Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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14. SUICÍDIO E PESSIMISMO NACIONAL EM MANUEL LARANJEIRA (III)
Suicídios célebres foram usados por Laranjeira para interpretar o país e o seu pessimismo. Em 1889, Soares dos Reis; em 1890, Camilo de Castelo Branco; em 1891, Antero de Quental.
Embora no primeiro artigo de Pessimismo Nacional os não tenha como um sintoma de condenação da raça portuguesa, em missiva a Miguel de Unamuno, de 28.10.1908, é mais apocalíptico, ao escrever:
“Amigo: Não imagina o prazer que senti ao saber que V., espírito superior, andava a compor um livro sobre as coisas da minha terra, desta minha tão desgraçada terra de Portugal. Desgraçada - é a palavra.
O pessimismo suicida de Antero de Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, mesmo do próprio Alexandre Herculano (que se suicidou pelo isolamento como os monges) não são flores negras e artificiais de decadentismo literário. Essas estranhas figuras de trágica desesperação irrompem espontaneamente, como árvores envenenadas, do seio da Terra Portuguesa. São nossas: são portuguesas: pagaram por todos: expiaram as desgraças de todos nós. Dir-se-ia que foi toda uma raça que se suicidou.
Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada - o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa”[1]
Laranjeira suicidar-se-ia em 22.02.1912.
Ter-se-á tratado duma consequência natural do rumo que a vida portuguesa tinha tomado e da inviabilidade de mudá-lo?
Centrando-nos em Laranjeira, o seu pensamento é duma leitura decadentista de apatia, desânimo, azedume, morbidez, falsa felicidade, tédio, angústia temporal e inquietação metafísica, mundo de engano e fuga em busca da “terra prometida”, deísmo e panteísmo, aceitação do suicídio como decisão pessoal e libertadora.
Nada era excêntrico, nem originariamente português, a Europa atravessava uma densa crise de pessimismo, o tédio dos tempos. E Laranjeira era conhecedor das ideias de Durkheim, Schopenhauer, Nordau, Hartman, Nietzche e Darwin.
Há aqui um pessimismo importado do exterior, adaptado internamente.
De alguns países tidos como mais vanguardistas e civilizados, onde também houve suicidas célebres: Gerard de Nerval (1855), Van Gogh (1890), Tchaikovski (1893), Angel Ganivet (1898), Otto Weininger (1903), Ludwig Boltzmann (1906), Paul Lafargue (1911), Kitty Melrose (1912), Peyo Yanorov (1914), Jack London (1916). E para quem queira reforçar com Mário de Sá Carneiro (1916), Florbela Espanca (1930), ou outro/s, um pretenso pendor suicida português, podem citar-se Kostas Kariotakis, Charlotte Mew (1928), Dora Carrington, George Eastman, Hart Crane, Santos-Dumont (1932), Alfonsina Storni (1938), Virginia Woolf (1941), Hemingway (1961).
Inventário a que acresce Rousseau, Tolstoi ou Kafka, que se “suicidaram” pela fuga ou solidão, por analogia com o “suicídio de isolamento” (ou exílio mental) de Herculano na sugestão de Laranjeira.
Se assim é, não visualizamos o intrínseco pendor para a tão fadada desgraça suicidária que carateriza a nossa raça, em que teve contributo decisivo Manuel Laranjeira, influenciando Unamuno com a publicação de Portugal Povo de Suicidas, não obstante na geração do escritor espanhol ter havido um suicídio célebre, o de Ganivet, em paralelo e por confronto com a do seu parceiro português, cuja vítima foi o próprio amigo de Espinho.
Excluída a hipótese do suicídio ser diretamente proporcional ao maior ou menor grau de desenvolvimento dos povos, porquê este desespero suicidário de Laranjeira?
Para Jorge de Sena, morreu ou suicidou-se de indigestão do seu “moi haissable”[2], realçando uma sua face: “Em Espinho, no Verão, o desporto que incansavelmente praticava, pela praia, casino, teatro e cinema, era o flirt. Entre Maio de 1908 e Março de 1909, Laranjeira deitou as suas vistas sobre 18 mulheres, antigas amantes, prostitutas, possíveis amantes. Teve então como companheira uma “criatura do povo”, com quem passeava em público para escandalizar as classes médias. Não queria que as suas relações amorosas fossem mais que a satisfação da “carne indisciplinada”. Mas eram. (…) - “e essa alegria assusta-me”.[3]
Teve dois filhos, à data ilegítimos, de relações com uma criada e uma “criatura dopovo”, ambos morrendo cedo. De figura desalinhada, abusava do café e tabaco, tinha insónias e passava noites a escrever, após boémias e tertúlias, frequentando os “ex-libris” da vila. Não surpreende ser, para muitos, de um egoísmo mortal, exercendo a Medicina sem grande vocação, não se libertando do estado de espírito melancólico via ocupação quotidiana. Outros apelidavam-no de “médico dos pobres”, salientando uma vertente solidária. A sua vida foi ainda um convívio perene com a ameaça da morte, pelo rol de doenças e perturbações de que sofria, de modo ocasional ou crónico: sífilis, tísica, ataxia, asmas e febres, doença hepática, neurose, histeria, neurastenia, psicastenia, crises nervosas, um sentidor maior que um pensador.
Amargurado pelos seus males físicos e fealdade, tendo a vida como uma comédia cruel e dolorosa numa visão naturalista aplicada à sua vivência, conjugada com a apologia da morte voluntária, defendida por Nietszche, que o influenciou, a sua opção final indicia um suicídio egoístico causado por uma insuficiência de integração na sociedade, em que a doença e o decadentismo grandemente importado foram determinantes, e nem sequer a tão ansiada República o salvou, suicidando-se quase 17 meses após a sua implantação, anulando-lhe qualquer perspetiva messiânica.
Conclui-se ser premente combater uma tendência para ir buscar sistematicamente o que nos apouca, criando estereótipos caricatos, perspetivas redutoras que tombam por confronto com o Outro, sabido que no tempo dos “Vencidos da Vida” nos visitou uma estrangeira, a princesa Rattazzi, que se cruzou com outros portugueses e escreveu que “Les portugais sont toujours gais”[4], decerto menos cultos, mas que tinham de si próprios uma imagem mais segura e alegre.
19.02.2019 Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Obra cit., pp. 5 e 6, incluindo duas cartas de Laranjeira a Miguel de Unamuno sobre o mesmo tema. [2] Em O Poeta é um Fingidor, Colecção Ensaios, Lisboa., Edições Ática, 1960, p. 126. [3] Rui Ramos, Portugal Naturalista, p. 319, VI Volume da História de Portugal, direção de José Mattoso, Círculo de Leitoras, 1994. [4] Maria Rattazzi, Portugal de Relance, Antígona, Lisboa, 1997.
13. O PESSIMISMO NACIONAL EM MANUEL LARANJEIRA (II)
Mas há um pessimismo associado a uma ideia de decadência, em que o analfabetismo e a ausência de educação eram para Laranjeira a base primordial do decadentismo nacional, perante o facto de quatro quintos da população portuguesa ser analfabeta, o desencontro e a incapacidade de comunicação de uma minoria civilizada e intelectualmente desenvolvida com a restante sociedade, não sabendo ou não podendo impor-se à maioria da nação arrastando-a consigo, origem dum desnivelamento causador duma crise sobreaguda de pessimismo.
Conclui: “O nosso pessimismo quer dizer apenas isto: que em Portugal existe um povo, em que há, devoradas por uma polilha parasitária e dirigente, uma maioria que sofre porque a não educam e uma minoria que sofre porque a maioria não é educada” (ib., pg.ª 41).
A deficiência educativa é tida como insuficiência determinante do processo coletivo de sobrevivência, o que se reflete na inferioridade social da maioria da população: “Incapaz de receber ideias e sentimentos, o cérebro da grande massa da sociedade portuguesa, em virtude daquele princípio lamarkeano que condena à morte o órgão que não trabalha, definha-se, atrofia-se, lenhifica-se, e a alma portuguesa estagna na tranquilidade morta das águas paludosas”, acrescentando: “(…) a única coisa que espanta (…) é a pasmosa resistência deste desgraçado povo” (ib., pp. 32, 33), propondo uma educação intensiva.
Se o povo existia, era preciso educá-lo. Corroborado pelo avanço educativo numa elite reduzida, que apesar de intelectualmente superior e credível, sobrepunha ao ideal de Pátria o de Humanidade, desajustando-se da realidade interna. Impunha-se refazer tudo, refundindo a sociedade de baixo a cima, abatendo velhos messias e transformando a monarquia numa sociedade livre e num novo regime, a República, a qual, uma vez vingada, não foi para Laranjeira a República desejada.
Se é verdade que a ignorância do povo português era, infelizmente, incontestável, decorridos 100 anos ainda se mantêm alguns diagnósticos, apesar de profundas transformações.
Mesmo atenuada, permanece a distância entre as elites e o povo, agravada por uma incapacidade daquelas em desencadearem movimentos sociais de relevo, o que implica uma análise deformada ou hipostasiada da realidade portuguesa, tendo havido sempre minorias defensoras do culto da manutenção do poder na base da ignorância, gerando a falta de democratização fracas elites e menos por onde escolher.
