os filmes de Oliveira só são simples ou claros na sua linguagem. Ora a simplicidade não é incompatível com o maior refinamento, é o que se chama pureza“.

No blogue acima citado, Guilherme Oliveira Martins refere-se especificamente à “relação muito curiosa e difícil com Agustina bessa-Luis. Dir-se-ia que duas grandes personalidades faziam coexistir a complementaridade e a tensão. Admiravam-se sem renunciar ao sentido crítico”.

Na morte de Manoel de Oliveira, aos 106 anos, fica esta homenagem e esta memória.


Duarte Ivo Cruz


Obs: Reposição de texto publicado em 08.04.15 neste blogue.

FOTÓGRAFO DE PALAVRAS…

Manoel de Oliveira _ fotografia.jpg

 

Ao percorrer as fotografias de Manoel de Oliveira, que vieram de Serralves até à Gulbenkian, lembrei-me de João Bénard da Costa, sempre saudoso amigo, e tive desejo de o reencontrar ali para podermos lentamente, perante cada uma daquelas imagens discorrer livremente sobre os mistérios da criação e da arte. Por momentos, ele ficou ali, em espírito, bem presente. E tive a boa ilusão de que se nos juntava o cineasta e fotógrafo. E recordámos “Douro, Faina Fluvial”, vinte minutos geniais, de 1931, com fotografia de António Mendes, que se torna obrigatório ver e rever. Luigi Pirandello, que assistiu à estreia, a convite de António Ferro, não teve dúvidas em reconhecer logo, contra alguns espectadores distraídos, a genialidade do autor e das imagens.

 

A imaginação flui, ao assistirmos à meticulosa colocação das fotografias nos seus sítios. Sentimos um verdadeiro prazer no encontro da poesia de cada uma daquelas imagens – como as da jovem noiva do artista, Maria Isabel, a olhar a câmara ou junto da serenidade das águas. E vem à mente a frase que Agustina e Oliveira fizeram dizer a Francisca-Fanny Owen: “a alma é um vício”. João Bénard logo acrescentava que o cinema também o é, do mesmo modo que a fotografia. Na criteriosa escolha desta mostra, isso vê-se muito bem. Ruy Belo, no poema que escreveu a propósito da morte de Marilyn Monroe, demonstrou o sentido e alcance poético da ligação entre alma e vício, no sentido em que o belo é tão difícil de captar que obriga a procurar entender o que está para além do que se vê ou do que parece perceber-se.

 

Passo a passo, vemos na escolha de António Preto, a partir de um acervo de milhares de fotografias, que é mesmo esse vício de alma que encontramos na aparente normalidade das imagens – família, férias, filmagens, ideias em estado puro. A casa refletida no farol do automóvel alimenta o sonho. E, não por acaso, anuncia-se para breve na Casa do Cinema Manoel de Oliveira uma mostra sobre as relações artísticas do cineasta com Agustina Bessa-Luís. São a literatura e a imagem, a memória e a vida, a arte e a técnica que se encontram. E Manoel de Oliveira é uma figura de fascínio, que cultivou pela imagem a busca do fundo do espírito e da alma. Neste período fecundo do inesperado fotógrafo estão os catorze anos em que esteve sem filmar, desde “Aniki-Bobó”(1942) até “O Pintor e a Cidade” (1956). E as imagens fixam o que ficou por realizar, como o documentário sobre o Aero Club do Porto ou “O Saltimbanco”. Quantos espíritos por aqui circulam, quantos caminhos diferentes se abrem…

 

Em 1952, o artista é chamado a fazer a fotografia de uma jovem que acaba de morrer. Daqui sairá o argumento, que leva ao filme “O Estranho Caso de Angélica” (2010), que marca o registo onírico que o cineasta gostava de cultivar. Imanência a reclamar a transcendência. Isaac, fotógrafo sefardita, que está numa modesta pensão de Peso da Régua para testemunhar em imagens a faina agrícola da vinha no Douro, é chamado inesperadamente, numa noite que se revelaria funesta, a fazer o retrato da jovem de uma família influente. O tema ilustra a metáfora que liga a fotografia, o cinema, a alma, a morte e a vida, evidentes no fugaz sorriso de Angélica, a belíssima jovem, que consumirá Isaac. A descoberta de Manoel de Oliveira fotógrafo, nesta extraordinária reunião de imagens, continuará a constituir uma surpresa, mesmo para quantos já conheciam esta faceta do seu talento. É um reencontro mágico, a que não podemos ficar indiferentes, que abre novos caminhos e que, encantatório, permitirá continuar a ver com olhos de ver o modo como um homem da imagem nos permite entender melhor a vida das palavras.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  (XXX) MANOEL DE OLIVEIRA, INESQUECÍVEL

 

Quase a acabar o nosso folhetim, vamos ao Porto e encontramos Manoel de Oliveira (1908-2015), e terminamos na Arrábida, sempre a Arrábida… A começar, um delicioso relato feito pelo jovem poeta Carlos Queirós de uma conversa com o grande Luigi Pirandello, numa viagem de táxi entre os Restauradores e o Hotel Palácio do Estoril. O Mestre estava fatigado e escusara-se a ir a Alfama a uma festa popular organizada por António Ferro. Tinham acabado de ver a exibição do documentário «Douro Faina Fluvial» do jovem Manoel de Oliveira. Carlos Queirós conta o ocorrido: «Durante a exibição do filme – que o crítico francês Vuillermoz declarou ter sido, como realização, a estreia mais auspiciosa que tinha visto. Contudo, alguns espectadores ameaçaram patear. Pirandello, inclinando-se para trás, perguntou a um dos portugueses que o acompanhavam no camarote: “Porque estão a bater com os pés? – Porque não gostam. – Mas o filme é muito bom! – É verdade, mas não gostam… E Pirandello, com ar de quem acaba de reconhecer uma classe (talvez a lembrar-se do que aconteceu a algumas das suas melhores peças): – Ah! São os idiotas!…». E, entre dentes: de facto, confundem os pés com as mãos… Estava tudo dito. Sabemos que Oliveira estava suficientemente seguro de si, inspirado por Walter Ruttmann, e agora contava com o veredicto absoluto de Pirandello. José Régio disse, aliás, de «Douro», na «Presença»: «Realizado num mínimo de condições favoráveis, é, além duma surpresa e duma audácia, um milagre de apaixonada persistência» e Adolfo Casais Monteiro foi perentório: o filme «inaugurava em Portugal uma nova época».

De facto, um grande autor anunciava-se. Não falaremos hoje de tantas obras que nos encantaram, como “Aniki-Bobó” até “Amor de Perdição” (que o tempo apenas valorizou) ou “Palavra e Utopia”. Falaremos apenas de “O Convento” (1995), baseado na novela de Agustina “As Terras do Risco”. O romance decorre na Arrábida, onde há muitos séculos o homem conhece a confrontação com a sua própria obscuridade, dando-lhe às vezes o nome de Deus, outras de rei ou de poderes telúricos, terramotos e tempestades. A trama desenrola-se no misterioso convento, isolado na serra da Arrábida. Michel Padovic, investigador americano (John Malkovich) está apaixonado pela busca de uma pista histórica inédita e procura indícios de que William Shakespeare era um Judeu espanhol, descendente de gente expulsa da Península Ibérica, que teria partido para Florença e daí para Inglaterra. Acompanhado pela mulher, Helène (Catherine Deneuve), Michel trabalha na Arrábida. E deparamos com a releitura do mito universal de “Fausto” – entre Shakespeare e Goethe. Alguém vende a alma ao demónio em troca do conhecimento. E Manoel de Oliveira trabalha o mito, demonstrando que Fausto existe em todo o tempo. Mas é por Hélène que se interessa o guardião do local, a figura algo sinistra de Baltar (Luís Miguel Cintra), que vive com Piedade (Leonor Silveira). Há vários tempos sobrepostos: o presente, a Idade Média e a Antiguidade clássica, já que Hélène se transfigura em Helena de Troia.

