Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Por razões a que este blog do Centro Nacional de Cultura é alheio, interrompe-se aqui, à 34.ª crónica, a minha colaboração. Por vezes, somos forçados a fazer escolhas. Sou o editor da Guerra e Paz e as actuais exigências da actividade editorial em Portugal forçam-me a uma concentração que me leva a sair da blogosfera (mesmo do meu blog pessoal, Página Negra) e das redes sociais. Foi um prazer, este regresso a uma casa que conheci, e com a qual colaborei, no tempo de Helena Vaz da Silva. Levo do trato elegante e afável de Guilherme d'Oliveira Martins e de Teresa Tamen, um gosto que muito agradeço. Soube-me mesmo muito bem ter as minhas pobres prosas a deambular por aqui.
Saio de um prazer para outro prazer: quero agora preservar o salto de qualidade que a Guerra e Paz editores deu em 2019 e em 2020. Deixo de escrever crónicas, talvez escreva mais livros.
------------------------------------
Na sala ou na cama, chamava-lhe Slim
Howard Hawks transpirava charme. Ou seja, nunca precisou de transpirar. Nessa noite passeava-se pelo Clover Club e olhava para a pista de dança. Foi então que a viu.
Hawks era casado com a irmã da actriz Norma Shearer, o que fazia dele cunhado de Irving Thalberg, braço-direito de Louis B. Mayer o dono da MGM. Thalberg mandava em tudo. Mão de ferro para todos, uma luva para Hawks que acabara de filmar “Bringing up Baby”, comédia com um tigre verdadeiro, a leoa que era Katharine Hepburn e a cómica mansidão de Cary Grant. Um sucesso.
A Hawks, ninguém chamaria manso. Os engates dele davam para atapetar o chão do Clover Club, pista de dança e reservados. Numa agenda escarlate guardava nomes loiros e curvilíneos com números de telefone à frente. Hawks era a chave dourada para se entrar nos filmes, essa caverna secreta, aveludada, que a todas atraía.
Hawks olhou para a tão jovem mulher e pensou: “Hmm, que bela fechadura.” Quando a orquestra atacou a música seguinte, já Hawks dançava com ela. Caprichou na valsa, disse duas frases elegantes, fê-la rir – e se ela tinha um riso fácil, desprendido! Hawks meteu a chave: “Não quer entrar nos filmes, fazer um filme comigo?” Um sorriso na boca dela, prometedor, feliz e, logo a seguir, a resposta que atirou Hawks ao chão: “Não, que horror. Não me interessa nada.”
Seguiram-se três anos de muita cama, casamento depois. Ela, e era dele que falava, confessaria com candura: “Não era só bonito, encantador e cheio de sucesso, ele era o pacote inteiro que eu queria: a carreira, a casa, os quatro carros e o iate.”
Na cama ou na sala, Hawks rebaptizou-a. Mary Raye Gross de seu nome, passou por vontade e prazer de Hawks a ser Slim. E não houve, depois, filme dele em que ela não entrasse sem pôr os pés em nenhum. Slim inventou as mulheres de Hawks, a Rosalinda Russell de “His Girl Friday” ou a Barbara Stanwyck de “Ball of Fire”. Foi Slim que inspirou a Hawks as frases velozes e acutilantes, a física disponibilidade para as batalhas conjugais, a descarada autonomia e liberdade das mulheres dos seus filmes.
Um dia, Slim descobriu uma sósia, Lauren Bacall, quase tão bonita e ravissante como ela. Ofereceu-a de bandeja a Hawks: maquilhou-a, desenhou-lhe os vestidos, talvez a tenha ensinado a assobiar. Tão igual que a deixou usar o nome, Slim. Assassinando com brilho o livro de Hemingway que adaptava, em “To Have and Have Not” a relação de Bacall e Bogart era tão decalcada do amor deles, que a personagem de Bogart ficou Steve, como, na sala ou na cama, Slim chamava a Hawks.
