Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - VII

 

Minha Princesa de mim:

 

   Não há testemunhas presenciais do levantamento de Jesus Cristo do chão dos mortos. Não há relatos, reportagens, desse momento fundamental, fundador, da fé cristã. As narrativas existentes do sucesso, ou acontecimento, dessa Ressurreição apenas nos contam a descoberta do sepulcro vazio. O capítulo XVI do Evangelho de Marcos - que a seguir te transcrevo na tradução de Frederico Lourenço - é curta, incisiva, interrogadora, quiçá cheia de uma verdade que, todavia, para a condição humana do leitor, poderá não ser assim tão evidente:

 

   Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram perfumes para irem embalsamá-lo. E muito cedo de manhã, no primeiro dia da semana, elas vão até ao sepulcro tendo já nascido o sol.

 

   E diziam entre si: «Quem rolará para nós a pedra da entrada do sepulcro?» E tendo olhado à sua volta, veem que a pedra tinha sido rolada para o lado; e era muito grande. E entrando elas no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca, e ficaram apavoradas.

 

   Ele diz-lhes: «Não vos assusteis. É Jesus, o Nazareno, que procurais, o crucificado? Ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o depuseram. Mas ide e dizei aos seus discípulos e a Pedro: "Ele vai à vossa frente, a caminho da Galileia; lá o vereis, tal como ele vos disse.»

 

   E elas, saindo, fugiram do sepulcro, pois dominava-as um tremor e um êxtase. E nada disseram a ninguém: tinham medo, pois.

  

   Assim termina uma das quatro narrativas canónicas da Boa Nova de Jesus Cristo, esta sendo, provavelmente, a mais antiga. Como se fossem todos saduceus ou, noutra hipótese, considerassem que a ressurreição dos mortos fosse algo só imaginável no após fim do mundo, do tempo e do espaço, quando rebentassem inúmeras catástrofes. Tinham medo dos fantasmas, como todos nós, nas nossas culturas, ao longo de milénios... Qualquer contacto com os espíritos dos mortos seria necessariamente obra do maligno, ou como descer aos infernos, ao Hades donde nem Orfeu logrou tirar Eurídice, mas apenas o castigo que o levou a quedar-se explodido na abóboda estelar...

 

   Já o mais tardio dos evangelhos, o de João, no seu penúltimo capítulo (o XX), reportando embora o túmulo vazio e a ausência imediata de Jesus, conta que Maria Madalena desatou a correr e foi ter com Pedro e o discípulo que Jesus amava: «Levaram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram!» Ambos então acorreram ao local, entraram no túmulo e encontraram e viram que os panos que envolviam o corpo estavam depostos, e o sudário que estivera à volta da cabeça dele não jazia juntamente com os panos, mas dobrado à parte em lugar próprio. Então, o outro discípulo, que chegara primeiro ao túmulo, entrou e viu e acreditou. Ainda não conheciam o trecho da Escritura, segundo o qual ele tinha de ressuscitar dos mortos. Os discípulos voltaram de novo para junto dos seus. E o Evangelho segundo S. João prossegue o relato da cena que nos deixa adivinhar o mistério da Ressurreição e nos põe a interroga-lo. Não só sobre o que será ou possa ser ressurgir dos mortos, mas, desde logo, sobre os modos como nos poderemos relacionar com essa eventualidade anunciada. Todos e qualquer de nós, mesmo quem tenha ou creia ter fé. Os textos de João Evangelista que seguidamente transcrevo (sempre na versão de Frederico Lourenço) são bem elucidativos do paradoxo da fé:

 