João Bénard da Costa está  muito ligado a este filme. Conhecia a serra como ninguém. Manoel de Oliveira pediu-lhe ajuda para fazer um levantamento das histórias da Arrábida. “Numa das cenas, eu devia contar (disse João) à Catherine Deneuve a história do Convento Velho, que eu contei tantas vezes a tanta gente ao longo da minha vida. Lembro-me perfeitamente de ter pensado, naquele momento, que sentia estar a viver um sonho. Um ano antes, naquele mesmo sítio onde vou tantas vezes, até poderia ter imaginado esta cena, rido com ela e pensado que ela era um sonho. Mas não. Estava ali, com a Catherine Deneuve, a contar uma história da Arrábida. (…) A verdade é que tenho vivido coisas que nunca pensei viver, que parecem fazer parte da dimensão do sonho, da dimensão do cinema. Nesse sentido, sou um homem privilegiado”. De facto, todo o carácter mágico que rodeia “O Convento” estava bem patente nos vários planos apresentados. Agustina, por sugestão do seu amigo, começa a escrever “Pedra de Toque”, sobre um dos lugares mais mágicos de Portugal. No entanto, demorou-se na escrita, mais do que o realizador necessitaria. Então este falou a Agustina para que ela resumisse o enredo. Assim foi, e Oliveira elaborou um guião próprio, dando início à concretização do filme. E apresentou o filme como “inspirado na ideia original de Agustina Bessa-Luís”. Resultado? Agustina não gostou. Recusou-se a ver o filme e qualificou o episódio como “desencontro total” e “colaboração falhada”. A zanga foi séria, mas o tempo aplainaria esse acidentado episódio. Agustina seguira uma via algo diferente da de Oliveira. Teria preferido a obsessão do investigador tão concentrado no seu estudo, correndo o risco de se confundir com ele. Pelo contrário o cineasta optara por enfatizar a história dos ciúmes entre duas mulheres. E, como bem sabemos, Agustina sempre repetiu que “o Manoel de Oliveira filma filmes de amor, e o amor não entra nos meus romances”. A verdade é que não podia ser durável a zanga, por várias razões – de facto o que houve com “Pedra de Toque”, que depois se tornou “Terras do Risco”, por maior fidelidade à Arrábida, que passou à tela como “O Convento”, foi um mero equívoco, gerado pela pressa de Oliveira e pela falta de um real acerto de ideias quanto ao projeto. Quando vemos o filme, percebemos que poderia ter sido ela a principal responsável pelas ideias, com mais ou menos ciúmes e desencontros. Talvez tenha existido no cineasta um excesso de confiança no exercício de seguir o que a autora teria feito. Passada a tempestade, no ano seguinte, Oliveira voltou a lançar a Agustina o desafio para escrever sobre mulheres e homens, num cenário em que dois casais, um mais novo e outro mais velho, se encontram nos Açores. E assim o filme “Party” (1996) vai marcar uma rápida reconciliação – sendo curiosa a forma como Agustina vai aos Açores para conhecer pessoalmente Michel Piccoli e Irene Papas, que contracenam com Rogério Samora e Leonor Silveira. Surpreendida, a escritora depara-se com a filmagem de uma garden party em plena tempestade – com chuva, neblina e vento forte… E Agustina concluiria que a nova colaboração cinematográfica foi interessante.

GOM

 

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O CINEASTA EM FUGA

 

Toda a arte é bicéfala: já vi, em muitos filmes, aparecer a cabeça do autor e rolar depois, no ecrã, outra cabeça, a da própria obra.

 

Em Outubro de 1986, no aeroporto de Lisboa, vi pela primeira vez aparecer a cabeça de Michelangelo Antonioni. Pareceu-me ver, na elegante serenidade da cabeça dele, a cabeça dos seus filmes.

 

Mesmo cercado pela simpatia de Luís de Pina e João Bénard, Antonioni, cujo ciclo na Cinemateca organizei, parecia o menos exuberante dos nossos convidados.

 

Os seus filmes, a começar pela célebre trilogia de silêncio angustiante em que até a paisagem tem crises existenciais, são filmes sobre a incomunicabilidade e a solidão.

 

Porque razão um homem de beleza adriática, discretamente hedónico, muito atraente para as mulheres, faria filmes tão misteriosamente escassos e rarefeitos?

 

Adiante. No fim-de-semana, levámos Antonioni a visitar a euforia arquitectónica do Palácio da Pena. Antonioni regalou-se com o exterior e seguiu para a visita guiada do interior. Éramos cinco ou seis e permiti-me ficar cá fora a fumar o meu cigarro imaginário.

 

O guia fechou a porta e eu desandei a pensar que a obscena verdura do Outono em Sintra mais depressa pedia um cineasta irlandês do que um italiano de Ferrara: em que deboche é que a natureza tinha passado o Verão para que agora montanhas e vales desabrochassem assim? Era o que pensava quando, sobre a minha perplexa cabeça, se abriu uma janela do Palácio e dela irrompe uma perna coberta pelo melhor corte italiano, a perna de Antonioni. A altura era razoável e a firme decisão dele para saltar pedia ajuda. Dei-lha e o cineasta aterrou são e salvo.

 

O que se passou o que não se passou, e Antonioni conta-nos que fechar-se atrás dele a porta lhe evocara um trauma terrível. Durante a Guerra, a militância política tornara-o um alvo para os nazis que controlavam Itália. Escapou escondendo-se numa cave. Ficou três meses entre quatro paredes, incomunicável. Nunca mais pudera ouvir fechar-se uma porta atrás de si.

 

É a memória desse medo que está em “L’Avventura”, “L’Eclisse” e “La Notte”? É a cabeça de Antonioni fechada numa cave o que vemos no olhar de Monica Vitti e Jeanne Moreau, no desterro arquitectónico dos filmes a que se chamou a “trilogia dos sentimentos”?

 

À noite, ao jantar dado pelo embaixador de Itália, veio também Manoel de Oliveira. Com a graça brejeira que a idade autoriza, Oliveira contou uma anedota, Antonioni respondeu com outra. E durante uma hora contou as mais impensáveis barzelette, sofisticadas, a roçar o obsceno, de carabiniere e maridos traídos. Vimos outra cabeça de Antonioni, a que nunca ele deixou aparecer em nenhum dos seus filmes.

 

(Não disse. No palácio, a minha linda mulher, claustrófoba impenitente, saltou logo a seguir. Se era rapto, acabou logo ali.)

 

Manuel S. Fonseca

"UMA CHAVE DE PORTA DE ENTRADA"

Manoel de Oliveira a imagem exata por palavras de Agustina: não se começa outra vida. Matamos e morremos, é sempre o mesmo. (…) Para quê tanto sofrimento? (…) Uma família feliz e pronto. Não posso ver esse desespero só por causa de dez mandamentos do tempo dos profetas maníacos.

 

 

Não chega a todas as suas consequências quem não se deixou apaixonar ou quem desse sentir esteve ausente. Também não chega a todas as suas consequências quem em si não desenhou esmeradamente o estado de amante. Nestas duas situações há desespero que em cada uma faz estação própria e em cada uma o amor não chega para assumir todas as consequências. Resta tantas vezes um cerimonial sem grande heroicidade. Resta uma espécie de discurso e gesto em volta do amor como um colar de pérolas ágil no segurar-se angélico em volta da garganta. O que reina são os mistérios e as propostas do corpo para possuir o que se ama. O entendimento, esse, tem a poesia onde se deita e dela faz pele e afinal onde busca também os diálogos que existem de coração a coração em palavras que muito assombram o que está seguro e não acontece, ou, o que acontece, pois que a segurança pode não ter sido fruto nem semente para nada e de repente abre-se larga qual fruteira sabiamente ideia, prata e cristal proposta num centro de mesa onde tudo se permite.

 

E o filme PARTY de Manoel de Oliveira pelo livro de 90 páginas PARTY Garden-Party dos Açores da extraordinária Agustina Bessa-Luís ou assim se não entendesse S. Miguel

 

Miguel

Leonor está encantadora!

 

Rogério

(…) Por falar nisso: a sua saia é indecente, sabia?

 

Leonor

(…) O primeiro que a achar indecente vai dizer-me que estou encantadora.

 

Rogério

Querida amiga!

 

Irene

(…) As mulheres eram enfadonhas, agora são de uma vulgaridade horrível. (…) Uma mulher encantadora está perto de ser recordada pelas fotografias de férias. Para começar, você faz dez anos de casada (…) É uma idade rupestre

 

Leonor

Está gravada a cem metros de profundidade.

 

Miguel

Como faz para respirar?

 

Leonor

Não sei. Essas coisas não se chegam a saber.

 

Alguém

Em S. Miguel existem armários fechados há seculos pela força da insularidade. Guardam neles coisas impalpáveis que sempre forçaram as portas desses armários, mas nunca o suficiente para se exporem. Sabiam que bastava ser percetível a força, e que as portas, se se abrissem expunham ao lado dos beijos apaixonados, os mortos em jeito de bolas de naftalina e haveria sempre um cabide vazio. Entendes Mafalda? Um cabide vazio. Aquele das camisas de noite de tão belas não estreadas: aquele dos jardineiros que labutam sementes transparentes; aquele que apanhou palavras de passagem e que passaram a ter o destino de serem versos cristalinos e à espreita; aquele que de tão vazio se chamava oportunidade disponível que se não conforma; aquele que te pica a mão para que num apesar de tudo saibas que a seiva é ascendente.

 

Irene

As viagens cortam o apetite. São como o tabaco. (…) Quilómetros de gares e de escadas rolantes. Bagagens, horários (…) a que nos leva tudo isto?

 

Miguel

É simples potencialidade isso de viajar. É como o amor.

 

Leonor

Não fale nessas coisas. Estamos num terreno vulcânico, além disso…

 

Miguel

Os segredos são tão subtis, que podemos falar deles sem os revelar.

 

Leonor

Acredita que já não sabem tudo sobre nós muito melhor do que nós?

 

Irene

(…) o carro é grande, sempre cabe mais um. E na cama também.

 

Miguel

Está a querer fazer do amor uma ligação. Eu tenho uma ligação com esta senhora. Consigo é diferente.

