Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

De 15 a 21 de junho de 2020

 

“Evocação de Sophia” de Alberto Vaz da Silva (Assírio e Alvim, 2009) é a última das obras deixada por uma das referências essenciais do Centro Nacional de Cultura. Referimos a obra, como homenagem a Sophia, ao seu autor e ainda a Maria Velho da Costa.

 

A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA
Naquela noite de sábado, depois de comemorar, à distância, com Amesterdão, os sete anos de um neto, feliz numa celebração auspiciosa, veio a notícia, entre os alertas que as novas tecnologias trazem, da morte de Maria Velho da Costa. Era uma amiga de confiança, Margarida Gil, que dava a notícia inesperada. Nessa tarde, falara com o Eduardo Lourenço, para lhe dar um abraço pelas suas noventa e sete primaveras, e estava longe de pensar que à noite iria relembrar as palavras premonitórias do seu prefácio a Maina Mendes, onde a personagem feminina emblemática simbolizava na mudez, a mudez de uma sociedade e a exigência de libertação de constrangimentos arcaicos. E relembrei as palavras do ensaísta, a ligarem a mestria literária e o grito de alerta humano… “É na trama de uma escrita densa e plural, de um virtuosismo sem exemplo entre nós, que Maina Mendes se encontra escrita e dispersa em múltiplos perfis, ‘puzzle’ voluntário organizado do interior (ou do lado invisível da trama) pela pressão uniforme do mundo recusado, mundo masculino, onde ele é a voz silenciada, negada ou submersa que se recusa à afonia definitiva”… E o certo é que para o ensaísta ninguém dos contemporâneos “redistribui com tanto sucesso as experiências mais criadoras da prosa portuguesa, de Fernão Lopes a Guimarães Rosa, paisagens atravessadas e recriadas, a par de outras, com uma originalidade absoluta”. Fui encontrando Maria Velho da Costa em diversos momentos e de diversas maneiras: antes do mais, na minha adolescência de leitor a acompanhar a geração de “O Tempo e o Modo”. Não esqueço a tradução de Opressão e Liberdade de Simone Weil, por Maria Velho da Costa para o Círculo do Humanismo Cristão da Morais – como Maria de Fátima Sedas Nunes – num texto significativamente encimado por duas citações, de Espinosa e de Marco Aurélio. Do primeiro: “No que diz respeito ao homem, nem o riso, nem as lágrimas, nem a indignação, mas o entendimento”. Do Imperador romano: “O ser dotado de razão pode transformar todo o obstáculo em matéria de trabalho, e dele tirar partido”. E aí Simone Weil partilha uma experiência espiritual emancipadora. Depois fui lendo e acompanhando os lídimos combates pela liberdade de ideias e de escrita – ao lado de duas outras amigas Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta… No final dos anos setenta, encontrámo-nos numa singular experiência com Maria de Lourdes Pintasilgo, Teresa Santa Clara Gomes e Helder Macedo. Fomos tendo contacto e lendo com gosto e interesse a sua obra, num sentido seguro de maturidade. Casas Pardas (1977), Lúcia-lima (1983), Missa in Albis (1988), Dores (1994)… Quando estava no Ministério da Educação, tive a honra de poder contar com a sua colaboração no meu gabinete, num projeto, em que pus especial empenhamento, de escritores e artistas em contacto com as escolas. Nada melhor do que garantir uma aprendizagem viva, baseada no contacto dos estudantes com os nossos melhores no domínio da criação. A ideia nasceu uma noite no ateliê da Graça Morais na Costa do Castelo – e contou ainda com Lídia Jorge, João de Melo, Gastão Cruz, Paulo Teixeira. No projeto também se integraria Maria Velho da Costa, num tempo em que Maria Isabel Barreno representava o Ministério da Educação em Paris (no que foi uma colaboração muito profícua designadamente com Jack Lang). Nesse sábado, dia 23 de maio, em que a notícia infausta veio, dei-me a lembrar esse tempo e a nossa última conversa telefónica, em que Maria Velho da Costa me pediu desculpa por não poder corresponder a um convite para falar numa sessão pública, por se sentir muito cansada…

 

UM DIÁLOGO APAIXONANTE
Devo recordar, ainda, graças ao meu querido e saudoso Alberto Vaz da Silva, a lembrança de Sophia de Mello Breyner, a propósito de duas luminosas conferências feitas por ele no Centro Nacional de Cultura, no Porto e em Lisboa, que a Assírio e Alvim publicou, com o título Evocação de Sophia (2009), tendo na capa uma inesquecível fotografia de Sophia no Templo de Diana em Évora, da coleção de Alberto Lacerda e Luís Amorim de Sousa. Maria Velho da Costa fez um extraordinário prefácio, onde Sophia nos é apresentada, tal como era, num diálogo tocante que tanto nos sensibiliza, sobretudo escrito num tom que faz a prova do que Eduardo Lourenço premonitoriamente referiu a propósito de Maina Mendes. “Falávamos de noite, no alpendre quase morno, sem tom nem som. Nenhuma das duas era desesperadamente musical. Não havia música nem nos fazia preciso. Falávamos mais de todos do que de tudo; do tudo eram a arte e a poesia – nem política, nem mundos a mudar. Não era a prudência de pertencermos a fações políticas diferentes. Era a força da indiferenciação da noite, quando as mulheres falam. Falávamos de amores, de filhos. De amigos e desamigados. Desse mundo ginecêutico e caótico, onde tínhamos ambas de manter aparências. Brilhávamos na meia obscuridade como as estrelas que se viam no céu limpo, mortais e imortais, passe a solenidade. Porque não éramos solenes. (…) As estrelas reuniam-nos e aplacavam-nos, debaixo do alpendre de heras onde ressuscitavam as osgas do torpor do inverno. – Eu chamo-lhes Olgas, Sophia. Comem mosquitos e limpam o ar de moléstias. – Ah, Maria, dar um nome a um bicho é cativá-lo. É perigoso. Não se pode nomear um vírus, uma bactéria, um micróbio. Um cancro. Ia e vinha e perguntava a cada coisa que nome tinha. Não é verdade, respondeu ela quando a citei. Não é verdade, a poesia não pode tudo, a poesia não pode nada. Não pode nomear o mal”…


Estamos a vê-las, conversando serenamente, na quietude de uma noite algarvia. A lembrarem a astrológica injunção: Ó polvo, ó caranguejo, ó peixe. E a Menina do Mar a dizer, “A minha terra é o mar”. Mas também fica na nossa retina a imagem do percurso matinal, “nesses dias rosados de Primavera na casa da Meia Praia”: “Seguíamos, a praia estava a metros, por um carreiro de terra argilosa, ela à frente, naquele passinho andarilho, até estacar e deixar-me acudir. É que ao longe, ouvia-se o latir dos cães vadios ou soltos, a aproximar-se. Eu enxotava-os, sem pau, de manso, Vão, vão para casa, vão embora. Eles não iam, mas estacavam também, fitos, a ver-nos ir pesarosos. – A Maria parece a Diana, a dos romanos. Olha para os cães e eles ficam com cara de pessoas…”. O diálogo entre Sophia e Maria era a modos que uma projeção do Olimpo no nosso mundo. E isso torna-se evidente quando Maria recorda que um neto seu se assustou quando ela lhe recordou uma passagem belíssima de Sophia: Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar”. A criança disse: “Que horror! Um fantasma na praia. - Não é. É o que disse a Menina do Mar, uns tempos que teve de viver cá fora. - Ah. Prontos. Está bem então, avó. - É um fantasma lindo que cabe na palma da mão. Pois é. Na mão do coração”. Maria Velho da Costa trouxe-nos na sua obra algo que nos permite compreender o mundo à nossa volta com gente de carne e osso, demonstrando, como fez em Myra (2008) “que há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

O TEATRO DE MARIA VELHO DA COSTA

 

O recente falecimento, aos 81 anos, de Maria Velho da Costa (1938-2020), já foi devidamente referido pelo Centro Nacional de Cultura, tendo Guilherme d’Oliveira Martins assinalado a sua vasta obra e a colaboração que durante tantos anos prestou ao CNC. No texto então publicado, são aliás frequentes as referências não só a essas colaborações como designadamente à vasta obra criacional da autora e aos prémios e destaques que ao longo da vida lhe foram concedidos e amplamente justificados.

 

Nesse aspeto, deve salientar-se o Prémio Camões (2002) e o Prémio Vida Literária (2013). Mas independentemente destas consagrações/celebrações institucionais, o que sobretudo se destaca é a vasta e variada obra em si, e também o reconhecimento da qualidade literária e criacional ao nível das variadas expressões.

 

E reconhece-se a dimensão implícita de espetáculo da sua dramaturgia. Entre textos originais e adaptações e dramatizações, podemos agora citar designadamente uma curiosa teatralização de personagens “clássicos” da literatura portuguesa e brasileira, devidamente “cruzados”.

 

Referimo-nos à peça, “Madame”, datada de 1999, e resultante do cruzamento dramático de duas personagens consagradas das literaturas em língua portuguesa. Trata-se então da Maria Eduarda de “Os Maias” de Eça e de Capitu de “Dom Casmurro” de Machado de Assis.

 

E vale a pena referir designadamente que o potencial de teatralização de “Os Maias” chegou a inspirar o próprio Eça no sentido de uma adaptação à cena que acabou por não produzir. E também podemos acrescentar que a única expressão dramatúrgica concretizada de Eça é a tradução da peça “Philidor” (1863) de Joseph Bauchardez.

 

Em qualquer caso, é interessante evocar agora as reservas que Machado de Assis formulou à criação literária de Eça de Queiroz. O que não obstou a que, por ocasião da morte de Eça, a “Gazeta de Notícias” do Rio de Janeiro tivesse publicado, em 24 de agosto de 1900, uma evocação de Assis: “para os romancistas, é como se perdêssemos o melhor da família, o mais esbelto e o mais válido”, nada menos!...

 

Mas voltando à evocação de Maria Velho da Costa, há que salientar mais textos dramáticos que escreveu: citamos designadamente “Um Filho” e “A Vingança ou Boda Deslumbrante”. E ainda se referem sessões de textos dramáticos ou para-dramáticos.

 

Porque, no seu conjunto, a obra de Maria Velho da Costa exige uma continuidade de estudos e de pesquisa que irão sendo efetuados.

 

DUARTE IVO CRUZ

A VIDA DOS LIVROS

De 1 a 7 de junho de 2020

 

Maria Velho da Costa, designadamente em “Casas Pardas” (1977) e “Myra” (2008), é uma das escritoras da segunda metade do século XX que melhor contribuiu decisivamente para a renovação da língua e da literatura portuguesa pela valorização da palavra.

 


UM MODO ESPECIAL DE ESCREVER
Se eu escrevesse de escrever não escreveria para ser entendida. Há para isso correios, telégrafos, até falar” – é Maria Velho da Costa quem o afirma no início de Cravo (1976)De facto, se há escritora contemporânea que pretende escrever mais do que simplesmente escrever é a autora de Missa in Albis (1988). E escrever de falar é, no fundo, cuidar da palavra no sentido de ser entendida. Por isso, Maria Velho da Costa era apaixonada pelo falar comum, como daquele homem em Santa Apolónia que explicou de onde e como chegava o próximo comboio. A língua é essencial para a afirmação das identidades, mas também para enriquecer, pelo diálogo, as culturas e civilizações. É verdade que os povos primitivos criaram diferentes línguas para poderem preservar os seus segredos, mas sem novos vocábulos e novas experiências as línguas esmorecem. Germano Almeida diz-nos que tem duas línguas, sendo a primeira o crioulo. “Nós em Cabo Verde devemos estar preocupados com o uso da língua portuguesa. É isto que tento transmitir. Temos de dominá-la bem, porque nos põe em contacto com o mundo. A língua cria proximidades. Eu quero transmitir a cultura cabo-verdiana, a vivência cabo-verdiana em português. Posso dizer que é uma língua estranha. Utilizo-a como uma ponte entre culturas”. Segundo Ivo de Castro, “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”. Quando falamos da língua portuguesa, consideramos uma longa história a partir do galaico-português, referimos uma língua antiga, que cedo alcançou uma assinalável maturidade, certamente em virtude do rei D. Dinis, na linha de seu avô Afonso X, o Sábio, tê-la tornado cedo língua dos tabeliães em lugar do latim, o que favoreceu a afirmação do idioma como modo de comunicar do povo e dos letrados. E é importante deixar claro que, de facto, o português ou o espanhol nunca foi dialeto um do outro, sem prejuízo de um encontro entre ambos por volta de 1400, no momento do ofuscante esplendor da cultura vizinha. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista. Quando hoje relemos os “Cantares Gallegos” de Rosalia de Castro (1863) depressa nos apercebemos de onde vimos como língua. “Minha terra, minha terra / Terra donde m’eu criei, / Hortinha que quero tanto, / Figueirinhas que prantei. // Prados, rios, arvoredos, / Pinares que move ó vento, / Passarinhos piadores, / Casinha do meu contento…”.

 

LÍNGUA DE VÁRIAS CULTURAS
Como disse Rui Knopfli, a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus numa espécie de “pátria coincidente”. E para compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contemporânea. Cultura de várias línguas. Língua antiga, língua moderna sempre em movimento. Lemos Camões na lírica e é nosso contemporâneo: “Descalça vai para a fonte, Leonor pela verdura / vai formosa e não segura…”. Ouvimos Vieira, e está ao nosso lado: “Arranca o Estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe…”. Encontramos Manuel Bandeira: «A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil»… O Dia Mundial da Língua Portuguesa, este ano comemorado pela primeira vez a 5 de maio, é uma responsabilidade de todos. O Embaixador António Sampaio da Nóvoa salientou-o melhor que ninguém no seio da UNESCO. E se falamos de uma língua viajante com presença em todos os continentes, temos de lembrar Eduardo Lourenço a dizer: “mais importante que o destino é a viagem”…

 

O CENTRO DA PALAVRA…
Há dias, deixou-nos Maria Velho da Costa. É uma das grandes escritoras contemporâneas (sobretudo quando fala em desescrever). Maria Velho da Costa trouxe-nos na sua obra algo que nos permite compreender o mundo à nossa volta com gente de carne e osso, demonstrando, como fez em Myra (2008) “que há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja”… Se falamos da língua portuguesa, temos de afirmar que para a autora de Maina Mendes (1969) e de Casas Pardas (1977) antes da literatura está a força da palavra. Quando a lemos, entendemos bem como uma língua viva se centra na força e na vitalidade da expressão. Por isso, em sua homenagem, citamos o testemunho da sua amizade com Sophia de Mello Breyner. “Falávamos de noite, no alpendre quase morno, sem tom nem som. Nenhuma das duas era desesperadamente musical. Não havia música nem nos fazia preciso. Falávamos mais de todos do que de tudo; de tudo eram a arte e a poesia – nem política, nem mundos a mudar. Não era a prudência de pertencermos a fações políticas diferentes. Era a força da indiferenciação da noite, quando as mulheres falam. Falávamos de amores, de filhos. De amigos e desamigados. Desse mundo ginecêntrico e caótico, onde tínhamos ambas de manter aparências. Brilhávamos na meia obscuridade como as estrelas que se viam no céu limpo, mortais e imortais, pese a solenidade. Porque não eramos solenes (…) As estrelas reuniam-nos e aplacavam-nos debaixo do alpendre de heras, onde ressuscitavam as osgas do torpor do inverno”… Maria Velho da Costa representa uma relação única com a criação literária, preocupada com o modo de comunicar a vida, mais do que cuidar do tratamento formal. O seu inconformismo e as aproximações a Agustina e Nuno Bragança estão bem presentes na obra romanesca e ensaística. E assim procura ligar pessoas e acontecimentos a uma reflexão emancipadora. Estamos perante uma escritora que desde cedo se foi revelando como uma extraordinária cultora da renovação da língua – desde logo na tradução, sendo exemplar o modo como tratou a riqueza espiritual de Simone Weil… Tem, pois, razão Luísa Costa Gomes quando insiste no facto de estar bem viva a escritora, sendo a melhor homenagem a fazer-lhe a sua leitura.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença