Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


VAMOS INDO… LEMBRANÇA DE ANNA, SOROR…
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Menina de mim:


És pequenina hoje, não digo idade, porque a idade é um passeio que as almas não percorrem. Mas rompeste a escuridão inicial das águas, donde nascemos todos, como o universo. O espírito de Deus pairava sobre as águas, a terra era vazia e vaga e Deus disse: Que a luz seja! E a luz surgiu. E S. João dirá: "No princípio era o Verbo"... Nasces, luz do meu coração, no ano em que abriu os olhos essa Marguerite Antoinette Jeanne Marie Ghislaine, filha de Michel Creenewerck de Crayencour e de Fernande de Cartier de Marchienne, minha parente ainda, ali das bandas de Namur. Conhecem-na hoje por Marguerite Yourcenar. E por esses escritos - "Mémoires d’Hadrien" e "L’Oeuvre au Noir" - que a levarão um dia à fama universal. Mas é de "Anna, Soror..." que te venho falar hoje. "Nascera em Nápoles, em 1575, por detrás das espessas muralhas do forte de Sant´Elmo, de que seu pai era governador..." A novela escrita, abandonada, retomada por Marguerite Yourcenar, conta vidas e mortes várias, de antepassados parentes, mais teus do que meus, dos Crayencour certamente. Mudou-lhes os nomes, as nossas famílias têm hoje, afinal, os apelidos e títulos que as últimas conveniências guardaram, e as memórias guardadas para novas conveniências...se vierem!  "Anna Soror..." é uma meditação sobre a linhagem e o incesto, sobre a devoção à paixão de um deus incarnado e o espinho agudo do amor humano, sobre a condição de quem se debate entre um horizonte além e um impulso imediatamente poderoso. De Anna se apodera o ideal indefinido e incerto de Séneca e Platão - que Valentine, a mãe de ambos, Anna e Miguel, lhes lia -  e, ainda, o da entrega religiosa ao ciúme de um cristo crucificado... Tudo o que, no interior das defesas do forte de Sant´Elmo, a faça afastar de si e dos seus desejos. Ela mais não quer, verdadeiramente, do que quedar-se, ali, a forças que lhe dão forma. Quando se descobre e se entrega ao amor do irmão - quando ele mesmo não resiste mais a essa força sem data nem explicação possível, mas que já o empurrou também para a aventura militar em que vai encontrar a morte - Anna sabe que, por muitos anos que viva, já morreu. Marguerite Yourcenar confessa que esse texto, escrito quando tinha apenas 22 anos, é o que menos modificações sofreu, para edição posterior, de todos os que escreveu na juventude. Li algures - ou talvez lhe tenha ouvido dizer - que o amor de Anna e Miguel (Miguel é um nome recorrente no ramo ítalo-espanhol da família dela, como Camilo na nossa) - "entre “Pietàs” desoladas, “Marias-das-Sete-Espadas”, santas “cantando pela boca das suas feridas”, no fundo de igrejas sombrias e douradas que são para eles o enquadramento familiar da infância e um supremo asilo"... Marguerite sentiu, na Nápoles "espanhola" do século XVI, profundamente, o contraste entre o sol lúdico da canção livre e a autoridade tão negra dos Filipes da Contra-Reforma. Anna aceitará, depois de ter acompanhado Dom Álvaro, seu pai, no exílio da Flandres - a que o dever de obediência ao rei católico o obrigou - o casamento com um francês flamengo, cujo nome quero esquecer, ao serviço dos Habsburgos de Espanha. A recomendação de sua mãe, na sua hora derradeira, “Quoi qu’il advienne n’arrivez jamais à vous haïr”, determinará a fuga de Miguel para a morte em combate pela cristandade, e a constância de Anna. Diz Marguerite: "A noção social do interdito e a noção cristã da culpa fundiram-se nessa chama que dura toda a vida". Alhures, disse ela que, no exercício da escrita, se lembrara da narrativa bíblica do incesto dos filhos de David, Amnon e Tamar, no 2º livro dos Reis. Naquele tempo, ela lera a Bíblia na versão de S. Jerónimo - ou "vulgata" latina - em que os dois livros de Samuel, mais os dois dos Reis, se incorporavam no conjunto chamado dos Reis ou dos Reinos. Essa história é narrada no 2º de Samuel, nas edições de hoje. Pessoalmente, acho-a curiosa: não me parece que haja nela uma intenção de apontar o incesto fraterno, mas, claramente, uma condenação da violação. O livro do Levítico, que costumo chamar livro dos interditos, até pela literalidade de tantos tabus e proibições que ainda hoje tentam impor rabinos judeus e imãs muçulmanos  -  para não falarmos de "mensageiros católicos" que não terão meditado o evangelho - inclui o incesto nos crimes contra a família merecedores de castigos radicais. O Deuterenómio insistirá nas normas reguladoras das relações sexuais no seu contexto familiar e social. Recordo que, num qualquer dia em que falávamos de Donnizetti e da sua ópera "Dom Sébastien, Roi de Portugal", a última do compositor, o Alberto me disse que o desgraçado rei concentrara em si mazelas e fraquezas, por força da consanguinidade de casamentos endogâmicos: tivera pai e mãe, como todos nós, e quatro avós, mas também só quatro bisavós. Melhor teria sido se fossem, estes, oito... No relato bíblico do 2º livro de Samuel, o rei David, "quando soube daquela história, irritou-se muito, mas não quis penalizar o seu filho Amnon, porque era o seu primogénito. Quanto a Absalão (irmão de Amnon e Tamar), esse não falou mais com Amnon, pela violência que infligira à sua irmã"... Quando, antes do estupro, Amnon, pela manha aconselhada por Yononadab, sobrinho de David, alcançou o momento oportuno para dizer a Tamar “Vem! Deita-te comigo, minha irmã!”, ela respondeu-lhe: “Não, meu irmão, não me violentes, porque não é assim que se age em Israel, não cometas essa infâmia!. Para onde irei eu com a minha vergonha? E tu serias um infame em Israel! Agora, fala com o rei: ele não recusará dar-me a ti. “Mas ele não quis ouvi-la, dominou-a e, com violência, deitou-se com ela." Há aqui uma exceção ao interdito do incesto. Ao longo da História e, transversalmente, por civilizações e culturas, encontramos interdições e revogações (ou, melhor, derrogações) delas.  O casamento endogâmico até de papas católicos recebeu bênçãos, ainda que com algum cuidado na ponderação dos graus de parentesco, não fosse a necessidade política ofender demais o que seria o "direito natural"... Entre os egípcios antigos, foram frequentes as uniões de faraós de sucessivas dinastias com suas irmãs. Todos conhecemos, já no período helenístico do Egipto, o matrimónio da do "nariz que mandou na história", Cleópatra VI, com seu irmão Ptolomeu XIII. Não deu grande resultado. Tudo isto me conduz à etnologia, à demanda antropológica de Claude Lévi-Strauss, no seu "Les Structures élémentaires de la parenté", sobretudo a essa interrogação da fronteira entre a Natureza e a Cultura: "O carácter primitivo e irredutível da definição do parentesco resulta imediatamente da existência universal da proibição do incesto...  ...Um sistema de parentesco não consiste nos laços objetivos de filiação ou consanguinidade entre os indivíduos; não existe senão na consciência dos homens; é um sistema arbitrário de representações, e não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de facto"... Penso, cada vez mais profundamente, que a abordagem da cultura, ou das culturas vigentes, em que as pessoas vivem, é a achega necessária - aos homens de boa vontade e à Igreja - para uma compreensão adequada de muitas interrogações, reclamações e manifestações geradoras de conflitos e clivagens sociais, que por aí cada vez mais se veem. A transumância do homem é a cultura..." Mas foi, ou não foi? Jesus que disse que não é impuro o que no homem entra, mas o que dele sai?"

A tradução de cartas do Marquês de Sarolea à Princesa... dele!... vai-me entretendo. Para bem, espero.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 03.09.13 neste blogue.

MEMÓRIAS DE ADRIANO

  


Começo por ler Marguerite Yourcenar na longa carta do Imperador Adriano (76-138) ao seu filho adotivo Marco Aurélio (121-180). A escolha da personagem deve-se ao período de transição em que Adriano viveu e que podemos encontrar na explicação da própria Yourcenar: «Encontrei (…) num volume da correspondência de Flaubert, muito lido e muito sublinhado por mim, pouco mais ou menos em 1927, a frase inesquecível: “Não existindo já os deuses e não existindo ainda Cristo, houve de Cícero a Marco Aurélio, um momento único em que só existiu o homem”. Uma grande parte da minha vida ia passar-se a tentar definir, depois a descrever, esse homem sozinho e aliás ligado a tudo». E assim a autora de “Memórias de Adriano” procurou uma vida conhecida, acabada e fixada pela História, “de forma a abranger num só olhar toda a curva; mais ainda, a escolher o momento em que o homem que viveu essa existência a avalia, a examina e chega a ser por um instante capaz de a julgar”. Eis-nos diante do mistério do tempo. É essa a preocupação fundamental deste livro consagrado. E refere-se o paralelo entre a Antiguidade de Adriano e a modernidade de Lawrence da Arábia, tendo um como pano de fundo as colinas de Atenas e o outro a sabedoria do deserto – numa relação biunívoca para compreender o ascetismo e o hedonismo. E o tema comum era o da pessoa que encarava o tempo e que recusava a indiferença. Tudo, de modo a ter a liberdade de dizer, como Yeats: “É a mim próprio que eu corrijo ao retocar as minhas obras”.


Yourcenar (traduzida por Maria Lamas e depois por Helena Vaz da Silva, de quem se tornou amiga) exigia a si mesma a capacidade de compreender a realidade do mundo e a vida. “A substância, a estrutura humana não mudam. Nada mais estável que a curva de um tornozelo, o lugar de um tendão ou a forma de um dedo de um pé. (…) No século de que falo, estamos ainda muito perto da livre verdade do pé nu”. Urge analisar, prevenir, prever – com Plutarco e Marco Aurélio, para entender que os deuses e as civilizações passam e morrem. Não somos nós os únicos a olhar de frente um futuro inexorável”. A clarividência de Adriano evidencia-se. O mundo é complexo, mas vale a pena prosseguir na constante interrogação sobre ele. É Arriano quem escreve uma última missiva final Adriano, sobre o resultado das suas obras. Foi tudo em vão? E Adriano entende não poder fraquejar, por isso, deve continuar a pensar e a sonhar, e a ligar a “disciplina augusta” à virtude da “patientia”. O desafio permanente e indubitável é o de caminhar de olhos abertos, continuando a desejar conhecer os múltiplos aspetos do mundo terreno – o amor, a amizade, a fidelidade, a alegria…


Neste ponto da crónica, o leitor sente-se confuso. Julga ter-se enganado no tema e no título. Conhece talvez a obra de Marguerite Yourcenar, mas agora pensou que haveria uma outra referência. De facto, não se equivocou, veio mesmo ao lugar e ao tema que esperaria, todavia não do modo previsível e costumeiro. Adriano e Marco Aurélio, as personalidades da antiguidade clássica aqui estão, do mesmo modo que a reflexão sobre a vida e sobre a exigência de pensar e de recusar a inércia e a indiferença. É verdade. Este texto foi escrito, no entanto, a pensar numa personalidade portuguesa de referência, que acaba de completar a bonita idade de cem anos. Ponto por ponto, o romance fundamental que invocamos leva-nos à compreensão da vivência do tempo, não como mero percurso dos ponteiros do relógio, mas como revelação de resposta para aquele mistério do tempo que Santo Agostinho confessava ser difícil de resolver. De quem falamos, ensinou-nos pacientemente e sem desistência a complexidade da vida e do mundo: “A unidade da humanidade implica, na linha de ensinamento do Padre António Vieira, o abraço da justiça e da paz, mas tem de ser a justiça, contudo, a tomar a iniciativa desse abraço”. E assim homenageamos, com os melhores votos, o exemplo de Adriano Moreira.  


Guilherme d’Oliveira Martins

A FORÇA DO ATO CRIADOR


A singularidade da arquitetura não é abrigar uma vida cómoda, estável nem garantida.

“Construir é colaborar com a terra; é pôr numa paisagem uma marca humana que a modificará para sempre…”, Marguerite Yourcenar


A arquitetura é um fenómeno de grande complexidade que liga o mundo à vida humana. É vazio mas também limite. É uma totalidade que dá forma a volumes no espaço que encerram em simultâneo vários objetos e vários pensamentos. A arquitetura concretiza ideais de preenchimento, de posição, de encontro, de movimento e de tempo. É a forma que encerra o nada e matéria em transformação.


A arquitetura realiza-se no espaço verdadeiro e tangível que é ocupado pela atividade do nosso corpo. Vem do desenho e da mão humana. Por isso é também invenção, meio de expressão, meio de transmissão de pensamento e um símbolo.


“Cada pedra era a estranha concreção de uma vontade, de uma memória, por vezes de um desafio. Cada edifício era a o plano de um sonho.”, Marguerite Yourcenar


A arquitetura é um conjunto de partes cujo comprimento, a largura e a profundidade concordam entre si de uma certa maneira e constituem um sólido inédito, com um volume interno, uma massa exterior e uma sensibilidade às variações da luz. A relação entre o volume interno e a massa exterior varia no tempo e talvez seja aí que resida a originalidade mais profunda da arquitetura. Os volumes externos ao formarem o espaço oco, fazem surgir inesperadamente um elemento novo no meio das formas naturais - é assim concebido uma espécie de avesso do espaço. O ser humano age sempre no vazio, no exterior das coisas, está sempre de fora. Se quiser entrar no interior dos objetos tem de os quebrar.


A singularidade da arquitetura não é abrigar uma vida cómoda, estável nem garantida mas sim contribuir através de uma sucessão de espaços interpenetrantes para a lenta transformação que a breve vida humana apresenta e colocá-la incessantemente em contacto com o cosmos que a rodeia. A arquitetura será sempre e acima de tudo uma experiência que compreende a produção e a receção, a atenção e a participação, a imaginação e o corpo, o pensamento e o mundo.


Ana Ruepp