Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Se a língua ganha a dimensão da escrita E a escrita toma a dimensão do mundo Descer é preciso até ao fundo na busca das raízes da saliva que na boca vão misturar tudo Mas há ainda a pressa do papel que no tacto navega a brusca seda Se a sede se disfarça sob a pele descendo pela escrita essa vereda E já se inventa Enlaça Ou se insinua Se entrelaça a roca e o bordado que as palavras tecendo lado a lado querem do país a alma nua Aí podes parar e retornar à boca Esse espaço de beijo e de cinzel Onde a fala retoma a língua toda trocando a ternura por fel Um lado após o outro a dimensão está dita O tempo a confundir qualquer abraço entre o visto e o escrito Espelho e aço Nesta fundura boa e mar profundo Para depois subir a pulso O mundo
in Inquietude, 2006
Portuguese
If the tongue gains the dimension of writing and writing takes on the dimensions of the world We must go deep searching saliva’s roots in the mouth where all is mixed And there’s still the paper’s haste its touch steering rough silk Even if under the skin the disguised thirst streams through the trail of words And already it creates Envelops Insinuates Interlaces the spindle with the stitch as the words weave along the line wanting the country’s naked soul There you can halt and return to the mouth That space for the kiss and the chisel Where the voice reclaims the whole language exchanging tenderness for bile First one side then the other the scale is settled Time fusing the embrace between what is seen and written Mirror and steel In this pleasing depth the sea unfolds Then with effort lifts up The world
Transcrevo seguidamente um trecho do artigo de José Tolentino Mendonça no Jornal de Letras (6 a 19 de julho de 2016), acerca de Anunciações de Maria Teresa Horta, não para debater contigo o tema Iconoclastia e Mística (título do texto de JTM), menos ainda o «Romance» da poeta. Vou tão somente chamar a tua atenção para um pormenor, uma observação que servirá de pretexto à tese do autor do artigo (indiciada no próprio título escolhido), e que, a meu ver, ignora símbolos da iconografia cristã e da literatura bíblica, que eu gostaria de contrapor às Anunciações de MTH, não para as contestar, mas apenas para distinguir culturas. Aliás, a própria autora pressente a diferença, por exemplo, num poema da oitava estação do seu livro:
Num dia de calamento de onde a luz já fugia sem a olhar nos seus olhos ele contou a Maria: - No princípio era o verbo onde o verbo se dizia... Sem perceber sua fala embora sempre entendesse o quanto ele lhe queria uma coisa ela sabia: No início eram as asas onde depois do amor estonteada se estendia.
Mas vamos então ao texto de JTM. Reza assim o trecho que destaco:
Contudo, o poema guarda um estratégico silêncio sobre aquele que é porventura o elemento mais intrigante (e menos consensual) na obra de Boticelli: a inesperada sombra que o corpo angelical possui e que se alonga dramaticamente sobre o pavimento, acompanhando a deslocação das mãos. Estamos perante uma natureza angélica que rompe com o cânone das representações, uma natureza não só não-privada de sombra, como seria de esperar, mas cuja sombra é mesmo o signo mais avançado, prolongando-se para lá do espaço onde o corpo se sustém. Um corpo angelical com sombra é, claramente, um corpo alterado, em metamorfose. E de que metamorfose se trata? Aquela que sabiamente, Maria Teresa Horta depois enunciará: "Fico a ver-te.../ ganhares o corpo físico / na perda do corpo místico". A sombra é uma grafia da carnalidade, estando comummente do lado dos corpos históricos e ausente dos espíritos puros.
Parece-me, a mim, diferente o símbolo da sombra na Bíblia. Curiosamente, surge muitas vezes a sombra associada a asas: Quando no meu leito penso em Ti, / e ao longo das vigílias em Ti medito, / em Ti, que vieste socorrer-me, / rejubilo à sombra das tuas asas. / A minha alma encosta-se a Ti, / a tua mão direita me sustém... (Salmo 63, 7-9). Aquele que habita onde o Altíssimo se esconde / passa a noite à sombra do Deus Soberano […] Com suas asas te dá abrigo / e sob as suas penas te refugias... (Salmo 91, 1 e 4). Guarda-me como à menina dos olhos, / esconde-me na sombra das tuas asas (Salmo 17, 8).