Por outro lado, existindo uma minoria dependente intimamente do Estado, nela se concentrando desproporcionalmente o poder e os recursos, ter-se-á gerado a convicção, para muitos, da inutilidade de participar nas decisões e assunção de responsabilidades.
Mesmo com a democratização e universalização do ensino, cada vez são menos os que sabem muito e de tudo, ao lado do analfabetismo funcional dos outros.
12. O PESSIMISMO NACIONAL EM MANUEL LARANJEIRA (I)
O pequeno livro tem um título chamativo - O Pessimismo Nacional (Frenesi, Lisboa, MMIX). O autor, Manuel Laranjeira, é um protótipo do pessimismo instintivo, a que não é alheio o seu suicídio. Ao “deprimir e denegrir a pátria”, como “hábito inato”, tenta-se incutir a toda a sua obra uma desfiguração que se justifica por vezes corrigir. É o caso dos artigos sobre O Pessimismo Nacional[1], comummente não os referindo como o que na realidade são, no geral interpretados como apologia dum pessimismo estruturalmente português.
Esse artifício interpretativo sobressai no interior da contracapa, onde se escreve a impossibilidade atual de subscrever “(…) com iguais ilusões o otimismo generoso de que o seu Autor parecia possuído quando os publicou”, rematando: “Aliás, a morte que Manuel Laranjeira a si próprio deu, pouco depois, não significará que foi ele o primeiro a desesperar? E não chegaria essa antecipação definidora para justificar o nosso presente pessimismo, tão negro e tão magoado como o que o levou, numa hora triste, àquele seu gesto de renúncia final?”
Este desfigurar do texto a partir do seu título, corrobora o culto de um pessimismo doentio, estrutural e permanente, conducente a um fim fatal, que vive, entre nós, nalguma intelectualidade e imprensa, tentando fazê-lo corresponder a um pessimismo ainda maior, que o que advém da análise dum fenómeno epocal em que se defendia a regeneração da vontade coletiva e o suprimento das disfunções e injustiças na nossa sociedade através dum otimismo esperançoso, embora amargo.
O pessimismo de Laranjeira não é “(…) a manifestação clara, iniludível, dum esgotamento senil, degenerativo, doloroso, (…) o estado desesperadamente agónico dum povo como entidade coletiva”, uma degeneração “orgânica” do tipo Crepúsculo dos Povos (à Max Nordau), antes sim uma dificuldade adaptativa passageira, de génese normal, antes sim, nas palavras do autor, “(…) uma perturbação de crise evolutiva, significando apenas que os povos se transformam e progridem, embora penosamente” (ibidem, pg.ª 20), não nos vendo como um povo irremediavelmente perdido.
Ao invés do pessimista degenerado, que o é por vício constitucional e defeito estrutural, derivado de insuficiência congénita imodificável, Laranjeira vê o pessimismo nacional como uma deficiência momentânea, a que o português, ou qualquer outro ser humano normal, temporariamente se adapta, sinal de que Portugal tem futuro.
Indicia-se a negação da permanência de estruturas de longa duração relacionadas com características comuns e inalteráveis dos portugueses, podendo-se alterar se as condições estruturais de natureza cultural, económica e social se modificarem.
E escreve: “Submeta-se esse desgraçado povo, criminosamente desprezado e levianamente caluniado, à prova decisiva: eduquem-no, intensivamente, tenazmente, sem desfalecimento, e vê-lo-ão florescer e progredir como os povos cheios de saúde” (ibidem, pg.ª 37)
Bastará uma retrospetiva da nossa História para refutarmos o pessimismo mórbido de tendência degenerativa e esgotamento agónico, dado que não somos um povo corroído de senescência. Nem basta dizê-lo, é imperioso prová-lo, não se podendo concluir de imediato, em face duma crise, sermos um povo irrefutavelmente perdido. Aceitá-lo seria negar a excelente adaptação dos portugueses a qualquer meio-ambiente e em qualquer tempo e lugar, o seu grande ativo de aptidão para lidar com outras culturas, a nossa longevidade histórica de mais de 800 anos.
O que também prova que não há uma psicologia indiscutível dos povos, apesar da História estar a perder impacto sobre as crenças imediatistas do presente além de, nos nossos dias, um pessimismo mais catastrofista ser fomentado fortemente pelos media.
05.02.2019 Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Saíram pela primeira vez no jornal O Norte, diário republicano da manhã, do Porto, em 24 e 31/12/1907 e 07/01 e 14/01/1908.