   Maria Madalena ficou de pé a chorar no exterior do túmulo. Enquanto chorava, espreitou para dentro do túmulo e viu dois anjos sentados, vestidos de branco, um à cabeça, outro aos pés, no sítio onde jazera o corpo de Jesus. E eles dizem-lhe: «Mulher, porque choras?» Ela diz-lhes: «Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. Enquanto ela dizia isto, voltou-se para trás e viu Jesus e pé e não sabia que era Jesus. Jesus diz-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que ele é o jardineiro, diz-lhe: «Senhor, se o levaste, diz-me onde o puseste e eu levo-o.» Diz-lhe Jesus: «Maria!» Ela, voltando-se, diz-lhe em hebraico: «Rabounî!» (o que quer dizer Mestre). Jesus diz-lhe: «Não me toques. Ainda não ascendi para o Pai. Vai para junto dos meus irmãos e diz-lhes: "Subo para meu Pai e vosso, Deus meu e Deus vosso".» Chega Maria Madalena anunciando aos discípulos que «vi o Senhor!» e as coisas que ele lhe disse.

 

   Antes de passar ao trecho seguinte - para voltarmos aos diferentes modos da fé - deixa-me, Princesa de mim, fazer sobre este um comentário linguístico e trazer-te uma recordação pictórica. O primeiro manifesta a minha maior simpatia por outra tradução da expressão grega "mé mo hapto": não me retenhas! Em vez de não me toques, como na latina da Vulgata, por que é sobejamente conhecida, noli me tangere. Dir-te-ei porquê, ao comentar duas representações da mesma cena: a de Hans Holbein Júnior e a de Lavínia Fontana, uma hoje presente na galeria real de Hampton Court, perto de Londres, onde a visitei com os meus netos, outra nos Uffizi de Florença, que também contemplei em tempos mais meus... À primeira, curiosamente e sem machismo algum, chamam-lhe Noli me tangere; à segunda, pintada por uma mulher, chamam Aparição de Cristo Ressuscitado a Maria Madalena...


   Jean-Luc Nancy, filósofo, escreve no seu Noli Me Tangere (Paris, Bayard, 2003): Na maioria das suas representações pictóricas, Noli me tangere dá azo a notáveis jogos de mãos: aproximação e designação do outro, arabesco de dedos afinados, prece e bênção, esboço de um toque, de um afago, indicação de prudência ou de um aviso. Todas essas mãos desenham uma promessa tenção ou retenção, de se ligarem uma às outras: na verdade, estão, muitas vezes, não só bem no centro do desenho, mas como se fossem o próprio desenho, como as mãos do pintor que diligencia e manipula o desligar dos seus dedos e das suas palmas...   ... Na verdade, essas mãos são signos e sinais da intriga de uma chegada (a de Madalena) e de uma partida (a de Jesus), mãos prontas a juntarem-se, mas já disjuntas, e tão distantes quanto a sombra da luz, mãos que trocam saudações mescladas de desejos, mãos que apontam os corpos tanto quanto designam o céu...

 

   No quadro de Holbein o Jovem, Jesus e Maria estão ambos de pé, mas ela, segurando o vaso de bálsamo com a mão esquerda, inclina-se para a frente, estendendo a direita, como para tocar em Jesus e certificar-se de que ali está mesmo o seu Mestre. Este, pelo contrário, inclina-se para trás, frustrando-se à mão que o procura, e atirando para a frente os seus dois braços, como que a mandá-la parar.

 

   Na pintura de Lavínia Fontana, também do século XVI, Jesus, vestido de jardineiro, com chapéu de palha na cabeça e uma pá ou sacho na mão esquerda, estende a direita sobre a cabeça de Madalena ajoelhada a seus pés, de braços abertos e vaso perfumador na sua mão esquerda, enquanto a direita revela uma íntima ação de graças, como se o gesto suspenso do Mestre, que não lhe toca, fosse simultaneamente uma bênção de despedida e uma promessa.