Iludido, Hawks quis, vá lá, deitar-se com Bacall, mas o avisado Bogart antecipou-se. Já Hemingway, por graça da esplêndida Slim, teve boas razões para perdoar a forma como mandaram a história de “To Have and Have Not” às urtigas.
Ninguém como Slim, sem nunca ter entrado num filme, entrou, afinal, em tantos.
Donde saiu o chinês? Filas deles balançam carris e constroem as grandes linhas férreas que hão-de ligar Leste e Oeste. O chinês é uma multidão no cinema americano, longa fila apeada que antecede o primeiro comboio.
E não é! O chinês no cinema foi o “homem amarelo” de Griffith. David Wark Griffith, pai fundador do cinema, inventou o chinês no cinema, como já tinha inventado o homem negro, que pintou vicioso e insurgente em “The Birth of a Nation”.
Em 1919, no lírico “Broken Blossoms” que em português foi um “Lírio Quebrado”, o chinês era a corola opiácea a fechar os braços para proteger de abusos vitorianos a menina branca. A menina era Lilian Gish e Griffith desenhou-a a traços pré-rafaelitas.
É numa China a sépia que começa “Broken Blossoms”, uma China idílica, de chás e fumos, China contemplativa e mística. Desse fundo ronronante sai o yellow man que se arroga a missão de levar a mensagem de bondade budista aos bárbaros anglo-saxónicos.
Anos mais tarde, ainda não vimos Lilian Gish, reencontramo-lo num bairro sórdido de Londres, encolhido de frio à porta da sua encantada loja dos trezentos. A nuvem de ópio que o cerca ajudará, mas a verdade é que conserva a mesma gentileza nirvânica nesse rosto que Griffith pintou mais amarelo por ser o de Richard Barthelmess, actor branco que era tudo menos chinês.
Passaram 18 minutos de filme e da névoa azulada do rio surge Gish. O cinema mudo também tinha paciência de chinês e hão-de passar outros 18 até vermos que o homem amarelo viu Lilian Gish, a menina que não é capaz de sorrir. Ela tem uma boca de pena, uns olhos de medo. Sorri como quem chora e tem razão para isso: o pai é pugilista, bêbedo, mulherengo, e faz dela o saco de socos das suas frustrações.
Um dia, quase morta de pancada, foge. O corpo cansado leva-a para a loja do chinês. Nesse primeiro verdadeiro encontro deles há um bailado de olhares que se querem e se recusam. Mil preconceitos na loja dos trezentos.
O chinês cobre-a de sedas azuis e amarelas, lírios para os cabelos tristes de Gish. E a mão dela, sozinha, mais tolerante do que a sua tão bela cabeça de teias vitorianas, acaricia a face do homem amarelo. “What makes you so good to me, Chinky?” é o que bem vemos Gish dizer ao seu salvador. E vemos os olhos de Barthelmess, actor branco, a semicerrarem-se para serem mais chineses e gozarem a glória de estar o Oriente a abrir, em Gish, uma pequenina porta de Ocidente.
Mas nas ruas dessa deprimida Londres há punhos de rancor e vingança prontos a esmurrar qualquer pretensão de final feliz. “Broken Blossoms”, filme da entrada do Oriente pelas portas do Ocidente, termina em fúria e fria morte: um chinês solitário atravessa o nevoeiro ocidental com um inútil cadáver ao colo. Talvez Griffith fosse um profeta.
Houve alguns anos eufóricos em que o cinema alemão não foi só o cinema alemão. Tal como o crash de 29 foi a mãe dos anos dourados do cinema sonoro americano, o cinema alemão nasceu dos escombros e humilhação da I Grande Guerra. Para lhe darmos dar um parto simbólico, escolha-se “Caligari”, de 1919, prodigiosa soma de teatro, arquitectura, sonambulismo e sombras.
Alimentado pelo teatro e libertando-se dele, foi um cinema de brumas e sexualidade pesada, de golems, aranhas, velhíssimas feiticeiras, e as peles de animais mortos de que fala Heine, o poeta. O cinema alemão é um écrã demoníaco, disse a historiadora Lotte Eisner, ela mesma uma feiticeira de cinematecas. Tendo Berlim como centro do mundo e os estúdios da UFA como centro de Berlim, os filmes desse cinema são filhos do teatro de Max Reinhardt, são primos dos grandes movimentos literários e artísticos, do Expressionismo à Nova Objectividade e são devedores da inquietação arquitectónica patente nos seus gigantescos cenários.
Os estúdios da UFA, rivais de Hollywood, eram um destino sofisticado. Os escandinavos foram os primeiros a vir. Asta Nielsen, diva dinamarquesa, filmou em Berlim, como depois filmou, antes de ser americana, a sueca Greta Garbo. Se pedíssemos o passaporte aos talentos que passaram pelos portões dos estúdios, desenharíamos o mapa da Europa Central. Havia austríacos (o próprio Reinhardt), húngaros (Czinner), romenos (Lupu Pick). Edgar Ulmer, que nos EUA faria o genial “Detour”, lembra-se de começar como assistente de Murnau e trabalhar com as bailarinas checas da Ópera de Praga. Mesmo os franceses, jura Ulmer, desaguavam no Wannsee: Max Linder vinha fazer filmes de duas bobines e Jacques Feyder era um dos realizadores.
A inspiração era cosmopolita. A par dos germânicos Golems e Nosferatus, há filmes sobre Madame Du Barry, Lucrécia Bórgia ou Ana Bolena. A influência alemã irradiou: a inspiração que o cinema soviético procura no vanguardismo teatral de Meyerhold é a cópia da relação entre o cinema e o teatro alemães. Vindos da UFA, já Salazar mandava, Artur Duarte e António Lopes Ribeiro, realizadores do regime, ao elogiarem Eisenstein, é esse espírito cosmopolita, de uma estética sobrevoando contingências ideológicas, que sublinham. Sem a atrapalhação babélica das línguas, o cinema mudo criou um património europeu de inspiração alemã. Nos anos 20, 600 filmes por ano, milhões de espectadores, a Alemanha juntou a Europa, recriou um imaginário europeu. Iria esfacelá-lo nas décadas seguintes.
O mundo nascido no cenário torturado de “Caligari” vai perecer, em 29, no cabaret de “O Anjo Azul”. Morre na voz, nas sombras, no que, obscuro, se mostra ou se esconde nas pernas de Marlene Dietrich, essas pernas que, para completa glória, tiveram de ser americanas.
A porta abre-se para a direita, os violinos entram pela esquerda e a madura silhueta de uma mulher recorta-se contra a luz do deserto. A mulher, passos hesitantes, dançados, vai da porta para a varanda tosca, a câmara atrás dela. O contra-campo revela-lhe a beleza ansiosa de anos de sacrifício e renúncia. Põe a mão sobre os olhos para decifrar o vulto de cavalo e cavaleiro que o horizonte empurra em direcção à casa. Atrás dela surge a indiferença interrogativa de um marido e ouve-se a primeira palavra: “Ethan?” A resposta sufoca na garganta da mulher. Uma rubra comoção acorre-lhe às faces, à respiração que, mais do que o vento, agita a gola da blusa, o avental.
Em 40 segundos, contra-luz e contra-campo, a porta que se abre, três actores, um só hipotético nome e a vibração de um violino, John Ford conta, a quem tenha olhos para ver, uma história de amor proibido.
O filme, que uma porta abre e outra porta fecha, é “The Searchers”. Sendo o mais belo dos mais belos dos filmes de Ford, é o mais falso western que já vi. Os cavalos, os índios, até a épica passagem das estações, o cíclico galope de destruição e vingança, mal disfarçam o vendaval de amor proibido, que assombra as personagens, todo o filme.
