Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Por onde quer que tenha começado, pelo corpo ou pelo sentido, ficou tudo por fazer, o feito e o não feito, como num sono agitado interrompido.
O teu nome tinha alturas inacessíveis e lugares mal iluminados onde se escondiam animais tímidos que só à noite se mostravam, e talvez devesse ter começado por aí.
Agora é tarde, do que podia ter sido restam ruínas; sobre elas construirei a minha Igreja como quem, ao fim do dia, volta a uma casa.
in Como se desenha uma casa, 2011
Ruins
Regardless of where I started, with the form or the meaning, all was left undone, the done and the not done, as in agitated, interrupted sleep.
Your name held unattainable heights and dimly lit places where timid animals hid not showing up till dark and perhaps I should have started there.
Now it’s too late, nothing but ruins of what might have been; I’ll build over them my Church like one returning to a house at the close of day.
Há em todas as coisas uma mais-que-coisa fitando-nos como se dissesse: “Sou eu”, algo que já lá não está ou se perdeu antes da coisa, e essa perda é que é a coisa. Em certas tardes altas, absolutas, quando o mundo por fim nos recebe como se também nós fôssemos mundo, a nossa própria ausência é uma coisa. Então acorda a casa e os livros imaginam-nos do tamanho da sua solidão. Também nós um dia tivemos um nome mas, se alguma vez o ouvimos, não o reconhecemos.
in Como se desenha uma casa, 2011
Things
In everything there’s a more-than-thing staring at us as if saying: ‘It’s me’, something that’s no longer there or was lost prior to the thing, and that loss is the thing. In certain high, absolute afternoons when at last the world welcomes us as if we too were the world, our own absence is a thing. Then the house awakens and the books imagine us on the scale of their own loneliness. Once we too had a name but, if ever we heard it, we did not recognise it.
Na passagem dos oitenta anos do nascimento de Manuel António Pina, recordamos a sua obra e o seu percurso intelectual de jornalista, escritor e poeta. “Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança” (Assírio e Alvim, 1999) é, sem dúvida, uma das mais sentidas expressões do seu talento.
UM ARTÍFICE DA ESCRITA A última vez que estive com Manuel António Pina foi em S. Pedro de Rio Seco, a terra-natal de Eduardo Lourenço. E lembro a presença discreta de quem admirava genuinamente o ensaísta, permanente interrogador do destino português. O certo é que à medida que cada um dos géneros que cultivou se desenvolveu, soube sempre, com fino humor e cuidada reflexão, tratar do destino como coisa muito séria, como matéria-prima do carácter e da dignidade humana. Nasceu em 1943, no Sabugal e faleceu, quando muito haveria a esperar dele, em outubro de 2012, no Porto. Era um apaixonado da vida, e quando abraçou o jornalismo, depois de uma incursão pelo Direito, fê-lo pelo amor aos acontecimentos, em toda a sua vitalidade. No Jornal de Notícias, onde foi editor, tornou-se um mestre reconhecido por todos, quando a banca de um jornal era a melhor tarimba e a melhor forma de ser artesão da palavra. É certo que, além da palavra escrita, usou os seus talentos de jornalista na rádio e na televisão, mas o seu campo de eleição era o da palavra escrita e das colunas dos periódicos numa cidade de tão grandes tradições. Depressa o jornalista tornou-se cultor de vários géneros literários desde as obras para a infância e juventude à poesia. E assim a sua obra desde cedo apresenta uma grande coesão estrutural e uma evidente criatividade. Amante das palavras e dos seus jogos, Manuel António Pina tornou a sua obra um constante "jogo de imaginação", como um caleidoscópio ou um labirinto que obriga a um trabalho permanente de descodificação, para a compreensão e a procura da solução dos mais intrincados enigmas literários.
Que melhor forma cultivar a literatura senão pela busca permanente das várias cambiantes dos caldos de literatura e das várias tonalidades da cultura? Nesse sentido, por uma aturada pesquisa de trovador, cada vez mais experimentado, tornou-se uma voz das mais originais da língua portuguesa, sobretudo a partir de Nenhum Sítio, com curiosos ecos de T. S. Elliot, Milton ou Jorge Luis Borges, numa tendência para a exploração das possibilidades reflexivas do poema, transportando, como disse Manuel Frias Martins, a palavra poética "quer para a investigação do processo de conhecimento quer para a investigação do processo de existência literária”.
Reveladora de uma perspetiva aberta dos valores éticos e de um apurado sentido pedagógico, a sua obra infantil e juvenil tem sido escolhida selecionada para manuais escolares, sendo também integrada em antologias portuguesas e espanholas. Por outro lado, os seus textos teatrais foram frequentemente representados em todo o país e a sua ficção tem constituído o suporte para séries televisivas, como Histórias com Pés e Cabeça, 1979/80.
Recordemos na poesia obras como o citado Nenhum Sítio (1984), além de O Caminho de Casa (1988), Um Sítio Onde pousar a Cabeça (1991), Algo Parecido Com Isto da Mesma Substância (1992); Farewell Happy Fields (1993), Cuidados Intensivos (1994), Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança (1999), Le Noir (2000), Os Livros (2003). Na novela, temos O Escuro (1997). Nos textos dramáticos - História com Reis, Rainhas, Bobos, Bombeiros e Galinhas (1984), A Guerra Do Tabuleiro de Xadrez (1985). Não devemos esquecer o ensaio - Anikki - Bóbó (1997), sobre a obra transposta para o cinema por Manoel de Oliveira. Na crónica, escreveu - O Anacronista (1994). E na literatura infantil - O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973), Gigões e Anantes (1978), O Têpluquê (1976), O Pássaro da Cabeça (1983), Os Dois Ladrões (1986), Os Piratas (1986), O Inventão (1987), O Tesouro (1993), O Meu Rio é de Ouro (1995), Uma Viagem Fantástica (1996), Morket (1999), Histórias que me contaste tu (1999), O Livro de Desmatemática e A Noite.
UM CULTOR DA IRONIA E DO NON SENSE Dotado do especial dom de cultivar o non sense, escreveu um dia «A poesia vai acabar, os poetas / vão ser colocados em lugares mais úteis. / Por exemplo, observadores de pássaros / (enquanto os pássaros não / acabarem). / Esta certeza tive-a hoje ao / entrar numa repartição pública. / Um senhor míope atendia devagar / ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum / poeta por este senhor?» E a pergunta / afligiu-me tanto por dentro e por / fora da cabeça que tive que voltar a ler / toda a poesia desde o princípio do mundo. / Uma pergunta numa cabeça. / — Como uma coroa de espinhos: / estão todos a ver onde o autor quer / estão todos a ver onde o autor quer chegar?»
Prémio Camões de 2011, Manuel António Pina foi justamente reconhecido por diversos prémios, como o da Casa da Imprensa, em 1978, por Aquele Que Quer Morrer; ou o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, em 1988, por O Inventão; além do Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude, em 1988, pelo conjunto da obra; o Prémio Nacional de Crónica Press Clube/Clube de Jornalistas, em 1993, pelas suas crónicas; o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, por Atropelamento e Fuga; e o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, ambos pela obra Os Livros (2005). Já a título póstumo foi ainda galardoado com o Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes, pelo livro «Como se Desenha uma Casa», e com o Prémio Especial da Crítica dos Prémios de Edição Ler/Booktailors 2012, pelo livro Todas as Palavras – Poesia Reunida.
E Eduardo Lourenço, em homenagem à versatilidade do autor e à sua ironia, lembrou-se o seu gato quando dele se foi despedir: «Em cada gato há outro gato / um pouco menos exato / e um pouco menos opaco // Um gato incoincidente / com o gato indecente / caminhando à sua frente ou a seu lado, / espírito alado / do que é terrestre no gato. // É o segundo gato / (…) / às vezes assomando / nos olhos do gato / como um passado móvel e // enclausurado. / O próprio gato / não sabe que anda por ali / algo que não cabe dentro nem fora de si»…
É então isto um livro, este, como dizer?, murmúrio, este rosto virado para dentro de alguma coisa escura que ainda não existe que, se uma mão subitamente inocente a toca, se abre desamparadamente como uma boca falando com a nossa voz? É isto um livro, esta espécie de coração (o nosso coração) dizendo “eu” entre nós e nós?
in Como se desenha uma casa, 2011
Books
Is this then a book, this, how shall I say? murmur, this face turned to the inside of something dark that doesn’t yet exist, that if touched by a suddenly innocent hand opens helplessly like a mouth speaking in our own voice? Is this a book, this kind of heart (our heart) saying ‘I’ between we and us?