A GUARDIÃ DO FOGO
Ao falarmos de património cultural, a gastronomia corresponde a um domínio sem o qual não se compreende a diversidade da criatividade humana. O património cultural imaterial tem aqui um dos seus paradigmas. E o caso de Maria de Lourdes Modesto e da sua “Cozinha Tradicional Portuguesa” merece especial atenção, uma vez que estamos perante um fenómeno pioneiro e original, típico dos anos cinquenta do século passado e de um meio de comunicação como a televisão desse tempo. Quando Domingos Monteiro decidiu na RTP apostar num programa específico de culinária, compreendeu que se tratava de um campo que deveria ser visto com exclusividade, beneficiando das qualidades intuitivas de uma mulher que soube lidar, de modo extraordinário, desde os idos de 1959, com um instrumento que poucos conheciam e cujas virtualidades soube aproveitar. José Quitério falou, por isso, de uma das cada vez mais raras guardiãs do fogo, numa metáfora de rara felicidade. E essa qualidade de guardiã é essencial, quando falamos de património cultural, que apenas se torna realidade viva quando pode contar com cultores de qualidade.
Foi tarde que em Portugal tivemos livros de cozinha. O mais antigo manuscrito de cozinha em português até hoje conhecido é o da Infanta D. Maria, neta do rei D. Manuel (1538-1577), duquesa de Parma e Piacenza, casada com Alexandre Farnese. Quando partiu de Portugal levou consigo um manuscrito com 73 folhas, encadernado em carneira, conhecido como “Códice da Biblioteca de Nápoles”, que se encontra junto a outros manuscritos da livraria da infanta. O livro reúne 67 receitas, abrangendo manjares de carne, de leite, de ovos e das coisas de conservas, assim como receitas medicinais. Aí encontramos a utilização ainda rara do açúcar, o ouro branco, e a curiosidade da primeira receita de lampreia, a única de peixe, ou da mais antiga de pastéis de leite, que antecipam os pasteis de nata. Mas só em 1680 se imprimiu o primeiro livro de receitas – “A Arte de Cozinha” de Domingos Rodrigues…
Ciente da necessidade de aproveitar o sucesso da televisão, um editor de grande sensibilidade como Fernando Guedes, no início dos tempos áureos da editorial Verbo, fixou em livro as receitas da TV, para responder às muitas perguntas das telespectadoras. E Paula Moura Pinheiro viu bem como essa escrita se tornou indispensável para compreender a cultura portuguesa, ao lado dos textos fundamentais de Orlando Ribeiro. E assim, mais do que os grandes gastrónomos oitocentistas, como João da Matta, Bulhão Pato ou Paulo Plantier e da erudição que os antecedeu, ou do que Berta Rosa Limpo e de seu filho Jorge Brum do Canto, ou ainda das duas amigas que se popularizaram sob o pseudónimo de Isalita – Maria Isabel Campos Henriques e Ângela Telles da Silva, Maria de Lourdes Modesto foi pioneira, a abrir novos caminhos e a criar novos públicos. E tudo começou com uma alcachofra, que se tornou símbolo de audácia renovadora que soube aliar tradição, modernidade e compreensão da vida moderna. Da sociedade rural ao tempo urbano, houve a compreensão da mudança. Se os gastrónomos antigos procuraram seguir hábitos, tradições e práticas multisseculares, o papel pedagógico da televisão permitiu abrir as perspetivas correspondentes a uma nova sociologia. Além da tradição, passou a estar em causa o consumo de qualidade, a prevenção da alimentação saudável (com o apoio de Fernando Pádua) e o património imaterial da gastronomia ligou-se à qualidade e à utilização de matérias-primas acessíveis, sem esquecer as boas tradições. E Maria de Lourdes Modesto marcou pela compreensão do equilíbrio entre criatividade, inovação e respeito pela identidade cultural, atlântica e mediterrânica, pelo diálogo entre o norte e o sul, e por um entendimento da diversidade do melting-pot, minhoto, transmontano, beirão, ribatejano, alentejano e algarvio, sem esquecer as ilhas atlânticas e a compreensão de uma cultura repartida, castiça, cosmopolita, enriquecida pelo achamento de novos mundos.
GOM