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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MAIS 30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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  (XXV) MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA

 

Pode dizer-se que Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) é no conjunto multissecular da cultura portuguesa uma referência fundamenal e indiscutível. E tornou-se um autêntico símbolo artístico da contemporaneidade universalista. Falamos de uma artista plástica que se afirmou através de uma personalidade multifacetada, que soube interpretar os tempos difíceis e sombrios em que viveu, dando-lhes força positiva. E assim concedeu uma dimensão de eternidade a um período de violência e irracionalidade, que Maria Helena e seu marido Arpad Szenes souberam transformar em referências de humanidade e criatividade.  Nascida em 13 de junho de 1908, filha do Embaixador Marcos Vieira da Silva e de Maria da Graça Silva Graça, ficou orfã de pai com apenas três anos, sendo educada pela mãe, membro de uma família influente de Lisboa, filha do proprietário do jornal “O Século”. Estudou pintura em Portugal e foi para Paris, onde frequentou Belas-Artes depois de 1928. Em 1930 casou com o pintor húngaro Arpad Szenes (1897-1985), formando um casal marcante para as gerações artísticas do seu tempo. Maria Helena expõe no Salon de Paris em 1933 e, pela primeira vez, em Portugal dois anos depois.

 

A origem judaica de Arpad tornou-o alvo da perseguição do regime nazi, sendo obrigado a vir para Portugal e daqui a partir para o Brasil, por ambos serem apátridas, onde viveu até 1947, mantendo uma relação esteita e intensa com a intelectualidade do momento: Murillo Mendes, Saudade Cortesão, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jaime Cortesão, Agostinho da Silva. A presença no Brasil teve a maior importância pelo contacto com o modernismo e pela compreensão do significado do diálogo entre as artes e a literatura. Regressada a França, ainda na condição de apátrida, naturaliza-se francesa, com seu marido, sendo reconhecida pelos meios artísticos como uma das maiores pintoras europeias da sua geração. Tem uma atividade criativa extremamente fecunda na pintura, nas tapeçarias, nos vitrais para Reims, nas gravuras, ilustrações de livros infantis e cenários para o teatro. Além da atenção dos melhores críticos europeus e da admiração e amizade de André Malraux, a pintora merece a atenção da moderna investigação da História da Arte em Portugal, sob a coordenação de José-Augusto França. Em 1960 recebeu o grau de cavaleira da Ordem das Artes e Letras e em 1961 recebeu o grande prémio da Bienal de São Paulo (Brasil). Em 25 de abril de 1974 é de sua autoria, em ligação com Sophia de Mello Breyner, o cartaz “A Poesia está na Rua”. Em 1977 recebe a Grã-Cruz da Ordem de Santiago da Espada.

 

“Ma Femme Chamada Bicho” de José Álvaro Morais (1978) é uma longa-metragem portuguesa, rodada em 1976, falada em francês e português, com a produção do Centro Português de Cinema para o Museu da Imagem e do Som, retrata a relação terna e fecunda entre Maria Helena e Arpad, enquanto dois grandes artistas, tendo o documentário o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Criada em sua honra, a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva tem sede em Lisboa no Jardim das Amoreiras. A estação do Metropolitano de Lisboa da Cidade Universitária tem azulejos de sua autoria, o mesmo acontecendo com a estação do Rato, na proximade da Fundação que tem seu nome, onde a memória de Vieira e Arpad está eternizada. Em 2019, o nome de Vieira da Silva foi atribuído a uma rua de Paris, situada no 14.º bairro, onde habitou e trabalhou durante vários anos. Na mesma altura, foram colocados na entrada de honra do Palácio do Eliseu, na qual o Presidente francês acolhe todos os Chefes de Estado e convidados de honra que o visitam, as pinturas “Jardins suspendus” (1955) e “Stèle” (1964), pertencentes ao espólio artístico e cultural do Governo Francês.

 

GOM

 

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A VIDA DOS LIVROS

De 16 a 22 de setembro de 2019

 

“Brincar diante de Deus, Arte e Liturgia” é um encontro inesperado de Maria Helena Vieira da Silva, Henri Matisse e Lourdes Castro na Fundação Árpad Szenes – Vieira da Silva.

 

SÍMBOLOS, ELEMENTOS, REFERÊNCIAS
Apresentam-se nesta exposição obras de Matisse de 1949 a 1951, que correspondem ao desenho dos paramentos para a Capela de Nossa Senhora do Rosário, em Vence. Os símbolos, os elementos, as referências são-nos mostrados através uma imaginosa técnica do recorte e por um jogo de cores que corresponde aos tempos litúrgicos e ao calendário de celebrações. Os contributos de Maria Helena Vieira da Silva referem-se aos estudos para os belos vitrais da Igreja de Santiago de Reims (1966), bem como aos painéis para a sacristia da capela da Embaixada de França no Palácio de Santos, em Lisboa (1981) e à série “Luta com um Anjo” (1992), onde é evidente o fecundo diálogo entre talento e espiritualidade. E Maria Helena explica-o: “Às vezes, pelo caminho da arte, experimento súbitas, mas fugazes iluminações e então sinto por momentos uma confiança total, que está além da razão. Algumas pessoas entendidas que estudaram essas questões dizem-me que a mística explica tudo. Então é preciso dizer que não sou suficientemente mística. E continuo a acreditar que só a morte me dará a explicação que não consigo encontrar”. Lourdes Castro corresponde ao convite que lhe foi feito para a Capela Árvore da Vida do Seminário Conciliar de Braga, desenhando quatro paramentos, em elementos naturais, algodão, linho, seda e lã, ligados às quatro estações do ano, com belos peitorais ornamentados com lâminas de ágata em cores diferentes conforme os diversos momentos litúrgicos… A mostra significa um encontro inesperadamente fecundo – e a sua referência neste texto tem a ver com Lourdes Castro, que representa um elo que articula de um modo muito intenso as obras apresentadas – que, valendo por si, ganham um sentido especial neste diálogo. E a ideia de “brincar diante de Deus” tem a ver com a essência da palavra brincar, de origem latina, do verbo “vincire”, que significa seduzir, encantar, donde provem “vinculum”, que significa ligação, e também está na origem da palavra “brinco”, símbolo de fecho e de sedução. Brincar é sinônimo de divertir-se e este divertimento liga-se à essência da cultura e da arte, e à busca da alegria genuína do “riso de Deus”. Romano Guardini afirma, por isso, que «viver liturgicamente, é (...) tornar-se uma obra de arte viva diante de Deus. É cumprir a palavra do Mestre e “fazer-se criança”». Afinal, «não é trabalho, é jogo. Brincar diante de Deus. Não criar, mas ser cada qual uma obra de arte, eis a essência íntima da liturgia».

 

UM AGREGADO DE MIL COISAS…
E a “Luta com um Anjo” de Maria Helena Vieira da Silva permite recordar o “Anjo de Berlim” de Lourdes Castro, que se encontra na Capela do Rato, em Lisboa, graças à iniciativa de José Tolentino Mendonça. Tudo nasceu num Natal de neve em Berlim e numa ideia partilhada com Manuel Zimbro – sobre a qual escreveu Almeida Faria. O anjo foi colocado numa janela e foi iluminado. E tornou-se uma sombra viva em diálogo com as outras luzes da cidade. Em entrevista recente, Lourdes Castro disse: “Pergunto sempre: ‘O que somos nós senão um agregado de mil coisas?’ Não há ‘eu’, somos tudo à la fois. Às vezes pergunto: ‘Mas foste tu que escolheste o sítio para nascer? Foste tu que escolheste o pai e a mãe?’ Não, a gente tem o pai e a mãe que tem. Nasci aqui, mas não fui eu que escolhi nascer aqui. Nasci. O que somos senão um agregadozinho no meio disto tudo? Somos tudo e somos nada. E isso é fundamental para a gente não estar agarrada a nada. As pessoas pensam que são qualquer coisa. Mas depois vão para a escola e aprendem. E depois há um tio e uma tia, há a paisagem que também entra em nós. E o que vai entrando também é conforme o que já temos dentro. É assim que a gente se vai formando. E somos isto que está aqui, mas não somos nada de especial. Somos um agregado de causas e efeitos. Vamo-nos construindo” (Expresso, 31.8.2019). A cultura, a arte, a vida são, com efeito, sempre construções. E ao ler esta passagem, lembrei-me, naturalmente de José Escada (que se encontrou com Lourdes Castro no projeto “KWY” e que foi partilhando essa ideia). Segundo José-Augusto França, Escada “escrevia o desenho” e tinha uma especial maturidade entre os seus colegas do grupo parisiense (René Bertholo, Christo, João Vieira, Costa Pinheiro, Jan Voss, Gonçalo Duarte), uma “delicada solução de uma pintura pessoal numa espécie de ‘simulação caligráfica’”. E quanto às composições feitas de pequenos elementos, disse um dia «ter-se inspirado no último verso de um soneto de Camilo Pessanha “conchinhas, pedrinhas, bocadinhos de osso”». Depois, voltou ao figurativo – paisagens, cabrinhas, cães. Os seus amigos reconheceram uma espécie de regresso à descoberta da contemplação. E assim, depois de uma certa turbulência, transmite-nos serenidade e paz… E António Alçada Baptista escreveu: «Não sei se, na minha geração, alguém sofreu com tanta violência o embate entre a lucidez e a clarividência perante o grande projeto que foi prometido ao homem e a mediocridade dos pesos interiores intransponíveis e mais dos bloqueios das circunstâncias que eles semearam à nossa própria volta»… Se associo Lourdes Castro e José Escada (que, no início, fizeram juntos uma exposição no Centro Nacional de Cultura) é porque, nas suas diferenças fundamentais, há pontos de encontro, não só pessoais, mas de espírito e de procura da transcendência da arte. 

 

GRANDE HERBÁRIO DE SOMBRAS
A paisagem natural da Madeira, que rodeou Lourdes Castro sempre, é uma paixão que a acompanha. Veja-se a série “O grande herbário de sombras” (1972) e percebemos que há uma permanente procura das formas essenciais e da projeção da natureza e das pessoas na memória perene. É fantástico percorrer as obras que estão na Fundação Gulbenkian e tudo o que tem exposto. Agora mesmo, o último número da “Colóquio Letras” apresenta-nos belos desenhos de Lourdes Castro. Não se trata de referências estáticas, há sempre a ideia fascinante de um teatro de sombras – e, assim, regressamos à essência da palavra brincar, como sinónimo de criação. Serão sempre sombras à volta de um centro. Ao plexiglas recortado, sucederam as sombras bordadas em lençóis – na extrema leveza das sombras que se fixam, mas que estão sempre a mudar. O grande herbário nasceu de um desconsolo grande perante a mostra no Louvre do herbário de Rousseau. E lembrando-se da vitalidade natural da Madeira começou a fazer um herbário digno desse nome – mangueiras, bananeiras, cana-de-açúcar, magnólias…E vêm à baila os lemas de vida de Lourdes Castro: “Grava para sempre a alegria na fachada de tua casa” (“Cloue à jamais la joie au front de ta demeure”, como encontrou em Paris na rue des Saints-Pères). E há tempos em que se torna necessário dizer: “Caminha como o teu coração te leva”… E assim se pode entender como “A arte e a casa e o jardim e mais isto e mais aquilo, é tudo respirar. É respirar à sua maneira. Não é o caminho, porque isso depois, o caminho… Como é que a gente respira?”  

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

‘O Fulgor da Luz’.

 

Em ‘O Fulgor da Luz’, conversas de Anne Philipe com Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes lê-se que, na verdade o pintor acaba por nunca fazer exactamente o que quer. Há sempre uma distorção provocada pela distância que existe entre a razão que pensa e a mão que executa. O pintor tem de procurar sempre ser consciente daquilo que faz, para tentar entender o que menos se espera, o que vem da inconsciência. Criar implica irremediavelmente um salto, por vezes lento e às vezes alto e que treme diante o desconhecido. A escolha é, para qualquer pintor, muito difícil e até pode acontecer avançar-se demasiado numa via qua não seja a melhor – e às vezes só tarde o pintor se dá conta disso.

 

Arpad parte da natureza e caminha não necessariamente para a abstração mas tenta deixar a espessura essencial, tudo o que é plástico. A pintura é alimentada interiormente. O quadro é assim um projecto, uma ideia, uma força activa na vida do homem (que cria e que vê). Só no momento em que se torna iluminado, a pintura passa a existir. Luz é o que acima de tudo se deve procurar. É aí que reside todo o mistério e toda a dificuldade.

 

‘Sinto que o mesmo fenómeno se dá com a música ou a poesia. Não desejo saber a que princípios obedeceu o compositor ou o poeta, ignoro a sua técnica. Quando os ouço sinto uma emoção que não é necessariamente aquela que eles pretenderam ou julgaram dar. O mesmo se passa com um quadro. O que é belo penetra e espalha-se tão longe e tão profundamente em nós, que é impossível canalizá-lo…’, Vieira da Silva

 

Ao longo de uma vida, a pintura não faz progressos. Modifica-se, torna-se outra. Ao fim de anos e anos de trabalho certamente que o pintor adquire alguma ciência, mas no entanto, e quase sempre é impossível, ao pintor explicar exactamente o que está a fazer e porque é que o faz. Vieira diz que enquanto se pinta, sente-se por vezes que o que se faz não está bem, que há que recomeçar, que há que corrigir, mas é impossível explicar porque se está descontente, por que razão se corrige.

 

Ainda Vieira afirma que não existe nenhuma ideia prévia antes de começar um quadro. Caminha-se às apalpadelas. Sabe-se que se quer seguir um caminho, mas não exactamente qual. É mais fácil partir de um determinado assunto, do que pintar um quadro que é formado por um jogo de volumes, de equilíbrio e de luz. A total ausência de modelo, implica que tudo depende e que tudo está entregue ao próprio pintor.

 

‘Um quadro para se tornar vermelho, tem de conter todas as cores. Emprega-se todas as cores para que plástica e pictoricamente não haja um único vazio, tão intensa é a vibração do branco, ou seja a vibração da luz.’, Vieira da Silva

 

O nascimento de uma pintura é sempre diferente, é algo perfeitamente misterioso, e o modo como é feito também. A mão, que reúne os segredos do corpo, por vezes trabalha só mas é raro. Quando se pinta há dois quadros avançando a par, o que está no cavalete e o que se tem na cabeça - e na maior parte das vezes o que se tem na cabeça nunca chega a alcançar o outro. O pintor nunca está satisfeito, por isso, a busca continua infinitamente.

 

Ana Ruepp