Disse-se que o sombrio cavaleiro é um Ulisses e “The Searchers” a Odisseia do homérico Ford. Mas o cão que da varanda ladra ao fantomático Ethan (John Wayne) não é Argos. E muito menos é Penélope esta mulher que, farta de esperar, casou e teve filhos. Nem os braços do irmão se abrem a Ethan com o afecto de Eumeu ou Telémaco.
Esqueçamos Homero, pensemos em Sófocles. Longe de Ítaca, no Texas de 1868, Ethan não regressou para descansar de prodigiosas aventuras. É a morte, a morte cansada, que chega a cavalo. O que depois sucede, a via crucis de ataques, incêndios, violações, escalpes, é a emanação do conflito que dilacera Ethan, o arrasador reflexo do raivoso desejo dele pela mulher do irmão. E pode também ser a coisa larvar que na mulher foi o incumprido amor ao marido por tanto lhe amar o irmão.
Os olhos maus de Ethan são piores do que os olhos cegos de Édipo e a boca dele beija duas vezes a mulher que não pode amar. Beija-a, púdico, na fronte, mas são beijos que rasgam como bacantes. E vemos a mulher, sozinha no quarto, acariciar o capote dele, num plano que vai buscar a luz a uma janela de Vermeer. É um capote militar, de devastação e crime, que os dedos clandestinos dela afagam na final e inconsumada despedida.
Filme que com João Bénard vi pela primeira vez, último filme que vi sentado ao lado do Cintra, gostava de dizer aos dois que “The Searchers” não é um western, nem um épico. Pura tragédia grega, cavalgada de ressentimento, vingança e morte, só a porta que se fecha lhe consegue pôr fim.
Ter-se-ão escrito cartas neste tempo de tantas apagadas solidões? E poderá haver amor num tempo de tanto medo? As perguntas faço-as eu. Gostava que as respostas, as desse Greta Garbo. Sei que está à minha espera. Num jardim.
A mulher muito bela pode ser uma lua cheia de solidão. Um dia, veio à América o verdadeiro casal real britânico, Vivien Leigh e Laurence Olivier. Hollywood queria que Leigh fosse a Scarlett de “E Tudo o Vento Levou”. No jantar de boas vindas estava também Greta Garbo, coisa rara para a reclusa que ela era. No fim, a sueca convidou Olivier para um passeio pelo jardim que se estendia frente à ampla vidraça do salão. Leigh ficou a vê-los caminhar e conversar. Torcia-se de ciúmes. Fez depois uma cena ao marido. Queria saber de que falavam. De jardins, disse-lhe Olivier, enraivecendo ainda mais a sua Vivien.
Mas era a pura verdade. Garbo tinha saudades dos jardins suecos e queria saber se também eram bonitos os jardins ingleses. “Oh, sim, jardins lindos,” terá respondido Olivier. E passaram quinze peripatéticos minutos a comparar jardins, se tinham árvores de frutos, se plantavam morangos. Olivier chegou a dizer-lhe que até plantavam couves, mas que isso já era mais uma horta do que um jardim e Garbo, disse ele a Vivien, percebeu a diferença.
Os olhos e ouvidos que testemunharam os factos foram os de Garson Kanin, realizador do excelente “My Favourite Wife” e argumentista de duas obras-primas, “A Double Life” e “Adam’s Rib”. A Garbo fez, por essa altura, um papel que a atirou para píncaros de popularidade. Em “Ninotchka”, Lubitsch converteu-a numa funcionária estalinista que vinha a Paris e acabava derretida num capitalista jardim de delícias. Lenda do cinema mudo, Garbo entrara no cinema sonoro a pedir um whisky, provando que sabia falar. Demonstrava agora, com Lubitsch, que sabia rir-se. E fazer rir.
Kanin queria filmar com ela. Numa das conversas, Kanin contou-lhe uma cena que vira numa peça de teatro em Paris. Uma amiga confessava à outra que recebera uma carta de amor. Essa mulher amada dizia à confidente que lera a missiva, voltara a lê-la duas, três vezes, apertara a amorosa folha de papel contra o peito, beijara-a com discreta doçura e, de repente, subindo num impulso as escadas, fechara-se no quarto, arrancando o vestido e esfregando, devagar e logo freneticamente, a carta em todo o corpo. A seguir, em êxtase, a mulher amada comera a carta.
Greta Garbo olhou para ele, espantada. Bateu palmas e, disfarçando uma antiquíssima sombra com um riso nervoso, deixou cair dos lábios a envergonhada confissão: “Em toda a minha vida não recebi uma carta de amor. Uma única.”
Milhões de homens dormiam com a imagem dela, amavam-na até no simulacro que eram as mulheres que tinham, tocavam-lhe a ferida e dolorosa divindade na sala escura, e nenhum lhe escreveu uma carta. Atrás do véu de cada filme, atrás de cada lancinante olhar em close-up, ainda hoje se ouve a rouca voz de Garbo: “I want to be alone.” Queria?
Esta foi uma crónica escrita num tempo em que se podia ir ao cinema. E em que se podia ir aos bares. Um tempo em que havia uma boémia descomandada, desregrada. Trago esta crónica de volta, amarrada, quase amordaçada, no dia em que me dizem que já se vai poder ir ao cinema. Talvez a um bar. Desde que não se vá, como faziam Francis Bacon e Lucian Freud, a cavalo.
Hoje não vou ao cinema. Iria, se me prometessem que lá estavam Francis Bacon e Lucian Freud. Digo-vos quem são. São dois tipos que se revoltaram contra o futuro. Haverá quem diga que são ou eram dois pintores e eu, com a arrogância dos ignorantes, insisto: eram dois tipos sentados pantagruelicamente no presente. Comiam o presente, embebedavam-no e fodiam-no como quem respira, desvairado. Jogavam nas corridas, andavam à porrada, mergulhavam em champagne e caía-lhes o corpo exausto nas cavalariças, ao lado dos cavalos que tanto amavam.
Se eram amantes? Se isso não meter sexo, eram. Bacon, descendente do filósofo homónimo e empirista, era homossexual dia e noite, com vincada preferência por homens mais velhos que lhe arriassem forte e feio. Freud, neto do seu psicanalítico avô, era mais novo treze anos e preferia afundar-se na primordial e perlada fonte feminina. Caroline Blackwood, mulher de Freud durante parte dos anos de vida louca com Bacon, dizia: “Jantei quase todas as noites do meu casamento com Bacon. Ah, e também almocei.”
Sim, gostavam de jogar nos cavalos, de se atirar sem rede para os bares do Soho e frequentar vigaristas, ladrões, putas, chulos e mais gente prendada, mas o cimento dessa vida gelatinosa era a paixão pela pintura figurativa que cultivaram como flor de preço.
Ora lembrem-se: aquele tempo era um tempo que prometia arte abstracta para toda a santa e imóvel eternidade. E Bacon, primeiro, e Freud com ele, sentaram-se no presente, com o passado entre as pernas, pintando retratos de pessoas, nus com chapéu, papas aos gritos, meninas com cão branco, a carcaça de um boi no talho. Tenho de dizer: estilhaçaram o raio do futuro. Ainda há dias, seis anos, que interessa, o “Três Estudos de Lucian Freud”, em que Bacon pintou o amigo num delicado equilíbrio de luz e ouro, atingiu o francamente estúpido recorde de 120 milhões de euros, o que, a meu ver, já é mesmo gozar e humilhar o futuro.
Na arte e nas noites do Soho, e ai de quem veja alguma diferença entre uma coisa e outra, o que os uniu foi um paradoxal optimismo niilista. Tinham os músculos carregados de energia, de uma força nietzschiana, amoralíssima. Queriam, por junto, luxo e luxúria: pintavam, comiam, bebiam, esmurravam e eram esmurrados como quem faz amor. E eu, hoje, afinal, já nem preciso de ir ao cinema.
Vi “António das Mortes” no cinema Flamingo, no Lobito. A autoria é do sincrético Glauber Rocha, tão matador de cangaceiros que fez um filme para matar Corisco, outro para matar Coirana. Mal sabia, nesse ano de independência, quem era o brasileiro que filmava sangue como só Godard filmou sangue e que encostava cada cena a canções que, ali onde elas cantavam, qualquer um chorava.
“António das Mortes”, também chamado “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, tinha muitas canções. Uma, “Dar a Volta Por Cima”, é inesquecível. Se algum dia tiver de ajudar alguém que precise de ajuda mas não queira que lhe dêem a mão, estenda-lhe essa canção. Parece críptico: mas basta ouvir os versos falando de um homem de moral que morde a poeira do chão e percebe-se logo.
António é jagunço, assassino: a soldo de coronéis para matar cangaceiros descomandados. O Brasil do passado, talvez, e Deus queira que não, o Brasil do futuro. Como o jagunço, também o cangaceiro pode ser um criminoso a mando. Só que, quando deixa de servir um senhor, o cangaceiro continua criminoso e converte-se num telúrico espírito livre. O cangaceiro brota do seco Nordeste como o mais obstinado dos arbustos. O crime dele agarra-se ao sertão, à crespa paisagem. A sede dele sabe onde encontrar a sobrante, rara, gota de água. O cangaceiro é gémeo de uma Natureza miserável e inóspita. Comungam a escassez, o desapossamento.
Uma sebenta capa cinzenta a cobrir-lhe o corpo vasto, espingarda assassina colada à mão, António, que em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” já matara Corisco, herdeiro de Lampião o príncipe dos cangaceiros, volta agora e volta para matar Coirana, o último rebelde. Porque lhe pagam. É um jagunço: serve os que têm, matando os que nada têm. É esse o maniqueísmo antropofágico do filme de Glauber. Como num western cruel de Peckinpah. Com mais música, uma música inocente e impiedosa, camiliana. De cordel.
Quando a voz do sambista, que dava pelo estranho nome de Noite Ilustrada, canta “dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava”, vemos António na sua estrada de Damasco, no meio de camiões de luz, a sofrer a conversão e a mudar de campo. Os negócios de política passam a ser com os outros, os dele só com Deus, o Deus místico dos que nada têm.
Na única, brevíssima conversa que tive com Glauber devia ter-lhe perguntado porque é que a lágrima que no cinema do Lobito juro ter visto António chorar, nunca mais a encontrei ao rever o filme. Glauber ligara do hospital para a Cinemateca, a dias de morrer tão jovem. Atendi-o por acidente e ouvi-lhe mais a nítida respiração arfante do que a longínqua voz. Não o podia cansar.
Ainda hoje procuro a lágrima que António das Mortes chorou só para mim num cinema de Angola. Uma lágrima de dois lados. De um lado penitência, do outro, esperança.
Nunca esperou que, de madura, a fruta lhe caísse no colo. Era já actriz na Suécia quando um produtor lendário, David O. Selznick a trouxe para Hollywood.
Pegou de estaca. Os seus melancólicos olhos azuis encheram cinemas. E mesmo que o tempo lhe desvaneça os filmes, a imagem romântica dela em “Casablanca” perdurará enquanto persistir a ideia de cinema. Esse filme que ela e Humphrey Bogart fizeram de costas voltados, beijando-se como quem não se beija, marcou a história do cinema e antecipou – ou será que determinou? – a sua história pessoal. Talvez a biografia de Ingrid seja a prova de que a vida é apenas o inimaginativo artifício que, tímido, imita o big bang da criação artística.
Como em “Casablanca”, esta história da vida dela começou em Paris. A Primavera de 45 assistira à vitória dos aliados. O ar exsudava pólen: o da desbragada natureza e o da gloriosa liberdade. A altíssima sueca viera animar as tropas e regressava num fim de tarde ao Ritz onde dormia. Viu então o fotógrafo de guerra que escondia a nacionalidade húngara debaixo do americaníssimo nome de Robert Capa. Tinha a elegância e a virilidade dos mal-vestidos. Olharam-se e foi o coup de foudre. A Bergman não hesitou: ela não era só a mulher casada e mãe. Como em “Casablanca” a Bergman era capaz de ser, se quisesse, a amante. Quis.
Amou e voltou para o marido como Ilse, em “Casablanca”, voltava para o heróico Lazslo. Mas tal como Ilse, Ingrid Bergman queria amar o amor de Capa. Pediu-lhe que viesse ter com ela à América, pronta a abandonar o médico sueco, pai da sua filha. Incapaz de fazer outra coisa que não fosse imitar a arte, Capa repetiu os passos de Bogart e, play it again, foi ele que não deixou a Bergman divorciar-se. Tal como Bogart, também ele partiu para uma qualquer Brazaville em guerra e continuou a ser o descomprometido fotógrafo que gostava de ser. “Teremos sempre Paris,” ter-lhe-á segredado à despedida.
Hitchcock conhecia a história e, à maneira dele, usou-a na “Janela Indiscreta”. O medo que Jimmy Stewart tem de que o casamento com Grace Kelly lhe roube a liberdade de correr riscos em campos de batalha é o medo chapado que fez Capa fugir da boca e da sede da lindíssima amante.
A sede da Bergman não se extinguiu. Poucos anos depois, quando o público americano via nela a virgindade da Joana d’Arc que acabara de interpretar, filmou “Stromboli” com o italiano Rossellini. É o filme de um vulcão. O mesmo vulcão que arrebatou os dois. Eram ambos casados e ela ficou grávida para escândalo do Senado que a proibiu de voltar à América. Pelo amor do seu amor a Rossellini, abandonou o marido e não viu a filha durante dez anos.
Ingrid Bergman não ia só com muita sede ao pote: era dona do seu pomar e colhia a fruta com as próprias mãos.
É afrodisíaca mesmo que quem a sinta não saiba quem raio seja Afrodite. Falo da grande alegria, daquela que já não cabe no corpo, dessa alegria que nos estremece, enche e esvazia os pulmões. A alegria convulsa.
Imaginem um campo de prisioneiros. Jim, um miúdo inglês, cresceu ali, meio-protegido, meio-abusado, por dois corrécios americanos. Cresceu entre o desdém e a humilhação dos guardas japoneses.
O campo de prisioneiros já é o deserto de toda alegria. Mas o campo de prisioneiros que sofre o ataque da nossa própria aviação é o pandemónio dos sentimentos, a lágrima de sangue que transborda do cálice. Só o Pai que sabemos tem a crueldade de dar esse cálice a um Filho.
É o que acontece em “Empire of the Sun”, filme de Steven Spielberg. Há um ataque aliado. Um Christian Bale novinho, o actor que dá corpo a Jim, corre eufórico para o telhado meio-destruído de uma das construções do campo de concentração.
Lá em cima, salta, abraça-se a si mesmo, treme de excitação, respira forte para não sufocar e explode num grito e num riso epilépticos. O mundo suspende-se, o movimento quase pára para deixar voar a beleza fantástica de um avião de fogo e morte.
O pindérico inglesinho sobrevivente berra: “P-51 Cadillac of the skies”. Vénus quando era virgem, Deus nosso senhor, a inominável Beleza, não seriam saudados com mais exaltação e exultação. Jimmy salta de costas, salta de frente, enquanto as bombas rebentam com tudo à sua volta. “P-51 Cadillac of the skies”, ó alegria de um catano: o fogo, a morte, a destruição, sabem-lhe a vitória. O avião dos seus sonhos, que os seus dedos quase tocam fisicamente, arrasa o mundo em escombros onde sobrevive. Tudo morre, mas tudo morre para que ele renasça.
A alegria convulsa, epiléptica, é privilégio de criança. Tem de ser inaugural. Lembro-me da minha primeira vez, dos sintomas e do devastador ataque. Conto.
A primeira vez que eu vi mesmo o mar foi já no meio do Oceano Atlântico. De Angola, o meu pai chamava os meus cinco anos e lá iam eles agarrados à saia da minha mãe e a toque de caixa da minha irmã. O pouca-terra, pouca-terra, numa tarde de cerejas vermelhíssimas, trouxera-nos da Beira fria, farta e feia. Em Lisboa, Cais da Rocha, tínhamos entrado no Vera Cruz, então sofisticado transatlântico. Descemos logo ao camarote e quando voltámos a subir – no dia seguinte? –cercava-nos um vasto tapete ondulado, de um azul inútil e livre. Flutuávamos num infinito lençol oscilante: Houdini tinha escondido a terra.
Os pulmões não me cabiam no peito de contentes; em riso e lágrimas até pelos olhos os pulmões me saíam. Dizem que é a plenitude. Gostava de me lembrar melhor, se era igual o azul de céu e mar, se havia vento, quase nenhumas nuvens, e se cantavam sereias ou sonhava já contigo.
O pai morrera e ele nunca mais almoçava. O caixão era paupérrimo, uma coisa dickensiana ao lado da qual caminhava a aflita dor da mãe. O futuro Charlot, vinha atrás da urna do pai e do pranto da mãe. Para distrair a fome, ia mimando, caricatural, o sofrimento materno. Tão expressivo que o irmão soltava gargalhadas. Toda a criança é cruel, dir-se-á. O futuro diria que ele era mau como as cobras.
Há outra morte a atravessar-lhe biografia e obra. O primeiro filho de Chaplin nasceu mal-formado e morreu após três dias de angústia. Duas semanas depois, sem indulgência, Chaplin fazia testes a actores para o que seria o filme-querubim a que chamamos “The Kid”. Fê-lo como quem se cura com o próprio veneno.
Ignóbil foi também a inspiração de “The Gold Rush”. O brutal rigor de um Inverno isola um grupo de pesquisadores de ouro. Para sobreviverem comem os cadáveres dos que vão tombando. Depois de ver o que Chaplin fez com esse material, até nem me parece estranho que Cristo em Canaã tivesse transformado a água em vinho. Como se convertem tragédias em comédias, que estranha alquimia transforma a crueldade em angelical inocência? A maldade é, aposto, um ingrediente essencial. Vejamos.
“Mau como as cobras” foi o que disseram quase todas as mulheres de Chaplin. Numa altura em que as ligas puritanas marcavam Hollywood homem a homem, uma menor, Mildred Harris, clamou estar grávida dele. Sem poder arriscar o escândalo, o genial Chaplin casou-se. Estava à espera dela no registo e vendo chegar a juvenil figura não resistiu a um comentário sibilino: “Sinto um bocadinho de pena dela.” Não era caso para menos, em dois anos estavam divorciados e ela acusava-o, provavelmente com inteira verdade, de crueldade mental. Mas sem esses dois anos de tortura de Mildred será que Chaplin teria algum dia criado “City Lights”?
Reincidiu. Lembram-se da Lita Grey do “The Kid”? Tinha 12 anos. Aos 15, Chaplin chamou-a para ser a estrela de “The Gold Rush”. Ainda chegou a filmar, mas Lita descobriu-se, de repente e não por acaso, em estado interessante. Novo casamento urgente e obrigatório, nova tragédia pessoal. Chaplin abandonou-a num palácio dourado, enquanto se locupletava em infidelidades que incluíam a actriz que a substituiu e uma amiga que Lita lhe apresentara. A declaração de Lita no divórcio foi histórica: acusava Chaplin de todas as crueldades e mesmo de uma heterodoxa abordagem à relação sexual que a lei californiana condenava. Era, de frente ou de costas, mau como as cobras.
A desumanidade de Chaplin explica a humanidade da sua obra? O facto é que as tragédias, próprias ou alheias, foram o capital cómico dos seus filmes. O narcisismo, o ressentimento, a perversidade, a mesquinhez, a infidelidade geraram obras-primas. Atrevo-me: só do mal pode vir algum bem.