 

Alguém

Mafalda que por toda a parte será finitude mesmo que digam que isto ou aquilo é teu, mesmo que isto ou aquilo envolva a lembrança das tuas ligações influenciadas por tudo quanto te inovava. Acho estranho contar-te assim uma versão do filme PARTY. Não sei se te disse que até já pensei noutros tempos vir viver para os Açores? Ah! Disse? Pois antes reli sempre este livro da Augustina e acreditei numa próxima ocasião, logo após a prova do deitar. Esta prova foi sempre em mim uma visita à cave da minha vida, da vida que também te servi pois outra me era estranha. Mafalda sei que entendes que as distancias são iguais quando da lareira a madeira cheira a verde. Vá deita aqui a cabeça no meu colo. Vá tapa-te que a manta é terna, o Pico aguarda-nos e nele continuaremos o filme PARTY numa quietude Mafalda, numa quietude tão funda que o tempo já não me perguntará «quanto tempo ainda?». E depois do teu sono te direi como me sinto livre como as aves prontas a serem abatidas. Dir-te-ei também alguma coisa sobre o meu perder-me com determinação, com a minha consequência, e tu, encantadora, ouvirás que o és pela primavera e pelo outono do amor de uma qualquer rupestre idade que ele tenha. Vá tenta compreender e verás o que acontece. Ama o teu homem e arranca-o desta ilha, leva-o, manda-o para Nova Iorque, sei lá!

 

Teresa Bracinha Vieira

EVOCAÇÃO DO TEATRO NA OBRA DE MANOEL DE OLIVEIRA

 

Em Serralves, foi recentemente inaugurada a Casa de Cinema Manoel de Oliveira. Merece referência esta sala de espetáculos, a partir da homenagem que a designação contem. Pela vida, excecionalmente longa, pela obra, excecionalmente qualificada e como tal reconhecida, e pela projeção internacional que com toda a justiça alcançou.


Evoca-se pois a obra e a atuação de Manoel de Oliveira na adaptação e realização cinematográfica de peças e demais expressões de teatro. E há que atender à cronologia, não só do realizador/encenador (absolutamente excecional: 1908-2015!...) como também do conjunto de peças que transpôs, seja permitida a expressão, para a potencialidade cénica e cinematográfica.


E isto porque em rigor, a dramaturgia filmada e adaptada por Manoel de Oliveira assenta numa capacidade de espetáculo que tanto se molda à cena como à projeção: sendo certo que Manoel de Oliveira é sobretudo um criador de cinema.


E se considerarmos a cronologia, não tanto dos filmes como das peças subjacentes, encontramos desde logo um texto clássico: o “Auto da Muito Dolorosa Morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo” da autoria do Padre Francisco Vaz.  Datado de 1559, portanto há exatos 460 anos, mas, ainda há relativamente pouco tempo representado em Trás-os-Montes, foi filmado por Manoel de Oliveira em 1963 no filme que denominou “Ato de Primavera”.


E é interessante constatar que a expressão dramática em si mesma é como que transposta para a expressão e criação cinematográfica, não obstante, note-se ainda por cima, a difícil dramaticidade deste longo texto.


Mas há mais textos de teatro adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira.


Desde logo, José Régio. “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça datada de 1947, e “Mário Ou Eu Próprio – O Outro”, esta datada de 1957, foram ambas filmadas por Oliveira: e quando escrevemos “filmadas” temos bem presente a recriação cinematográfica, digamos assim. E não é fácil transpor para a estética e sobretudo para a técnica cinematográfica um texto criado e vocacionado para a expressão teatral...


O que mostra a globalidade do sentido estético de Manoel de Oliveira no que se refere a espetáculo: com o circunstancialismo de que no cinema, a estética envolve e exige a técnica respetiva!


A sua excecionalmente longa vida permitiu portanto uma excecionalmente longa atividade: e merece referência especial a sucessiva adaptação de obras ligadas à criação literária. Já citamos Régio, mas também Camilo Castelo Branco, Agustina Bessa Luís, António Patrício, e sobretudo, o próprio Manoel de Oliveira, que tantas vezes se assume como escritor, ao criar textos que filmou...


Saúda-se pois esta iniciativa que consagra, num edifício do Arquiteto Álvaro Siza, a obra ímpar de um cineasta português, internacionalmente reconhecido e consagrado.


E voltaremos ao assunto.

 

DUARTE IVO CRUZ

A VIDA DOS LIVROS

De 17 a 23 de junho de 2019

 

 

«As Terras do Risco» de Agustina Bessa-Luís (Guimarães Editores, 1994) serviu de base ao filme «O Convento» de Manoel de Oliveira (1995). É um caso curioso em que duas obras se completam e se antagonizam – dando origem talvez à mais notória crise entre dois autores que tão ligados se encontram em substância. Mas, como costumava dizer Oliveira – “Agustina fez o seu livro e eu fiz o meu filme”.

 

 

UM MISTERIOSO CONVENTO
Começamos pela sinopse oficial da obra de Agustina: «O romance decorre na Arrábida, onde há muitos séculos o homem conhece a confrontação com a sua própria obscuridade, dando-lhe às vezes o nome de Deus, outras de rei ou de poderes telúricos, terramotos e tempestades. É um romance que Goethe teria aberto, recomendando-o a Eckermann, mas sem o ler... É um livro elegante, insensível a tudo quanto é a ênfase do mistério, tornando-o tanto quanto possível trivial como a dedução dum criminologista». A trama do filme desenrola-se no misterioso convento, isolado na serra da Arrábida. Michel Padovic, investigador americano (John Malkovich) está apaixonado pela busca de uma pista histórica inédita e procura indícios de que William Shakespeare era um Judeu espanhol, descendente de gente expulsa da Península Ibérica pelos Reis Católicos e por D. Manuel, que teriam partido para Florença e daí para Inglaterra. Acompanhado pela mulher, Helène (Catherine Deneuve), trabalha na Arrábida, vindo a envolver-se com os restantes inquilinos do convento. Mas com que nos deparamos? Com a releitura do mito universal de "Fausto" – começado em Shakespeare, mas baseado em Goethe. A história é, no fundo, a de alguém que vende a alma ao demónio em troca do conhecimento. E Manoel de Oliveira trabalha o mito, demonstrando que Fausto existe em qualquer tempo. Assim, pode encarnar em Michel, que chega ao Convento, onde espera encontrar elementos que comprovem as suas teorias. Mas é por Hélène que se interessa o guardião do local, a figura algo sinistra de Baltar (Luís Miguel Cintra), que vive com Piedade (Leonor Silveira). Temos então vários tempos sobrepostos: o presente, a Idade Média (origem do convento) e a Antiguidade clássica, já que Hélène se transfigura em Helena de Troia.

 

DESENCONTRO E MISTÉRIO
João Bénard da Costa ficou muito ligado a este filme. Conhecia a serra como a palma das suas mãos. Manoel de Oliveira pediu-lhe por isso ajuda para fazer um levantamento dos lugares e das histórias da Arrábida, acabando a convidá-lo para participar no filme. “Numa das cenas, eu devia contar (disse João) à Catherine Deneuve a história do Convento Velho, que eu contei tantas vezes a tanta gente ao longo da minha vida. Lembro-me perfeitamente de ter pensado, naquele momento, que sentia estar a viver um sonho. Um ano antes, naquele mesmo sítio onde vou tantas vezes, até poderia ter imaginado esta cena, rido com ela e pensado que ela era um sonho. Mas não. Estava ali, com a Catherine Deneuve, a contar uma história da Arrábida”. E esse momento mágico ligava-se, no fundo, ao mistério de todo o filme e do próprio livro. "A verdade é que tenho vivido coisas que nunca pensei viver, que parecem fazer parte da dimensão do sonho, da dimensão do cinema. Nesse sentido, sou um homem privilegiado". De facto, todo o carácter mágico que rodeia “O Convento” estava bem patente nos vários planos apresentados. Havia uma história ficcional e duas presenças que se misturavam, a de Shakespeare e a de Goethe, a do teatro e a da literatura, ligando-as um mito que tanto entusiasmava Manoel de Oliveira e Agustina. Aqui entra o drama real. Agustina, por sugestão do seu amigo começa a escrever “Pedra de Toque”, sobre um dos lugares mais misteriosos e mágicos de Portugal. A escritora pensa em Depardieu e Deneuve, segundo a ideia do próprio Oliveira. No entanto, Agustina demorou-se na escrita, pelo menos mais do que o realizador necessitaria. Então este falou a Agustina para que ela resumisse o enredo. Assim foi, e Oliveira tirou-se de seus cuidados e elaborou um guião próprio, dando início ao processo de concretização do filme. E apresentou o filme como “inspirado na ideia original de Agustina Bessa-Luís”. Resultado? Agustina não gostou. Recusou-se a ver o filme e qualificou o episódio como “desencontro total” e “colaboração falhada”. “O Manoel de Oliveira teve sempre toda a liberdade, liberdade de que ele abusou”…

 

UMA ZANGA PASSAGEIRA
A zanga foi séria, mas o certo é que o tempo aplainaria esse acidentado episódio. Agustina seguira uma via algo diferente da de Oliveira. Teria preferido seguir a obsessão do investigador tão concentrado no seu estudo, correndo o risco de se confundir com ele. Pelo contrário o cineasta optara por enfatizar a história dos ciúmes entre duas mulheres. E, como bem sabemos, Agustina sempre repetiu que “o Manoel de Oliveira filma filmes de amor, e o amor não entra nos meus romances”. A verdade é que não podia ser durável a zanga, por várias razões – de facto o que houve com “Pedra de Toque”, que depois se tornou “Terras do Risco”, por maior fidelidade à Arrábida, que passou à tela como “O Convento”, foi um mero equívoco, gerado pela pressa de Oliveira e pela falta de um real acerto de ideias quanto ao projeto. No entanto, entre Agustina e Manoel há muito que havia preocupações e ideias comuns ou próximas. Quando vemos o filme, percebemos que poderia ter sido ela a principal responsável pelas ideias, com mais ou menos peso dos ciúmes e dos desencontros. Talvez tenha existido no cineasta um excesso de confiança no exercício de seguir o que a autora teria feito. Mas o certo é que podemos ler “Terras do Risco” e analisar em paralelo o filme. A complementaridade lá está, numa distância muito menor do que a que encontramos em tantas transposições de romances para a tela… Passada a tempestade, no ano seguinte Oliveira voltou a lançar a Agustina o desafio para escrever sobre mulheres e homens, num cenário em que dois casais, um mais novo e outro mais velho, se encontram nos Açores. E assim o filme “Party” (1996) vai marcar uma rápida reconciliação – sendo curiosa a forma como Agustina vai aos Açores para conhecer pessoalmente Michel Piccoli e Irene Papas, que contracenam com Rogério Samora e Leonor Silveira. Surpreendida, a escritora depara-se com a filmagem de uma garden party em plena tempestade – com chuva, neblina e vento forte… E o certo é que Agustina concluiria que a nova colaboração cinematográfica foi interessante. Manoel de Oliveira fez a distinção entre os diálogos de Agustina Bessa-Luís e o argumento do próprio cineasta. E a vida seguiu em frente, entre os dois amigos – fundamentais na história da cultura portuguesa hoje. 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

ATORES, ENCENADORES (XVIII)

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Manoel de Oliveira na Mostra de Cinema de Veneza, em 1991

 

EVOCAÇÃO DE MANOEL DE OLIVEIRA

Neste mesmo blogue Guilherme Oliveira Martins evocou já a "morte  de Manoel de Oliveira". (2 de abril).  

Faremos aqui referência a Manoel de Oliveira na sua ligação ao mundo do teatro através designadamente da sequência brilhante de filmes que realizou a partir de peças teatrais. Mas também, como ator, destacando precisamente a   marcante interpretação, no clássico “A Canção de Lisboa”  (1933) de Cotinelli Telmo.

Manoel de Oliveira surge entretanto em alguns filmes de sua autoria, por vezes “aparições” perfeitamente secundárias ou ocasionais: faz lembrar um pouco, nesse aspeto, o próprio Hitchcok, na figuração instantânea que introduzia sistematicamente nos seus filmes, como uma imagem de marca ou um atestado de autoria.

Não assim, note-se, com Manoel de Oliveira, pois em dois filmes relevantes, um deles, aliás referencial da história do cinema português, desempenhou papéis, não propriamente de protagonista, mas de projeção: na já citada “Canção de Lisboa” e também em “Fátima Milagrosa” (1927) de Rino Lupo, realizador romeno que aliás seria autor, em Portugal, de êxitos meritórios do cinema mudo, como  designadamente “Os Lobos”.

Felix Ribeiro considera entretanto que “Fátima Milagrosa” é um filme de pouca qualidade inclusive porque “da parte de muitos interpretes se observava um amadorismo e uma insuficiência dificilmente tolerável”… (in “Filmes, Figuras e Factos do Cinema Português” ed. Cinemateca Portuguesa 1983 pag.225). Ora, dessa deficiência não pode ser acusado Manoel de oliveira, que se limitou, neste filme, a mera figuração, aliás ilustrada no livro citado com uma fotografia.

E  esse destaque é  testemunho da projeção que viria a atingir Manoel de Oliveira no historial do cinema português. De tal forma que a sua outra participação como ”ator profissional” já se revestiu de uma importância destacada. É como se referiu na “Canção de Lisboa” - e  nem Cotinelli Telmo seria capaz de confiar a um ator “menor” um papel de relevo neste excelente filme, o primeiro   sonoro totalmente produzido e realizado em Portugal.

Basta ver o elenco: Vasco Santana, António Silva, a jovem Beatriz Costa, e, diz-nos agora Luis de Pina, “a presença jovem de Manoel de Oliveira num belo carro de desporto, já consagrado pelo prestígio de «Douro Faina Fluvial». ( in “A Aventura do Cinema Português” -  Veja ed. pag. 39) E é de notar que nomes como Chianca de Garcia, José Gomes Ferreira ou Fernando Fragoso, mesmo alguns deles não referidos no genérico, estiveram ligados à produção.

É altura pois de referir que a longuíssima filmografia de Manoel de Oliveira  reflete, em numerosos títulos, um espécie de evolução da dramaturgia portuguesa, sobretudo a partir de peças, adaptações mais ou menos contemporâneas – e todas elas, contemporâneas do realizador, dada a sua extraordinária longevidade. E é notável que ao longo de dezenas de anos, teve sempre uma noção e visão evidentemente moderna, mas em cada fase, contemporânea das peças e de autores, com a exceção cronológica mas não de espetáculo, do “Acto da Primavera” (1963) representação popular a partir de um texto clássico de Francisco Vaz  Guimarães (século XVI).