É certo que há, na Bíblia outro conceito distinto de sombra, onde se encontra a região da morte, mas a sombra trazida por Deus é benfazeja, sinal eficiente do oculto poder divino. Tal como, na narrativa de Lucas, o anjo Gabriel anuncia a Maria o Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, por isso o ser santo que nascerá de ti será chamado Filho de Deus (Lucas 1, 35), assim também a sombra dos enviados de Deus tem poderes taumaturgos, como a sombra de Pedro nos Actos dos Apóstolos: ...a tal ponto, que até se transportavam doentes para a rua e ali os deixavam, em leitos ou em macas, para que, pelo menos, a sombra de Pedro, ao passar, cobrisse um deles (Actos 5, 15). E eis também que a extensão da mão ou do braço de Deus ou seu enviado significa o comando da realização da sua vontade. A um Moisés inquieto, Deus responde : «Será assim tão curta a mão do Senhor? Verás agora se a minha palavra para contigo se realiza ou não.» (Números 11, 13). O gesto da mão de Jesus comanda os elementos, chama e investe as pessoas, cura, perdoa, ressuscita, abençoa. A que o anjo dirige a Maria é a mão de Deus, que dá vida e transfigura. Aliás, é curioso atentar no conto da transfiguração, em qualquer dos evangelhos sinópticos: em todos se refere a nuvem que os cobre, a Pedro, João e Tiago, com a sua sombra, donde cai, retumbante, uma voz dizendo, de Jesus, este é o meu Filho, o eleito, escutai-o! (Mateus 17, 5; Marcos 9, 7; Lucas 9, 35). Na versão de Marcos, diz-se que essa nuvem é luminosa. O Deus bíblico não é visível, faz ouvir a sua voz, esconde-se numa nuvem que é, simultaneamente, luz e sombra.
Na Anunciação de Carlo Braccesco (circa 1480, no Louvre), o anjo vem voando sobre uma nuvem de luz e sombra, na de Fra Angélico (de 1430, no Prado), o anjo inclina-se frente à Virgem, e sobre ele passa, vindo do esplendor celeste, um raio de luz - onde se vê o Espírito Santo em forma de pomba - que atinge diretamente Maria. Nestas, Deus Pai, representado, ou não, desta ou daquela maneira, está sempre lá, indiciado pela luz e pela sombra. Esta será, portanto, "a grafia" da divindade.
Vemos a sombra do anjo noutras pinturas, de outros autores: na Anunciação de Leonardo da Vinci (Galeria degli Uffizi, Florença); na de Lorenzo Lotto (Pinateca Comunale, Recanati); de Pinturicchio (Chiesa di Santa Maria Maggiore, Spello).
Em todas estas representações, a sombra do anjo se projeta para a Virgem Maria, e para ela aponta a mão direita do mensageiro celeste, a esquerda segurando um lírio, símbolo de castidade. O anjo e os seus atributos são os gestos da presença e do feito de Deus invisível. A sombra do anjo não é carnal, é, na iconografia cristã, sinal da presença de Deus, tal como, na Bíblia, os anjos são manifestações de Deus.
A Anunciação de Caravaggio (1608-1610, Musée des Beaux Arts, Nancy) mostra-nos o anjo, pairando sobre a Virgem ajoelhada, em atitude de aceitação, na sombra que contrasta com a forte luz que bate nas costas de Gabriel e lhe percorre o braço direito e a mão que, apontada a Maria, transmite a vontade e o poder de Deus. Corresponde tal imagem ao que Tiago Voragino, na Legenda Aurea, escreve: «E o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra». Isto vem explicado na Glosa: «A sombra é produzida pela luz e por um corpo que se interpõe, e a Virgem, como qualquer ser humano natural, não podia absorver a plenitude da divindade, mas o poder do Altíssimo trará a sua sombra quando a luz incorpórea da divindade tomar nela o corpo da natureza humana para que ele assim possa receber Deus». Bernardo parece concordar com esta explicação quando diz: «Posto que Deus é Espírito, quando nós somos a sombra do seu corpo, adaptou-se a nós a fim de que possamos ver, por intermédio de uma carne viva, o Verbo na carne, o sol na nuvem, a luz na candeia, a cera no candelabro».
A representação angélica de Boticelli enquadra-se, pois, nos cânones gerais conhecidos. Aliás, vê-se bem, a direção da própria sombra do anjo assim o indica, já que se projeta, não em função da luz do dia que está fora da porta aberta, mas sim, em sentido oposto, determinada pela luz do Altíssimo que vem de cima e de trás do enviado Gabriel. Boticelli, autor também do famoso Nascimento de Vénus, não leu, como JTM, o Anunciações de MTH. Limitou-se a pintar uma Anunciação, de acordo com o relato dos evangelhos sinópticos e servindo-se dos símbolos tradicionais da iconografia cristã. Pessoalmente, gosto muito deste conto bíblico, bem como da sua ilustração por Boticelli. Mas não creio que ele tenha que ver com as Anunciações de MTH.
Estas falam-nos de outras experiências, em que, como diz JTM, do mistério de Deus só é inteligível o que puder ser declinado a partir do eros. E, atentando bem no que nos é dito, será então algo diferente. Porque parte de uma confusa contestação inicial, entre o que se lê num texto evangélico - que, aliás, se inscreve na tradição bíblica, vétero-testamentária, de que retoma passos e sumariza – e o desejo, a ansiedade, a reivindicação de alguém que o lê. A própria MTH referiu expressamente a figura autoritária de seu pai na origem da rebeldia dela contra qualquer autoridade ditadora, e ainda, à mistura, a figura de Maria como paradigmática da submissão feminina: Deixei de acreditar em Deus por causa de Maria, porque ela não tinha sido mãe porque queria...
Para mim - e escrevo-te, Princesa, como sempre, com liberdade e franqueza - nem o texto dos sinópticos que referem a anunciação a Maria, nem a sua pintura por Boticelli, foram feitos, tanto quanto toca aos seus autores, por qualquer motivo ou com qualquer intenção erótica. Isto de modo algum repudia a possibilidade de ser erótica a leitura de MTH, ou qualquer outra, diversa, de qualquer outro de nós. Tampouco contesto que o erotismo seja, ou possa ser, como afirma JTM, um caminho amplamente percorrido por exploradores do divino em todos os tempos, e em relação ao qual o próprio cristianismo tem um património considerável. E também já ouvi que um importante teólogo ortodoxo, Olivier Clément, deixou escrito que "o amor carnal permanece, juntamente com a beleza do mundo, um dos últimos caminhos do mistério"... Muitas vezes recordo a definição de Georges Bataille (L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort), tal como saboreio as palavras escolhidas com que MTH tão poeticamente exprime a vibração sensual do corpo e a tensão íntima da alma que o encontro erótico vai lavrando. É bonito o modo como ela diz o excesso e o pudor do êxtase.
Mas - como, em entrevista ao JL, ela própria confessa - a minha [dela] Maria, ao contrário da figura da Igreja, é desobediente […] não assumi Maria, peguei nela e transformei-a um pouco numa feminista. E, à pergunta seguinte (Libertando-a dos dogmas?), responde: Sim, dou carta de alforria a Maria. Na verdade este livro tem a ver com feminismo e só uma feminista podia pegar na Maria com tanto amor. Ela é uma figura de uma beleza e uma coragem infinitas, uma mulher sexuada, determinada. Por isso terminará assim o post-scriptum do livro, a sua carta a Maria: «Faça-se em mim a vontade do Senhor» / - não disseste. E por isso Maria te imagino / te narro e adivinho, te invoco, reconheço / e finalmente te lavro, suponho e amanheço. Quadra tão lindamente dita e tão sincera!
A Maria das Anunciações não é a Maria da Anunciação que os evangelhos e a iconografia cristã apresentam. Esta é figura que se firma na obediência como dom recíproco, fortaleza e graça. Mas não será por isso menos subversiva: seguindo o relato de Lucas 1,38 (Maria disse então: «Sou a serva do Senhor, cumpra-se a tua palavra!» E o anjo deixou-a), acompanhamos Maria na sua visita a Isabel que, ao vê-la, exclama: «Bendita és entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre! E como me é dado que venha a mim a mãe do meu Senhor? Pois , vê tu, assim que ouvi a tua saudação, o menino [João] estremeceu de alegria no meu seio... Sim, bem aventurada a que acreditou no cumprimento do que lhe foi dito pelo Senhor!» (Lucas 1, 42-45). Ficamos a saber que a obediência gerou a renovação do mundo. Como conta a resposta de Maria, o Magnificat. Reza assim: Maria disse então: «A minha alma exalta o Senhor e o meu espírito alegra-se em Deus meu salvador! Porque lançou os olhos sobre a pequenez da sua serva... Sim, doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque o Todo Poderoso fez por mim grandes coisas. Santo é o seu nome, e a sua misericórdia estende-se, de idade em idade, sobre aqueles que o temem. Estendeu a força do seu braço e dispersou os homens de coração soberbo. Derrubou os potentados dos seus tronos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias... (Lucas 1, 46-53). A obediência de Maria a Deus é o princípio da subversão do mundo.
Morreu o primo de Maria Teresa Horta, Fernando de Mascarenhas. Marquês de Fronteira e conde da Torre, entre outros títulos de que dispunha, foi sempre um democrata e um homem da cultura. Abriu as portas do Palácio de Fronteira a reuniões da oposição à ditadura. Criou a Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, um importante instrumento de divulgação cultural. Foi no palácio que Maria Teresa, ainda criança, o conheceu, bebé recém-nascido. E como ela incomparavelmente escreve...
INFÂNCIA
Éramos crianças
e corríamos com os inusitados animais que imaginávamos tirar da lisura dos azulejos equívocos
que nos rodeavam
A evitarmos a crueldade de cada cisne branco nadando no lago ao fundo
Éramos crianças
e brincávamos com o vento entre as estátuas dos jardins por onde voávamos
Maravilhados diante da estranheza
Lá atrás ficava o palácio onde as nossas mães desatentas fingiam vigiar-nos
Lavrando a beleza
Maria Teresa Horta Lisboa, 12 de novembro de 2014
Foto - Em junho de 2011, Fernando de Mascarenhas fez questão de ser o anfitrião do lançamento do romance «As Luzes de Leonor», em que Maria Teresa Horta revive a figura da marquesa de Alorna, pentavó dos dois primos.