 

   Apesar das suas muitas diferenças, ambas estas representações ilustram a mesma narrativa evangélica, são a sua reportagem pictórica. Comumente, Cristo Ressuscitado é mais representado vestido de luminoso tecido branco e segurando na mão esquerda um estandarte, de semelhante alvura, sobre a qual surge uma cruz vermelha, e por vezes parece lança espetada sobre o túmulo da própria morte, pois só esta agora ali se encontra, como celebração do triunfo do Ressuscitado. Nestas duas que temos vindo a ver, apenas se conta um episódio, não há qualquer retrato de um corpo ressuscitado. A este sói chamar-se corpo glorioso, quiçá para o diferenciar dos fantasmas imaginários que tanto assombramento causam. Talvez para vencer o medo que o desconhecido sempre nos mete cá dentro. Seja o que for, se até deste mundo sabemos muito pouco, apesar de o situarmos no espaço/tempo que nos permita entendê-lo, que poderemos dizer do outro, infinito e intemporal? Assim, a glória, tal como suas derivadas verbalizações e adjetivações, são apenas conceitos que criamos, neste caso, para designar o indesignável: a realidade (que não é condicionada) da imortalidade, e o seu lugar (que ou é nenhures ou omnipresente).

 

   A fé na Ressurreição não é, pois, não pode ser, o conhecimento, nem sequer a imaginação, de algo palpável. Cristo ressuscitado já não pode continuar entre nós em condição humana, pois esta é periclitante e terminal. Muitos gostaríamos de poder retê-lo e tocar-lhe. Mas, desde o início do seu ensino, Jesus diz-nos que terá de padecer, morrer e ressuscitar para voltar para o Pai. E, em troca da sua ausência necessária, deixa-nos a memória de si e o Espírito de Vida. Deus não está connosco como se o Transcendente pudesse existir submetido à condição humana. Veio uma vez e revolucionou a nossa vida, em sentido próprio: deu-lhe a volta completa para nos pôr, a nós, outra vez, no início do mundo. Agora já como seu Corpo Místico, celebrado na ação de graças que é a Eucaristia, mas vivificado pelo Espírito Paráclito que anima o sacramento cristão por excelência: amai-vos uns aos outros.

 

   O mesmíssimo capítulo XX do Evangelho de João conta-nos, depois da narrativa da Madalena que, sem sequer ter podido tocar o Senhor, o reconheceu e foi, correndo, contar aos discípulos fechados em medos que o tinha visto, a visita que Cristo Ressuscitado lhes faz, ali onde, temerosos, se tinham trancado: «Paz para vós». E dizendo-lhes isto, mostrou-lhes as mãos e o flanco. Então, os discípulos alegraram-se ao verem o Senhor...   ... Mas Tomé, um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos diziam-lhe: «Vimos o Senhor!» Mas ele disse-lhes: «A não ser que veja nas mãos dele a marca dos pregos e ponha o meu dedo na marca dos pregos e ponha a minha mão dentro do flanco dele, não acreditarei». E oito dias depois, os discípulos estavam de novo dentro, e Tomé estava com eles. Chega Jesus, estando trancadas as portas, e pôs-se de pé a meio e disse: «Paz para vós.» Depois diz a Tomé: «Aproxima o teu dedo daqui e vê as minhas mãos e aproxima a tua mão e põe-na no meu flanco e não te tornes descrente mas sim crente.» Tomé respondeu e disse-lhe: «Meu Senhor e meu Deus.» Diz-lhe Jesus: «Porque me viste, acreditaste? Bem aventurados os que não viram e acreditaram».

 

   Caravaggio, na sua Incredulidade de São Tomé (1600-1)que vi no Neues Palais, em Potsdam, pinta com intenso realismo físico o dedo do apóstolo a meter-se no lado lancetado do Mestre, cuja mão esquerda lhe segura e empurra a direita para que toque bem a ferida. Há uma força voluntarista e serena no rosto atento de Jesus, enquanto Tomé parece atónito e confuso, e outros dois apóstolos (Pedro e João?) se debruçam como quem quer certificar-se. Não surge sangue algum, um corpo ressuscitado já está livre de qualquer sinal ou atributo de vida carnal. E qualquer certeza física da Ressurreição parece aqui deslocada, quase absurda. Pertence já ao domínio da simples fé, substância das coisas que hão de vir.

 

   Outra tela do Caravaggio, coeva desta (1601), oferece-nos, na National Gallery, em Londres, A Ceia de Emaús, um conto neotestamentário que resume bem a herança que Jesus Cristo deixa depois de morto e ressuscitado. Sentado à mesa já composta para a ceia, o Senhor é figura central, cujo braço direito se ergue sobre os alimentos presentes, em que se reconhecem o pão e o vinho eucarísticos, num gesto de bênção e oferta. À sua esquerda senta-se um discípulo (Pedro?) que, com os braços abertos em cruz, se debruça como quem abraça o gesto do Mestre. Diante deste senta-se outro discípulo que, segurando-se com força ao seu assento, fita o mesmo gesto com o maravilhamento de quem assiste a uma revelação. De pé, quase por detrás de Jesus, o estalajadeiro, com semblante muito sério, contempla e escuta os gestos e palavras do celebrante, interrogando-se, talvez, sobre o que se está na realidade passando.

 

   E em 2019, por chuvosa semana de Páscoa a tornar mais verdejantes os campos largos que avisto, também eu, minha Princesa de mim, continuo a contemplar e interrogar um mistério, na esperança de que certo dia me seja desvendado.

 

Camilo Maria    

  
Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

   Minha Princesa de mim:

 

    No seu sermão, frei Tiago Voragino irá contar, ao gosto do seu tempo, uma vida de Santa Madalena. Começa por lhe dar família certa, de sangue real, pai chamado Siro, mãe Eucária, irmão Lázaro, irmã Marta. A família de Betânia, de que todavia não constam, no Novo Testamento, os nomes dos progenitores aqui mencionados. Maria é Madalena, porque, da herança paterna, lhe calhou o castelo de Magdala. Dá para filme do Walt Disney, é imaginário, mas sem as presunções e pretensões pseudocientíficas de um Dan Brown, ou qualquer dos seus indigentes seguidores. O arcebispo de Génova, contudo, não poupa nos retratos pessoais: Lázaro dedicava-se sobretudo a empresas militares, Marta administrava com cuidado os bens de sua irmã e seu irmão, e ainda conseguia prover com o necessário os soldados, os servos e os pobres; quanto a Maria, essa não se inibia da entrega desenfreada aos prazeres dos sentidos.

 

   Passo a traduzir: Mas como Madalena usufruía de riquezas, e a volúpia é companheira da abundância de bens, quanto mais ela brilhava pelas suas riqueza e beleza, tanto mais abandonava o próprio corpo à volúpia; e até perdera o próprio nome para somente responder ao de pecadora. Ora, quando Cristo pregava ali e alhures, Madalena, inspirada pela vontade de Deus, apressou-se para a casa de Simão o leproso, onde, ouvira dizer, Cristo fora convidado a jantar; mas não ousando, enquanto pecadora, misturar-se à companhia dos justos, deixou-se ficar atrás, aos pés do Senhor, que lavou com as suas lágrimas, enxugou com o cabelo e cobriu de precioso unguento [...] E quando Simão dizia para consigo que, se Jesus fosse um profeta, não deixaria que uma pecadora lhe tocasse, o Senhor repreendeu-o pelo orgulhoso juízo e absolveu a mulher de todos os seus pecados. Tal é portanto essa Maria Madalena, a quem o Senhor concedeu tão grandes benefícios e a quem deu tantas marcas de afeto. Pois expulsou sete demónios do corpo dela, abrasou-a totalmente de amor por ele, fez dela a sua amiga preferida e hospedeira; quis que fosse ela a ter cuidado dele em seu caminho, e defendeu-a com doçura em todas as circunstâncias. Na verdade, justificou-a diante do fariseu que a dizia impura, de sua irmã que a chamava preguiçosa, junto de Judas, que a acusava de prodigalidade. Vendo as lágrimas dela, não pôde reter as suas. Graças ao seu amor, ressuscitou-lhe o irmão ao fim de quatro dias; em nome do seu afeto, libertou a sua irmã Marta de um fluxo de sangue que há sete anos a afligia; e graças aos seus méritos, Marcela, a serva de sua irmã, foi digna de pronunciar essa palavra tão doce e cheia de felicidade: «Bendito o ventre que te pariu!»

 

   Terás notado, Princesa, que se confundem, propositadamente, aqui, vários passos dos evangelhos: Mateus, 26, 6-7; Marcos, 14, 3 e 16, 9; Lucas, 7, 37-50 e 8, 2 e 10, 38-42 e 11, 27; João, 11, 1-44 e 12, 3-8.

 

   Frei Tiago era, certamente, grande devoto da santa - a quem dedica um dos mais longos capítulos da Legenda - esta sendo uma figura maior da hagiografia medieval, sobretudo na Igreja latina ocidental que aceitou a figura das três Marias numa, forjada por Tertuliano, reconhecida pelo papa Gregório Magno. Na Igreja oriental, greco-bizantina, manteve-se a distinção das três mulheres referidas. No Ocidente, todavia, a devoção popular, e o pertinente culto, juntou ainda, às três Marias evangélicas, a figura de outra pecadora: Maria Egipcíaca, personagem que não escapou ao nosso querido António Alçada Baptista. E que, com o nome de Thaïs, é heroína de uma novela de Anatole France e da ópera de Jules Massenet, nele inspirada e com o mesmo título. Cortesã, é convertida por um santo cenobita e acaba por viver no deserto, em oração e penitência. Frei Tiago também põe a Madalena a viver trinta anos num deserto (algures, no Midi da França?), antes de ser arrebatada ao céu por um bando de anjos... Mas a ópera acaba, na versão que tenho cá em casa, com a morte de Thaïs-Renée Fleming a cantar Ah! Le ciel! Je vois... Dieu! e o monge Athanaël-Thomas Hampton exclamando Morte! Pitié!, pois se tinham, entretanto, invertido os papéis, e o pobre cenobita quedara-se enfeitiçado pelos encantos da mulher...

 

   Como acontecerá com a cabeça degolada de João Baptista - assunto para próxima carta - a veneração de Madalena reclamar-se-á da presença corporal da santa, ou das suas relíquias, em variadas paragens, desde Éfeso, na Turquia atual, donde a terá expulso o ódio dos judeus, até Constantinopla e Jerusalém, passando, e demorando-se, por diversas localidades do sul de Itália e, sobretudo, de França: Vézelay, num caminho de São Tiago de Compostela, Marselha, Saint Maximin da Provença... Aqui, conta uma crónica, a descoberta, em 1279-1280 (12 de Dezembro de 1279?), por Carlos d´Anjou, do sarcófago da santa numa capela funerária paleocristã levou à construção de uma basílica, confiada aos dominicanos, e a um surto do respetivo culto, tornando-se aquele convento um destino de popular peregrinação provençal. Ainda hoje dura, apesar de Éfeso, Jerusalém ou Vézelay reclamarem também para si o repouso final do corpo de Maria Madalena...

 

   Pensossinto agora, minha Princesa de mim, como nos é tão familiar - aceitável, direi, corretamente proposto e edificante - o tema da mulher pecadora que se redime. Recordo a Traviata, poderia lembrar a Butterfly, há sempre maneira de invocar a culpa da mulher e o sacrifício dela... Quiçá por isso, eu, que não sou devoto, talvez compreenda a primazia dada a Santa Maria Madalena, mulher insigne no panteão de tantos homens - muitos clérigos - sempre santos... Será a misoginia uma mancha indelével no cristianismo? A mulher, se não for a Imaculada Conceição - a Virgem Maria nascida sem pecado original - lembra sempre o pecado, logo desde o original...

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Em carta ida, antes da anterior, já te falara de Madalena e da questão da sua identidade. Curiosas lendas antigas, escritos apócrifos, apresentaram-na como noiva de João, o discípulo que Jesus amava, outros como companheira de Jesus (pensa no Evangelho de Filipe, apócrifo gnóstico); romances hodiernos comprazem-se em celebrar o seu casamento com Cristo, de quem teria descendência; tal como o nosso Saramago os põe nos braços carnais um da outra. Nada de novo, nem original, já no século XIII a Legenda Aurea de Tiago Voragino referia: Dizem alguns que Maria Madalena fora noiva de João Evangelista, e que estava mesmo para casar com ele, quando Cristo o chamou no momento da boda. E Madalena, indignada por ele lhe ter roubado o noivo, foi-se embora e entregou-se a todas as possíveis volúpias. Mas como não estaria bem que a vocação de João se tornasse em ocasião de danação para ela, o Senhor, em sua misericórdia, converteu-a à penitência; e porque a arrancou aos supremos prazeres da carne, encheu-a, mais do que aos outros, do supremo deleite espiritual, que reside no amor de Deus. Alguns também dizem de João que, se Cristo o honrou admitindo-o na sua doce intimidade, foi porque o tinha afastado do prazer de Madalena. Mas são ideias falsas e frívolas.

 

   Frei Tiago Voragino era dominicano prudente e sábio, foi sagrado arcebispo de Génova, onde morreu em 1298. Entre as suas lendas douradas - que, afinal, são sermões que acompanham as festas dos mistérios da fé, ao longo do ano litúrgico e do calendário hagiográfico - além de vidas de santos e reflexões teológicas, respiga tradições da devoção popular, incluindo, como no exemplo acima, as que considera fantasiosas, tal como outras, bonitas e toleradas pela Igreja, que ele encontrou em textos apócrifos. Creio que tinha noção da baralhada à volta da identidade da Madalena, personagem sobre a qual, hoje ainda, muitas coisas poderão ser ditas sem que alguma acerte. Exceto, quiçá, uma só: Lucas, no seu evangelho (Lc. 2, 8), narra o episódio da mulher possuída por sete demónios - e, eles sendo sete, quer isso dizer que estava totalmente possuída - que Jesus exorciza. Essa mulher, ali identificada como Maria de Magdala, toma a liberdade que lhe foi então dada para seguir Jesus, amá-lo e servi-lo até à cruz. Será a primeira a testemunhar a ressurreição do Senhor e, nesse momento, quando o reconhece, quererá tocar-lhe a fímbria da túnica. Mas fica-lhe no ar o gesto, pois Cristo ordena que não lhe toque. Noli me tangere - essa intimação em latim da Vulgata de S. Jerónimo - será, como sabes, tema de incontáveis criações da iconografia cristã...

 

   Assim, o essencial da pessoa Madalena não é quem ela, de facto, em carne e osso, foi. Mais é a personificação do destino humano da misericórdia de Deus: tomando a nossa condição mortal, vence a nossa contingência, supera os demónios do nosso mal, e a própria morte, é, como na parábola do filho pródigo, a vitória e a glória do amor regressado. Talvez por isso, desde muito cedo a devoção cristã identificou numa só Maria Madalena, não só essa de quem saíram os sete demónios, mas a de Betânia, irmã de Lázaro - a tal que escolheu a melhor parte, a contemplação da palavra de Jesus - e a pecadora que com suas lágrimas lhe lavou os pés, os enxugou com seus cabelos e perfumou com bálsamos caros em casa de Simão, o fariseu. Em 591, o papa S. Gregório Magno declarou-as a mesma e uma só pessoa. E assim permaneceu essa lição de teologia da Redenção no imaginário e na devoção dos cristãos.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira