Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A Desoras – diário – 2017-2023 (D. Quixote) é o sexto volume dos diários de Marcello Duarte Mathias, publicados sob o título geral de No Devagar Depressa dos Tempos.
METÁFORA DA VIDA HUMANA O título geral destes Diários lembra-nos o extraordinário conto de João Guimarães Rosa “A terceira margem do rio”, onde, no percurso da narrativa, o genial autor nos diz a dado passo, que “Os tempos mudavam no devagar depressa dos tempos”. A escolha do conto e da passagem não foi arbitrária, pois essa terceira margem é uma metáfora sobre a vida humana, talvez hoje com uma pertinência mais evidente, permitindo a compreensão do mundo por um memorialista de exceção que nos fala do tempo e das pessoas sempre sob a tónica da procura de uma outra dimensão para além do lugar-comum, representado pelas duas margens do rio. Como tem salientado Paula Morão, a quem este volume é justamente dedicado, o escritor continua a deixar-nos preciosos fragmentos autobiográficos que se referem não apenas a si próprio, mas também a quem o rodeia. E a paixão pela História corresponde, no fundo, à necessidade de a compreender a partir dos pequenos pormenores, dos microcosmos, único modo de dar um panorama geral que nos liberte do momentâneo ou daquilo que a evolução das coisas vai desvanecendo irremediavelmente. É real a observação do “verso e reverso das coisas e dos dias: livros, citações, lembranças – entre viagens, amizades e desaparecimentos”. De facto, há uma permanente busca das raízes, das luzes e das sombras e da razão de ser dos acontecimentos, que constituem verdadeiros mestres interiores do autor, para usar a expressão clássica de Mounier.
NUNCA ESCREVEMOS AQUILO QUE SOMOS “Somos sem dúvida aquilo que escrevemos e, todavia, nunca escrevemos aquilo que somos” – disse-nos Marcello Mathias, em tempos, no primeiro volume destes diários. Hoje, continua a pensar do mesmo modo e tem razão, mas é levado a acrescentar: “acabamos também por nos tornar naquilo que deixamos escrito, especialmente em textos de índole intimista, pois quer queiramos quer não, somos o que fomos, sobretudo o que nos foi dado viver (…) Sim, para lá de uma cronologia, somos por igual uma série de datas que constituem outras tantas linhas-fronteiras do nosso percurso”. E precisamos da presença de espírito para não nos deixamos apanhar pelas armadilhas da vida. A cada passo notamos nestes diários a capacidade de estar desperto para olhar o horizonte e para ver o outro lado das coisas, para além do que está na ordem do dia. E não podemos esquecer as ironias do destino, como é recordado a propósito do caso de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor de um dos grandes romances do século XX, O Leopardo, recusado em vida pelos maiores editores, e que poderia ter ficado, por um triz, esquecido no fundo de uma gaveta. Morreu esquecido e só depois se tornou celebrado. E quantos casos desses nunca tiveram um desenlace favorável? A História está à mercê de vicissitudes absurdas, ditadas pela pura ilusão ou pela incapacidade de ver para além da escuridão de um canto esconso.
COMPREENDER O VERDADEIRAMENTE IMPORTANTE Como compreender o que é realmente importante? E Marcello D. Mathias lembra-nos uma série dedicada no “Le Monde”, por Jean Birnbaum, a figuras marcantes do seu tempo, como Albert Camus, Hannah Arendt, George Orwell, Raymond Aron e Georges Bernanos. Talento, cultura e carácter – todos eles espíritos de exceção. E aí se realçavam qualidades como a capacidade de admirar, a consciência dos limites, a pluralidade infinita da condição humana, o gosto da liberdade, a recusa do slogan e da servidão ideológica, a necessidade de preservar a ética do justo e do verdadeiro, a simplicidade aliada à autenticidade, a apreensão do real em toda a sua complexidade, o decifrar das contradições, sem desconhecer a pulsão das forças irracionais, o heroísmo da incerteza, o sentido do humor, como coragem e distanciamento. Eis as virtudes que entusiasmam o memorialista. “O culto da nuance é um ato de bravura”. E Bernanos afirma claramente que escrevia para se justificar. Aos olhos de quem? Da criança que foi. “Moral da história: as imposturas e os impostores têm a vida curta e a decantação do tempo acaba, em regra, por selecionar quem merece sê-lo”. Dir-se-ia que aqui encontramos assim o denominador comum de um pensamento e de uma atitude perante a existência. Recordando um amigo comum, Alberto da Costa e Silva, embaixador e intelectual de exceção, evoca as suas memórias, e a afirmação de que “a imaginação vai alterando com o tempo o entrelaçado da lembrança”. De novo, o elogio de uma atitude essencial. A escrita tem capacidade de alterar o tempo. E essas são memórias que correspondem àquela “galeria de livros-depoimentos que não vêm nos manuais escolares, mas que pertencem ao mais íntimo da nossa biblioteca, integrando ao lado de outros a nossa pessoalíssima família”. E assim se recorda um excelente companheiro e a sua ironia, lâmina fina, que lembrava um florete pela leveza e precisão… Acompanhamos, a cada passo, o que o autor vai partilhando connosco – dúvidas, angústias, prazeres e preocupações, os passeios matinais com o saudoso Charlie, que conhecemos com expressão simpática na badana do livro. “Em regra a passagem do tempo cimenta, solidifica, congrega. A doença de Alzheimer perfaz o caminho contrário afasta, separa, desune. Onde se está, afinal? Simplesmente alhures, entre desconhecidos”. Mas há pequenos milagres que se usufruem de modo inesperado, como a natureza que renasce, o cheiro da erva molhada, depois da chuva, as padarias ao abrir do dia, o pão quente… E compartilhamos gostosamente a divisa do Conde de Ficalho, autor dessa pequena maravilha que é o Conto do Malhadeiro: “Sei andar só e a pé”… E há o barulho do mundo. Perante os tremendos acontecimentos no leste europeu, independentemente de todos os riscos e incertezas, Marcello tem razão: “hoje Putin é um homem acossado, à cabeça de um país enfraquecido, sujeito a um conjunto de imponderáveis que não domina: a situação militar no terreno, as relações com a China, o empobrecimento da Rússia devido à severidade das sanções, etc. E não se vislumbram soluções favoráveis. Porque não as há. É o proverbio grego: ‘O carvão quando quente, queima as mãos; frio, suja-as’”. Afinal, e a desoras (com o tempo fora do tempo), procuramos compreender-nos e compreender o que dura e o que passa. E é verdade o que o autor nos diz sobre todos quantos connosco viveram e já não os temos próximos. “Minha infância, embora se situe para lá do tempo ainda não morreu”. Por absurdo que pareça assim é. Eis o grande enigma da vida. E se pensamos na relação entre a vida e a literatura podemos dizer, sem hesitar: “Afinal, feitas as contas, ninguém morreu”.
«O Português visto por (alguns) Portugueses» de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote, 2023) permite-nos compreendermo-nos melhor à luz da nossa literatura de hoje.
AFINAL, QUEM SOMOS?
«Quem somos? Qual o grau da nossa cultura? Porque decaímos? Que remédios nos poderão salvar? Sem dúvida tentaram eles (os homens de 1870) responder a estas e outras interrogações que tanto nos importam; e com ou sem resposta as legaram às gerações vindouras». José Régio faz estas perguntas a que temos de responder com sentido da realidade. Marcello Duarte Mathias reuniu na obra que intitulou O Português visto por (alguns) Portugueses (D. Quixote, 2023) opiniões que podem ajudar. E neste conjunto de diversas perspetivas, podemos concluir que nos caracterizamos por algo paradoxal que nos distingue. Por isso, o conde Ficalho disse que, com essa busca, Portugal “significa simplesmente ser uma coisa à parte, sem imitação e sem cópia; significa ter uma língua própria, e um traje especial e um modo de pensar e de sentir particular, lentamente fixado pela tradição (…). E se um dia, os burgueses e viscondes, que tão relesmente nos governam, chegarem a desnacionalizá-lo, sob o fútil pretexto de o civilizar, hão de talvez perceber que ele fica sem grande razão de existir». Com estas palavras ásperas, Ficalho faz suas as preocupações de antepassados como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, longe de qualquer entendimento fechado ou autossuficiente. Daí que este verdadeiro inquérito nos permite ver até que ponto no ocidente peninsular se construiu uma identidade própria, aberta e complexa, que poderemos designar por um patriotismo prospetivo, que envolve a compreensão de uma realidade complexa e diversa que devemos continuar a aperfeiçoar e a fortalecer, como realidade viva e aberta.
