Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A expansão marítima europeia, que teve como precursores os portugueses, é de significativa complexidade, não sendo compatível com simplificações. A costa marítima atlântica de Portugal, o conhecimento antigo de África e do Mediterrâneo Ocidental, a longa prática dos pescadores algarvios nas relações económicas com Marrocos, as necessidades económicas determinadas pela carência de meios (cereais e ouro) – vão conduzir à conquista de Ceuta e às viagens para sul na costa africana. A obtenção de ouro, primeiro, mercê de trocas com os tuaregues e depois através da descoberta de jazidas conhecidas das tribos do deserto, permitiu a cunhagem de cruzados, de uma grande pureza e geral aceitação, com grande estabilidade no respetivo valor. Depois de 1442, verifica-se o desenvolvimento do comércio de escravos, no início por capturas diretas e depois através da mediação dos povos africanos. Nascem as feitorias, de que um primeiro exemplo é Arguim, onde os portugueses trocavam cavalos, tecidos, objetos de cobre e trigo por pó de ouro, escravos e marfim. E com a chegada destes bens a Portugal as expedições da África ocidental tornam-se lucrativas, nunca os portugueses descobriram, porém, as minas de onde vinha o ouro nem conseguiram estabelecer feitorias no interior. «Mas (segundo Charles Boxer) a luta das caravelas portuguesas contra as caravanas mouras de camelos do Sara teve como resultado a predominância das primeiras no comércio do ouro, por um período de 100 anos, de 1450 a 1550». Só de S. Jorge da Mina (depois de 1452) registar-se-iam importações anuais de 170 mil dobras e às vezes mais. «Se bem que os principais produtos que os portugueses procuravam na Senegâmbia e na Guiné continuassem a ser os escravos e o ouro, outros produtos oeste-africanos, como a malagueta ou grão-do-paraíso, uma especiaria parecida com a pimenta, além de macacos e papagaios, encontravam, também, um mercado lucrativo em Portugal». As mercadorias que permitiam a compra de escravos e ouro vinham do estrangeiro. A malagueta ia para a Flandres e os escravos para Espanha e Itália, antes da descoberta das Américas.
Infantes D. Henrique e D. Pedro: complementaridade ou oposição?
Como compreender, na Ínclita Geração, o Infante D. Henrique, se não o ligarmos à figura moral de D. Duarte, o Leal Conselheiro, e à fulgurante inteligência estratégica de D. Pedro, “o português universal”? Contudo, essa complementaridade, que permitiu a afirmação de Portugal na Europa e no mundo não foi isenta de dramáticos ajustes de contas, como o trágico episódio da Batalha de Alfarrobeira (20.5.1449)?… Alfarrobeira foi resultado de uma intriga palaciana, envolvendo o Duque de Bragança, D. Afonso, filho bastardo de D. João I. D. Afonso V escreveu ao referido Duque, seu tio, requisitando-o à corte, acompanhado de escolta uma vez que teria de atravessar terras de Coimbra. D. Pedro, Duque de Coimbra, sabedor da vinda do seu inimigo, proíbe-lhe a passagem por suas terras e é considerado súbdito desleal ao rei. Publicam-se éditos contra o D, Pedro e seus aliados e o rei investe na tentativa de submetê-los, instalando-se em Santarém. Por sua vez D. Pedro desce de Coimbra em direção a Lisboa e encontra as tropas de D. Afonso V no lugar de Alfarrobeira, em Vialonga. Apesar das tentativas do Infante D. Henrique para evitar a contenda, bem como do Conde de Avranches, D. Álvaro Vaz de Almada, a batalha tem lugar, vencendo o rei e perdendo a vida D. Pedro, e o Conde de Avranches, o qual perante a derrota deu o célebre grito: “É fartar vilanagem”…
A ideia fundamental do Infante D. Pedro das Sete Partidas era a de termos de ser europeus, de estar no núcleo mais dinâmico do continente, de ligar quem ficava e quem partia, para melhor projetarmos a influência económica e política, sendo a lição essencial da nossa cultura a capacidade de prever, de planear e de persistir. Esse projeto transformaria profundamente a sociedade portuguesa e as relações de poder. Contudo, a estratégia continental resistia, por contraponto à vocação marítima.
A visão ecuménica de D. João II: o Plano da Índia e Tratado de Tordesilhas
Depois da derrota de D. Afonso V nas suas pretensões ao trono de Castela, inicia-se um novo período histórico, no qual irá pontuar D. João II, neto por via materna do Infante D. Pedro. O comércio africano era partilhado entre a coroa e os mercadores, com o controlo apertado da Casa da Mina, situada no edifício do Paço da Ribeira – cabendo à Coroa o monopólio do ouro. As receitas do comércio do ouro e dos escravos permitiram a D. João II avançar para o Golfo Arábico e Índia – para as especiarias asiáticas. Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança (1488) e Pero da Covilhã e Afonso de Paiva são enviados por terra em busca do Reino do Preste João e para conhecerem a Índia. Pero da Covilhã sobrevive e, ao regressar ao reino, é solicitado por um mensageiro de D. João II, na cidade do Cairo, para «continuar até ao reino do Preste João, que tinha sido então localizado nas montanhas da Abissínia». O relatório que teria enviado para Lisboa não se sabe se chegou ao destino. Vasco da Gama saberia que tinha de aportar no sudoeste da Índia, mas tinha informação insuficiente e foi incapaz de distinguir os templos hindus das igrejas cristãs… O certo é que a política de D. João II levaria ao fim do monopólio veneziano-mameluco das especiarias no oriente do Mediterrâneo. Em 1485, o discurso de obediência proferido por Vasco Fernandes de Lucena perante o Papa aponta claramente para a concretização da chegada dos portugueses ao Oceano Índico. Quando D. Manuel herdou a coroa de seu cunhado, seguiu claramente a estratégia do Príncipe Perfeito. E Vasco da Gama «levava credenciais dirigidas ao Preste João e ao rajá de Calecute, juntamente com amostras de especiarias, ouro e aljôfar… A partida para a Índia ocorreu nove anos depois de Bartolomeu Dias ter regressado do Cabo. Entretanto Colombo tinha regressado da sua «histórica viagem», pensando ter chegado à Ásia Oriental. Por que razão tanto tempo depois da chegada ao Cabo da Boa Esperança? As explicações são contraditórias – os novos acontecimentos em Marrocos, a morte de D. Afonso, o herdeiro de D. João II; ou a doença do Rei. Mas há quem pense que houve, entretanto, viagens no Atlântico Sul para encontrar a melhor rota para o Índico e que teriam permitido não só favorecer as navegações com segurança, mas também encontrar o importante território brasileiro.
A figura de D. João II, o Príncipe Perfeito (1455-1495) continua envolta em dúvida e mistério. Filho de D. Afonso V, e irmão de Santa Joana Princesa, a verdade é que a sua personalidade e a sua política demarcaram-se das de seu pai, apesar da nítida complementaridade. Se é certo que foi desde muito cedo associado à governação do reino, a ponto de ter a direção das “navegações” desde 1475, seis antes de subir ao trono, não podemos esquecer que a sua ação se inseriu na continuidade do plano concebido pelos filhos de D. João I, o seu avô paterno D. Duarte, o seu avô materno D. Pedro e, naturalmente, o tio-avô D. Henrique. E se encontramos formulada uma “estratégia nacional”, tal fica claro se nos recordarmos: da política de segredo, como modo de defesa de uma ampla zona de influência perante a ameaça do concorrente mais próximo; da definição de um “modus vivendi” na Península Ibérica que garantisse à entrada do Mediterrâneo uma base económica e política sólida no continente europeu para o “plano da Índia”; e a afirmação de um poder político forte, centrado na Coroa, sem a “perturbação” das influências da alta nobreza e do alto clero.
Como reparação relativamente à derrota do Infante D. Pedro em Alfarrobeira, D. João II define a exigência de um “poder europeu” ligado à ideia de um “império universal”. De facto, como aconteceu, Portugal sozinho teria dificuldade em ser cabeça de um império global. Daí a necessidade de uma aliança ibérica, com salvaguarda da prevalência marítima. Naturalmente, que a análise deste tema complexo conduz invariavelmente ao risco de transposições abusivas. Impõe-se, por isso, ter presente a reflexão da historiografia dos últimos dois séculos a este propósito, designadamente quanto às “causas da decadência dos povos peninsulares” (de Antero e de Oliveira Martins) ou quanto à alternância entre “fixação” e “transporte” (que António Sérgio foi beber na Geração de 1870 e aos sequazes desta). E essa explicação considera ser D. João II o paradigma da “fixação” e herdeiro do “europeísmo universalista” de D. Pedro. Deve haver, porém, cautelas nas transposições, apesar de ser insofismável que a “política” de D. Manuel, se trouxe a pompa e circunstância do nosso “século de ouro”, veio a prenunciar a incapacidade do “Estado” para administrar um império de dimensão mundial, bem como a falta de uma base financeira e económica (agravada pela expulsão dos judeus e da sua “partida” sobretudo para o Mar do Norte) e a influência crescente dos “fumos da Índia”, com todas as suas consequências morais e sociais.
O caminho da centralização, aprendido por D. João II na escola italiana de Direito Público e na prática francesa de Luís XI, baseou-se na ideia da proveniência divina do poder, aliada ao necessário “consentimento do povo” – como o Infante D. Pedro defendera na “Virtuosa Benfeitoria”. Daí a necessidade de limitar o poder da nobreza e do alto clero e de assegurar uma ligação efetiva aos povos, representados nos municípios. O rei seria, assim, um defensor dos povos, devendo, para o efeito, reforçar a sua própria autoridade. Daí o lema “Pola Ley e Pola Grey”, sob a imagem de um pelicano que, ferindo o peito, assegurava o sustento das crias no ninho. Eis por que razão não se deve falar de conceção “absolutista” com D. João II, mas de um entendimento mais próximo da ideia de “proteção”, com raízes na tradição que vinha dos acontecimentos de 1383. Esse o contraponto em relação aos inimigos que tinham conduzido o pai à derrota em “Alfarrobeira” – apostando na fragmentação do poder, no enfraquecimento da Coroa e no enriquecimento de uns poucos à custa do Erário Régio.
D. João II não esqueceu, contudo, a trágica morte de seu avô e a consequência que esta teve na aceleração do prematuro desaparecimento de sua mãe. Só um poder eficaz e forte seria respeitado, nacional e internacionalmente. Para o Príncipe Perfeito importaria, assim, delinear e prosseguir o plano das navegações da Índia, a partir de uma posição consolidada. Daí as mil cautelas, a diplomacia secreta e o combate a todas as subtis formas de erosão do Estado e do poder. Como numa partida simultânea de xadrez, vemos o monarca lançar diversas vias de ação: retomar sistematicamente as viagens na costa africana, que desde a morte do Infante (1460) tinham perdido ímpeto, mandar missões por terra em busca do Preste João e a preparar a chegada à Índia (Afonso de Paiva e Pêro da Covilhã), desenvolver uma complexa ação diplomática quer com a Santa Sé quer com os Reis Católicos. Paralelamente, haveria que reorganizar a Administração do Reino, profundamente desorganizada. Assim, o final da década de oitenta do século XV representa o culminar da “afirmação” de D. João II, no dizer da Prof. Manuela Mendonça (autora da obra fundamental D. João II, um percurso humano e político nas origens da modernidade em Portugal, Estampa, 1991). Estamos diante do corolário lógico de uma ação de grande clarividência – desde a reorganização do reino até ao casamento do príncipe herdeiro D. Afonso com a filha dos Reis Católicos, D. Isabel, passando pela afirmação internacional, pelas navegações no Atlântico Sul (em que Diogo Cão, Duarte Pacheco Pereira e Bartolomeu Dias desempenharam papel essencial).
O célebre discurso de Vasco Fernandes de Lucena em Roma por ocasião da entronização do novo Papa Inocêncio VIII e o cerimonial de investidura do Marquês de Vila Real, D. Pedro de Menezes, em Beja, em março de 1489, bem como os esponsais do malogrado príncipe D. Afonso constituíram simbolicamente os momentos cruciais de afirmação da grandeza de D. João II como grande monarca europeu (leia-se por todos Martim de Albuquerque, O Poder Político no Renascimento Português, s.d.). Mas para chegar onde chegou, D. João teve de afirmar o seu génio económico e político. Foi graças às receitas obtidas no comércio da Guiné que pôde estabelecer definitivamente em bases científicas a solução do problema da descoberta do caminho por mar até à Índia. No dizer de Jaime Cortesão: “sob a direção real, uma nova ciência náutica é criada, que dominará os séculos XVI e XVII, sendo ensinada secretamente aos pilotos portugueses. Com este fim, o rei enviou às terras descobertas, em expedições sucessivas, os melhores astrónomos e técnicos encarregados de ensaiar os novos métodos como os novos instrumentos e de calcular as posições geográficas destas regiões e a grandeza do grande círculo terrestre, que conseguiram determinar com uma notável exatidão” (L’Expansion des Portugais dans l’histoire de la civilisation, Anvers, 1930).
