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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICAS PLURICULTURAIS

César Borgia.jpg

 

146.   ENTRE O REAL E O IDEAL E O IDEAL E O REAL

 

O florentino Maquiavel e o inglês Thomas More são dois vultos permanentes em política e sociologia.

Maquiavel, confrontado com as guerras e lutas civis que gangrenavam a península itálica, procura uma maneira de a salvar, colhendo e adaptando os ensinamentos da história de Roma e da “Política” de Aristóteles, escrevendo “O Príncipe”, onde César Bórgia, senhor de Florença, de quem foi favorito e secretário de chancelaria, é tido como uma referência de governante, a quem atende, aconselha e se dirige.

Não sendo os poderosos, por natureza e princípio, mais inteligentes e justos que os outros, defende que chegaram onde estão porque são mais astutos, demagogos, hipócritas e pérfidos, podendo usar a crueldade, a tortura, a mentira, a má fé, o crime e a violência para manter o poder. Se para teres êxito na vida tiveres de atropelar e passar por cima dos outros, não hesites, sendo irrelevante que alcances o êxito sem honra ou modo pouco honroso. O fim justifica os meios, mesmo que condenáveis em si, desde que chegues onde queres, estando as razões de Estado acima de tudo, para alcançar o bem geral, identificado com o interesse de quem governa.

Os Estados, evoluindo ao sabor das leis naturais que gerem as sociedades, adaptam-se e reformulam-se consoante os tempos, de monarquias eletivas, hereditárias, tirânicas e decorativas, a repúblicas, autocracias, ditaduras, democracias liberais ou iliberais, e por aí adiante, num equilíbrio instável, em progressos e regressões.

Tomás Moro, inspirado na “República” de Platão, foi autor da “Utopia”, que significa “o que não existe em lado algum”, imaginando uma sociedade ideal, perfeita, quimérica, habitando uma ilha idealizada e longínqua, que o navegador português Rafael Hitlodeu conhecera, onde os bens são comuns, os governantes eleitos pelos utopistas, estes consultados sobre o que é relevante, quem governa fixa planos de produção e dirige a economia, todos vivendo felizes com o que têm, e cada um com o que precisa, idealizando uma coletividade com base na razão humana, balançando entre um real que se censura e rejeita e o ideal que se almeja e sonha.

Os utopistas deviam ajudar os vizinhos a transformar-se em Estados utópicos, passando a protegê-los, tendo-se como precursores do humanismo.

Este balancear do real para o ideal (Maquiavel e Tomás Moro) e do ideal para o real (Tomás Moro e Maquiavel), continua a guiar-nos, nomeadamente os políticos, sendo tidos por realistas e idealistas consoante seguidores de Maquiavel ou de  More, chamando-se maquiavélica a política caraterizada pela ausência de escrúpulos para governar e tomar o poder, e idealista a que se baseia numa sociedade que não existe mas se deseja que exista, mesmo que alimentada pela fantasia, fuga e sonho de um mundo tido como irreal.

Em qualquer caso, o Estado é um ente sempre presente, quer infrinja as leis para se manter e disponha das nossas vidas sem limites, quer se assuma como paternalista, qual messias ou salvador, rumo à sociedade ideal.

Predominando, entre os políticos e grandes estrategas os realistas (realpolitik), que nunca deixaram de ler e meditar sobre a doutrina de Maquiavel (tendo como subjacente os interesses práticos e primordiais do Estado e que as relações de poder tendem a minar as pretensões de fundamentação moral), deduz-se ser esta a política que agarra mais de  perto a realidade atual, devidamente adaptada ao contexto em que vivemos, teoria que tem como intrínseca a imperfeição da condição humana, com o seu clímax em todas as ditaduras e totalitarismos.

Porém, embora constitutivamente finitos e imperfeitos, também aspiramos, constitutiva e estruturalmente, a fazer sempre melhor, rumo a uma sociedade superiormente aperfeiçoada, num misto entre o real e o ideal e vice-versa, mesmo que agora utópica e uma democracia escrutinadora e pluralista, per si, possa ser vulnerável e insuficiente.

 

18.08.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

Retrato de Nicolau Maquiavel por Santi di Tito.jpg

 

124.  O PODER E O TERROR ABSOLUTO

Para Maquiavel se queres ter êxito na vida passa por cima dos outros, pelo que, em termos de poder e autoridade, tudo é lícito para o conseguir e manter, usando a astúcia, a hipocrisia, a crueldade, a má fé, a mentira, o crime e a violência. Não é censurável alcançar o poder e o sucesso de modo pouco honroso, desde que se chegue onde se quer. Não importa quem governa, mas como se governa. Os interesses dos governantes, conhecidos por razões de Estado, estão acima do bem comum dos governados, podendo o governo recorrer, lícita e legitimamente, à crueldade e ao engano, sendo admissível o Estado infringir as suas próprias leis, sem limites, se necessário, para sobreviver.

Passou a chamar-se maquiavélica a política caraterizada pela ausência total de escrúpulos morais e éticos com que eram aconselhados os políticos e governantes a atuar, justificando-se o fim por todos os meios.

Realista a têm tido, até hoje, os políticos, que jamais a deixaram de estudar, meditar ou pensar, por mais pérfida que seja, ao invés da sociedade ideal, perfeita, romântica e sonhadora, que vive numa ilha longínqua, que não existe em lado algum, chamada “Utopia”.

Embora clássica e atual, esta lógica maquiavélica tem algo de primitivo e tribal por confronto com os políticos e militares fabricantes do poder e terror absoluto emergente do nuclear, face ao qual a ambição desmedida, o erro, a estupidez, o mau senso, a criminalidade e a violência, podem destruir a humanidade.

Uma certa ciência, anteriormente símbolo e sinónimo de progresso, é hoje progresso e retrocesso. Quando perdeu e perde o sopro humano inspirador do humanismo, tornou-se e torna-se amoral.

Tradicionalmente argumenta-se que a responsabilidade dos cientistas existe só para com a verdade científica, não para com a verdade moral, ética ou social, o que os torna especialistas indiferentes aos malefícios das suas invenções e à sorte dos homens daí resultante, tornando-se a ciência, por vezes, uma atividade imoral.

Há que contrariar e condenar este caminho que nos conduz ao poder e terror absoluto que leva à morte total e à aniquilação de toda a esperança. Há que enriquecer a vida e o progresso humano espiritual, ao invés de uma hipotética ingenuidade de Einstein e outros cientistas ao tentaram suspender a explosão atómica e se deram conta do perigo de uma corrida permanente às armas nucleares que, por certo, prepararia uma guerra que poderia ser o fim do mundo que conhecemos e da nossa espécie, desacompanhado da consciência de qualquer responsabilidade moral ou ética, mesmo que validada juridicamente por seres medíocres e indecisos detentores do poder e terror absoluto que querem para comando da História.

 

04.11.22
Joaquim M. M. Patrício

A VIDA DOS LIVROS

De 9 a 15 de dezembro de 2019

 

O livro de Jorge de Sena, «Maquiavel e Outros Estudos», foi publicado pela Livraria Paisagem, do Porto, em maio de 1974, e constitui uma obra fundamental no conjunto dos ensaios de Jorge de Sena.

 

 

ALTO PADRÃO CÍVICO
Concordo com António Feijó quando afirma que Jorge de Sena é uma referência para a nossa geração, pelos altos padrões de valores que nos apontou e pela sua coragem. O certo é que o escritor, o poeta, o ensaísta lutou por uma liberdade que não era compatível com a mediocridade. Daí a necessidade de trabalho, de persistência e de uma capacidade inequívoca de vislumbrar o outro lado das coisas. Sem a tentação de apenas ver a claro e escuro ou de se limitar ao próprio e ao alheio, Sena é uma referência. Isso mesmo tem gerado mil incompreensões e injustiça. Importa, por isso, lembrar os verdadeiros testemunhos e não comentários de despeito e de má-fé. Recordo bem, quando “O Tempo e o Modo” (nº 59, Abril de 1968) publicou o número dedicado a Jorge de Sena, como houve vozes surdas e sonoras, desconfiadas, sem compreender, o que hoje sabemos, ou seja, a importância do pensamento e do método do polígrafo. António Cândido, que conheci, recordava amiúde: “Bastava conversar algum tempo com Jorge de Sena para perceber as suas fagulhas de genialidade. Na sua personalidade vulcânica, talvez o que mais impressionasse fosse a estrutura de contrastes. Era versátil de modo extensivo e, ao mesmo tempo, densamente profundo. Era arrebatado até à explosão e concentradamente reflexivo. A sua informação era inacreditável e a sua capacidade de captar conhecimento chegava a causar espanto pela rapidez e a penetração, só comparáveis à presteza com que traduzia os resultados em escrita”… Pedro Tamen, num depoimento dado à revista “Relâmpago” (nº 21, 2007) resumiu o essencial: “Sena era impaciente e tinha mau feitio. Cometeu, sem dúvida, algumas injustiças; mas se o fez, foi por não ter pachorra para a mediocridade. Para o ‘reino da estupidez’. É que Jorge de Sena era superior mesmo”.

 

UM ENSAIO NOTABILÍSSIMO
Há um ensaio notabilíssimo, não sobre os temas habituais de Jorge de Sena, mas sobre a grande filosofia política, que atesta bem a exigência de pensamento do mestre. Falo de «Maquiavel e o “Príncipe”», publicado em S. Paulo, pela Cultrix, em 1963, numa obra intitulada Livros que abalaram o mundo. Nesse livro Sena escreveu ainda «Marx e “O Capital”». Entre nós, Maquiavel e Outros Estudos, foi publicado pela Livraria Paisagem, do Porto, em maio de 1974, envolvendo Miguel Ângelo, Shakespeare, Galileu, Marx, Rousseau, Chestov e Malraux… No dia em que li esse extraordinário texto, Maquiavel tornou-se não aquela figura que muitos associam a um adjetivo caricatural e falso, mas o grande moralista, pensador político, que refletiu sobre a unificação italiana como um sinal de civilização. Nem velhacaria nem perfídia, do que Maquiavel trata é de outra coisa, e por isso deve ser considerado como “um patriota italiano e um estadista angustiado por ver a Itália dividida em principados, repúblicas, estados papais, e territórios de potências estrangeiras”. “Foi e é, um dos maiores escritores da literatura italiana; e, se compreendida e situada no tempo dele, a sua obra é a de um dos mais argutos, lúcidos e corajosos pensadores políticos de todas as épocas”. A sua grande revolução do pensador é despir “a ação política de toda a transcendência e, sobretudo, de toda e qualquer sanção extrínseca aos próprios valores cuja conquista devem norteá-la”. Leia-se, aliás, a “Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”, onde essa lembrança viva se encontra, “… o mesmo mundo que criemos / nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa / que não é nossa, que nos é cedida / para a guardarmos respeitosamente / em memória do sangue que nos corre nas veias, / da nossa carne que foi outra, do amor que / outros não amaram porque lho roubaram” (Metamorfoses, 1963).

 

MAQUIAVEL A OUTRA LUZ
Para Sena, Maquiavel “é um moralista na mais alta e nobre aceção da palavra: aquele que descreve os costumes humanos, os resultados a que eles conduzem, e as causas que os condicionam, com objetividade clínica. Se daí pode ser extraído, ou não, um conjunto de normas morais que rejam o bem-viver em sociedade, eis o que excede o âmbito do seu pensamento. E excede-o, não porque entende lucidamente que, no plano político, a virtude só tem sentido se estiver ao serviço de alguma coisa concreta”. A intuição do ensaísta português é extraordinária, uma vez que insere o grande pensador italiano no grande movimento de emancipação política da contemporaneidade. Eis como o pensamento de Maquiavel é contrário àquilo que “tem sido pejorativamente acusado de o ser; e a exploração que tiranos e ditadores fizeram dele não passa de uma depravação criminosa da sua nobreza intrínseca, da sua coerência empírica, da sua dignidade fundamental”. Longe de uma ambivalência moral e da tentação de justificar a ilegitimidade e a tirania, do que se trata é da criação de condições para que a liberdade, a dignidade e a independência possam existir. O bem e o mal perdem sentido na vida sociopolítica se forem abstratamente dissociados, já que, como diz o povo, de boas intenções está o inferno cheio. No fundo, temos de entender que a República, é dela que Maquiavel nos fala, é um regime de pessoas imperfeitas, que têm de saber lidar com a imperfeição, para poderem ser melhores. A lucidez do escritor é demasiado crua? Mas é preciso partirmos dela para criar condições a fim de nos aproximarmos de uma “vita buona”, conscientes de que nunca será acabada e perfeita, uma vez que em tal caso se tornaria desumana. “Todo o pensamento e toda a ação levam em si aquilo que os contradiz e destrói, aquilo que os fará inferiores à realidade que os ultrapassa”. De facto, “pensamento e realidade criam-se mutuamente, e é a criação, o ato de criar, o que os excede a ambos, e não um que se excede ao outro”. Basta lembrarmo-nos do ciclo de frescos de Ambrogio Lorenzetti no Palazzo Pubblico de Siena, para compreendermos a importância e o sentido do texto de Maquiavel. Aí se oferecem as representações iconográficas dos conceitos políticos abstratos: a Paz, a Concórdia e a Segurança, por oposição à Guerra, à Divisão e ao Medo. E como mostrou Quentin Skinner, o grande pensador contemporâneo que tem estudado o tema, a alegoria do Bom Governo deve ser interpretada como a tradução visual duma ideologia: a do ideal da cidadania e da autonomia republicana, que se desenvolveu nas cidades-estado em Itália no início do Renascimento – e que Maquiavel deseja generalizar. Nesta perspetiva “Lorenzetti não se contenta com ilustrar uma ideologia da vida civil, contribui simultaneamente para produzir esta ideologia e da maneira mais espetacular. Ora, é a esta luz que o “Príncipe” deve ser lido, como extraordinária apresentação positiva de uma ideologia inovadora sobre as raízes republicanas do que hoje designamos como Democracia. Trata-se, no fundo da demarcação necessária relativamente às diversas formas de despotismo e tirania. Por isso, Jorge de Sena foi perentório: “A monstruosidade do príncipe maquiavélico é apenas, paradoxalmente, a do homem reduzido à sua virtù. E, se Maquiavel foi genial nesta redução que restitui o homem à sua dignidade responsável, foi porque retirou ao homem a desculpa de atribuir-se o direito de ser monstruoso à escala divina”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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