Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“Memórias Minhas” de Manuel Alegre (D. Quixote, 2024) constitui uma obra oportuníssima para celebrar os 50 Anos de Abril. Eis uma parte da recensão crítica desse importante testemunho.
DESTRUIR A SOMBRA DO SEBASTIANISMO. … A experiência angolana da guerra e a prisão da PIDE em S. Paulo contribuíram para uma nítida tomada de consciência. Era preciso destruir a sombra de D. Sebastião. Apesar do «orgulho na aventura marítima de Portugal, achava que era tempo de fazer ao contrário a viagem de caminho marítimo para a Índia. Houve um tempo de partir, agora era tempo de voltar e ‘achar Portugal em Portugal’». Havia que derrubar a ditadura e que mobilizar as consciências. Chegado a Coimbra, a PIDE aperta o cerco. Um dia, na Praça da República, a caminho do Mandarim, com Adriano Correia de Oliveira, nota a sombra da polícia política e num ápice nasce o tema da “Trova do Vento que Passa”, que se tornará uma bandeira da liberdade: “Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”. Um canto triste contra a tristeza. Mas o cerco da polícia e da ditadura chegaram ao ponto do perigo máximo. Avisam-no que se prepara uma nova prisão. Por isso, tem de partir, o que faz com o apoio de João José Cochofel, tendo como destino imediato a Casa de Vilar, graças à generosa solidariedade de Rui Feijó sob a invocação da memória do poeta Álvaro Feijó. “Casa de onde mais não sairei. Mesmo depois de partir, sobretudo depois de partir”. Daí sairá do País clandestinamente e é emocionante a descrição desse momento, correndo todos os riscos. Depois, Paris e Argel, a “Voz de Portugal” e dez anos a preparar dia-a-dia as emissões, com entusiasmo e sacrifício, a Emissora da Frente Patriótica de Libertação Nacional, contra o fascismo e contra a guerra colonial, por um Portugal livre e democrático. O hino nacional e o coro de Fernando Lopes Graça: “Vozes ao alto, vozes ao alto / unidos como dedos da mão…”. É histórica a entrevista de Amílcar Cabral, onde este afirma: “Não é mentira, não, os portugueses deram de facto novos mundos ao Mundo e aproximaram povos e continentes”. Afinal, o fascismo e o colonialismo é que estavam a desunir o que a História tinha aproximado. São tempos intensos em que se sente o pulsar de uma oposição plena de dúvidas e incertezas. Em Argel, relê a Odisseia e sente-se dentro da errância de Ulisses, no relato de uma viagem de retorno.
Trata-se de um testemunho essencial. “Não se pode dizer que estou a escrever uma autobiografia, muito menos História. Vou atrás da memória, a caneta flui pelo espaço e pelo tempo ao sabor dela ou dos seus caprichos. Posso dar-me ao luxo de ainda estar na Casa de Vilar e, de repente, mesmo sem atravessar a fronteira, já ter passado dez anos de exílio e, por exemplo, na manhã de 11 de março de 1975, receber um telefonema do Mário Cardia: - A Força Aérea está a bombardear o Ralis”… As memórias sucedem-se, vivas, intensas, afinal a democracia constrói-se com muita vontade e persistência. E Manuel Alegre traz-nos recordações que emocionam. “A revolução democrática venceu. Nas urnas, nas ruas e na Assembleia Constituinte onde, apesar de todos os confrontos, os deputados foram fazendo o seu trabalho, redigindo uma Constituição que não poderia ser alheia às transformações políticas, sociais, económicas e culturais ocorridas desde o 25 de abril de 1974. Várias e até contraditórias conceções de revolução. Mas o essencial está consubstanciado na Constituição”… Porque a cultura é o sal da democracia, como disse Mário Soares: “A literatura andou sempre comigo. Ou melhor, a poesia. Em folhas de papel quadriculado onde, de vez em quando, rabiscava uns versos. E em certos livros, Camões, sempre.” E lembra sentidamente Sophia de Mello Breyner: “Estar com Sophia foi sempre uma espécie de celebração. À volta de uma chávena de chá… (…) Ela falava-me das praias, da Granja, de Lagos, de Sagres. E dos seus amigos de adolescência. Falava-me deles como se eu próprio os conhecesse. Às tantas, mesmo sem os ter visto, já éramos íntimos”.