A morte trágica do Príncipe D. Afonso (1475-1491) em Almeirim, por queda de cavalo, deitou por terra todos os sonhos e projetos. Os reinos ibéricos não chegariam à glória abraçados, como D. João teria pensado… A decadência seria compartilhada, dramaticamente. Haveria a demonstração de que Colombo não tinha a chave da chegada à Índia (mas de um Novo Mundo), e de que era D. João II quem estava na vanguarda da organização e da ciência. E haveria Tordesilhas e o misterioso volte face final, com Portugal a reivindicar uma zona que só o próprio Príncipe Perfeito conhecia…
Falando do Tratado de Tordesilhas, de 7 de junho de 1494, este estabeleceu a divisão das áreas de influência dos países ibéricos, cabendo a Portugal as terras “descobertas e por descobrir” situadas antes da linha imaginária que demarcava 370 léguas (1770 km) a oeste das ilhas de Cabo Verde (Santo Antão) e a Castela as terras que ficassem além dessa linha. O diplomata Duarte Pacheco Pereira, que conheceria as terras do Brasil, fez com que essa linha avançasse de modo a abranger um espaço maior no território americano do que previsto inicialmente. Bartolomeu de Las Casas dirá: os portugueses tiveram “mais perícia e mais experiência” do que os castelhanos.
Dir-se-á que D, João II foi um monarca duro e implacável. As mortes dos Duques de Bragança e de Viseu (seu cunhado) ilustram esse carácter. No entanto, sabemos que houve uma conspiração contra o Rei, para ir às últimas consequências (“por ferro ou por peçonha”). Mas se falarmos do prestígio do Príncipe Perfeito, basta lembrarmos como Isabel, a Católica o designou quando soube de sua morte: – o Homem! Haveria sempre tempo de coruja e tempo de falcão. D. João soube-o bem, ao morrer como coruja no Alvor, envolto em enigma, depois de ter sido falcão…
“Fainas Épicas do Mar Português” de Álvaro Garrido (CTT, 2022) é uma obra que nos permite compreender a relação dos portugueses com o mar, através do conhecimento das suas diversas realidades.
As pescas do bacalhau e do atum e a caça à baleia estão ligadas a um imaginário épico que permite compreender em toda a sua beleza e dramatismo parte da relação dos portugueses com o mar. As três grandes fainas que a obra trata partilham um registo estético ligado a uma violência que foi alvo de atenção de grandes escritores, que souberam projetar essa aventura humana para além da sua expressão económica e prática. Destas três fainas, “aquela que tem uma dimensão mais global e multicultural é sem dúvida a da baleia, dadas as ligações geográficas e humanas que as ilhas dos Açores há muito estabeleciam com os portos baleeiros da América do Norte”. De facto, a baleação açoriana é indissociável das relações no Atlântico Norte, tendo quer nas Artes quer na Literatura “uma expressão muito rica e pujante que cedo interessou grandes escritores europeus e norte-americanos”. Além das três epopeias, poderia também falar-se da arte xávega, artesanal, da pesca da sardinha nas traineiras ou das artes do cerco, bem ligadas à cultura piscatória da costa atlântica portuguesa. No entanto, as três áreas objeto desta obra, extremamente bela e educativa, constituem exemplos referenciais, que permitem obter uma informação e um conhecimento muito ricos sobre a diversidade das relações dos portugueses com o mar e sobre os desafios atuais lançados e as respostas necessárias no tocante ao aperfeiçoamento das técnicas de navegação e de orientação em mares agrestes e desconhecidos. Mais do que exaltar as imagens de sugestões épicas, há que compreender, pois, a motivação que levava aqueles homens a embarcar campanha após campanha… Apesar da dureza da pesca do bacalhau, era comum ouvir-se a um experiente homem do mar com trinta campanhas feitas que voltaria a embarcar se o pudesse fazer. Hoje, porém, mais importante do que imaginar um passado mítico ou do que fazer julgamentos retrospetivos, importará, segundo o autor, “descobrir e valorizar, num registo multicultural, a cultura marítima portuguesa – os grandes empreendimentos humanos das pescas e da navegação comercial, as pescas longínquas e costeiras, a vida marítima entranhada nas comunidades litorâneas”.
Para Orlando Ribeiro: “as pescas foram o motor de todas as fainas do mar e dos rios: cabotagem, navegação fluvial, extração do sal (…), portos de estuário e de rio hoje assoreados, estudados minuciosamente por Cortesão), navegação do largo”. A orla marítima desempenhou um papel importante na identidade portuguesa, apesar de uma situação paradoxal, segundo a qual há uma importância reduzida do mar na economia nacional, em termos globais. Apesar de ser um “país de costa” (na expressão de Raul Brandão), “nem por isso Portugal produziu grandes expressões de cultura marítima”. Se olharmos, por exemplo, a pintura naturalista de Silva Porto ou de João Vaz encontramos menos o romantismo e a fúria e mais o retrato melancólico e de falsa harmonia… O peso da ruralidade corresponde a uma reduzida expressão social das profissões marítimas. No conjunto dos Estados da União Europeia, Portugal é o que mais depende de capturas obtidas no exterior para abastecimento do mercado interno – o bacalhau do Atlântico Norte e a pescada do Sudeste Atlântico – com baixa produtividade da pesca costeira, sobretudo importante para as comunidades do litoral.
Começando pela faina dos bacalhoeiros, recorde-se o que Bernardo Santareno designou como “drama épico”, com uma prática multissecular, desde o século XVI, que hoje se limita a uma “produção nacional” de 2 por cento do consumo anual de bacalhau salgado seco no mercado interno português, por termos passado do domínio do Estado protecionista e autárcico do corporativismo (numa lógica paralela à da campanha do trigo) para a lógica atual das zonas económicas exclusivas. No auge da pesca transatlântica, em 1950 e 1960, uma campanha durava cerca de seis meses. De 1935 a 1974 matricularam-se vinte mil pescadores portugueses na faina, em todos os tipos de navios, desde os velhos lugres sem motor auxiliar aos arrastões pela popa. O lugre “Creoula” é uma referência histórica. Chegados aos bancos da Terra Nova e à costa oeste da Gronelândia, os pequenos dóris eram lançados e tudo se organizava para pescar o mais possível, carregar os navios com o maior ganho para o armador e indiretamente para os pescadores.
