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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  
De 15 a 21 de abril de 2024


“Memórias Minhas” de Manuel Alegre (D. Quixote, 2024) constitui uma obra oportuníssima para celebrar os 50 Anos de Abril. Eis uma parte da recensão crítica desse importante testemunho.

 


DESTRUIR A SOMBRA DO SEBASTIANISMO.
A experiência angolana da guerra e a prisão da PIDE em S. Paulo contribuíram para uma nítida tomada de consciência. Era preciso destruir a sombra de D. Sebastião. Apesar do «orgulho na aventura marítima de Portugal, achava que era tempo de fazer ao contrário a viagem de caminho marítimo para a Índia. Houve um tempo de partir, agora era tempo de voltar e ‘achar Portugal em Portugal’». Havia que derrubar a ditadura e que mobilizar as consciências. Chegado a Coimbra, a PIDE aperta o cerco. Um dia, na Praça da República, a caminho do Mandarim, com Adriano Correia de Oliveira, nota a sombra da polícia política e num ápice nasce o tema da “Trova do Vento que Passa”, que se tornará uma bandeira da liberdade: “Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”. Um canto triste contra a tristeza. Mas o cerco da polícia e da ditadura chegaram ao ponto do perigo máximo. Avisam-no que se prepara uma nova prisão. Por isso, tem de partir, o que faz com o apoio de João José Cochofel, tendo como destino imediato a Casa de Vilar, graças à generosa solidariedade de Rui Feijó sob a invocação da memória do poeta Álvaro Feijó. “Casa de onde mais não sairei. Mesmo depois de partir, sobretudo depois de partir”. Daí sairá do País clandestinamente e é emocionante a descrição desse momento, correndo todos os riscos. Depois, Paris e Argel, a “Voz de Portugal” e dez anos a preparar dia-a-dia as emissões, com entusiasmo e sacrifício, a Emissora da Frente Patriótica de Libertação Nacional, contra o fascismo e contra a guerra colonial, por um Portugal livre e democrático. O hino nacional e o coro de Fernando Lopes Graça: “Vozes ao alto, vozes ao alto / unidos como dedos da mão…”. É histórica a entrevista de Amílcar Cabral, onde este afirma: “Não é mentira, não, os portugueses deram de facto novos mundos ao Mundo e aproximaram povos e continentes”. Afinal, o fascismo e o colonialismo é que estavam a desunir o que a História tinha aproximado. São tempos intensos em que se sente o pulsar de uma oposição plena de dúvidas e incertezas. Em Argel, relê a Odisseia e sente-se dentro da errância de Ulisses, no relato de uma viagem de retorno.


Trata-se de um testemunho essencial. “Não se pode dizer que estou a escrever uma autobiografia, muito menos História. Vou atrás da memória, a caneta flui pelo espaço e pelo tempo ao sabor dela ou dos seus caprichos. Posso dar-me ao luxo de ainda estar na Casa de Vilar e, de repente, mesmo sem atravessar a fronteira, já ter passado dez anos de exílio e, por exemplo, na manhã de 11 de março de 1975, receber um telefonema do Mário Cardia: - A Força Aérea está a bombardear o Ralis”… As memórias sucedem-se, vivas, intensas, afinal a democracia constrói-se com muita vontade e persistência. E Manuel Alegre traz-nos recordações que emocionam. “A revolução democrática venceu. Nas urnas, nas ruas e na Assembleia Constituinte onde, apesar de todos os confrontos, os deputados foram fazendo o seu trabalho, redigindo uma Constituição que não poderia ser alheia às transformações políticas, sociais, económicas e culturais ocorridas desde o 25 de abril de 1974. Várias e até contraditórias conceções de revolução. Mas o essencial está consubstanciado na Constituição”… Porque a cultura é o sal da democracia, como disse Mário Soares: “A literatura andou sempre comigo. Ou melhor, a poesia. Em folhas de papel quadriculado onde, de vez em quando, rabiscava uns versos. E em certos livros, Camões, sempre.” E lembra sentidamente Sophia de Mello Breyner: “Estar com Sophia foi sempre uma espécie de celebração. À volta de uma chávena de chá… (…) Ela falava-me das praias, da Granja, de Lagos, de Sagres. E dos seus amigos de adolescência. Falava-me deles como se eu próprio os conhecesse. Às tantas, mesmo sem os ter visto, já éramos íntimos”.


