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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARIA TERESA HORTA 

  


Ponto de honra


Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço

Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino

Contrario o meu destino
digo oposto do que ouço

Evito o que me ensinaram
invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho

Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto

Sou bruxa
Sou feiticeira
Sou poetisa e desato

Escrevo
e cuspo na fogueira


in Inquietude, 2006


Point of honour


I unsettle all passion
open space in my arms
insubordinate love
disobey and untie

I wrong-foot my boundaries
I light fires all the time
I set forth the feminine
I take I tear I cross lines

I contradict my fate
speak what I do not hear

I avoid what I was taught
I invent I change I dispose
I refuse my inside-out
killing all that I may dream

I jump over the impossible
I fly wherever I please

I’m a witch
I’m a sorcerer
I’m an unravelling poet

I write
and spit on the flames


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

 

A VIDA DOS LIVROS

  

De 24 de fevereiro a 2 de março de 2025


Maria Teresa Horta é uma referência fundamental da moderna literatura da língua portuguesa.


Ao assinalar os cinquenta anos da Revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974, o Presidente da República de França destacou o caso da publicação das “Novas Cartas Portuguesas” como um exemplo de combate cívico pela liberdade cidadã, homenageando as suas autoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. É significativo que seja uma referência da literatura e da liberdade criadora a identificar o que Samuel Huntington designou como o início da Terceira Vaga da democratização. Quando Maria Teresa Horta nos deixa, essa recordação ganha especial importância, uma vez que a História portuguesa, desde as suas origens, foi marcada por referências literárias – lembrando-nos dos trovadores na génese da nação e da língua que nos define e projeta globalmente pelo mundo até Camões. E o certo é que as “Novas Cartas Portuguesas” significam um grito de alerta em nome da liberdade do pensamento e da defesa intransigente da dignidade humana, considerando a igual consideração e respeito de todos. 


Conheci bem as três autoras dessa obra emblemática. Maria Teresa Horta foi uma amiga a que me ligam laços de mútua admiração que nunca poderei esquecer. Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram próximas colaboradoras no Ministério da Educação, a quem devo testemunhos vivos de entrega à ideia generosa e necessária de fazer da Educação um fator de emancipação cidadã, de cosmopolitismo e de partilha de responsabilidades. Concordo com Helena Vasconcelos que Maria Teresa é uma “autora ímpar”, assentando a sua singularidade em vários fatores, “nos quais se incluem uma linguagem inconfundível, fluida e apaixonada, um imaginário riquíssimo, uma vasta cultura humanista – de raízes clássicas – e uma capacidade invejável de escrever continuamente, sem limites nem amarras, reinventando em cada linha as mais profundas e inefáveis questões que desafiam – e angustiam – a humanidade” (Público, 5.2.2025). Foi sempre assim que a encontrei. Era inconformada e inconformista, rebelde e iconoclasta, mas quase paradoxalmente profundamente consciente das raízes e da importância da dimensão histórica da vida. Quando Patrícia Reis encontrou a palavra “desobediente” para dar título à sua biografia deu, propositadamente, apenas um traço da sua extraordinária personalidade, mas quando fechamos o livro, ao terminar a leitura entusiasta e motivadora, percebemos que é apenas um começo aquilo de que se trata, porque, ao longo da vida, facilmente percebemos que estamos perante uma personalidade multifacetada capaz da determinação e da extrema coragem (demonstrada em vários momentos da vida, perante a violência absurda do Estado policial), mas também de uma extrema sensibilidade e doçura, bem evidentes na sua poesia. O jornalismo atraiu-a desde muito cedo. Gostava do acontecimento e da tensão do contraditório – e desde cedo foi uma cinéfila militante. Foi a primeira mulher a liderar um Cineclube, o ABC. “A Capital” e o “Diário de Notícias” estão no seu currículo, bem como os textos dispersos nos “Diário de Lisboa”, “República”, “O Século”, e naturalmente o “JL”. Na revista “Mulheres” entrevistou Maria de Lourdes Pintasilgo, Marguerite Yourcenar, Marguerite Duras e Maria Betânia. Na Faculdade de Letras foi amiga inseparável de Fiama Hasse Pais Brandão. “Espelho Inicial” foi o primeiro livro, graças a António Ramos Rosa, com a capa de Manuel Baptista, antes deste partir com uma bolsa da Gulbenkian para Paris. O livro suscita comentário positivo de João Gaspar Simões: elogiando a originalidade e dizendo que era uma nova voz a surgir no meio literário português. Em 1961 participa na “Poesia 61” com Gastão Cruz, Luiza Nerto Jorge, Fiama e Casimiro de Brito, com “Tatuagem”. Gastão Cruz dirá: “A novidade da poesia de Maria Teresa Horta manifesta-se (…) em vários planos e setores: o da linguagem e da construção do poema; o social e político; o sexual”. Pouco depois conhece Leonor Cunha Leão, a alma dos Guimarães Editores. Era a primeira mulher  editora em Portugal que publicava Agustina Bessa-Luís, que convida Teresa para publicar na coleção “Poesia e Verdade”. Conhece escritores como Sophia de Mello Breyner, Yvette Centeno, Ana Hatherly; mas também David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Pedro Tamen e António Gedeão. Maria Teresa Horta entrava nos meios literários com uma marca própria que o tempo irá revelar em toda a sua riqueza e maturidade, para além de qualquer lógica puramente circunstancial.