A literatura mundial atribui uma importância mítica à baleia e ao cachalote, com destaque para os baleeiros açorianos e norte-americanos. Herman Melville com “Moby Dick” e Júlio Verne ou a pintura de William Turner, mas também Luís Sepúlveda com a “História de uma Baleia Branca” invocam essa aventura. Lembremos que o porto da Horta foi no século XIX o maior entreposto baleeiro norte-americano no Atlântico. “Os pátios de desmancho eram lugares dantescos onde as crianças e os velhos vinham observar o esquartejar dos cachalotes, um acontecimento total na vida das povoações baleeiras…”. As condições eram, porém, precárias, numa atividade insalubre. O arpoamento era feito em chalupas e botes baleeiros, embarcações elegantes e esguias que permitiam uma grande versatilidade. A evolução das tecnologias e das mentalidades fez transformar a relação com a atividade baleeira. Em “Mulher de Porto Pim” António Tabucchi romanceia a memória dos baleeiros: «Fui lá com uma mitologia: ver como era uma caça à baleia. E outro motivo: ver os lugares de Antero, e por isso comecei por São Miguel, visitei a ilha, o cemitério, a casa e o sítio onde ele se suicidou. Depois, como não consegui encontrar por lá baleeiros, comecei a tentar as outras ilhas, até que consegui encontrar um, no Faial. E embarquei com ele…»
Falando do atum, apreciadíssimo desde a Antiguidade, temos de dizer que as águas algarvias têm condições excecionais para a passagem em dois movimentos entre o Atlântico e o Mediterrâneo. O rei D, Carlos foi dos primeiros a estudar o comportamento dos atuns na costa algarvia. O atum de direito desloca-se de ocidente para oriente, gordo e de ovas cheias e o atum de revés magro e voraz. Raul Brandão fala-nos das armações e dos arraiais, respetivamente em Tavira e na Ponta da Baleeira em Sagres. A armação era a arte da pesca em si mesma, o empreendimento humano, verdadeira obra de engenharia enquanto sistema de redes de captura, enquanto o arraial era a estrutura de apoio. O copejo do atum é um verdadeiro espetáculo, invocado por Raul Brandão e Teixeira Gomes. “O espetáculo é único. Quase inédito no Mundo. É tourada no mar. O campo verde da batalha não é agora mais que líquido viscoso. Alucina e entontece”. Eis outro lado dessa magia!
A opção atlântica é reconhecida desde sempre como historicamente vital para Portugal, não esgotando todas as suas potencialidades, pelo que se impõe também a opção europeia, desde logo porque parte integrante da Europa.
O problema presente e futuro que se coloca a Portugal é o de compatibilizar e harmonizar estas duas opções. O que indica a conveniência de tirar partido de todas as oportunidades de desenvolvimento e modernização da opção europeia, sem pôr em causa as vantagens oferecidas pela histórica opção atlântica.
Portugal tem interesse em compatibilizar e reforçar desenvolvimento com segurança na diversificação das dependências, gerindo-as para efeitos de sobrevivência, tendo presente que a opção europeia tem a ver com a Europa toda, que como tal lhe dá mais garantias de afirmação da sua identidade em relação a Espanha, encarada, nesta perspetiva, como um país europeu, entre vários.
Diversificar dependências e relações é parte do caminho certo do desenvolvimento em segurança.
É o que fazem países com desafios e problemas idênticos aos de Portugal, como a Dinamarca (que impôs no Tratado de Maastricht uma cláusula especial proibindo a aquisição de propriedades no seu litoral a estrangeiros, pensando na Alemanha, com que tem uma só fronteira terrestre), a Irlanda, que diversificou as relações e dependências, fazendo da Inglaterra um parceiro europeu, entre outros.
Continentalizações e iberizações de Portugal podem ser compensadas pelo reforço correspondente do seu poder centrífugo, que decorre preferencialmente das potencialidades da sua litoralização, atlantização e universalização.
Refere, a propósito, Virgílio de Carvalho, que a palavra Mar, aqui utilizada, tem um sentido mais amplo que o do simples meio líquido, “abarcando o sentido do poder marítimo (económico, militar), e ainda tudo o que, duma forma ou de outra, concorre para o centrifugismo económico, cultural e político que torne Portugal no referido país mais euro-atlântico que ibérico, universalista, viável” (A Importância do Mar para Portugal, p. 88).
Mar que deve ser constituído pelo litoral do continente (locomotiva de desenvolvimento) e o interior a aproximar dele por meio de rios navegáveis e vias terrestres a ele paralelas; os arquipélagos dos Açores e da Madeira; o espaço marítimo e aéreo interterritorial (como área de grande interesse estratégico nacional). E como complemento os países que falam português, caso dos estados membros da CPLP, bem como as comunidades de interesses comuns culturais, económicos e geopolíticos que o possam desejar vir a constituir com Portugal; as potências marítimas (europeias e extraeuropeias) racionalmente interessadas na preservação da individualidade estratégica de Portugal; as comunidades de portugueses e seus descendentes, no estrangeiro, e respetivos países de seu acolhimento.
Para Portugal é inquestionável que lhe interessa uma política de cooperação com os países que falam português, dado que, se for possível uma concertação de objetivos, de estratégias e meios para os realizar, ela pode redundar em poder negocial e em segurança que lhe são necessários, nomeadamente, como reserva para contrabalançar o desafio europeu. Pode, pois, tal cooperação ser tida como parte e componente universalista do potencial estratégico de Portugal.
Refira-se também o interesse estratégico, económico e cultural da escola de pensamento geopolítico brasileiro, de que é tido como mentor principal o general Golbery do Couto e Silva, que em 1981 disse ser dever do Brasil estar pronto para assumir a defesa do património lusófono criado por Portugal, nomeadamente no Atlântico ao sul do Senegal, caso tal se torne necessário.
Sempre ressaltou, em Portugal, uma dualidade entre o mar e o continente.
Pouca terra e muito mar.
A estratégia europeia de vocação universal do império imaginado por D. João II, representava a síntese deste dualismo.
Seria tanto mais sólida quanto mais o fosse a sua base europeia.
Queria que a economia de Portugal, Castela, Leão e Aragão fosse a mais forte da Europa, tendo Lisboa como capital e grande entreposto comercial.
O seu projeto falhou, com a morte do filho, o príncipe D. Afonso, casado com uma filha de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os reis católicos.
O domínio que desejava para Lisboa e a Península Ibérica transferiu-se para a Europa do Norte, como Amesterdão. Nunca conseguimos ter uma base continental europeia sólida.
Havia também que cuidar das bases sólidas da nossa economia, para não termos um império com pés de barro.
D. João II tentou-o, através da síntese entre os mais próximos da Europa do Norte, como o Infante D. Pedro, e os que se aproximavam mais da Europa do Sul, como o Infante D. Henrique.
Defende-se que o Atlântico se identifica com a Europa do Norte e o Mediterrâneo com a do Sul. Que o projeto de fixação continental é representado pelo velho do Restelo e o marítimo pelo transporte pelo mar.
Atenta a nossa posição geográfica na Europa, o nosso projeto está na confluência entre o Atlântico e o Mediterrâneo.
Só que o Atlântico, para Portugal, sempre foi um caminho para além da pátria, da pouca terra do continente europeu e do pouco mar do Mediterrâneo.
Recordando Álvaro de Campos, na sua Ode Marítima, o Atlântico foi sempre, para os “Portugueses atirados de Sagres” um caminho “Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível”.
Após a expansão pelo mar com as caravelas e seus viajantes, o fim do ouro do Brasil, do império colonial, do período dourado da União Europeia e do pico turístico, tudo indicia ser o ressurgimento do mar, e de novo o Atlântico, a par da língua portuguesa, um dos maiores ativos estratégicos da nossa existência e sobrevivência.
10. OVER FLOW - UM EXCESSO FLUTUANTE E TRANSBORDANTE
CENA MARÍTIMA DE PESADELO AMBIENTAL GLOBAL E NACIONAL
“Tendo em conta a relação de proximidade do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), com o rio e o mar, que desagua logo ali, achei que talvez fosse uma oportunidade interessante olhar para este planeta de plástico em que vivemos, procurar uma perspetiva crítica”.
Palavras do artista japonês Tadashi Kawamata, que o MAAT, em Lisboa, convidou para a sua primeira exposição em Portugal, que ocupa a sala principal do museu, a Galeria Oval, abordando um dos mais graves problemas ambientais do nosso planeta, o plástico, numa instalação submersa onde os detritos plásticos dos oceanos são o foco nuclear.
Garrafas, garrafões, bidões, cordas, brinquedos, grades, baldes, vassouras, esfregonas, pás, recipientes de lixo, embalagens de iogurte, de sumos, escovas de dentes, palhinhas, cotonetes, sacos, chinelos, sapatos, peças de automóveis, de barcos, boias, redes e armadilhas de pesca, tudo em plástico, eis os ingredientes, entre outros, que fazem parte desta cena marítima de pesadelo ambiental.
São centenas de quilos de detritos plásticos recolhidos à mão em praias portuguesas, lixo produzido em Portugal e em muitos continentes, graças a uma rede de colaborações que se manteve ao longo de um ano de investigação, planeamento e montagem, tendo como resultado final uma malha de cabos cruzados simulando a linha de superfície da água, em que estão suspensos materiais plásticos que materializam uma paisagem náutica e marítima que corporiza uma das mais graves ameaças ambientais que enfrentamos, de momento, na Terra.
Imagem do mundo de hoje, com demasiada produção, demasiado consumo, demasiada massificação, um excesso transbordante, em que o visitante “(…) não só submerge num vasto interior escultórico, como é também convidado a mergulhar na evocação de uma paisagem marítima imaginária onde, como por efeito de uma catástrofe, os seres vivos foram substituídos pelos escombros da civilização humana” (disponível no esboço da exposição no MAAT).
É uma experiência de pura contemplação, vista de cima para baixo, à medida que descemos, gradualmente e num círculo oval, do plano superior de entrada na galeria para o piso inferior, e vista de baixo para cima, numa experiência contemplativa e imersiva a partir de um ponto de observação subaquático, simulando olhar-se para cima do fundo do mar.
Eis um excesso excessivo, flutuante e transbordante de material plástico.
Uma embriaguez de plástico com oceanos transformados em caixotes de lixo.
Um pesadelo ambiental de lixeira, entulho e poluição marítima que nos acusa e questiona.
Sendo o plástico um material que dura para sempre, em vez de desaparecer, acumula-se, parte-se em pedaços cada vez mais pequenos, em micropartículas, que entram na corrente sanguínea dos animais e, tantas vezes, por meio destes, nas pessoas.
E sendo o mar o maior ecossistema da Terra e a sua principal garantia de habitabilidade, produzindo quase metade do oxigénio que se respira e absorvendo uma percentagem significativa do dióxido de carbono que emitimos, melhor se compreende - dizem os especialistas - que em nenhum sistema natural o impacto do plástico é tão danoso quanto no mar.
De uma descoberta inovadora e revolucionária, flexível e versátil, de sentido democrático e garante de uma acessibilidade universal, o plástico tornou-se, com o seu excesso massificador e transbordante, uma força destrutiva e um pesadelo do meio ambiente, com especial enfoque no mar.
Calcula-se que haja, neste momento, 150 milhões de toneladas de plástico no mar, prevendo-se, se a espiral de produção continuar, que sejam 250 milhões em 2025, uma tonelada de plástico por cada três toneladas de peixe, podendo em 2050 o peso de plástico ser superior ao de peixe, e que apenas 1% das aves marinhas do planeta não terá ingerido plástico nem o terá no seu organismo, acabando por entrar na cadeia alimentar, à medida que se transformam em “microplásticos”.
Toda esta consciência ecológica que nos angustia, interpela e faz pensar, sobressai nesta exposição, sendo de uma pedagogia acutilante e instrutiva, apelando a coisas simples que todos podemos fazer, concluindo:
“Ao longo das últimas décadas acreditámos que o problema do plástico seria possível de resolução através da reciclagem. Hoje sabemos que a melhor maneira de impedir a produção de lixo é fazer com que nada chegue a tornar-se”.
Na Galeria Oval do MAAT, até 1 de abril de 2019 (patente desde 5 de outubro deste ano).
Há necessidade de olhar para o mar através do encontro de culturas que é visível na arte, monumentos, religião, costumes e tradições deixados pelo interagir recíproco a partir das primeiras viagens, e em que ressalta, nos nossos dias, a disseminação da língua portuguesa pelos descobrimentos, pela diáspora lusíada, lusófona e contemporânea, pelo seu potencial geoestratégico, o que decorre, em primeiro lugar, de ter sido capaz de atravessar vários espaços geográficos deslocalizados territorialmente e alcançados pelo mar, numa descontinuidade linguística.
Se foi o mar, e não a UE nem a continentalidade europeia, que foi essencial para a internacionalização e vanguardismo de uma língua que não é apenas nossa, se é verdade que Portugal só é um país pequeno se lhe retirarmos o mar, tudo aconselha a uma mudança de atitude assente no facto de ser para nós um recurso estratégico, mas também, desde logo, para a Europa e o mundo lusófono, de que somos parte, por direito próprio.
Há um mar de oportunidades perdidas, há potencial que tem de se concretizar, há que recolher amostras no âmbito do projeto de extensão da plataforma continental que vai permitir ampliar a área de soberania autorizada pela convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar, há que catalogar, compreender, estudar e valorizar os seus recursos naturais, há que navegá-lo e explorá-lo em vez de apenas contemplá-lo. Desde os usos tradicionais como as pescas, construção naval, transportes e turismo, às energias renováveis, indústria eólica, criação de algas para produção de biocombustíveis e biomassa, expansão da aquacultura, exploração offshore de gás e petróleo, fixação de reservas marinhas para preservação da biodiversidade, desenvolvimento da biotecnologia marinha para a indústria farmacêutica, de cosmética e alimentar, extração de novos metais e minerais. Sem esquecer uma governação integrada do mar, onde também estão presentes o ambiente, a ciência, a defesa, a diplomacia, a cultura, incluindo a língua, a literatura e as artes em geral.
Paradoxal e significativo que a cerimónia de assinatura de adesão à CEE tenha ocorrido nos claustros do Mosteiro dos Jerónimos, celebrizando a importância do mar para Portugal, para a Europa e para o mundo e a que demos, via oceano, uma contribuição específica para a globalização planetária.
Sem excluir as coexistências, urge que o mar volte a ter um significado e um valor especial para Portugal.
“Mas o mar, o Atlântico, desequilibrou-nos. Ao pé da sedução e do mistério do mar, tudo é relativo. Tudo é pouco. A dificuldade de motivação que os Portugueses têm e a sua dependência do carisma motivador de alguém vêm daí”.
“Faz-nos olhar para o fim das coisas sem olhar para o princípio ou para o meio delas”, pelo que “Os Portugueses, de uma forma geral, confundem desejo com vontade, fantasia com ambição, improvisação com genialidade, esforço com método, impunidade com tolerância”.
Daí a culpa, em todo o caso, ser do mar e, por contraditório que pareça, “O mar tem sempre razão, diz-nos a nossa identidade”[1].
Ter como caraterísticas duradouras, senão mesmo como carateres intrínsecos dos portugueses, por exemplo, uma alegada dificuldade de motivação, falta de método e incapacidade de planeamento aliada ao talento para improvisar, em consonância com o mistério do mar, que nos atrai e torna difícil distinguir o sonho da realidade, é redutor, simplificando, em demasia, o que é complexo. Tê-las como resultantes do modo de ser português, em que a culpa é do mar, que torna tudo pouco, indiferente e relativo, é esquecer que aquelas são sempre suscetíveis de modificação, em razão de condições culturais, económicas, sociais, ou outras, alterando os nossos carateres comportamentais à medida que se altera a natureza estrutural de tais condições.
Se o mar “desequilibra” na sua imensidão avassaladora e misteriosa, como se justifica que não vingue igual raciocínio, em paralelo ou por analogia, em relação a países como a pequena e rica Dinamarca, com uma única fronteira terrestre (como nós), por sinal com a poderosa Alemanha? E por que não quanto a outros, também confrontados com a relevante componente marítima, realçando o que lhe devem em competitividade, liberdade, individualidade, riqueza e soberania, como Singapura, Japão, Canadá, Islândia, Inglaterra e Estados Unidos? Embora influenciando-nos, nunca foi, nem é, culpando-o que nos redimimos, tornando-nos mais europeus através do desejo de dissolução em espaços mais “civilizados” e “desenvolvidos”, mas antes, e sempre, em conjunção com ele.
Há que afastar tendências para hipostasiar o mar como componente da realidade portuguesa, quer culpando-o ou exaltando-o.
Não é culpando-o através de teorias culpabilizantes, endeusando-o, idolatrando-o ou sacralizando-o, através de teorias míticas e messiânicas sobre o seu inexplicável “mistério” e consequente singularidade e universalidade do povo português, que melhor o compreenderemos como fator essencial da nossa identidade e em termos de estratégia.
Para além de um dos maiores ativos que possuímos, a par da língua, é ainda, à semelhança desta, uma realidade óbvia e consensual, que não se restringe a um interesse nacional claro, evidente, manifesto, permanente e irrenunciável, mas também a uma realidade e a um interesse permanentemente estratégico.
Se o critério é a objetividade, há que não qualificar abusivamente como realidade absoluta, inferior ou ter como culpável algo que o não é, havendo que normalizar o mar, objetivando-o racionalmente. Embora saibamos, pela experiência comum, que também tudo é subjetivo, se tivermos como referência que os nossos conhecimentos e pensamentos são consequência da perceção pessoal de cada um de nós, tornando discutível a mera objetividade como critério total.
23.10.2018 Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Pinto Leite, António, Portugal, a culpa é do mar, crónica de imprensa publicada e reunida no livro Qual é o mal?, Sopa de Letras, 1.ª edição, Novembro 2002, pp. 31 a 33.
O mar, para nós, portugueses, sempre foi admirado, amado, glorificado, mitificado, temido e culpabilizado, pela sua presença física avassaladoramente inevitável e ser parte integrante da nossa História e identidade.
Sempre foi, e é, um interesse permanente. Pela sua imutabilidade e irrefutável geografia marítima e situação geográfica de Portugal.
Há uma conceção imperialista do mar, assente num discurso habitualmente efusivo, lembrando “o Mundo que os portugueses criaram”, a sua ação “civilizadora”, que viabilizou que o nome de Portugal integre intemporalmente a História Universal.
Sem patriotismos exaltados, atente-se nas sugestivas palavras da historiadora inglesa Elaine Sanceau:
“Portugal descobriu dois terços da terra (…) basta olhar para um mapa para ver a maravilha de tal feito e reparar na pequena dimensão deste País localizado na periferia ocidental da Europa (…) cuja população andaria, em 1500, por dois milhões de cidadãos (…) que se estendeu por três continentes e dois oceanos, promoveu portos comerciais e construiu fortalezas à volta de África, dominou o oceano Índico desde Moçambique até às Molucas, estabeleceu contactos com a China e o Japão e, no hemisfério ocidental, estava colonizando os imensos espaços do Brasil: impossível, ter-se-á exclamado ao ouvir isto pela primeira vez: obviamente impossível - mas aconteceu”[1].
Esta relação instintiva e imemorial, assim contextualizada, foi associada ao Império Português.
Findo o Império, desvaloriza-se e substitui-se a sua presença omnipresente por uma conceção que o secundariza, passando a ser, no essencial, apenas contemplado e usufruído em termos de lazer, tendo o discurso do mar como passadista e saudosista, que pouco nos vale no presente e servirá no futuro, pois o tempo não volta para trás.
É o Portugal terra e raiz, da finisterra ibérica, do regresso às origens, contrário à dura e não lucrativa aventura em regiões que estão além do nosso mar, o Portugal europeu e europeísta.
Perdido o império colonial, a ausência de interesse pelo mar foi corroborada por um novo e grande desígnio: a adesão e integração na Comunidade Económica Europeia. A reconversão de Portugal é uma opção europeia pela continentalidade, em que a Europa passa a exercer uma atração centrípeta no plano económico, cultural, social, psicológico. As alterações estruturais da nossa economia conduziram a uma maior dependência dos corredores terrestres, nomeadamente do transporte rodoviário, ligadas a uma visão de inserção geoeconómica nas economias europeias, em detrimento do transporte marítimo e da frota mercante nacional.
Se antes virávamos costas à Europa, a começar por Espanha, e apesar de sempre europeus de pleno direito, passámos a virar as costas ao mar, embora uma nação marítima debruçada para o Atlântico.
Tido, por muitos, como um anacronismo do passado, e contrário, na sua maritimidade pluricontinental, à continentalidade eurocêntrica da União Europeia, foi desvalorizado, rejeitado e culpabilizado.
Da rejeição das teorias míticas e ideias messiânicas da “salvação da Pátria”, alegadamente retrógadas, seria de esperar, à luz do modernismo que ambicionávamos e ambicionamos, que a adesão europeia não fosse uma nova redenção tão ansiosamente esperada. Mas foi-o. Mesmo que se pense que “O que está errado é que a ideia de Europa nos tenha deslumbrado tão profundamente, ao ponto de acharmos que nos podíamos dar ao luxo de dispensar a nossa geografia, e de nos abstermos de explorar o nosso recurso principal - o mar -, esquecendo-nos do que somos e de onde vimos. O que é pena é que não tenhamos percebido que era (…) nessa nossa ligação com o mar (e através dele com o resto do mundo) que estava o conteúdo mais valioso do nosso contributo para o projeto europeu”[2].
Com milhares de quilómetros de costa sobre o oceano e, ao mesmo tempo, uma das maiores zonas económicas exclusivas da Europa, seriam razões suficientes para Portugal ser um país marítimo. Vivendo, em termos económicos e geopolíticos, nas últimas décadas, de costas voltadas para o mar, é um país com mar, mas não é hoje um país marítimo.
À perceção imperialista e passadista, há a necessidade de afirmação de uma conceção do mar ligada a um desenvolvimento sustentável, à preservação da natureza, em comunhão e conjugação de esforços com a ciência, a inovação, a tecnologia, a que acresce à geografia presente, a que se projeta no futuro, através do levantamento e delimitação da sua plataforma continental.
16.10.2018 Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Palavras citadas e retiradas do livro Direito Internacional do Mar e Temas de Direito Marítimo, de Luís da Costa Diogo e Rui Januário, Áreas Editora, Lisboa 2000, p. 13.
[2] Pitta e Cunha, Tiago, Portugal e o Mar, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2011, p. 12.
O sótão da linda casa de praia era todo forrado a pinho: tetos, paredes e chãos, portas, postigos e rebordos de claraboias. As camas tinham colchas de chita, as fronhas das almofadas de enfeite e os cortinados que tapavam a área das roupas, eram também de chita. Nas paredes fotografias recortadas das revistas mostravam praias exóticas de palmeiras convidativas e, aos cantos dos quartos, dependuradas junto ao teto esconso, as colunas de som do gira-discos faziam presença. Estas colunas de som não eram mais do que as camas das bonecas com o fundo forrado a chita e exposto como colunas de som, ou ainda alguns legos, montados em retângulo, forrados igualmente a chita, e que cumpriam a mesma função. Ali se viviam parte das férias em reuniões com amigos e escutando-se a Françoise Hardy – sobretudo a canção Mon Amie la Rose, Adamo, ou ainda a canção Rain and Tears que nos levava à lágrima ao canto do olho. Contudo, o silêncio total fazia-se entre nós com o Don´t Let Me Down dos Beatles. Enfim, a era da modernidade não tinha nascido. O mesmo é dizer que a civilização do desejo também não se tinha concluído, ao menos ali dentro de nós.
Não recordo que houvesse alguma multiplicação de necessidades o que quereria dizer que o consumo em nós não tinha liderança. A nossa relação com as coisas e com os outros estava estabelecida sem que fosse desassossegada, pelo menos entre amigos, e, não obstante a televisão existir, estávamos sempre melhor no nosso universo mental de afetos, exprimindo-nos em diálogos de amizade, de cumplicidade de namoricos que nos expunham deliciosos mistérios, do que em frente a um ecrã de televisão que apenas aqui e ali, nos proporcionava um impacto de momento, como era o caso da serie Bonanza.
Éramos todos muito novos e no entanto surgia e implantava-se uma realidade que iria colocar fim à boa velha sociedade de consumo em que vivíamos. O creme Nivea, sem o notarmos, já era. A difusão de produtos deu lugar em todos nós, a uma estranha reatividade provocada pelo marketing, enquanto forma de nos comunicar a conquista de uma liberdade de muitos e diferentes sótãos, em que se decretava ser a chita, um pano de baixo valor, e a fidelização do nosso bem-estar, devia sentar-se agora à porta da piscina e não à porta do mar.
O produto, o mercado e o consumidor era a nova predominância em trio, sem que chegasse até nós a razão do hiperconsumidor ser um ator a responsabilizar com urgência. Ainda tínhamos pudor de pedir aos nossos pais mais do que nos ofereciam, é certo, todavia o imperativo de olhar para o que não tínhamos, ia-se impondo, ou não fossemos frágeis por excesso, a fim de podermos resistir ao mero empréstimo gratuito de provarmos uma felicidade potencialmente mais recheada do que aquela que sempre vivêramos nos sótãos das nossas alegrias e segredos.
Enquanto vai triunfando um capitalismo globalizado, não nos damos conta que passámos a segundo ou terceiro plano de tudo o que é vida. Nascem os turboconsumidores subjugados pelo estatuto social, ausentes da cultura da coluna de som feita com a cama das bonecas. As novas experiências emocionais são infiéis ao próprio tempo que duram, e no seu universo não cabe escutar com emoção Don´t Let Me Down dos Beatles. Tudo é dessincronizado, hiperindividualista, onde moldar o corpo é reorganizar a vida, e, pouco a pouco, este novo espírito insere-se na nossa relação com a família, com a política, com a religião, com a cultura e mesmo com a dimensão do tempo.
Quem sabe que as pechinchas do low- cost, ou os pseudo leques de opções que se diz oferecer na atual sociedade, só produzem desequilíbrios de alma, embora os seus seguidores incondicionais encontrem nas farmácias de quem imitam, os comprimidos da felicidade alheia e a tenham como sua. E tudo vale mesmo que as verdades passem a verdadinhas.
Na realidade, as festas do nada, as noivas do stress, as ansiedades tão frequentes, o dinheiro cada vez mais preocupação obsessiva, as relações sexuais problemáticas, a gravidez a fazer-se uma batalha para se conquistar, a procura cega da diversão a todo o custo, enfim, como escrevia Aragon «Quem fala de felicidade tem muitas vezes os olhos tristes» e, é, esta frase, cada vez mais o nosso espetáculo ao vivo.
E diz-me o aconchego do sótão da casa de praia que nem todo o balanço desta sociedade é apenas negativo como afirmam os seus habituais detratores. Diz-me este sótão que não esqueço, que o individuo continua a viver para algo mais do que o que lhes é passageiro, e ainda assim, este sótão, também deixa claro que não há que fazer o elogio a um regime que gera males infinitos, insucessos educativos, injustiças sociais, pobrezas inauditas, velhices abandonadas e tudo o que carece afinal de um reinventar de vida, e à beira-mar, no mínimo com esse horizonte se deve questionar
virá a humanidade a ser, então, mais feliz?, virá a ouvir uma outra Françoise Hardy – Mon Amie la Rose?
Eram seis da manhã quando acordámos nos quartos do sótão que tanto amávamos na nossa casa de praia. A empregada bateu as palmas ao entrar nos nossos quartos totalmente forrados a pinho e salpicados com fotos dos nossos ídolos e gritava
Vá meninos se querem ver aquela cor do mar no céu, vamos a sair da cama depressa.
E nós os três meio trôpegos de sono vestimo-nos num ápice, e, escadas para que te quero que se faz tarde.
Cada um a roer a sua maçã, descemos a ladeira de terra e pedra que dava acesso à praia e ali na areia nos sentámos ao lado do António Lameja, nosso banheiro e salvador, mas que não nos salvava dos banhos gelados a que pelas 11h o nosso pai dava ordem que todos tomássemos.
O meu irmão mais velho perguntou-lhe
É esta a cor?
Não, chiu! é mais daqui a bocadinho, mas estejam calados, pois ela pode fugir.
A nossa ansiedade e alegria cresciam à luz de prata daquela manhã em que veríamos a tal cor no mar colada com o céu e que em agosto só naquele dia e hora surgiria.
Agora de pé, já, gritou Lameja, olhem bem lá no fundo do horizonte: veem aquele tom amarelo? Aí vem a tal luz que sobe para o céu e se torna azul e branca e que é igual à dos santinhos dos missais que mostram a cor dos milagres.
Sai de dentro daquela nuvem lá ao fundo? Perguntei
Não menina, essa é uma nuvem que acorda mais tarde e quando se abre, sai por seu pé, bem leve, um pouco do sol, aquele que depois é gordo durante o dia.
Mas vejam agora. Olhem.
E fixámo-nos todos numa auréola que tomava cor amarela e azul e branca e dela saiam uns traços lindos do mar, erguidos para o céu, ou, do céu descidos para o mar, tudo num abraço de cores e luz esplendorosas.
Que lindo, que lindo disse o meu irmão mais novo, agarrando-me os ombros. Aquilo é um milagre ou é a natureza lá do alto que chama o mar e ele sobe sozinho?
E o Lameja
Ó meninos, não duvidem, aquilo é milagre não veem logo? São focos de luz com vida que se cruzam em mar e céu e dão nesta cor de oiro de pasmarmos. Debaixo das águas os peixes também a veem, e, logo saltam para dentro dos barcos dos pescadores, não sendo precisos anzois ou redes, e fazem-no por tanta beleza terem visto, preferindo morrer logo a seguir a esta hora do dia do mês e do ano e, morrem transformados em oiro! Pronto! Viram? Vá, ide para casa, já viram o segredo.
Tiveram muita sorte, podia até chover. Ide, ide tomar o pequeno-almoço.
Subimos a ladeira devagar, mas íamos olhando para trás, para o mar e o céu.
Que viste mana?
Uma borboleta que veio do céu beber agua e tu?
Um fantasma bom. Um daqueles que toma conta das aparições desta hora.
E tu mano, que achas? Ou antes o que viste tu?
Ora eu vi o mundo quando estamos a dormir.
Entrámos em casa e a empregada perguntou-nos: que tal? Como foi, meninos?
Eu respondi
Pois parece que vamos ter peixes de oiro para o almoço. Sabes cozinhá-los?
Os de oiro, não.
Ainda bem. Devem ser rijos. Mas queres que te conte o que vi?
Sim, menina.
Pois vi o céu azul vestido de borboleta para esconder que é princesa que namora com o mar àquela hora e abraçam-se e tudo.
Com beijos?
Claro, com beijos também, acho que é uma hora de intimidades com muitas cores. Nada de especial, mas mesmo assim é muito bom.
Jesus Maria! Até estou arrepiada. De fato Nosso Senhor não pertence à raça humana!