ANTOLOGIA
DE REGRESSO À MISTERIOSA PRINCESA…
por Camilo Martins de Oliveira
O acervo de apontamentos e várias anotações e comentários, de poemas e tentativas poéticas e de cartas do Marquês de Sarolea, foi-me por este confiado no decurso de encontros e conversas em que fomos convivendo, em Bruxelas, de 1973 a 1979, ano da sua morte. Posso dizer que, se ele me conhecia desde a minha infância, só a partir de então eu comecei a conhecê-lo, pois ainda hoje o vou descobrindo e tentando compreender uma pessoa aparentemente complexa, mas finalmente tão direta nas suas contradições e tão verdadeira consigo, mesmo frente à angústia.
Tenho vindo a percorrer esse espólio, espreitando, aqui e ali, coisas que possa ou deva comunicar. Eis um labor difícil, porque sei que a escolha será sempre subjetivamente minha... e também pelo pudor de revelar a intimidade de alguém tão próximo de mim, ainda que outro. Todavia, não foi minha a iniciativa destas revelações.
A ideia partiu da Princesa de... que, aí por 1978, entregou a Camilo Maria as cartas que ele lhe escrevera ao longo de muitos anos. Com o conselho de que ele fosse ali buscar, para posterior publicação, os trechos que, em seu entendimento, melhor transmitissem a riqueza de tantos pensamentos e da expressão de sentimentos, de que apenas ela, até à data, usufruíra. Em contrapartida das cartas assim devolvidas, apenas pediu que nenhuma das que ela escrevera fosse sequer referida, nem ela mesma identificada, nem qualquer data que permitisse situá-la na vida do seu "único e tão especial amigo". O mesmo amigo, citando T. S. Elliot, disse-me que o tempo passado encerra o tempo futuro. E Camilo Maria - que ganhara horror a datas e à contagem do tempo - confiou a este Camilo a tarefa de o comunicar: "Tenho mais 42 anos do que tu, nascemos no mesmo dia, no mesmo signo, recebemos a graça pelo mesmo nome. Somos parentes iguais, só nos separa a idade, que é um modo do tempo: não conta."
E cá estou eu. Deparo-me com muitas páginas de dissertação sobre temas de filosofia moral, política e social; sobre artes, letras e música. Mas demoro-me mais naqueles textos em que Camilo Maria se exprime (se confessa?) sobre a sua relação com Deus e os homens, com a Igreja da sua fé e o mundo como condição. E gosto muito do que tenho lido sobre o amor humano, a relação entre homem e mulher. Em papéis esparsos - e creio que separados também no tempo - há ideias e sentimentos que repetidamente se revelam. Um dos mais fortes é a procura constante do encontro espiritual com o outro (ela), como se o amor entre esses dois seres se formasse e existisse fora do tempo e do espaço, nascido de uma mútua descoberta e sustentado por íntima fidelidade:
"Penélope me sinto.
Faço e desfaço, refaço
a teia da saudade em que me prendes...
Fico à tua espera
e bem mereces
um coração fiel
que te pertença."
Num apontamento espúrio, dos tais que hesito em recolher e fixar, conta que se deliciou, na ópera de Viena, com "Cosí fan tutte" de Mozart, dirigida por Karl Böhm. Regressado a casa e ao chocolate quente, acrescenta: "A fidelidade, a verdadeira, não é um comportamento social que representa - ou simula - o respeito pela cláusula pertinente de um contrato. Tal como um comportamento menos convencional - e até aparentemente transgressor - pode não ser uma infidelidade. Não digo que seja recomendável..., mas no que toca à relação amorosa entre duas pessoas, poderá certamente ser um simples fait divers! Porque a fidelidade pode ter ou sofrer amolgadelas ou feridas, mas só define o seu sentido essencial se for mais consistente e densa (mais fiel) do que um desvio. E para assim ser, não pode nem deve a fidelidade ficar estática, adormecida. Qualquer compromisso que eu assuma, antes de ser com outro, é comigo, com a minha consciência, perante a qual respondo. Em coisas e vidas de amor, a fidelidade é, por isso mesmo, uma procura, diria mesmo uma obrigação de procura do outro.
Na contingência da minha condição humana, só saberei resistir às forças centrífugas com que a minha circunstância me vai tentando, se quiser acompanhar a força centrípeta que é a procura constante, a incessante descoberta do amor que encontrei. Quando assim é, quando me entrego à aventura difícil, até o ciúme deixa de ser manifestação de posse (é impossível e indesejável possuirmo-nos: a descoberta do outro é sempre um caminho de liberdade reconhecida, porque é renúncia e responsabilidade), para se tornar no acicate da procura da proximidade pelo despojamento de si."
Não sei se isto vai bem escrito em português. Mas ainda suei umas gotas na tradução.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 08.02.2013 neste blogue.