Em 1971, a publicação de “Minha Senhora de Mim”, nas Publicações Dom Quixote, sob a direção de Snu Abecassis, abre um processo de denuncia da ausência de liberdade de expressão, que se soma à participação de Maria Teresa Horta na “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica” de Natália Correia. Segue-se a apresentação e proibição das “Novas Cartas Portuguesas” apenas vem confirmar a ausência de “abertura política”, que contribuiria para acelerar o processo que culminaria na Revolução de Abril. Inspiradas nas “Cartas Portuguesas” de Mariana Alcoforado (1640-1723) o método epistolar, conduzido pelas três escritoras, vai tornar claro como se acumulam fatores de bloqueamento relativamente à evolução democrática no tocante aos direitos fundamentais, em especial das mulheres, com repercussões em toda a sociedade, no sistema judicial, na pressão migratória, na violência do regime ou na guerra colonial… Estamos perante uma obra reveladora da exigência de abertura política e social, como questão de sobrevivência. Não estamos perante um epifenómeno, mas de um problema crucial. Na obra de Maria Teresa Horta encontramo-nos, assim, num momento decisivo, que no entanto revela, no conjunto da sua obra, um percurso que conduzirá à afirmação de uma identidade cultural emancipadora e aberta, servida por uma literatura segura e aberta, reconhecida desde o início internacionalmente por Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Iris Murdoch ou Doris Lessing… Deste modo, a obra de Maria Teresa culminará numa obra-prima, o romance biográfico “As Luzes de Leonor”, revelador a um tempo da importância da Marquesa de Alorna e da interpretação atualista do seu pensamento iluminista, lido à luz da contemporaneidade, com inteligência e sentido humanista. “Não sei o que em mim é memória ou recriação. E nesse meu engenho de poeta, julgo-me no inventar dos versos, postos mais na intimidade do peito e bem menos no alento do corpo e seu fogo; e nele mal se reacende a chama logo me apresto a apagá-la, faço-o sem o menor regozijo, desejando eu pelo contrário ateá-la. Mas a razão sempre se encarrega de me lembrar quanto o coração está debilitado, a ponto de me levar a esquecer como o bem e o mal se assemelham, tal como o mar e o rio que na sua branda fusão na mesma foz se misturam”.    


Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

AS LUZES DE LEONOR

  


Um dia, sua mãe chamou-a à salinha onde recebia as amigas e ouvia música e apontou para um livro que estava sobre a mesinha baixa, e disse-lhe assinalando «uma página onde estava o retrato de uma mulher fascinante no seu vestido antigo, sorriso de fatalidade, pérolas entrançadas nos cabelos e olhar de enigma: “Esta  mulher é a tua avó e foi uma grande poetisa”. Nesse dia, a Leonor entrou na minha vida». É Maria Teresa Horta quem o diz. A mulher fascinante era Leonor de Almeida, a marquesa de Alorna. E eu abro o meu volume do romance extraordinário As Luzes de Leonor e leio a dedicatória da autora: “… este livro de poetas e anjos, mas sobretudo da maravilhosa Leonor de Almeida…” E é com profunda saudade que recordo essas palavras e quem as escreveu, que resumem duzentos anos de lembranças. E oiço: “Sou tua espia / Sou tua neta / Tua vigia // Sou tua asa / Sou tua guia / Tua passagem //Crio-te a fresta / Abro-te a porta / Teço-te a aura” (in Poemas para Leonor, 2012). Numa obra apaixonante, vasta e plural, lemos o livro segundo o conselho da autora, pela história dos Távoras ou pela história de Leonor, que esteve em reclusão no Convento de S. Félix de Chelas durante dezoito anos, “pela suprema vontade de um déspota” que determinou a sua existência, pois ao condenar à morte os avós Távora, ao prender o pai nas masmorras da Junqueira e “ao mandar enclausurar a minha mãe num mosteiro, comigo e a mana Maria no rasto e sombra da sua saia, julgou Sebastião José de Carvalho e Melo salgar o chão do meu destino”. E as palavras fluem naturalmente. “Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes, a visões, a premonições, a adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as profecias, veem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado sombrio do seu mundo interior…” Deparamo-nos com o cego destino e o fanatismo que o domina, mas Leonor cultiva as Luzes e ama a liberdade. Lê Rousseau, Voltaire, Pope, Locke e Leibniz. Todos eles levam a questionar a autoridade do poder despótico, no qual “todo o sistema de educação se dirige ao temor e à vileza”. E Leonor confessa a seu pai: “Eu não acredito no destino, a vida é aquela que nós traçamos por decisão própria e nossa vontade”. E que melhor modo de exprimir o que vai na alma senão a poesia? Francisco Manuel do Nascimento lê o que Leonor escreve: “Li teus versos, Alcipe, e quando os lia / Bem cri que com a História conversava”. E a resposta não se faz esperar, batizando Alcipe seu interlocutor de Elísio, nome que ele junta a Filinto. Leonor sente a força do sentimento, mas no ambiente conventual torna-se “perigosa no querer passar para além do seu limite”,  - “alma nunca aplacada , gémea da tempestade, torvelinho e desacerto, novelo de muita água”. A poesia e o pensamento entusiasmam-na. Maria Teresa Horta segue com intensidade e amor os caminhos de Leonor e põe na sua boca as palavras que sente. “Não gosto, não consinto, não aceito: o negrume, a obediência cega. O torpor, a ignorância, o perdimento”. Terminado o pesadelo de Pombal, Leonor torna-se admirada na Corte e D. Maria I trá-la para junto de si. Casada com o conde de Oeynhausen, consegue para o marido a Embaixada em Viena, iniciando uma vida intensa e agitada. E seguindo-a Maria Teresa Horta deixou-nos uma obra-prima e um autorretrato sublime, pleno de audácia e inconformismo.


GOM

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARIA TERESA HORTA 

  


Português


Se a língua ganha
a dimensão da escrita
E a escrita toma
a dimensão do mundo
Descer é preciso até ao fundo
na busca das raízes da saliva
que na boca vão misturar tudo
Mas há ainda a pressa do papel
que no tacto navega a brusca seda
Se a sede se disfarça sob a pele
descendo pela escrita essa vereda
E já se inventa
Enlaça
Ou se insinua
Se entrelaça a roca e o bordado
que as palavras tecendo
lado a lado
querem do país a alma nua
Aí podes parar
e retornar à boca
Esse espaço de beijo e de cinzel
Onde a fala retoma a língua toda
trocando a ternura
por fel
Um lado após o outro
a dimensão está dita
O tempo a confundir qualquer abraço
entre o visto e o escrito
Espelho e aço
Nesta fundura boa
e mar profundo
Para depois subir a pulso
O mundo


in Inquietude, 2006


Portuguese


If the tongue gains
the dimension of writing
and writing takes on
the dimensions of the world
We must go deep
searching saliva’s roots
in the mouth where all is mixed
And there’s still the paper’s haste
its touch steering rough silk
Even if under the skin the disguised thirst
streams through the trail of words
And already it creates
Envelops
Insinuates
Interlaces the spindle with the stitch
as the words weave
along the line
wanting the country’s naked soul
There you can halt
and return to the mouth
That space for the kiss and the chisel
Where the voice reclaims the whole language
exchanging tenderness
for bile
First one side then the other
the scale is settled
Time fusing the embrace
between what is seen and written
Mirror and steel
In this pleasing depth
the sea unfolds
Then with effort lifts up
The world


© Translated by Ana Hudson, 2010
in Poems from the Portuguese

POEMS FROM THE PORTUGUESE

POEMA DE MARIA TERESA HORTA

  


PAIXÃO


Com a paixão faço
e armo
a construir-me no excesso


Apunhalo o coração
enveneno
o peito aberto


A paixão é meu
destino
meu final e meu começo


Morrer de amor
e de amar
é a morte que eu mereço


PASSION


With passion I do
I battle
I undertake my excesses


I stab my heart
I poison
my widely open chest


Passion is my
certain fate
my end and my beginning


To die of love
and of loving
is a death that I deserve

 

© Translated by Ana Hudson, 2013
in Poems from the Portuguese

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Transcrevo seguidamente um trecho do artigo de José Tolentino Mendonça no Jornal de Letras (6 a 19 de julho de 2016), acerca de Anunciações de Maria Teresa Horta, não para debater contigo o tema Iconoclastia e Mística (título do texto de JTM), menos ainda o «Romance» da poeta. Vou tão somente chamar a tua atenção para um pormenor, uma observação que servirá de pretexto à tese do autor do artigo (indiciada no próprio título escolhido), e que, a meu ver, ignora símbolos da iconografia cristã e da literatura bíblica, que eu gostaria de contrapor às Anunciações de MTH, não para as contestar, mas apenas para distinguir culturas. Aliás, a própria autora pressente a diferença, por exemplo, num poema da oitava estação do seu livro: 

 

   Num dia de calamento
   de onde a luz já fugia
   sem a olhar nos seus olhos
   ele contou a Maria: 
   - No princípio era o verbo
   onde o verbo se dizia...
   Sem perceber sua fala
   embora sempre entendesse
   o quanto ele lhe queria
   uma coisa ela sabia:
   No início eram as asas
   onde depois do amor
   estonteada se estendia.

 

   Mas vamos então ao texto de JTM. Reza assim o trecho que destaco:

 

   Contudo, o poema guarda um estratégico silêncio sobre aquele que é porventura o elemento mais intrigante (e menos consensual) na obra de Boticelli: a inesperada sombra que o corpo angelical possui e que se alonga dramaticamente sobre o pavimento, acompanhando a deslocação das mãos. Estamos perante uma natureza angélica que rompe com o cânone das representações, uma natureza não só não-privada de sombra, como seria de esperar, mas cuja sombra é mesmo o signo mais avançado, prolongando-se para lá do espaço onde o corpo se sustém. Um corpo angelical com sombra é, claramente, um corpo alterado, em metamorfose. E de que metamorfose se trata? Aquela que sabiamente, Maria Teresa Horta depois enunciará: "Fico a ver-te.../ ganhares o corpo físico / na perda do corpo místico". A sombra é uma grafia da carnalidade, estando comummente do lado dos corpos históricos e ausente dos espíritos puros.

 

   Parece-me, a mim, diferente o símbolo da sombra na Bíblia. Curiosamente, surge muitas vezes a sombra associada a asas: Quando no meu leito penso em Ti, / e ao longo das vigílias em Ti medito, / em Ti, que vieste socorrer-me, / rejubilo à sombra das tuas asas. / A minha alma encosta-se a Ti, / a tua mão direita me sustém... (Salmo 63, 7-9). Aquele que habita onde o Altíssimo se esconde / passa a noite à sombra do Deus Soberano […] Com suas asas te dá abrigo / e sob as suas penas te refugias... (Salmo 91, 1 e 4). Guarda-me como à menina dos olhos, / esconde-me na sombra das tuas asas (Salmo 17, 8).

 

   É certo que há, na Bíblia outro conceito distinto de sombra, onde se encontra a região da morte, mas a sombra trazida por Deus é benfazeja, sinal eficiente do oculto poder divino. Tal como, na narrativa de Lucas, o anjo Gabriel anuncia a Maria o Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra, por isso o ser santo que nascerá de ti será chamado Filho de Deus (Lucas 1, 35), assim também a sombra dos enviados de Deus tem poderes taumaturgos, como a sombra de Pedro nos Actos dos Apóstolos: ...a tal ponto, que até se transportavam doentes para a rua e ali os deixavam, em leitos ou em macas, para que, pelo menos, a sombra de Pedro, ao passar, cobrisse um deles (Actos 5, 15). E eis também que a extensão da mão ou do braço de Deus ou seu enviado significa o comando da realização da sua vontade. A um Moisés inquieto, Deus responde : «Será assim tão curta a mão do Senhor? Verás agora se a minha palavra para contigo se realiza ou não.» (Números 11, 13). O gesto da mão de Jesus comanda os elementos, chama e investe as pessoas, cura, perdoa, ressuscita, abençoa. A que o anjo dirige a Maria é a mão de Deus, que dá vida e transfigura. Aliás, é curioso atentar no conto da transfiguração, em qualquer dos evangelhos sinópticos: em todos se refere a nuvem que os cobre, a Pedro, João e Tiago, com a sua sombra, donde cai, retumbante, uma voz dizendo, de Jesus, este é o meu Filho, o eleito, escutai-o!  (Mateus 17, 5; Marcos 9, 7; Lucas 9, 35). Na versão de Marcos, diz-se que essa nuvem é luminosa. O Deus bíblico não é visível, faz ouvir a sua voz, esconde-se numa nuvem que é, simultaneamente, luz e sombra.

 

   Na Anunciação de Carlo Braccesco (circa 1480, no Louvre), o anjo vem voando sobre uma nuvem de luz e sombra, na de Fra Angélico (de 1430, no Prado), o anjo inclina-se frente à Virgem, e sobre ele passa, vindo do esplendor celeste, um raio de luz - onde se vê o Espírito Santo em forma de pomba - que atinge diretamente Maria. Nestas, Deus Pai, representado, ou não, desta ou daquela maneira, está sempre lá, indiciado pela luz e pela sombra. Esta será, portanto, "a grafia" da divindade.

 

   Vemos a sombra do anjo noutras pinturas, de outros autores: na Anunciação de Leonardo da Vinci (Galeria degli Uffizi, Florença); na de Lorenzo Lotto (Pinateca Comunale, Recanati); de Pinturicchio (Chiesa di Santa Maria Maggiore, Spello).

 

Em todas estas representações, a sombra do anjo se projeta para a Virgem Maria, e para ela aponta a mão direita do mensageiro celeste, a esquerda segurando um lírio, símbolo de castidade. O anjo e os seus atributos são os gestos da presença e do feito de Deus invisível. A sombra do anjo não é carnal, é, na iconografia cristã, sinal da presença de Deus, tal como, na Bíblia, os anjos são manifestações de Deus.

 

   A Anunciação de Caravaggio (1608-1610, Musée des Beaux Arts, Nancy) mostra-nos o anjo, pairando sobre a Virgem ajoelhada, em atitude de aceitação, na sombra que contrasta com a forte luz que bate nas costas de Gabriel e lhe percorre o braço direito e a mão que, apontada a Maria, transmite a vontade e o poder de Deus. Corresponde tal imagem ao que Tiago Voragino, na Legenda Aurea, escreve: «E o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra». Isto vem explicado na Glosa: «A sombra é produzida pela luz e por um corpo que se interpõe, e a Virgem, como qualquer ser humano natural, não podia absorver a plenitude da divindade, mas o poder do Altíssimo trará a sua sombra quando a luz incorpórea da divindade tomar nela o corpo da natureza humana para que ele assim possa receber Deus». Bernardo parece concordar com esta explicação quando diz: «Posto que Deus é Espírito, quando nós somos a sombra do seu corpo, adaptou-se a nós a fim de que possamos ver, por intermédio de uma carne viva, o Verbo na carne, o sol na nuvem, a luz na candeia, a cera no candelabro».

 

   A representação angélica de Boticelli enquadra-se, pois, nos cânones gerais conhecidos. Aliás, vê-se bem, a direção da própria sombra do anjo assim o indica, já que se projeta, não em função da luz do dia que está fora da porta aberta, mas sim, em sentido oposto, determinada pela luz do Altíssimo que vem de cima e de trás do enviado Gabriel. Boticelli, autor também do famoso Nascimento de Vénus, não leu, como JTM, o Anunciações de MTH. Limitou-se a pintar uma Anunciação, de acordo com o relato dos evangelhos sinópticos e servindo-se dos símbolos tradicionais da iconografia cristã. Pessoalmente, gosto muito deste conto bíblico, bem como da sua ilustração por Boticelli. Mas não creio que ele tenha que ver com as Anunciações de MTH.

 

   Estas falam-nos de outras experiências, em que, como diz JTM, do mistério de Deus só é inteligível o que puder ser declinado a partir do eros. E, atentando bem no que nos é dito, será então algo diferente. Porque parte de uma confusa contestação inicial, entre o que se lê num texto evangélico - que, aliás, se inscreve na tradição bíblica, vétero-testamentária, de que retoma passos e sumariza – e o desejo, a ansiedade, a reivindicação de alguém que o lê. A própria MTH referiu expressamente a figura autoritária de seu pai na origem da rebeldia dela contra qualquer autoridade ditadora, e ainda, à mistura, a figura de Maria como paradigmática da submissão feminina: Deixei de acreditar em Deus por causa de Maria, porque ela não tinha sido mãe porque queria... 

 

   Para mim - e escrevo-te, Princesa, como sempre, com liberdade e franqueza - nem o texto dos sinópticos que referem a anunciação a Maria, nem a sua pintura por Boticelli, foram feitos, tanto quanto toca aos seus autores, por qualquer motivo ou com qualquer intenção erótica. Isto de modo algum repudia a possibilidade de ser erótica a leitura de MTH, ou qualquer outra, diversa, de qualquer outro de nós. Tampouco contesto que o erotismo seja, ou possa ser, como afirma JTM, um caminho amplamente percorrido por exploradores do divino em todos os tempos, e em relação ao qual o próprio cristianismo tem um património considerável. E também já ouvi que um importante teólogo ortodoxo, Olivier Clément, deixou escrito que "o amor carnal permanece, juntamente com a beleza do mundo, um dos últimos caminhos do mistério"... Muitas vezes recordo a definição de Georges Bataille (L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort), tal como saboreio as palavras escolhidas com que MTH tão poeticamente exprime a vibração sensual do corpo e a tensão íntima da alma que o encontro erótico vai lavrando. É bonito o modo como ela diz o excesso e o pudor do êxtase.

 

   Mas - como, em entrevista ao JL, ela própria confessa - a minha [dela] Maria, ao contrário da figura da Igreja, é desobediente […] não assumi Maria, peguei nela e transformei-a um pouco numa feminista. E, à pergunta seguinte (Libertando-a dos dogmas?), responde: Sim, dou carta de alforria a Maria. Na verdade este livro tem a ver com feminismo e só uma feminista podia pegar na Maria com tanto amor. Ela é uma figura de uma beleza e uma coragem infinitas, uma mulher sexuada, determinada. Por isso terminará assim o post-scriptum do livro, a sua carta a Maria: «Faça-se em mim a vontade do Senhor» / - não disseste. E por isso Maria te imagino / te narro e adivinho, te invoco, reconheço / e finalmente te lavro, suponho e amanheço. Quadra tão lindamente dita e tão sincera!

 

   A Maria das Anunciações não é a Maria da Anunciação que os evangelhos e a iconografia cristã apresentam. Esta é figura que se firma na obediência como dom recíproco, fortaleza e graça. Mas não será por isso menos subversiva: seguindo o relato de Lucas 1,38 (Maria disse então: «Sou a serva do Senhor, cumpra-se a tua palavra!» E o anjo deixou-a), acompanhamos Maria na sua visita a Isabel que, ao vê-la, exclama: «Bendita és entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre! E como me é dado que venha a mim a mãe do meu Senhor? Pois , vê tu, assim que ouvi a tua saudação, o menino [João] estremeceu de alegria no meu seio... Sim, bem aventurada a que acreditou no cumprimento do que lhe foi dito pelo Senhor!» (Lucas 1, 42-45). Ficamos a saber que a obediência gerou a renovação do mundo. Como conta a resposta de Maria, o Magnificat. Reza assim: Maria disse então: «A minha alma exalta o Senhor e o meu espírito alegra-se em Deus meu salvador! Porque lançou os olhos sobre a pequenez da sua serva... Sim, doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque o Todo Poderoso fez por mim grandes coisas. Santo é o seu nome, e a sua misericórdia estende-se, de idade em idade, sobre aqueles que o temem. Estendeu a força do seu braço e dispersou os homens de coração soberbo. Derrubou os potentados dos seus tronos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos de mãos vazias... (Lucas 1, 46-53). A obediência de Maria a Deus é o princípio da subversão do mundo.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

NA MORTE DE FERNANDO DE MASCARENHAS, MARQUÊS DE FRONTEIRA

Morreu o Fernando.JPG

 

MORREU O FERNANDO 

Morreu o primo de Maria Teresa Horta, Fernando de Mascarenhas. Marquês de Fronteira e conde da Torre, entre outros títulos de que dispunha, foi sempre um democrata e um homem da cultura. Abriu as portas do Palácio de Fronteira a reuniões da oposição à ditadura. Criou a Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, um importante instrumento de divulgação cultural. Foi no palácio que Maria Teresa, ainda criança, o conheceu, bebé recém-nascido. E como ela incomparavelmente escreve...

 

INFÂNCIA

 

Éramos crianças

e corríamos com os inusitados
animais que imaginávamos tirar
da lisura dos azulejos equívocos

que nos rodeavam

A evitarmos a crueldade
de cada cisne branco
nadando no lago ao fundo

Éramos crianças

e brincávamos com o vento
entre as estátuas dos jardins
por onde voávamos

Maravilhados diante
da estranheza

Lá atrás ficava o palácio
onde as nossas mães desatentas
fingiam vigiar-nos

Lavrando a beleza

 

Maria Teresa Horta
Lisboa, 12 de novembro de 2014

Foto - Em junho de 2011, Fernando de Mascarenhas fez questão de ser o anfitrião do lançamento do romance «As Luzes de Leonor», em que Maria Teresa Horta revive a figura da marquesa de Alorna, pentavó dos dois primos.


Da página oficial de Maria Teresa Horta