DETERMINAÇÃO E CORAGEM “Memórias Minhas” são tecidas com alma, determinação, coragem, sentimento e vontade. “Procuro decifrar a imprevisibilidade de um Mundo virado do avesso. Seria preciso uma nova vidência poética. Mas as musas gregas estão feridas. O anjo de Rilke está fechado em Duíno. E o duende de Lorca não aparece nos rebordos dos lábios que sangram. A ditadura do Mundo mata, disse-me Natália Correia, ao telefone, três dias antes de morrer”. São tocantes as últimas recordações de Mário Soares: “Conversávamos como se nada se tivesse passado entre nós. E nunca trocámos uma palavra sobre o que nos tinha separado. Reencontrávamos a velha cumplicidade. Para além dos familiares, fui um dos poucos amigos que ele sempre reconheceu”. E nestas palavras está o sentido da liberdade de espírito e da coragem, que nunca esquecemos em Manuel Alegre.
Em boa hora acaba de ser publicada Toda a Prosa, de Manuel Alegre (D. Quixote, 2023), com prefácio de Paula Morão. Em complemento natural de uma obra poética bem conhecida, o presente volume apresenta uma evidente coerência com a produção lírica e épica de um escritor que se insere, como poucos, na linhagem da língua portuguesa, provinda da tradição dos trovadores. Não podemos esquecer, aliás, que as raízes galaico-portuguesas levaram D. Dinis a adotar de modo pioneiro o idioma vulgar como língua dos tabeliães em lugar do latim e logo como língua nacional, em simultâneo com a definição fronteira e com a afirmação da nação ancorada no Estado. Se há autor que nos conduz à compreensão de uma ligação íntima à mais antiga cultura dos portugueses, desde que aberta à renovação e à diversidade, ele é Manuel Alegre, e a prosa ora apresentada ou recordada demonstra-o de modo inequívoco. Pode mesmo dizer-se que é lendo em paralelo a poesia da Praça da Canção, de O Canto e as Armas ou de Um Barco para Ítaca com a obra em prosa de Manuel Alegre, como Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião ou Alma que podemos compreender, não apenas a personalidade e a força de um autor, mas sobretudo um momento da história portuguesa em que só a coexistência de fatores diversos e complementares, mais do que contraditórios, permite entendermos, apesar de mil defeitos, quem somos, donde vimos e para onde poderemos ir. Além dos trovadores, encontramos facilmente os ecos inconfundíveis de Camões, mas também o romanceiro transmitido por Garrett, a Nau Catrineta e a Barca Bela. Razão tem Paula Morão ao ligar o forte impulso narrativo aos poemas devedores de epopeias antigas e modernas. E assim a ficção ocupa um lugar de muito relevo com a poesia.
Alma é Portugal. E só podemos entender este povo de onde “a terra se acaba e o mar começa”, neste cadinho de mil diferenças, ao ler: “Para me perceber a mim mesmo, não posso esquecer que nasci e fui criado entre a tensão da energia e o desprendimento da contemplação. (…) Essa fronteira passará sempre por dentro de mim, é uma guerra civil que no mais fundo de mim mesmo nunca se resolverá”. E ouvimos Sá de Miranda: “Comigo me desavim, / Sou posto todo em perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim…”. E esse confronto íntimo encontra-se na presença do pai e da avó do protagonista: “Olhava ora o meu pai ora a minha avó, ambos muito antigos, com uma forma de coragem que nunca mais encontrei (…). Eles eram invencíveis, havia dentro deles algo que não se vergaria nunca”. E quando vamos lendo Jornada de África, A Terceira Rosa, Rafael ou Tudo é e não é descobrimos essa marca de carácter tão evidente na poesia como na ficção. Não disse o poeta sobre Portugal: “O teu destino é nunca haver chegada / O teu destino é outra índia e outro mar / E a nova nau lusíada apontada /A um país que só há no verbo achar” (Chegar Aqui)? A História faz-se de indeléveis dúvidas e contradições. Quando uma tia contou a triste história de D. Sebastião e do seu desaparecimento em Alcácer Quibir, nunca foi capaz de dizer que o rei morreu na batalha, falava sempre dele como um rei desaparecido. “As nações todas são misteriosas”, e em Jornada de África, Sebastião vai à mala buscar uma credencial que está em O Desejado, um exemplar autografado por António Sérgio a que falta a página 149… E em Rafael, é lembrado o herói de Aljubarrota, no levantar ao raiar da aurora – “o nosso nome é esse, todos nós nos chamamos Nuno Madruga, somos poucos, mas somos um quadrado”. E assim encontramos, como diz Paula Morão, heróis junto de homens comuns, alicerçados em mitos e na ficção, a preparar a Liberdade. “Mesmo na noite mais triste / em tempos de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”.
«Os Sonetos – Uma Antologia» de Manuel Alegre (D. Quixote, 2019) é uma reunião de poemas que permite uma visão global sobre a obra do poeta.
A PROCURA DAS RAÍZES Se há poeta português para quem as raízes culturais são fundamentais, é Manuel Alegre. “Haverá sempre em mim o rio Águeda / Meu ritmo é seu fluir e seu buscar / Quem sabe se outro longe ou se Pasárgada / Haverá sempre um rio para o mar”. As raízes não podem ser esquecidas, e há um amor especial que o poeta nunca esquece, que é o da língua-pátria e da pátria-língua. Sempre um patriotismo prospetivo, como quis António Sérgio, sempre as lições no presente de uma longa história. E Águeda é um símbolo bom, a lembrar a “soberania do povo” e um especial culto ancestral da liberdade (e não esqueço outro amigo dessas paragens, Manuel José Homem de Melo, cuja memória está bem presente). Quando sobre Alfarrobeira e o Infante D. Pedro se lê: “Com D. Pedro outra vez saber ser contra. / Na hora amarga e vil e traiçoeira / ousar ainda a honra e a nobreza / sair em armas e lavar a afronta / com D. Pedro de novo em Alfarrobeira…” – não é um episódio passado que se rememora, é um apelo presente e ético que se proclama. Do mesmo modo, em “amor de fixação”, de “Coisa Amar” (1976), a lembrança de Duarte Pacheco Pereira é a da experiência madre das cousas, que se projeta nos dias de hoje: “naus a voltar no meu gostar de ti; / levai-me ao velho pinho do meu lar / eu vi o longe e nele me perdi”. No fundo, importa tirar lições para o futuro… “Vai-se a vida e cantar é um destino…”
FORMA LÍRICA POR EXCELÊNCIA Maria Helena da Rocha Pereira escreveu sobre “Sonetos do Obscuro Quê” (1993): “há muito que ele espreitava entre os poemas de Manuel Alegre: a forma lírica por excelência, o soneto”. A afirmação tem de ser lembrada, no momento em que é publicada a Antologia de “Sonetos” (D. Quixote, 2019), que nos permite recordar alguns dos mais belos momentos da criação do poeta. “Desata-se-me o verso no primeiro / no segundo de vento vai vestido / no terceiro de mar e marinheiro / no quarto está perdido está perdido”… A grande professora, que tanta saudade nos deixa, lembrava a sombra de Dante “entre outros nomes tutelares da poesia ocidental” e o “stil nuovo”, que inspirou o nosso Sá de Miranda, fez questão de lembrar a ligação entre amor e reflexão – e uma melodia própria, a exigir “um domínio da forma e dos sons que poucos possuem; e bem assim a concentração num conceito final, que surge como uma conclusão natural, ou então como uma farpa aguda, a apontar noutra direção. Ora, todas estas capacidades estavam presentes há muito na arte deste poeta”. Nada melhor do que estas palavras para elogiar o poeta, na sua originalidade, do domínio da palavra, no ritmo e no estilo, mas sobretudo na expressão originalíssima, que caracteriza um poeta de exceção. O grande poeta é quem é capaz de ligar o rigor à originalidade, tornando-se inconfundível. “De novo a via clara a via obscura / ligar a doce rima e a rima dura / da Provença e Toscana a luz e a rosa”.
LEMBRAR A POESIA O poeta Manuel Alegre vai ser a figura homenageada este ano no festival literário “Escritaria”, que vai decorrer de 21 a 27 de outubro, em Penafiel, como sabemos, o festival “é o único que se dedica a homenagear um escritor vivo de língua portuguesa”, com a cidade a transformar-se, “por uns dias, na sua própria cidade”. É uma justa homenagem a um dos autores mais importantes das culturas de língua portuguesa. De facto, Manuel Alegre tem, ao longo de uma obra, muito vasta e rica, seguido, com grande coerência a linhagem muito antiga da nossa língua, que tem as suas bases na poesia trovadoresca. Desde “Praça da Canção” (1965) e “O Canto e as Armas” (1967) que encontramos na escrita de Manuel Alegre ressonâncias de aventura e de liberdade, que o ligam de modo indelével a uma antiga poesia de resistência, que nos conduz aos maiores nomes das letras portuguesas, que usaram essencialmente a matéria-prima da liberdade. Por isso citou Afonso Lopes Vieira quando recebeu o Prémio Camões (2017): “Diria que não seriam dignos do épico os poetas portugueses que não passassem pelas prisões. Eu sinto-me herdeiro dessa tradição. Acredito na força mágica e libertadora da palavra poética”. E em “Resistência”, lembra: “Desinfeção: metáfora da Europa. / Resistir sem piedade e sem tardança. / ‘Terrífico é o momento que nos toca’. / Com René Char as sílabas de França”… Lembramos ainda o que omautor disse quando recebeu o Prémio D. Dinis, na Casa de Mateus (2008) – exprimindo o grande contentamento por receber uma distinção com o nome do nosso Rei-poeta: «As naus são sempre as doze naus da imaginação (o prémio referia-se ao livro “Doze Naus”). As de Ulisses. Mas também a da poesia portuguesa. Recordo Miguel Torga: "Todos os caminhos transversais de Portugal vão ter ao mar. Verificá-lo é avivar na consciência a nossa razão de ser. Nascemos para embarcar. Ou de imediato ou na lembrança ou na imaginação." E já o poeta Afonso Duarte (1884-1958) tinha dito: "Há só mar no meu país". É verdade que somos hoje um "país pequeno e pobre", com "muito passado e muita história e cada vez menos memória, país que por vezes já não sabe quem é quem, país de muito mar e pouca viagem". Mas somos também o país em que em português o vento vem do mar. País do Mar Absoluto. País em que, por vezes, "há um navio fantasma sem ninguém ao leme". País em que sobre o mar visível haverá sempre o invisível, o mar de dentro. E é nesse que todos nós continuaremos sempre a navegar». É significativa esta passagem, uma vez que estamos no cerne da identidade cultural, que Manuel Alegre tem cultivado, com abertura e independência. “Gramática de sal e maresia / na minha língua há um marulhar contínuo // Há nela o som do sul o tom da viagem. / O azul. O fogo-de-santelmo e a tromba / de água. E também sol. E também sombra”… Contra a ideia de identidade fechada e egoísta, contra um conceito burocrático de patriotismo ou de comunidade, o autor com agudo sentido crítico, rebela-se contra sermos um país com “cada vez menos memória”. Apenas se cultiva e aprofunda a memória, cuidando do sentido crítico, da independência, do apego à liberdade. E é isso que tem caracterizado a voz inquieta e sempre atenta de Manuel Alegre – seguindo os passos de Camões, Bernardim, Sá de Miranda, Bocage, Garrett e Herculano, Antero de Quental, Cesário, Camilo Pessanha, Pascoaes, Pessoa e Torga de Sophia. Como esquecer: “E o seu poema é quase como casa / e a casa é o outro espaço onde Sophia / reparte à sua mesa o pão e os versos”? O conjunto dos sonetos dá voz ao poeta que não esquece que a cultura e a língua portuguesas resultam de uma rica encruzilhada de influências, que se enriquecem no diálogo e na recetividade de novos elementos e fatores. Daí a necessidade de atenção crítica e de capacidade para responder aos desafios do inesperado e do incerto: “Eu sou o renitente o inconformado / Por isso me deitaram mau-olhado / e por isso persisto e canto e falo” – assim diz o décimo soneto do português errante; depois de ter afirmado: “Eu sou o solitário o estrangeirado / o que tem uma pátria que já foi / e a que não é. Eu sou o exilado / de um país que não há e que me dói”…
Guilherme d'Oliveira Martins
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