Mas com essa exceção – e mesmo assim, o espetáculo era na época pelo menos, realizado anualmente - , pode-se dizer que a filmografia de Manoel de Oliveira, no que se refere ao teatro, concentra-se em autores dos nossos tempos... Ora vejamos (as datas referem a produção dos filmes):

1972  -  “O Passado e o Presente” de Vicente Sanches; 1974 – “Benilde ou a Virgem Mãea” de José Régio; 1981 – “Visita ou Memórias e Confissões” – diálogos de Agustina Bessa Luis e Manoel de Oliveira; 1981 – “Le Soulier de Satan” de Paul Claudel; 1986 – “O Meu Caso” de José Régio; 1987 - “Os Canibais” ópera de Alvaro Carvalhal sobre libreto de João Paes;  1994 -“A Caixa”  de Prista Monteiro; 1996- “Party” com diálogos de Agustina Bessa Luis; 1998 – “Inquietude” de Prista Monteiro; 2012- “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão.

É por vezes uma cinematografia difícil? Será: mas retomo aqui o comentário de um crítico francês, Jacques Parsi, no livro que dedicou a Manoel de Oliveira (“Manoel de Oliveira – Cineaste Portugais” ed. Centre Culturel Calouste Gulbenkian 2002 pag. 1612):

“Esta forma de escrever o cinema destabiliza alguns espetadores, a ausência do espetacular afasta muitos outros. A dificuldade decorre, no caso, de que é necessário limpar o  olhar, desembaraça-lo  dos seus reflexos condicionados. Só por aí se pode falar de dificuldade para abordar o cinema de Manoel de Oliveira. Ora paradoxalmente, as pessoas ficam muitas vezes nesta abordagem superficial, sem ver que o que é obscuro, complexo, por vezes insondável, é a vida que é mostrada”.

E no final:

“Os filmes de Oliveira só são simples ou claros na sua linguagem. Ora a simplicidade não é incompatível com o maior refinamento, é o que se chama pureza.“

No blogue acima citado, Guilherme Oliveira Martins refere-se especificamente à “relação muito curiosa e difícil com Agustina bessa-Luis. Dir-se-ia que duas grandes personalidades faziam coexistir a complementaridade e a tensão. Admiravam-se sem renunciar ao sentido crítico”.

Na morte de Manoel de Oliveira, aos 106 anos, fica esta homenagem e esta memória.


DUARTE IVO CRUZ   

MANOEL DE OLIVEIRA - CARTEIRA IMAGINOSA…

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Manoel de Oliveira era uma personalidade fascinante. Era o Mestre. Conheci-o pessoalmente e sou testemunha da sua energia até praticamente ao fim. Hoje ouvimos um coro de elogios, mas nem sempre foi assim durante a vida – o que demonstra o seu carácter absolutamente singular e inovador.
Os testemunhos sobre a apresentação de «Douro, Faina Fluvial» foram de perplexidade ou de admiração (de poucos). A controvérsia foi evidente. Agora, não temos dúvidas sobre o extraordinário valor artístico e documental dessa obra-prima do cinema mundial. Veja-se também o «Ato da Primavera», onde a originalidade se traduz na fidelidade à vivência popular do fenómeno religioso e antropológico.
João Bénard da Costa tinha uma grande admiração pelo Mestre e tantas vezes ensinou-nos a ver com olhos de ver, na prosa luminosa que nos legou, o significado da sua obra e a extraordinária ligação à literatura. Além do mais, João foi o inconfundível Duarte de Almeida na obra de Oliveira.
Não esqueço ainda a relação muito curiosa e difícil com Agustina Bessa-Luís. Dir-se-ia que duas grandes personalidades faziam coexistir a complementaridade e a tensão. Admiraram-se sem renunciar ao sentido crítico.
Quando se estudar melhor a cultura portuguesa do século XX verificar-se-á como essa ligação representa um retrato essencial da complexidade da atividade criadora. Em mais de uma circunstância, disse que o meu filme preferido é «Palavra e Utopia», em que Luís Miguel Cintra e Lima Duarte dão vida ao «Imperador da Língua Portuguesa». Tive, aliás, o gosto especial de ter visto no Teatro Gil Vicente de Coimbra essa filme fantástico, com o Mestre e com Lima Duarte, a quem disse pessoalmente o que aqui escrevo. Aí está todo o grande cineasta – assumindo a fidelidade suprema relativamente à Palavra, através de um dos maiores génios da língua portuguesa.
Manoel de Oliveira, deixa-nos aos 106 anos, mas a sua filmografia diz tudo. Não esquecemos a projeção internacional da sua obra e o sentido de entrega total à sua arte. Por isso, ainda tinha muitos projetos na sua carteira imaginosa


Guilherme d'Oliveira Martins