Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“Manuel Teixeira Gomes – Biografia” de José Alberto Quaresma (INCM) constitui um repositório essencial para a compreensão do grande escritor e cidadão que tomou posse como Presidente da República há cem anos.
PRESIDENTE HÁ CEM ANOS A lembrança dos cem anos da eleição de Manuel Teixeira Gomes constitui oportunidade para refletirmos sobre a afirmação portuguesa da cultura na democracia. Se o escritor algarvio nunca escondeu a importância que atribuía à ligação entre a cidadania e as artes, a verdade é que tal nos permite salientar que os fatores democráticos devem ser alimentados pela consagração de instituições estáveis e de mecanismos de mediação capazes de representar adequadamente os cidadãos e de criar condições favoráveis ao desenvolvimento humano. Longe da ideia de sociedade perfeita, que motiva os tiranos, importa ligar o primado da lei e as legitimidades do voto e do exercício. Se é verdade que o Presidente Teixeira Gomes invocou razões pessoais para deixar as funções de primeiro magistrado, tal ficou no panorama cultural e ético como referência fundamental.
E recordo a célebre carta de Tunis de 1927 que enviou ao seu amigo João de Barros (publicada pela inesquecível jornalista Manuela de Azevedo): “quando já cansado projetava, ou melhor, preparava, a saída do meu posto (em Londres), abriu-se-me outro período ainda mais adverso a devaneios: o da Presidência, onde tudo dependia da colaboração e boa vontade alheia, isto é, dos políticos. Um presidente constitucional, no nosso país, que se conserve fiel aos juramentos prestados, é um misto de ‘boneco de palha’ e de ‘Senhor da cana verde’: o primeiro para ser mandado e o segundo para ser insultado. Mas perguntará o meu amigo: ‘E não teve pena de deixar a sua casa, as suas filhas, os seus livros, o seu mar, a sua paisagem?...’ Nenhuma, ou se a tive não me lembro; e como nunca me arrependi do que fiz, nem mesmo essa arrelia me pungiu, se porventura alguma vez julguei que fizera asneira. A minha vida em Londres foi de luta ininterrupta, e mais divertida, infinitamente, do que poderia ser contemplativa. Não escrevia romances: vivia-os e a miúdo com êxitos a que jamais me teria dado aspirar na literatura escrita. E era-me constante motivo de satisfação, ver chegar a Londres os nossos grandes e pequenos homens de todos os partidos, firmemente convencidos de que o sucessor de Soveral não podia ter feito caminho algum, e observar o espanto – que o não ocultavam – com que, sem demora, verificavam o contrário”.
CIDADÃO REFERENCIAL Só alguém imbuído do melhor sentido cívico poderia pronunciar-se deste modo. Solto de Belém, poderia ter voltado à vida antiga – no antigo escritório de Portimão, onde tinha a livraria, em Lisboa, na Gibalta, onde estavam as coisas vindas de Londres, podendo encetar o trabalho de seleção dos manuscritos, de correção, polimento e conserto. Contudo, quinze anos de intervalo, abriam “um barranco largo e fundo, sobre o qual dificilmente” se lançaria “ponte sólida”. Além de que “a flor da sensibilidade de um escritor aparece logo no seu primeiro livro” … E tinha razão, até considerando a qualidade por si manifestada precocemente. Contudo, o artista andou sempre fora da “atmosfera da ilusão”. E quando o recordamos, percebemos que o cidadão juntou a sensibilidade do amante da qualidade e da beleza à capacidade criadora do extraordinário intérprete da vida e da natureza. “Edificar para que a eternidade nos soletre o nome? Que insensatez! Na história do mundo, tudo tem prazo, que, para a glória, é sempre curto”. O que importaria, porém, era o gosto, o valor da obra de arte ou da paisagem, em suma, a compreensão da beleza. Por isso, eram limitadas as tiragens das suas obras, “presumindo que seriam suficientes para encontrar uma ou outra rara alma afim, que os gostasse”. E confessa: “Se eu fosse suscetível de arrependimento, experimentá-lo-ia por ter intitulado um dos meus livros ‘Cartas sem moral nenhuma’, como chamariz obsceno. Não me importava nada que a obra fosse realmente indecente, mas importava-me, contrariava-me o chamariz. Caí naquele título quase involuntariamente. Devia ser ‘Cartas de um imoralista’ (e talvez não fosse melhor, nem mais são, mas era menos desbragado), quando nas vésperas do seu aparecimento me chegou noticia do romance do Gide, ‘O Imoralista’. Designação ainda nova, para fugir ao plagiato, tomei outro título, o primeiro que me ocorreu”. Ética e estética relacionavam-se para o escritor, sem contradição, como exigência constante da dignidade da vida e de respeito mútuo, ante o fulgor das diferenças.
UMA RARA COERÊNCIA Ao decidir terminantemente fechar a carreira política, o escritor percebeu a dificuldade de empreender uma campanha de desafronta ou de desforra, tanta tinha sido a intriga e a difamação de que fora alvo. E assim “empregou artes de ninguém saber nem suspeitar em mim o antigo chefe de Estado, o que me permite viver modestissimamente e em plena liberdade de movimentos”. E assim a existência voltou a ser propícia e feliz, sem motivo para mudar de rumo. Confessa ter saído de Portugal, a bordo do “Zeus”, sem um livro, sem um papel, sem um apontamento ou nota; nada que recordasse o antigo literato ou o político. E assim abriu na vida uma página perfeitamente em branco. Lia pouco, comia e bebia com apetite e proveito, dormia à noite em dois sonos de pedra, fazia uma hora de ginástica todas as manhãs, à tarde caminhava regularmente dez quilómetros, e os passeios a pé mereciam menção especialíssima, pois eram o que designava como eflorescência do dia. “Os museus, as igrejas, os monumentos abrem-se-me como outras tantas portas para o paraíso” … Além do espetáculo das ruas, olhava «para o céu, para o mar, para as montanhas, para a paisagem com a encantada curiosidade de um ressuscitado”. E escrevia a alguns amigos com a abundância. Assim consumia «à semelhança de certos animais que hibernam, a própria enxundia, adquirida com o magro chorume das leituras passadas, e repito invariavelmente ao fim de cada dia: ‘este já ninguém mo tira’». Ao lermos esta carta, compreendemos bem como o artista se mantinha desperto. E temos o supremo prazer de gozar o talento de um espírito superior. Em menino era sonâmbulo - tendo, quando “acordado, facilidade de desassociar a inteligência da sensibilidade”. E os seus leitores compreendem bem a abundância do verbo. “Amiúde mergulho nas recordações de viagem, e a sucessão das cenas e quadros esquecidos, que retomam a cor, é de uma riqueza e de uma exatidão assombrosa”. E, sem surpresa, ouvimo-lo: acompanhando visões de extrema precisão, vendo-o os poetas recitar versos que nunca soube; os filósofos discutir sistemas, que mal conhecia, os historiadores lembrando lutas, raças e reinados, a que jamais prestara atenção, tecendo enredos e sucessos verosímeis, embora nenhuma notícia certa deles tivesse … E seguia a música, a sensualidade e o amor. E assim se explica como foi sempre voltando à literatura, quase mesmo sem o desejar, em quinze anos de um exílio de criação fértil.
Manuel Teixeira Gomes escreveu em 1927, na “Seara Nova” um texto memorável sobre o copejo do Atum, de que hoje damos conta.
“Ainda a madrugada não dava sinais de romper, já nos encontrávamos no bote que nos devia levar à armação (…). A companhia, como viera duas horas antes, acabava os últimos preparativos para a pesca, ensebando os cabos, experimentando as roldanas e reforçando as pulseiras dos arpões. À volta da armação aglomerava-se grande número de lanchas de carga, vindas durante a noite, dos portos vizinhos, onde o telégrafo levara aviso da grande copejada em perspetiva. Essas lanchas, pela ordem da sua chegada, destinavam-se a carregar peixe que se pescasse, para conduzir à lota de Vila Real de Santo António, o grande mercado do atum. Mas no enorme agrupamento de gente, batéis e lanchas, de que se distinguiam já claramente as formas e os movimentos, o que surpreendia era o silêncio, inesperado e sempre admirável na gente do mar, e sobretudo em algarvios de tão falaruca fama”. Depois do romper do sol, concentrados entre si, os homens “começavam a levantar o céu da armação” de modo a confinar os atuns no copo. Daí a pouco, avistados os primeiros atuns de bom calibre, os pescadores davam-se a uma tremenda gritaria e começava a “tourada”. Até alguns poucos marujos, numa cena helénica, cavalgavam alguns peixes, condenados à rendição, espetados por ganchorras e bicheiros.
Esta faina tremenda e cruel durou centenas de anos, com ganhos vultosos para os armadores. E nos séculos XIV e XV as velhas almadravas (antecedentes das armações) foram reforçadas com as reses de cerco também empregues na pesca da sardinha. E deste modo o Algarve tornou-se o grande centro da pesca do atum da Europa do sul. Note-se que as pescarias da costa algarvia foram doadas em concessão ao Infante D. Henrique, sendo as pescarias reais designadas como caçadas. Depois foram-se multiplicando as almadravas, tendo D. Manuel criado em Lagos uma Feitoria específica para essas armações. E o feitor encarregava-se de fiscalizar a coleta dos direitos régios, relacionadas com pescaria do atum, para verificar a venda do pescado que pertencia à Coroa. E Lagos tornou-se capital do atum, principal exportador do atum em salmoura para o Mediterrâneo. Foi o século XVI o de maior prosperidade nas pescarias, sucedendo-lhe no final da centúria uma fase de declínio e estagnação, soçobrando as armações. Perante essa evolução, Sebastião José, futuro marquês de Pombal, criou a Companhia Geral das Reais Pescas do Reino do Algarve para reanimar a pesca do atum, mas também da sardinha, estando ambas relacionadas por o peixe mais miúdo vir para a costa ameaçado pela voracidade do atum.
Lagos, Tavira, Faro e Fuseta foram as armações que melhor se mantiveram. Depois da revolução liberal deu-se a desamortização do mar, aboliram-se os direitos senhoriais e liberalizou-se a atividade piscatória, mas ficou um tratamento especial, criando-se a Companhia das Pescarias do Algarve, em lugar da sociedade majestática pombalina. Até aos dias de hoje houve profundas alterações na pesca e acompanhamento dos atuneiros.
Os conhecimentos científicos e técnicos, as investigações dos movimentos das espécies e das correntes tem permitido uma maior qualidade do atum para alimento, mas fica o eco da tradição e a reminiscência desta cultura atlântica e mediterrânica, hoje globalizada.
"Agosto Azul" (1904) de Manuel Teixeira-Gomes (1860-1941) é uma obra-prima na qual encontramos as extraordinárias qualidades literárias e estilísticas do seu autor. A sua leitura permite-nos usufruir virtudes artísticas únicas, pelas quais ganhamos com melhor conhecimento de Portugal, na sua beleza e na riqueza da nossa identidade, que atingem a plenitude da qualidade.
AS CORES MÁGICAS DO ALGARVE
Continuo com os livros. Vim à Feira do Livro, para celebrar sessenta anos dos Clássicos da Fundação Gulbenkian – como sinal de que os grandes textos sobrevivem para além dos episódios passageiros. Mas trouxe nos olhos as cores mágicas do mar do Algarve e os ecos das palavras de Teixeira-Gomes. Ainda é Agosto, como recordei com Nuno Júdice, quando nos encontrámos. E releio. “O calor abateu com o declinar do Sol que desaparece quando aproamos à barra. Como se extingue o braseiro no vasto disco de bronze amarelo assim se afogou o Sol em cinzas ao resvalar no polido oiro pálido do céu. Descobre-se a curva inteira da baía; mas a atmosfera perde a sua jubilosa limpidez, satura-se a humidade que a repassa de tons cetíneos e esfuma-se a poente de puídas cambraias arroxadas. A superfície do mar embebe-se de violeta, nas restingas da barra, a água rola espumas de arco-íris. O ar arrefece sem que bafeje o mais ténue sopro de arejo”.
Como esquecer estas palavras inapagáveis numa paisagem às vezes tão distraidamente olhada por tantos forasteiros. Desde o azul cobalto que avisto da minha janela ao roxo sombrio que faz realçar o “azul-verdoso” dos campos, continuo a recordar a descrição sentida. “A luz parece morrer numa atonia de pérola sem brilho; mas à revivescência do crepúsculo forra-se inesperadamente o horizonte do purpúreo damasco-escuro lavrado a fogo. Nesse plano ardente as altas serras do Algarve, que fecham a bacia do rio, ampliam-se e endurecem tornadas em maciço vidro fosco. A noite cresce do oriente com asas tenebrosas de morcego; esvai-se o crepúsculo e a escuridão cristaliza”. Avizinha-se a vila. Olham-se os “retalhos de papel furado por luzes cujos trémulos reflexos penetram profundamente no coração da água. Suspiram as estrelas no cristal negro do céu”. Estamos perante uma das invocações mais belas da literatura e da língua portuguesas, saída da oficina magistral de um artista espontâneo e cultivado. E nesse barlavento é o Algarve todo que se encontra, a ilustrar a vida, a memória, a paisagem. Que é a paisagem senão a expressão do encontro entre a vida e a humanidade? Ou não estivéssemos na convergência do Mediterrâneo e do Atlântico, ou, se quisermos, no mediterrânico atlântico – que Teixeira-Gomes não cessaria de recordar até aos últimos dias da sua vida em Bougie.
PATRIMÓNIO E CULTURA EM PLENO
Tenho insistido nesta noção ampla de património e de cultura, envolvendo a relação das pessoas com o meio natural, bem como a compreensão da arte como capacidade de olhar e entender o mundo e a vida com olhos de ver. É a vida que importa e a língua como consequência natural dessa vitalidade. E nas palavras que lembrámos há um constante vai-e-vem entre o que o artista vê e sente e a transição de um dia glorioso que a pouco e pouco se desvanece na imersão da noite, no magnífico céu estrelado que nos projeta para uma dimensão desconhecida que a cultura e a arte revelam. E regresso a Manuel Teixeira-Gomes e ao seu “Agosto Azul”, a que não me canso de voltar. Desconfiado das revoluções artísticas, o mestre prefere salientar a vitalidade das metamorfoses que a cada passo encontramos: “Cuido até que um talento pouco literário pode ser mais proveitoso à riqueza da língua do que o mais poderoso e versado humanista. Não faltam exemplos históricos de línguas empobrecidas por excesso de claridade e ressecadas à inclemência dos preceitos infrangíveis”, mas ganhas por uma ampla “gama de meios-tons, onde a cor se conjuga ao sentimento”, os quais, “alargando a vida, sugerem sensações inefáveis”. E eis o maior dos elogios à língua e à literatura, à criação e à cultura como modo ético de melhor nos fazermos compreender. É a palavra viva que importa.
Chegados ao dia 31, devemos invocar o grande escritor português do mês de Agosto – que é Manuel Teixeira Gomes.
Agosto Azul – é uma referência inesquecível, que invoca o Algarve, o Sul, o Sol, o Mediterrâneo. Sim, porque Portugal é fruto do casamento marítimo do Mediterrâneo com o Atlântico. Daí o Promontório Sagrado, que une as duas extraordinárias vocações e influências. E de Teixeira Gomes, o algarvio que foi Embaixador, escritor, Presidente da República, referência cívica devemos lembrar um pequeno retrato que nos deixou:
«Fiz-me negociante, ganhei bastante dinheiro e durante quase vinte anos (1890-1910) viajei, passando em Portugal poucos meses. Montei a vida de forma que na região compreendida pelo norte da França, a Bélgica e a Holanda, onde vendia os produtos do Algarve, levava quatro ou cinco meses, ia a casa liquidar contas, e depois nos cinco meses restantes, livre e despreocupado, metia-me no Mediterrâneo, cujas costas visitei por assim dizer passo a passo».
De tal modo foi apaixonado do Mediterrâneo que acabou seus dias em Bougie, lembrando no azul-cobalto do mar o seu Algarve de sempre… E a Norberto Lopes, confessará como é o seu dia. E descobrimos como são diferentes os hábitos desse tempo. E a vida frugal do escritor impressiona-nos…
«Levanto-me às quatro da manhã. Preparo eu mesmo, no quarto, o meu almoço. São as melhores horas do dia, aquelas em que ainda posso fazer alguma coisa: ler, escrever. Ao meio-dia, janto. Às duas e meia, saio para ir ao correio. Às quatro, tomo um chá de tília – e em seguida recolho-me. Creio que é, em parte, devido a este regime alimentar que me vou aguentando. Além disso, tenho as cartas, os artigos, os livros, é isto que me prende à vida».
Ah! Como se lembra a sociedade rural de antanho – o almoço ao alvorecer, a janta ao meio-dia, e, por fim, a merenda e a ceia… Como mudou tudo, por causa da eletricidade e da possibilidade de termos luz durante mais tempo e não apenas dependente do irmão sol…