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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

De 20 a 26 de abril de 2020

 

Poucos dias antes de nos deixar, Maria de Sousa (1939-2020) escreveu o poema “Carta de Amor numa Pandemia Vírica”, que aqui reproduzimos integralmente na invocação de uma cientista que amava as artes, a poesia, a literatura, a filosofia, a música e a cultura.

 

 

A CIÊNCIA E A CULTURA DE MÃOS DADAS
Maria de Sousa foi uma médica, bióloga e mulher de cultura e de ciência de exceção, que nos deixou vítima do terrível vírus que nos assola. Lembramo-nos do seu livro “Meu Dito, Meu Escrito” (Gradiva, 2014), onde se encontra a força e a alegria da sua personalidade única. Era Professora Emérita da Universidade do Porto e fez um brilhante percurso internacional no Reino Unido (onde foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian) e nos Estados Unidos. Encontrei sempre em Maria de Sousa, que conheci em 1985, o genuíno entusiasmo de quem procura em cada momento o modo de chegar à dignidade humana pela vida, pelas ideias, pelo entendimento da complexidade, pela compreensão de que a descoberta corresponde ao sentido crítico e ao permanente inconformismo. Daí dar tanta importância ao desassossego, que nos leva ao exemplo, à aprendizagem e à experiência. Em 1966 tornou-se notada ao publicar no “Journal of Experimental Medicine” e na “Nature” dois artigos relatando descobertas fundamentais em imunologia na sequência de estudos realizados nos laboratórios do “Experimental Biology do Imperial Cancer Research Fund” em Mill Hill (Londres). Numa notável entrevista a Anabela Mota Ribeiro, explicou, com uma grande simplicidade, o que fez nesse tempo: «Creio que todos saberão que temos linfócitos a circular. O que muitos não saberão é que os linfócitos não são uma população homogénea, com a mesma pátria. Uns nasceram no timo e saíram para a circulação no período a seguir à nascença, outros fora do timo, na medula óssea. Essa distinção não era clara em 1964. Ainda se pensava que talvez viessem todos do timo. O meu trabalho consistiu na observação de lâminas de cortes de órgãos linfáticos periféricos de ratinhos que tinham tido o timo removido no período neonatal. As minhas observações demonstravam que esses animais timectomizados à nascença ainda tinham linfócitos. E mais, os espaços vazios de linfócitos eram distintos dos espaços onde havia linfócitos, o que significava que as células pareciam saber para onde ir. Isso foi posteriormente demonstrado como uma técnica importante, a autoradiografia, que permitia seguir células marcadas. As do timo iam para o território a que chamámos área dependente do timo (tda) e que hoje é conhecida por Área T. E achei esse fenómeno de as células saberem para onde vão tão importante que lhe dei (em 1971) um nome: Ecotaxis».

 

REGRESSADA A PORTUGAL
Quando regressou a Portugal, desempenhou um papel fundamental na Universidade do Porto, no Instituto Abel Salazar, mas também, ao lado de José Mariano Gago no lançamento da política científica nacional. Como afirmou Manuel Valsassina Heitor: «Foi com a Maria de Sousa, com Fernando Lopes da Silva, que aprendemos a ser sujeitos em Portugal a avaliação científica independente, quando José Mariano Gago era presidente da JNICT no final dos anos 1980. Inicialmente testada para as ciências da vida sob a liderança da Maria, esta prática que hoje nos parece tão óbvia, só viria a ser alargada a todas as outras áreas científicas há 25 anos, com a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia». Não por acaso, Maria de Sousa citava muitas vezes o grande Garcia de Orta: «O que sabemos é a mais pequena parte do que ignoramos». E entendamos que se trata de um verdadeiro programa de vida e de conhecimento. Só essa atitude nos permite compreender como o espírito científico é uma busca permanente, de insatisfação, de persistência, de tentativa e erro, de regresso constante ao que podemos saber mais. Quando morreu o nosso comum amigo José Mariano, a Maria de Sousa, grande leitora e amante de poesia e de arte, escreveu: «Há os que passam e os que ficam / Há os que ficam onde os seus restos mortais ficarem ou cinzas forem dispersas / Há os que ficam nos que lhes são mais próximos: amores, filhos, mãe, amigos, mulher, etc. / Há os que ficam em muitos outros desconhecidos / Há em geral espaços em que todos ficamos mortos / Mas no tempo, na transformação do tempo / Só um ou outro raro e belíssimos no fazer e no fazer-se / Ficará. / Como este assim / Que será sempre encontrado no tempo todo / Na história da ciência na Europa / E neste nosso país / Transformando o nosso tempo/ Transformando-nos pelo seu Fazer / No Seu Fazer-se». E podemos dizer que nestas belíssimas palavras, encontramos facilmente também a sua autora, uma vez que, de facto, entendeu “o tempo todo”, compreendendo que nos transformamos pelo que fez no sentido do que fazemos.