DETERMINAÇÃO E CORAGEM
“Memórias Minhas” são tecidas com alma, determinação, coragem, sentimento e vontade. “Procuro decifrar a imprevisibilidade de um Mundo virado do avesso. Seria preciso uma nova vidência poética. Mas as musas gregas estão feridas. O anjo de Rilke está fechado em Duíno. E o duende de Lorca não aparece nos rebordos dos lábios que sangram. A ditadura do Mundo mata, disse-me Natália Correia, ao telefone, três dias antes de morrer”. São tocantes as últimas recordações de Mário Soares: “Conversávamos como se nada se tivesse passado entre nós. E nunca trocámos uma palavra sobre o que nos tinha separado. Reencontrávamos a velha cumplicidade. Para além dos familiares, fui um dos poucos amigos que ele sempre reconheceu”. E nestas palavras está o sentido da liberdade de espírito e da coragem, que nunca esquecemos em Manuel Alegre.   


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

“…NUNCA HAVER CHEGADA” …

  


Em boa hora acaba de ser publicada Toda a Prosa, de Manuel Alegre (D. Quixote, 2023), com prefácio de Paula Morão. Em complemento natural de uma obra poética bem conhecida, o presente volume apresenta uma evidente coerência com a produção lírica e épica de um escritor que se insere, como poucos, na linhagem da língua portuguesa, provinda da tradição dos trovadores. Não podemos esquecer, aliás, que as raízes galaico-portuguesas levaram D. Dinis a adotar de modo pioneiro o idioma vulgar como língua dos tabeliães em lugar do latim e logo como língua nacional, em simultâneo com a definição fronteira e com a afirmação da nação ancorada no Estado. Se há autor que nos conduz à compreensão de uma ligação íntima à mais antiga cultura dos portugueses, desde que aberta à renovação e à diversidade, ele é Manuel Alegre, e a prosa ora apresentada ou recordada demonstra-o de modo inequívoco. Pode mesmo dizer-se que é lendo em paralelo a poesia da Praça da Canção, de O Canto e as Armas ou de Um Barco para Ítaca com a obra em prosa de Manuel Alegre, como Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião ou Alma  que podemos compreender, não apenas a personalidade e a força de um autor, mas sobretudo um momento da história portuguesa em que só a coexistência de fatores diversos e complementares, mais do que contraditórios, permite entendermos, apesar de mil defeitos, quem somos, donde vimos e para onde poderemos ir. Além dos trovadores, encontramos facilmente os ecos inconfundíveis de Camões, mas também o romanceiro transmitido por Garrett, a Nau Catrineta e a Barca Bela. Razão tem Paula Morão ao ligar o forte impulso narrativo aos poemas devedores de epopeias antigas e modernas. E assim a ficção ocupa um lugar de muito relevo com a poesia.


Alma é Portugal. E só podemos entender este povo de onde “a terra se acaba e o mar começa”, neste cadinho de mil diferenças, ao ler: “Para me perceber a mim mesmo, não posso esquecer que nasci e fui criado entre a tensão da energia e o desprendimento da contemplação. (…) Essa fronteira passará sempre por dentro de mim, é uma guerra civil que no mais fundo de mim mesmo nunca se resolverá”. E ouvimos Sá de Miranda: “Comigo me desavim, / Sou posto todo em perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim…”. E esse confronto íntimo encontra-se na presença do pai e da avó do protagonista: “Olhava ora o meu pai ora a minha avó, ambos muito antigos, com uma forma de coragem que nunca mais encontrei (…). Eles eram invencíveis, havia dentro deles algo que não se vergaria nunca”. E quando vamos lendo Jornada de África, A Terceira Rosa, Rafael ou Tudo é e não é descobrimos essa marca de carácter tão evidente na poesia como na ficção. Não disse o poeta sobre Portugal: “O teu destino é nunca haver chegada / O teu destino é outra índia e outro mar / E a nova nau lusíada apontada /A um país que só há no verbo achar” (Chegar Aqui)? A História faz-se de indeléveis dúvidas e contradições. Quando uma tia contou a triste história de D. Sebastião e do seu desaparecimento em Alcácer Quibir, nunca foi capaz de dizer que o rei morreu na batalha, falava sempre dele como um rei desaparecido. “As nações todas são misteriosas”, e em Jornada de África, Sebastião vai à mala buscar uma credencial que está em O Desejado, um exemplar autografado por António Sérgio a que falta a página 149… E em Rafael, é lembrado o herói de Aljubarrota, no levantar ao raiar da aurora – “o nosso nome é esse, todos nós nos chamamos Nuno Madruga, somos poucos, mas somos um quadrado”. E assim encontramos, como diz Paula Morão, heróis junto de homens comuns, alicerçados em mitos e na ficção, a preparar a Liberdade. “Mesmo na noite mais triste / em tempos de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”.


GOM 

A VIDA DOS LIVROS

De 7 a 13 de outubro de 2019

 

«Os Sonetos – Uma Antologia» de Manuel Alegre (D. Quixote, 2019) é uma reunião de poemas que permite uma visão global sobre a obra do poeta.

 

 

A PROCURA DAS RAÍZES
Se há poeta português para quem as raízes culturais são fundamentais, é Manuel Alegre. “Haverá sempre em mim o rio Águeda / Meu ritmo é seu fluir e seu buscar / Quem sabe se outro longe ou se Pasárgada / Haverá sempre um rio para o mar”. As raízes não podem ser esquecidas, e há um amor especial que o poeta nunca esquece, que é o da língua-pátria e da pátria-língua. Sempre um patriotismo prospetivo, como quis António Sérgio, sempre as lições no presente de uma longa história. E Águeda é um símbolo bom, a lembrar a “soberania do povo” e um especial culto ancestral da liberdade (e não esqueço outro amigo dessas paragens, Manuel José Homem de Melo, cuja memória está bem presente). Quando sobre Alfarrobeira e o Infante D. Pedro se lê: “Com D. Pedro outra vez saber ser contra. / Na hora amarga e vil e traiçoeira / ousar ainda a honra e a nobreza / sair em armas e lavar a afronta / com D. Pedro de novo em Alfarrobeira…” – não é um episódio passado que se rememora, é um apelo presente e ético que se proclama. Do mesmo modo, em “amor de fixação”, de “Coisa Amar” (1976), a lembrança de Duarte Pacheco Pereira é a da experiência madre das cousas, que se projeta nos dias de hoje: “naus a voltar no meu gostar de ti; / levai-me ao velho pinho do meu lar / eu vi o longe e nele me perdi”. No fundo, importa tirar lições para o futuro… “Vai-se a vida e cantar é um destino…”  

 

FORMA LÍRICA POR EXCELÊNCIA
Maria Helena da Rocha Pereira escreveu sobre “Sonetos do Obscuro Quê” (1993): “há muito que ele espreitava entre os poemas de Manuel Alegre: a forma lírica por excelência, o soneto”. A afirmação tem de ser lembrada, no momento em que é publicada a Antologia de “Sonetos” (D. Quixote, 2019), que nos permite recordar alguns dos mais belos momentos da criação do poeta. “Desata-se-me o verso no primeiro / no segundo de vento vai vestido / no terceiro de mar e marinheiro / no quarto está perdido está perdido”… A grande professora, que tanta saudade nos deixa, lembrava a sombra de Dante “entre outros nomes tutelares da poesia ocidental” e o “stil nuovo”, que inspirou o nosso Sá de Miranda, fez questão de lembrar a ligação entre amor e reflexão – e uma melodia própria, a exigir “um domínio da forma e dos sons que poucos possuem; e bem assim a concentração num conceito final, que surge como uma conclusão natural, ou então como uma farpa aguda, a apontar noutra direção. Ora, todas estas capacidades estavam presentes há muito na arte deste poeta”. Nada melhor do que estas palavras para elogiar o poeta, na sua originalidade, do domínio da palavra, no ritmo e no estilo, mas sobretudo na expressão originalíssima, que caracteriza um poeta de exceção. O grande poeta é quem é capaz de ligar o rigor à originalidade, tornando-se inconfundível. “De novo a via clara a via obscura / ligar a doce rima e a rima dura / da Provença e Toscana a luz e a rosa”.

 

LEMBRAR A POESIA
O poeta Manuel Alegre vai ser a figura homenageada este ano no festival literário “Escritaria”, que vai decorrer de 21 a 27 de outubro, em Penafiel, como sabemos, o festival “é o único que se dedica a homenagear um escritor vivo de língua portuguesa”, com a cidade a transformar-se, “por uns dias, na sua própria cidade”. É uma justa homenagem a um dos autores mais importantes das culturas de língua portuguesa. De facto, Manuel Alegre tem, ao longo de uma obra, muito vasta e rica, seguido, com grande coerência a linhagem muito antiga da nossa língua, que tem as suas bases na poesia trovadoresca. Desde “Praça da Canção” (1965) e “O Canto e as Armas” (1967) que encontramos na escrita de Manuel Alegre ressonâncias de aventura e de liberdade, que o ligam de modo indelével a uma antiga poesia de resistência, que nos conduz aos maiores nomes das letras portuguesas, que usaram essencialmente a matéria-prima da liberdade. Por isso citou Afonso Lopes Vieira quando recebeu o Prémio Camões (2017): “Diria que não seriam dignos do épico os poetas portugueses que não passassem pelas prisões. Eu sinto-me herdeiro dessa tradição. Acredito na força mágica e libertadora da palavra poética”. E em “Resistência”, lembra: “Desinfeção: metáfora da Europa. / Resistir sem piedade e sem tardança. / ‘Terrífico é o momento que nos toca’. / Com René Char as sílabas de França”… Lembramos ainda o que omautor disse quando recebeu o Prémio D. Dinis, na Casa de Mateus (2008) – exprimindo o grande contentamento por receber uma distinção com o nome do nosso Rei-poeta: «As naus são sempre as doze naus da imaginação (o prémio referia-se ao livro “Doze Naus”). As de Ulisses. Mas também a da poesia portuguesa. Recordo Miguel Torga: "Todos os caminhos transversais de Portugal vão ter ao mar. Verificá-lo é avivar na consciência a nossa razão de ser. Nascemos para embarcar. Ou de imediato ou na lembrança ou na imaginação." E já o poeta Afonso Duarte (1884-1958) tinha dito: "Há só mar no meu país". É verdade que somos hoje um "país pequeno e pobre", com "muito passado e muita história e cada vez menos memória, país que por vezes já não sabe quem é quem, país de muito mar e pouca viagem". Mas somos também o país em que em português o vento vem do mar. País do Mar Absoluto. País em que, por vezes, "há um navio fantasma sem ninguém ao leme". País em que sobre o mar visível haverá sempre o invisível, o mar de dentro. E é nesse que todos nós continuaremos sempre a navegar». É significativa esta passagem, uma vez que estamos no cerne da identidade cultural, que Manuel Alegre tem cultivado, com abertura e independência. “Gramática de sal e maresia / na minha língua há um marulhar contínuo // Há nela o som do sul o tom da viagem. / O azul. O fogo-de-santelmo e a tromba / de água. E também sol. E também sombra”… Contra a ideia de identidade fechada e egoísta, contra um conceito burocrático de patriotismo ou de comunidade, o autor com agudo sentido crítico, rebela-se contra sermos um país com “cada vez menos memória”. Apenas se cultiva e aprofunda a memória, cuidando do sentido crítico, da independência, do apego à liberdade. E é isso que tem caracterizado a voz inquieta e sempre atenta de Manuel Alegre – seguindo os passos de Camões, Bernardim, Sá de Miranda, Bocage, Garrett e Herculano, Antero de Quental, Cesário, Camilo Pessanha, Pascoaes, Pessoa e Torga de Sophia. Como esquecer: “E o seu poema é quase como casa / e a casa é o outro espaço onde Sophia / reparte à sua mesa o pão e os versos”? O conjunto dos sonetos dá voz ao poeta que não esquece que a cultura e a língua portuguesas resultam de uma rica encruzilhada de influências, que se enriquecem no diálogo e na recetividade de novos elementos e fatores. Daí a necessidade de atenção crítica e de capacidade para responder aos desafios do inesperado e do incerto: “Eu sou o renitente o inconformado / Por isso me deitaram mau-olhado / e por isso persisto e canto e falo” – assim diz o décimo soneto do português errante; depois de ter afirmado: “Eu sou o solitário o estrangeirado / o que tem uma pátria que já foi / e a que não é. Eu sou o exilado / de um país que não há e que me dói”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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