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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A GRANDE GUERRA – ESTUDOS, DEBATES, ESPETÁCULO

 

Realizou-se recentemente em Lisboa um ciclo de conferências e debates intitulado “A Grande Guerra (1914-1918): Memória e Consequência”, iniciativa e organização de entidades muito marcantes da vida cultural portuguesa: Academia Nacional de Belas-Artes, Academia de Marinha, Sociedade de Geografia de Lisboa, Academia Portuguesa da História, Academia das Ciências de Lisboa e Comissão Portuguesa de História Militar.  Tivemos o gosto de participar nessa iniciativa com uma intervenção sobre Portugal na Conferência de Paz, que precisamente descreveu e analisou a estratégia, as posições e as negociações da delegação portuguesa nesse complexo ciclo de negociações diplomáticas, na sequencia das Atas da Delegação Portuguesa, que estudamos e publicamos em 2009 numa edição da Fundação Luso-Americana.

 

Ocorre que no ano passado fizemos aqui referência a um interessante estudo de Maria José Oliveira, intitulado “Prisioneiros Portugueses da Primeira Guerra Mundial – Frente Europeia – 1917-1918”, onde se historia com desenvolvimento e qualidade literária e científica a participação de Portugal na Guerra de 1914-1918 e os prisioneiros de guerra.  (ed. Saída de Emergência – 2017).

 

Damos novamente notícia desse estudo, pois nele se refere a realização de um espetáculo teatral pelos prisioneiros de guerra portugueses, no campo de Breesen. Trata-se de um texto dramático da autoria de Alexandre José Malheiro, denominado “O Amor na Base do CEP” (Corpo Expedicionário Português).

 

Tal como refere Maria José Oliveira, «a comédia estreou no campo, a 27 de outubro de 1918, e foi interpretada por 15 prisioneiros, dos quais sete representaram personagens femininas. Foi um divertimento que pretendia sobretudo reabilitar o “moral” dos expedicionários.»

 

Este espetáculo de prisioneiros de guerra é referido por outro oficial, Bento Esteves Roma, que escreveu um diário e mais recordações da sua participação na Guerra e do período de reclusão nos campos alemães. Designadamente “Os Portugueses nas Trincheiras da Grande Guerra” e “Algumas Passagens do Diário de Bento Roma como Prisioneiro de Guerra”, ambos citados no estudo aqui analisado.

 

E precisamente: na segunda das obras citadas, Bento Esteves Roma recorda a peça de Alexandre José Malheiro mas engana-se no nome do texto, chamando-lhe “A Guerra na Base do CEP” e não, como efetivamente Alexandre Malheiro a denominou, “O Amor na Base do CEP”.

 

Escreveu então Bento Esteves Roma:

 

«Foi hoje a inauguração do teatro com a peça “A Guerra na Base do CEP” escrita pelo Tenente Coronel Malheiro e que quer ser uma charge sobre a base do CEP. A ação desenrola-se em torno de uma aventura amorosa havida entre uma artista francesa que se encontra no Tréport a passar a época calmosa e um médico português.»

 

Mas o comentário  de Bento Esteves Roma é duro, e revela detalhes sobre a vida no campo de concentração:


«A peça não vale nada. Sem movimento, com diálogos enormes, figuras suplementares metidas à força. O desempenho foi horroroso. E gastou-se dinheiro com isto. Foi uma peça que custou 500 e tal marcos. Cada vez provamos mais o nosso pouco juízo. Adiante.”».

 

E tal como então referimos, este espetáculo marcou pelo ineditismo do local: o “teatro” era um estrado no campo de soldados portugueses do Corpo Expedicionário Português presos na   Alemanha em 1918.

 

 

DUARTE IVO CRUZ

EVOCAÇÃO DE UM ESPETÁCULO DE PRISIONEIROS DE GUERRA

 

Acaba de chegar às livrarias um interessante estudo histórico da autoria de Maria José Oliveira, intitulado “Prisioneiros Portugueses da Primeira Guerra Mundial – Frente Europeia -1917/1918” onde se relata com desenvolvimento e qualidade literária e científica os 100 anos da participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, e designadamente a permanência de prisioneiros de guerra portugueses. (ed. Saída de Emergência-2017).

 

Damos notícia desse estudo, pois nele se refere a realização de um espetáculo teatral pelos prisioneiros de guerra portugueses, no campo de Breesen.

 

 

Trata-se de um texto dramático da autoria de Alexandre José Malheiro, denominado “O Amor na Base do CEP” (Corpo Expedicionário Português).  

Tal como refere Maria José Oliveira, «a comédia estreou no campo, a 27 de outubro de 1918, e foi interpretada por 15 prisioneiros, dos quais sete representaram personagens femininas. Foi um divertimento que pretendia sobretudo reabilitar o “moral” dos expedicionários.»

 

 

Ora bem: este espetáculo de prisioneiros de guerra é referido por outro oficial, Bento Esteves Roma, o qual viria a desempenhar funções de Governador–Geral de Angola, e que escreveu um diário e mais recordações da sua participação na Guerra e do período de reclusão nos campos alemães. Designadamente “Os Portugueses nas Trincheiras da Grande Guerra” e “Algumas Passagens do Diário de Bento Roma como Prisioneiro de Guerra”, ambos citados no estudo aqui analisado.

 

E precisamente: na segunda das obras citadas, Bento Esteves Roma recorda então a peça de Alexandre José Malheiro mas engana-se no nome do texto, chamando-lhe “A Guerra na Base do CEP” e não, como efetivamente Alexandre Malheiro a denominou, “O Amor na Base do CEP”.

 

Escreveu então Bento Esteves Roma:

«Foi hoje a inauguração do teatro com a peça “A Guerra na Base do CEP” escrita pelo Tenente Coronel Malheiro e que quer ser uma charge sobre a base do CEP. A ação desenrola-se em torno de uma aventura amorosa havida entre uma artista francesa que se encontra no Tréport a passar a época calmosa e um médico português básico. Combinam passar uma noite em Paris-Plage e ela faz-lhe ver só poder ir invocando, por causa da mãe, uma récita em que tome parte, mas previne-o de que está habituada a ganhar muito. Reúnem-se em Paris Plage e depois da noite passada, quando o médico quer saber quanto tem a despender, ela diz-lhe num último beijo: “não quero nada, direi à minha mãe que foi uma récita de caridade”».

 

Mas o comentário seguinte de Bento Esteves Roma é duro, e revela detalhes sobre a vida no campo de concentração: «A peça não vale nada. Sem movimento, com diálogos enormes, figuras suplementares metidas à força. O desempenho foi horroroso. E gastou-se dinheiro com isto. Foi uma peça que custou 500 e tal marcos. Cada vez provamos mais o nosso pouco juízo. Adiante.”».

 

Referimos aqui este espetáculo pelo ineditismo do local: o “teatro” era um estrado no campo de soldados portugueses do Corpo Expedicionário Português presos na Alemanha em 1918.

 

Mas aí se fez teatro…

 


DUARTE IVO CRUZ

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   É sempre com alegria que vejo gente nova a interessar-se e a escrever sobre o Japão. Li um artigo de Maria José Oliveira no Observador e felicito-a pela sua curiosidade e esforço. Vi outros, também, mas confesso que me chocaram um pouco: alguns "clichés" sobre encontros de culturas, insistência na missão histórica de Portugal e dos jesuítas (cujos méritos nem sem querer pretendo diminuir), afinal olhares sobre o próprio de nós e generalizações mais ou menos apologéticas. Falando de um filme saído de um romance escrito por um cristão japonês, Shusaku Endo, acaba este, afinal por ser quase esquecido. Quando, todavia, a circunstância em que ele colocou o drama da fé e da negação, real ou aparente, dela apenas terá sido o pretexto achado para se exprimir, não só enquanto cristão e japonês, mas como crente católico, um dos muitos que a fé conforta e rasga. Não me leves, Princesa, portanto, a mal as considerações que se seguem. Devem estar, creio fora do filme: refiro-me, claro está, a essa hecatombe de comentários a que assistimos.

 

   Aliás, a mais grave observação que posso fazer ao artigo de Maria José Oliveira, por exemplo, é de somenos importância: nem os jesuítas, nem os portugueses da Nau do Trato, passaram a ser, por qualquer motivo de antipatia ou ódio, "bárbaros do sul"! Tal designação surgiu naturalmente, desde a aparição desses estranhos homens, de narizes compridos e diversas cores de pele, olhos e cabelo, exoticamente vestidos e transportando bens desconhecidos e quiçá apetitosos - desembarcando na sulista ilha de Kyushu. Vinham do sul (não do sul da Europa desconhecida dos japoneses, mas do sudeste asiático) e chamaram-lhes algo que traduzimos por bárbaros, mas que, em língua nipónica, como em mandarim, em grego - e sei lá que mais! - não tinha necessariamente sentido pejorativo, mas antes era manifestação de estranheza. Aliás, como tão bem traduzem os biombos nanban, a reação inicial dos japoneses foi a de curiosidade e expectativa, nunca de antagonismo. A questão da perseguição ao cristianismo, tal como a da limitação do comércio externo à "feitoria" de Deshima, em Nagasaki, surgirá mais tarde, por outras e complexas razões.

 

   Não vi, nem tenciono ver, o filme de Scorsese. Não tenho nada contra, é uma opção pessoal que, singularmente, tem a ver com o próprio título da película e do romance de Shuskaku Endo: SILÊNCIO. Desabafo: para mim, o drama ali exposto tem menos a ver com portugueses, jesuítas e coisas passadas, do que com o silêncio de almas humanas perante o silêncio de Deus. É claro que a circunstância histórica em que esse drama (uma luta de Jacó com o anjo?) é colocado tem diretamente a ver com a chegada dos portugueses ao Japão, a missionação jesuíta e o "século cristão". Mas esse é o cenário. Podia ser outro. Já, por várias vezes, em escritos e conferências, citei uma entrevista de Shusaku Endo à revista japonesa Kumo, em que ele afirma: Fui batizado em criança, isto é, o meu catolicismo foi um pronto a vestir. Depois tive de decidir se faria o fato adaptar-se ao meu corpo, ou se o deitaria fora, para vestir outro. Muitas vezes senti que queria desfazer-me do meu catolicismo, mas, finalmente, fui incapaz de o fazer, mas, finalmente, fui incapaz de o fazer. Não foi só não deitá-lo fora, foi sentir-me incapaz de o deitar fora. A razão disto talvez seja ele ter acabado por se tornar parte de mim. O facto de ter penetrado tão profundamente em mim quando jovem era um sinal de que, pelo menos em parte, se tornava numa co-extensão minha. Mesmo assim, não conseguia desembaraçar-me do sentimento de se tratar de algo emprestado, e comecei a perguntar-me o que seria o meu ser-eu-mesmo. Penso que isto é o pântano de lama japonês em mim. Desde que comecei a escrever romances, e até hoje, esta confrontação do meu ser-eu-mesmo católico com o ser-eu-mesmo que lhe está subjacente tem, como um refrão repetido por um idiota, ecoado e voltado a ecoar na minha obra. Senti que tinha de encontrar maneira de reconciliar ambos.


   Este tema está subjacente a um outro romance de Shusaku Endo, Escândalo, a meu ver bastante autopsicográfico, em que a personagem central é um escritor japonês premiado, o católico Suguro, que, na cerimónia de entrega da distinção, além de ouvir, até nos próprios elogios públicos de colegas e críticos, alusões à sua condição de cristão, encontra uma jovem estranha, que não conhece, mas pretende conhecê-lo bem de encontros num bairro boémio e pouco recomendável a homens sisudos e casados como ele. Tal encontro levá-lo-á a visitar o misterioso local... Não vou contar a história, deixo-te apenas uns trechos de dois discursos de homenagem então proferidos por personagens do romance.

 

   O primeiro por um tal Shiba, que assim se referia a Suguro: Algumas partes das suas histórias são...ora bem...você ainda não as agarrou com os dentes... Não há nada de estranho em falar sobre Deus, mas tudo se torna suspeito quando parece que você traz cá para fora algumas ideias ocidentais... Suguro ia retorquir, mas engole as palavras: Nenhum de vós tem qualquer ideia de quanto é difícil para um cristão escrever ficção no Japão. E o romancista Shusku Endo comenta: Ao mesmo tempo, uma parte de si mesmo não podia negar a afirmação de Shiba de que a sua obra era suspeita. Sentiu-se como se sempre tivesse escondido algo num canto recôndito do seu coração.

 

   O segundo discurso pertence a um tal Kano, e terá mais a ver com o tema Endo/Silêncio/Ferreira. Será mais longa a citação: Naqueles dias, Suguro era como uma criança perseguida no nosso grupo. Até chegámos a insistir em que abandonasse o seu cristianismo. Para nós, jovens do pós-guerra, a religião era o que Freud descrevia como uma ampliação da imagem do pai derivada dum complexo de Édipo, ou o ópio da doutrina de Marx, uma superstição irracional. E os cristãos eram uns hipócritas que tinham ido contra as suas origens japonesas - resumindo, não conseguíamos perceber porque é que Suguro não tinha posto de parte o sarilho do Deus estrangeiro. Além disso, ele não se convertera de livre vontade. Fora meramente batizado enquanto criança, por vontade de sua mãe. Assim, a sua fé não nos parecia mais do que uma força de hábito. Como sabeis, Suguro publicou mais tarde várias novelas históricas sobre os primeiros cristãos no Japão, narrando os patéticos crentes que foram forçados à apostasia por oficiais brutamontes. Pensei muitas vezes que Suguro me tinha em mente quando criou esses cruéis oficiais...

 

   ... O carácter único da literatura de Suguro reside na sua descoberta de um novo significado e valor para o que a religião chama pecado. Infelizmente, não sendo eu mesmreligioso, não faço a menor ideia do que seja o pecado...

 

   Eis porque, minha Princesa de mim, prefiro guardar silêncio perante o Silêncio: pensossinto que a única possível descoberta do insondável é a contemplação, como diálogo interior. Respeito muito o que não sei explicar, seja fé ou apostasia. E todavia sigo sendo crente. 

 

   O que não quer dizer que o século cristão japonês, a missionação jesuíta, o comércio nanban, o sincretismo religioso no Japão e a inculturação, sobretudo no caso dos cristãos clandestinos, não sejam questões interessantes. Também já falei delas, designadamente no meu Fomos em busca do Japão, editado pela VERBO/BABEL em dezembro de 2015. Mas tudo o que lá está, e mais algumas coisas, encontrá-las no blog do Centro Nacional de Cultura. E noutras cartas que te escrevi.


Camilo Maria   

 

Camilo Martins de Oliveira