O CARÁCTER PORTUGUÊS
Pela parte que me toca, segui desde muito cedo muitos dos percursos que aqui encontramos – salientando uma preciosa primeira edição de “O Estudo do Carácter Português” de Jorge Dias que me acompanha e que continuo a ler com distância crítica, ao lado de um manual único de ensinamentos sobre quem somos, que é “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” de Orlando Ribeiro, onde está tudo o que devemos saber sobre nós mesmos. Devo dizer, aliás, que, confirmando plenamente o que Ernesto Sabato afirmou sobre a verdade de uma nação dever ser encontrada nos romances, e não na História, foi Ruben A. quem demonstrou claramente, designadamente em “A Torre da Barbela”, que os portugueses só podem ser compreendidos com essa rica profusão de retratos romanescos, que vão do “pobre de mim” da “Peregrinação” até à Joaninha dos Rouxinóis, ao Joãozinho das Perdizes, a Simão Botelho, a Fradique, a Jacinto, a Zé Fernandes, a Gonçalo Mendes Ramires, ao Lelito de “A Velha Casa”, até aos fantasmas de Barbela e à panóplia de Aquilino, de Nemésio ou de Saramago… E, nos textos escolhidos, com olho clínico, por Marcello D. Mathias é essa heterogeneidade que encontramos, ligada por um forte fio de Ariadne. “O génio lusíada é mais emotivo do que intelectual”, diz Pascoaes. “O trágico, o patético, a teatralidade, a desmesura não são connosco”, afirmou António José Saraiva. “O bom português é várias pessoas”, para Fernando Pessoa. “Entre o delírio e a melancolia, entre a exigência e a queixa, (o português) prefere esperar a sua vez”, disse Agustina Bessa-Luís. “Os portugueses têm aversão às soluções simples” para Valente de Oliveira.
UM NOVO-VELHO PAÍS
Com o 25 de abril de 1974, nasceu “um novo-velho país, e não é fácil a adaptação que constituiu uma verdadeira metamorfose. Para muitos um reencontro; para os demais, um dilaceramento. De qualquer modo, esta procura de identidade, que se agudiza com o pós-25 de abril, não é sentimento exclusivamente nosso, pois foi partilhado pelos países europeus que haviam sido potências coloniais, e que viriam a sofrer de semelhante rutura”. E a literatura dá-nos pano para mangas para essa interrogação e o sucesso do Marquês de Fronteira D. José Trasimundo, a seguir à revolução, foi significativo do que permanece e do que muda. António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira devem, por isso, ser lidos com atenção, porque o sentido crítico ajuda a uma leitura dos acontecimentos capaz de compreender a complexidade dos fatores com que se constrói a pátria. Uma identidade antiga não pode ser interpretada de modo simples ou superficial. E se esta obra notável de Marcello Duarte Mathias merece uma atenção especial e uma revisitação necessária, tal deve-se à complementaridade dos diversos registos que integra. E assim se entende Eduardo Lourenço, uma vez que ninguém levou tão longe e com tanta pertinácia “repensar a sério e a fundo uma realidade tão difícil de apreender como a portuguesa”. O autor apresenta diversos testemunhos numa escolha plural que permite compreender a essência do património, como serviço do que recebemos de quem nos antecedeu, fundamento duma herança rica e multifacetada, e valorização de uma memória viva. Na evocação, por exemplo, de Augusto de Ataíde ou de João Bigotte Chorão, duas personalidades com experiências diferentes, sentimos que a cultura se constrói com sensibilidade e sabedoria, com vontade e lembrança. E uma certa frustração das elites, correspondente à sua fragilidade, leva a um persistente fatalismo do atraso e da preguiça, a que importa responder com a compreensão de que, mais do que o primado do improviso, o melhor em nós é o trabalho. De facto, só podemos ter resultados positivos se ligarmos organização, persistência e cooperação. Sempre que o fizemos ganhámos, sempre que o esquecemos desaparecemos. Não se esqueça o que disse António Sérgio: “Quem vê com miragens o seu passado, constrói com miragens o seu futuro”. E é bom que Miguel Torga, como homem de raízes, seja lembrado quando diz “o Portugal de que sempre me orgulhei não é o da versão oficial”. Aí se sente “uma vontade de identificação, tanto no plano físico como espiritual, a que nunca renunciará”. Os vários autores que Marcello Duarte Mathias nos traz merecem ser lidos com vagar, de modo e entendermo-nos melhor. Somos um povo antigo, que se evidenciou por querermos ser nós mesmos. Como D. Pedro das Sete Partidas, entendamos a Europa como lugar de afirmação e não de ilusão. “A Europa, sim como pedra angular de uma política externa mais alargada, não como meio de subsistência coletiva; como âncora de ações que se assumem, não como álibis, que desresponsabilizam; não como uma aliança de nações que se juntam na afirmação de um bem comum superior, e não como um conjunto de povos às ordens de uma central burocrática interventiva que se arroga um magistério moral e político que não tem; a Europa, sim, como um processo contínuo de afirmação e valorização do que somos, entidade à parte entre os demais parceiros europeus, e não cobaia de um gradual desapossamento de nós mesmos, de tudo o que fomos e somos”.
Em Caminhos e Destinos – A Memória dos Outros – II – Ensaios e Crónicas (D. Quixote, 2017), Marcello Duarte Mathias dá-nos um conjunto multifacetado de reflexões, que nos obrigam a conceder especial atenção ao mundo contemporâneo.
LEMBRAR UM EPISÓDIO INQUIETANTE Dei-me a perguntar, ao ler Marcello Duarte Mathias sobre Aldo Moro, como foi possível esquecer-se tão rapidamente esse episódio tremendo da recente história italiana. Para a minha geração, esse assassinato, entre o previsível e o inesperado, constituiu um motivo muito sério de reflexão e de dúvida. E o certo é que as cartas escritas nesse ignóbil cárcere correspondem à interrogação suprema sobre as situações limite entre a violência e o absurdo. E ainda hoje, quando nos lembramos, “renasce a controvérsia, nunca verdadeiramente extinta, sobre as responsabilidades políticas e morais imputáveis pelo seu assassínio, até porque muitos pontos continuam por esclarecer”. Para as Brigadas Vermelhas, Moro pagava com a vida pelo “compromisso histórico” que defendia, abrindo as portas ao eurocomunismo de Berlinguer – e assim “personificava, talvez melhor que ninguém, o espírito reformista que todo o bom revolucionário abomina”. As cartas dessa prisão são impressionantes e deixam-nos cheios de pensamentos contraditórios. Leonardo Sciascia considerou que o cativeiro terá libertado a vítima dos constrangimentos político-partidários… Nunca se saberá o que ocorreu verdadeiramente. Moro insiste para que procedam à sua libertação em troca dos elementos das Brigadas presos… Indubitavelmente, o que há é o drama de uma violência cega. Só um terço da correspondência chegará, no entanto, aos seus destinatários, o que é um pormenor macabro. Mas notamos a “sobriedade do tom”, a “ternura e o afeto” para com os seus, a insistência na coerência do caminho político antes traçado, a lucidez perante o inexorável desenlace previsto, e “a fé religiosa que nunca o abandona e à qual se entrega sem reservas”. Hoje o terrorismo mudou de feição, mas mantém o mesmo ódio à humanidade. “O seu rosto multiplicou-se, atuando agora à escala planetária”. Aldo Moro é o “símbolo e uma peça da engrenagem”, que acaba a pagar “por aqueles seus correligionários que o deixarão morrer, vítima afinal – supremo paradoxo – de um equívoco. O espírito de conciliação face à cegueira sectária”. O retorno do trágico não é aqui uma figura de estilo ou uma questão de voga intelectual… E os dias de hoje continuam a reservar-nos um estranho espaço ocupado pelo esquecimento ou pela desatenção relativamente a Aldo Moro, ao seu testemunho, à sua vida e à sua tragédia.
MEMORIALISTA DE PRIMEIRA ÁGUA Se comecei pelo texto sobre Aldo Moro, fi-lo uma vez que constitui uma espécie de pedra angular nesta obra, onde o autor afirma, mais uma vez, as qualidades de analista atento aos acontecimentos e às pessoas. Diarista e memorialista de primeira água, entre nós como quase ninguém mais, o escritor manifesta nos textos ora reunidos o domínio indiscutível do ensaio. Assim se entende a admiração que nutre por Michel de Montaigne, de quem fala a propósito de um precioso “essencial” de Clara Rocha, aludindo aos Ensaios como livro de referência: “Nele o autor se descreve, dele se emancipa, para nele se voltar a encontrar – inesgotável deambulação à volta de si mesmo”. E há ainda a omnipresença tutelar de Camus. “Não há justiça, mas há limites”. E fica bem clara a opção perante a distância assinalada por Vergílio Ferreira entre Sartre e Camus: “o que separa um do outro é o caminho que vai do niilismo à tentativa de o superar”. E os textos entrelaçam-se, dando motivos de diversão, para citar Auberon Waugh, mas mais do que isso, de compreensão e de conhecimento, no sentido da “co-naissance” de Claudel. É a “segurança de tom que nasce do classicismo da forma e da singularidade da sensibilidade, sempre tão à flor da emoção” de que Sophia de Mello Breyner é exemplo sublime. E lembra-se António Tabucchi a dizer: “no fundo, creio que ao escrever, mais não faço do que uma espécie de autoanálise. Deste ponto de vista, os meus livros seriam outras tantas etapas de uma reflexão sobre mim mesmo que, naturalmente, se oculta evocando outras coisas”…
FALANDO DE DIPLOMACIA... Falando, de Diplomacia, de que o escritor é exímio conhecedor e praticante, deparamo-nos com o retrato (hoje oportuníssimo) de Arthur Schelinger, que «representou à sua maneira o que de melhor existe no escol americano: o patriotismo, a firmeza de convicções, o entusiasmo criativo, o gosto da descoberta e da partilha, a tolerância de espírito, numa palavra, a “decência” no sentido britânico do termo, esse misto de retidão, de compostura e seriedade intelectual». No entanto, nesta matéria, para além deste perfil ático e exemplar, encontramos, depois de uma descrição cheia de humor da querida Carreira (diplomática, já se vê), o relato de uma sessão formativa para jovens adidos, em que o autor se exime a dar pequenos conselhos óbvios para aspirantes a diplomatas, com receio de ser excessivo. Mas não resistimos a lembrar o que ficou por dizer sobre esses princípios básicos que devem reger as relações entre Estados: a regra de ouro – cada país conta consigo mesmo; cada país deve todos os dias aprender a contar, sempre e somente, consigo mesmo; e um país poderá eventualmente, a título excecional, contar com os outros, desde que estes saibam que ele conta consigo e que, nessa medida, terão também de se haver com ele, naturalmente, evitando subordinações. Daí que, para o diplomata, às vezes, o que impede que aconteça, seja mais importante do que aquilo que obtém… Devo lembrar, aliás, o imprescindível texto sobre a Diplomacia e a Geração de 70, essencial para se compreender tudo desse tempo – ou seja, Portugal e a Guerra Franco-Prussiana, a Conferência de Berlim, o Mapa Cor-de-Rosa, o Ultimato, os Tratados Luso-Britânico (1891) e de Windsor (1899) até à Grande Guerra – com uma preciosa adenda, de que beneficiará a edição do Dicionário, que espera ver a luz do dia em breve. Sobre o livro de Bernardo Futscher Pereira A Diplomacia de Salazar (1932-1949), o autor lembra o que um conhecido historiador disse: “A História não se aprende, compreende-se”, referindo o equilíbrio da análise desses tempos complexos da nossa diplomacia sem a preocupação de ser bom aluno de alguém… E invoco ainda a recordação de António Pinto da França, em Angola, e a interessante correspondência entre Saint-John Perse e Calouste Gulbenkian, organizada por Vasco Graça Moura, onde o mecenas alude a Lisboa com a sua “beleza serena e tão comovente” e à amizade com o seu interlocutor como “comunidade de sentimentos assaz excecional e muito preciosa”. Ao lermos e relermos, com grande prazer, este livro de Marcello Duarte Mathias, em que, a cada passo, nos interpela para que a liberdade e a fidelidade não sejam palavras vãs, fica-nos, de novo, a lembrança de Camus: “Conservar no coração a lembrança de um mar feliz, de uma colina inesquecível, o sorriso de um rosto querido”.
A leitura de «Diário da Abuxarda – 2007-2014» de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote, 2015), o volume quinto das Memórias «No Devagar Depressa dos Tempos», confirma plenamente o que conhecíamos, mas talvez sintamos agora mais a liberdade de espírito, que sempre o caracterizou.
UM EXÍMIO MEMORIALISTA Marcello Duarte Mathias é um exímio memorialista de longo curso. Os seus diários permitem-nos seguir uma análise tantas vezes inesperada ou até desconcertante do mundo, do tempo e das pessoas, para além da epiderme dos acontecimentos. Perante os sinais evidentes de uma crise perturbadora, Marcello aponta-nos sinais de uma sociedade frágil e por vezes incapaz de perceber os erros e as armadilhas que a afetam e tolhem. Apesar de dizer o contrário, a verdade é que o autor convive bem com a realidade de todos os dias. Pode ser que sinta assim, mas nós, os seus leitores, facilmente percebemos que a sua capacidade imaginativa permite a lucidez de olhar a história expurgada da força da ilusão. Afinal, a imaginação permite vermos as pessoas e os acontecimentos na sua justa expressão, sem grandiloquências nem efeitos da usura do elogio. «Já perdi a conta das vezes em que troquei a identidade e voltei a nascer, bem como daquelas em que morri por caminhos desviados! – nem sempre heroicamente, diga-se de passagem. (…) Somos dois afinal, eu e a minha imaginação, andamos sempre de braço dado, lado a lado. Reencontramo-nos a qualquer hora do dia ou da semana e a conversa nunca esmorece». E quando o memorialista assim procede facilmente somos confrontados com a apreciação da realidade e com a invocação de comentários e aforismos que nos permitem perceber melhor os factos para além das aparências. Cioran é lembrado: « Ce ne sont pas les pessimistes, ce sont les déçus qui écrivent bien»… E Teolinda Gersão : «Somos um país inventado pela televisão».
O QUE NÃO DEVE SER ESQUECIDO A obra lê-se com prazer e nela encontramos justíssimas lembranças de quem não deve ser esquecido. Sentimos, com emoção, a lembrança de Ana Vicente, a propósito do seu livro «Memórias e outras histórias». A fé religiosa e a coerência moral nas atitudes, levam-nos a compreender que «a nossa salvação – essa espécie de lealdade para connosco, que deverás ser a primeira de todas elas! – é uma conquista de todos os dias». Na doença, como sempre na vida, a Ana foi exemplar. Também encontramos António Tabucchi, «um homem cuja bondade vivia em permanência ferida pelos males e horrores do mundo, com os quais não de conformava. Com os quais nunca verdadeiramente se conformou. Homem bom como aquele que, não sendo um ideólogo, tem dentro de si um eterno ideal de justiça, e que a essa aspiração, a esse código de honra, a essa dimensão moral se mantém fiel contra ventos e marés». Sobre Vasco Graça Moura, diz que «era uma grandiosa biblioteca que, de tão vasta e antiga, ninguém sabia ao certo a data da fundação. Nascera com ele? Ou precedera-o de alguns séculos?». Se remava contra a maré, acreditava que «a cultura é o outro nome da liberdade». Que melhor compreensão para o poeta e ensaísta que tão bem pôde entender Dante ou Camões… Quantos outros exemplos? Sobre António Pinto da França: «discorria com igual facilidade sobre o passado e o presente sem verdadeiramente os distinguir, como se correspondessem a uma mesma unidade de tempo». De Augusto de Athayde é lembrada a menina de seus olhos, o Jardim José do Canto em S. Miguel, «a pátria essencial das minhas raízes» (como dizia) – sendo o patriotismo «inerente à sua pessoa, onde entrava uma dose de misticismo e de nobreza de alma, e também de respeito pelo imaginário coletivo…». Mas fica-nos ainda na memória a invocação de Pedro Moura e Sá (1908-1959), autor de «Vida e Literatura», uma das obras de referência de Marcello. Praticamente desconhecido hoje, a obra singular que nos deixou é obrigatória. Leitor de Moravia, privou com Ortega y Gasset, Gabriel Marcel, Nemésio e Giraudoux. «Havia nele uma irradiação espiritual que corresponde ao melhor da tradição intelectual que corresponde ao melhor da tradição intelectual europeia. “Abria-se e, por isso, recebia” dirá de Carlos Queirós, companheiro de sempre. O mesmo se lhe aplica com igual equidade».
OLHAR EM VOLTA O desenho das memórias permite-nos descobrir o que o escritor encontrou à sua volta. A propósito de Leonor Xavier, invoca o livro extraordinário «As Casas Contadas» e o seu lado tocante: «a dívida de gratidão ainda emocionada de quem não se esquece das seduções em tempos vividas. Todo o livro de memórias é uma ponta lançada entre várias margens». De Mia Couto, «a magia da escrita lembra o melhor da prosa brasileira: fácil, coleante, inventiva». Leitor incansável, o memorialista, a cada passo, regista o que de melhor encontra. De António Alçada Batista, diz que «a aventura eram os amigos, e a amizade um longo convívio permanentemente renovado, tão grande como a vida ou maior do que ela. Andou de início por Paris, como tantos da sua geração, e acabou por redescobrir Portugal ao descobrir… Cabo Verde e o Brasil». De Eduardo Lourenço, refere «uma saudável irreverência, uma ironia contundente e alegre, uma frescura de alma, se assim me posso exprimir, que pouco ou nada transparece naquilo que publica. E é pena. Eis um homem que ganha em ser conhecido!». Sem caráter sistemático, estes diversos exemplos permitem-nos perceber como a leitura deste «Diário da Abuxarda» nos revela a lembrança, paredes meias com a imaginação… Ao recordar diversos episódios de encontros inesperados de figuras marcantes, sente-se um especial prazer na lembrança do caso de Camus, autor da predileção de Marcello D. Mathias: «De passagem por Paris, em 1952, Hannah Arendt escreve ao marido: “Estive ontem com Camus: ele é, indiscutivelmente, o melhor homem (the best man) de França, no momento atual. Muito acima de qualquer intelectual”». Como e onde se encontraram? Poderia ser tema de um romance. Santo Agostinho era mestre de ambos, e possuíam «uma mesma autonomia mental». Já Stefan Zweig é-nos apresentado como um velho conhecido: «tenho a impressão de ter pessoalmente convivido com ele em sua casa, em Kapuzinerberg, nos arredores da sua cidade de Salzburgo…». É como se tivessem conversado, designadamente sobre «O Mundo de Ontem», em virtude de os mundos do memorialista serem todos de ontem… A propósito de Tony Judt, há a acusação da miopia dos intelectuais europeus depois de 1945, que passaram ao lado da Ideia Europeia, a «grande revolução ideológica desse tempo», com a exceção de Denis de Rougemont, que tinha a boa desculpa de ser suíço… O livro é um conjunto de preciosas recordações e considerações do escritor atento e do cidadão inquieto, num tempo de muitas incertezas e resgates. Fica uma última nota. Marcello refere-me como tendo-lhe eu apresentado pessoalmente Claudio Magris, o que até é verdade, mas há muitos anos foi M. D. M. que, no Aeroporto de Lisboa, me sugeriu a leitura urgente de «Danúbio». Aí se deu a autêntica apresentação, mas em sentido inverso… Fiquei-lhe eternamente grato!