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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA


    Maria Barroso e Augusto de Figueiredo em "Benilde ou a Virgem Mãe" de José Régio (in site da C.M. de Vila do Conde)


ATORES, ENCENADORES (XIX)

REFERÊNCIAS A MANOEL DE OLIVEIRA, JOSÉ RÉGIO, MARIA BARROSO
por Duarte Ivo Cruz


Fazemos aqui uma abordagem global a três nomes exponenciais da cena portuguesa – e cada um deles, a seu modo e na biografia respetiva, em muito transcendeu a abordagem específica da arte do espetáculo. Referimos Manoel de Oliveira, na sequência da publicação anterior, mas também, pelas razões que adiante se explicam, José Régio e Maria Barroso.

Como bem sabemos, cada um transcendeu em muito a expressão dramática, aliás, também cada um deles, assumindo-a num nível de qualidade excecional. Mas é o teatro e o espetáculo que aqui os relaciona – e a partir da peça “Benilde ou a Virgem Mãe”, peça escrita por José Régio em 1947, estreada no Teatro Nacional de D. Maria II em 1947-1948 com Maria Barroso na protagonista, e filmada por Manoel de Oliveira em 1975 com Maria Barroso no papel de Genoveva.

Maria Barroso termina o curso de teatro do então Conservatório Nacional em 1943 e no ano seguinte ingressa na Companhia do TMDM II dirigida, como se sabe, por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro. Prossegue estudos na Faculdade de Letras de Lisboa, enquanto assume diversos papéis de protagonista no Nacional, com destaque para a Maria de Noronha do “Frei Luís de Sousa” em 1946. No ano seguinte estreia-se no cinema com “Aqui Portugal” de Armando Miranda: mas mais importante do que isso, nessa mesma temporada de 47-48, fará a protagonista da “Benilde” no D. Maria, com Augusto de Figueiredo no papel de Eduardo.

António Braz Teixeira assinala que «tal como o rei de “Jacob e o Anjo”, também a protagonista de “Benilde”, porque foi escolhida por Deus, só na morte serenamente aceite ou desejada (…) alcança a verdadeira liberdade redentora» (in “Teatro I” ed. INCM-2005 pág. 22). E o próprio Régio destacará esta interpretação, quase a última que Maria Barroso assume no Teatro Nacional antes de ser afastada em 1948. A crítica da época é aliás unânime em reconhecer a notável interpretação de Maria Barroso. “É o reconhecimento do seu talento. É a consagração do seu nome. É o ponto iluminado do seu palco” escreverá, meio século decorrido, Leonor Xavier, que reproduz um conjunto relevante de críticas da época. (in “Maria Barroso – Um Olhar Sobre a Vida”, ed. Difusão Cultural - 1995 pág. 98).

Maria Barroso afasta-se dos palcos. Mas em 1965, retoma a carreira em duas interpretações notáveis que marcaram o início de atividade do Teatro Villaret: “O Segredo” de Henry James e a “Antígona” de Jean Anouille, que já evocamos nesta série de artigos. 

Ora bem: em 1975 estreia em Lisboa o filme de Manoel de Oliveira precisamente denominado “Benilde ou Virgem-Mãe”. Aqui, a protagonista é Maria Antónia Mata, e Maria Barroso assume o papel de Genoveva “velha criada da casa”. O texto teatral articula-se na expressão cinematográfica: diz João Bénard da Costa que “é o cinema que invade o teatro, num jogo de alçapões e sótãos, como se sob a profundidade do primeiro se escondesse o espaço do segundo”… (in “Histórias do Cinema” ed. Europália e INCM 1991 pág. 153).

E Eduardo Prado Coelho: «Em primeiro lugar, o filme nunca pretende figurar, melhor ou pior, uma realidade, mas sim registar uma peça de teatro. Quer dizer que, com “Benilde”, Manoel de Oliveira avança sim pouco mais na sua conceção sobre a passividade do cinema. Em segundo lugar, opera-se, neste movimento de câmara, uma passagem para um espaço deliberadamente fechado, onde o exterior adquire uma força simbólica desmesurada (…). Em terceiro lugar, este espaço fechado é o espaço maldito que, na sua velha clausura, assistiu ao enlouquecimento da mãe de Benilde, ao bizarro comportamento do pai, e serve agora como explicação para o mistério que envolve o estado de Benilde”. (in “Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982” ed. ICLP pág. 58).

Entretanto, quero aqui frisar a expressão dramática e a qualidade do texto em si, e a sua “adaptabilidade” digamos assim, a formas de espetáculo em si mesmas distintas: o que em rigor se deve ao extraordinário talento de José Régio, que como sabemos não esteve, ao longo da vida, especialmente ligado aos meios teatrais e/ou cinematográficos… 

Maria Barroso faria pequenas intervenções em dois filmes de Manoel de Oliveira: “Amor de Perdição” (1977) e “Le Soulier de Satin” (1984).

E seja-me permitido terminar com uma citação de texto de minha autoria, a propósito da “Benilde” - peça:

“Luta Benilde pela sua verdade. E só a morte evidente mostra a verdade essencial e subjetiva das suas vozes. (…) Teatro e grande teatro é a tensão doseada e progressiva de «Benilde ou a Virgem-Mãe», o seu remate inesperado, a dúvida que sempre subsiste”… (in “História do Teatro Português”- Verbo ed. 2001, pág.296).


DUARTE IVO CRUZ


Obs: Reposição de texto publicado em 15.04.15 neste blogue.

MARIA BARROSO (1925-2015)

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O que acrescentar?
por Leonor Xavier

 

Mais de vinte anos depois da conversa, em que me perguntou se eu seria sua biógrafa, é-me difícil fazer uma reflexão objetiva sobre a personalidade, o mérito, o percurso da mulher notável que é Maria Barroso. Na sua personalidade, vejo a liberdade como princípio de vida, a família como força e estrutura de carácter, a política como disciplina de comportamento, a fé como misteriosa e firme revelação em idade madura.

O que acrescentar que sobre ela não se saiba ou não tenha sido dito?

Mais do que factos da vida pública, são agora desejados os detalhes sobre a sua vida privada. Se discretamente atenuou a sua própria expressão, para mais ser conhecida por primeira-dama e mulher de Mário Soares. Se foi essa a sua vontade, em vez de se distinguir pela sua intervenção e ação nas causas em que se tem envolvido, desde sempre. Perguntam-me como é a organização dos seus dias. Se é uma mulher independente. Se determina os rituais da casa e da família. Se tem uma relação próxima com os netos. Se tem uma agenda própria. E mais e mais. Parecem ser mais importantes estas minúcias do que o seu percurso de vida. O ambiente em que nasceu, os estudos, os amigos, o teatro, o amor, a política.

Talvez sejam menos conhecidos os seus concretos gestos de atenção aos outros, mais ainda aos mais simples, aos anónimos cidadãos que chegam perto, a dar-lhe uma palavra, a ouvir-lhe a voz. Poderão ser lembrados os seus tons de feminilidade, a sua maneira clássica de vestir, a determinação no estilo, a harmonia nas cores, a escolha do pequeno enfeite que sempre usa, a combinar com as variadas circunstâncias em que está presente. Na sua expressão pública, Maria Barroso diz a importância da família, na ordenação da sociedade. E na vida privada fala da casa dos pais, das brincadeiras com os irmãos. Lembra cenários de juventude à roda da mesa de jantar, repartidas então as fases difíceis de todos e de cada um. Forte e claro é o discurso amoroso constante, sempre que fala do seu amor. As prisões, os exílios, as separações, os medos. A coragem, o atrevimento, são nela justos motivos de orgulho.

Não tem temperamento para silêncio ou omissão, nas questões políticas e sociais de atualidade ela afirma-se. Quando tem uma causa a defender, fala o quanto pode, debate, imagina, propõe ideias, dá sugestões, defende opiniões, abre hipóteses de solução. Sabe que os problemas que apresenta pertencem, preocupam e dizem respeito a todos e a todas. Podendo ser intolerante e até radical quando discorda, ela sente a compaixão, pratica a solidariedade, a doçura. É reconhecido o seu estilo, o seu jeito, a sua maneira de ser na fantástica capacidade de comunicação que mantém com as instituições, os poderes, os cidadãos.

Na sua postura, vejo a marca de formação que recebeu como atriz nos anos 1940 da sua juventude, quando no Teatro Nacional pertenceu à Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro, surpreendendo pelo talento que a poderia ter consagrado como uma das notáveis da sua geração. Aplaudida então pelo público e pela crítica, para sempre lhe ficou a clareza na maneira de falar, a certa medida das frases, a colocação de pausas e pontos finais, o momento justo da respiração. As costas direitas, o olhar determinado, a expressão dos olhos a confirmar o que diz e como diz.

Sem desânimo nem pausas ou ausências, Maria Barroso tem tido perto de duzentas intervenções públicas em média, por ano. Umas largas dezenas de idas e vindas entre Lisboa e as mais variadas geografias do país não a cansam. Uma vintena de viagens anuais, acrescentando aos destinos europeus as mais variadas rotas de longa distância estimulam-na. Para que a solidariedade cresça no seu curso para a transformação dos males deste mundo, faz conferências nas escolas secundárias e nas universidades, promove debates e congressos, anima causas e ações. A violência na televisão e na imprensa, em especial, tem sido motivo de textos e pronunciamentos. Assim como a família, a educação, a violência, a assistência aos flagelados, às vítimas de seca ou de chuva, têm sido suas razões de ser. Pela defesa dos direitos humanos e pela cooperação inspira-se para campanhas a lançar, cresce em energias, tem disponibilidade absoluta. Sempre que procura ajudas, apoios, parcerias, raramente recebe recusas, porque a urgência de realizar é total e as soluções possíveis existem.

Nestes dias sombrios, releio o que Maria Barroso me disse e escrevi, no último capítulo da sua história: "O meu reencontro com a fé deu-me uma serenidade muito grande para olhar todo o percurso da minha vida, despedir-me deste mundo sem receio nem angústia."

 

in Diário de Notícias, 29 de janeiro de 2015
Fotografia © Reinaldo Rodrigues/Globalimagens