 

SABIA MUITO E EXPLICAVA BEM
Francisco Pinto Balsemão recordou, aliás, no “Expresso”, as extraordinárias qualidades de quem “sabia e sabia muito e explicava bem” e sobretudo que não havia domínio da cultura que lhe fosse estranho. Sou testemunha pessoal disso mesmo. E se era uma pessoa de esperança, era-o de fino humor, mas sobretudo de querer e de esperança, como fica bem evidente no último poema que escreveu:

«Carta de amor numa pandemia vírica.

Gaitas-de-fole tocadas na Escócia / Tenores cantam das varandas em Itália / Os mortos não os ouvirão / E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio / Quem pretendem animar? / As crianças? / Mas as crianças também estão a morrer / Na minha circunstância / Posso morrer / Perguntando-me se vos irei ver de novo / Mas antes de morrer / Quero que saibam / O quanto gosto de vós / O quanto me preocupo convosco / O quanto recordo os momentos partilhados e queridos/ Momentos então / Eternidades agora / Poesia / Riso / O sol-pôr / no mar / A pena que a gaivota levou à nossa mesa / Pequeno-almoço / Botões de punho de oiro / A magnólia / O hospital / Meias pijamas e outras coisas acauteladas / Tudo momentos então / Eternidades agora / Porque posso morrer e vós tereis de viver / Na vossa vida a esperança da minha duração.

3 de abril de 2020».

Onze dias depois, apenas, deixou-nos, recordando a plena vitalidade e o apego à vida que se comunica em permanência. E assim a sua memória está bem viva, como exemplo e como apelo a que a educação e a ciência de mãos dadas possam criar vias de esperança, sobretudo neste momento de incerteza e perplexidade. Como disse Sófocles: “Inúmeras são no mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare. É o ser dos recursos infindáveis”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

 

De 29 de janeiro a 4 de fevereiro de 2018.

 

«Meu Dito, Meu Escrito» de Maria de Sousa (Gradiva, 2014) é um fascinante conjunto de textos de uma cientista em busca da humanidade e da compreensão do diálogo entre saberes e valores éticos.

 

 

DO CONHECIMENTO À SABEDORIA
Maria de Sousa é uma cientista, médica e bióloga, com créditos firmados no mundo, em virtude do seu conhecimento, da sua discrição e persistência. Exerceu atividade científica em Inglaterra, na Escócia e nos Estados Unidos. Como imunologista abriu caminhos novos, que hoje estão a produzir extraordinários resultados no campo da medicina. Foi investigadora e catedrática no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto e no Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC). Maria de Sousa é bem um exemplo para os dias de hoje e para todos quantos acreditam que T. S. Eliot tinha razão quando dizia: “Onde a vida que perdemos no viver? Onde a sabedoria que perdemos no conhecimento? Onde o conhecimento que perdemos na informação?” Estamos aqui no cerne da atitude humanista e da compreensão de um sentido amplo de humanidades, ligando ciência e artes, inovação e criatividade, conhecimento e compreensão. Encontrei sempre em Maria de Sousa o genuíno entusiasmo de quem procura em cada momento o modo de chegar à dignidade humana, pela vida das ideias, pelo entendimento da complexidade, pela compreensão de que a descoberta corresponde ao sentido crítico e ao permanente inconformismo. Daí dar tanta importância ao desassossego, que nos leva ao exemplo, à aprendizagem e à experiência… E não podemos esquecer como Agostinho da Silva foi uma referência para a cientista – uma vez que usava do paradoxo por contraponto às ortodoxias fechadas ou rígidas. Em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, Maria de Sousa disse-nos quem a influenciou, no sentido de desarrumar o seu pensamento, abrindo-o para a inovação e referiu Jorge da Silva Horta, o professor de Anatomia Patológica e o modo como ele ensinava. «Fazíamos leitura de relatórios de autópsia, e, ao mesmo tempo, sabíamos a opinião que os clínicos tinham desses pacientes em vida. Grandes e famosos clínicos. Viam o doente, achavam que o doente tinha uma coisa, depois fazia-se a autópsia e não era nada daquilo. Os resultados da autópsia eram uma forma extraordinária de aprender que, de facto, não se sabe. O que me vai impressionar sempre é o que não se sabe. Foi a primeira desarrumação. Depois, quem desarrumou mesmo, foi (…) David Ferreira, que era de um grupo que ia constituir o IGC (Instituto Gulbenkian Ciência). Recrutaram alunos de Medicina para fazer investigação, muito cedo». E cita Garcia de Orta na sua extraordinária afirmação: «O que sabemos é a mais pequena parte do que ignoramos». Sim, esta é a atitude fundamental correspondente ao modo do ser do cientista, capaz de compreender a ciência como cultura. Afinal, o filósofo e o cientista, o artífice engenhoso e o pintor, o escultor e o músico todos participam da maravilhosa capacidade criadora. E o processo assemelha-se em todos os casos – que articulam educação, ciência e cultura, sempre – tornando a aprendizagem base essencial do desenvolvimento humano. Duarte Pacheco Pereira falava, por isso, do «saber de experiências feito» e Camões pôs essas qualidades no grande incompreendido de «Os Lusíadas» que é o Velho do Restelo. Não se esquece que essa personagem central não diz a Vasco da Gama para não partir, mas antes alerta-o para os perigos do imediatismo (que viriam a ser os famigerados fumos da Índia) e da «glória de mandar» e da «vã cobiça».

 

A IMPORTÂNCIA DAS HUMANIDADES
Maria de Sousa, ao longo da complexa investigação que desenvolveu no campo da imunologia, soube sempre manter um diálogo muito fecundo e necessário com outras áreas do conhecimento, de modo a garantir que a ligação Educação, Ciência e Cultura permita uma melhor compreensão da humanidade e da dignidade humana. «Inúmeras são do mundo as maravilhas, mas nenhuma que ao homem se compare É o seu dos recursos infindáveis…». As Humanidades têm de colocar as pessoas no centro da vida e do mundo – sem a tentação de repetir o que recebemos nem de considerar o novo como um absoluto. Mas surge a pergunta perturbadora: sobreviveremos como civilização? George Steiner não está certo de qual a resposta. O nacionalismo e o protecionismo são poderosos venenos do nosso tempo. O chauvinismo torna o outro e o diferente como inimigos. Despreza as pessoas com nacionalidade diferente. A absolutização da identidade torna-se um fator de fechamento. Uma civilização autista tende a decair e a desaparecer por incapacidade de responder aos novos desafios, limitando-se a repetir tiques exteriores. O que nos caracteriza e nos distingue uns dos outros deve ser considerado como elemento de enriquecimento mútuo – não como de separação, de indiferença ou de ignorância. Os fundamentalismos e os protecionismos têm a mesma raiz. Hoje o tema dos refugiados não pode, pois, ser visto de modo simplista, como se correspondesse apenas a uma ordem de razões. Impõe-se articular a compreensão do outro, considerar a mobilidade das populações nos dias de hoje como algo de natural e tantas vezes necessário – bem como a cooperação para o desenvolvimento realizada nos países de origem… Os que se limitam a pensar na questão da segurança, bem como os que se atêm exclusivamente ao acolhimento de refugiados como tema humanitário estão equivocados – uma vez que há que equacionar a complexidade de temas, entendendo-se não só a resposta ao agravamento das desigualdades e à ocorrência dos fenómenos de exclusão, mas também a motivação social e humana e a emancipação cultural. A diversidade linguística e a comparação das diferentes literaturas colocam-nos no cerne da cultura como criação – e George Steiner, como Edgar Morin, permitem-nos compreender a complexidade de fatores humanos que devemos considerar. E porventura estaremos hoje a atravessar um período muito semelhante ao que ocorreu no Renascimento. E urge que tal se compreenda. Daí a multiplicidade de pistas abertas e a necessidade de um diálogo entre saberes. Maria de Sousa ensina-nos que a resposta humana aos diferentes desafios vai depender de diferentes caminhos, a que a humanidade tenderá a corresponder de um modo múltiplo… Eis o que podemos ganhar com a estimulante leitura dos ensaios da cientista e mulher de cultura.  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença