Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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fosse uma velha árvore», Matsuo Bashô, O Eremita viajante
Bashō nasceu Matsuo Kinsaku cerca de 1644, perto de Ueno na província de Iga. O pai dele teria sido um Samurai de baixa hierarquia, o que permitia a Bashō aspirar a uma carreira militar. Tradicionalmente os biógrafos têm referido que ele se dedicou à culinária. No entanto, Bashō quando criança foi pajem de Tōdō Yoshitada, que compartilhou com Bashô o amor por haikai no renga, uma forma de composição poética cooperativa. Essa prática foi nomeada como hokku e mais tarde seria rebatizado como haiku quando apresentado como obra autónoma. Bashō e Yoshitada passaram a usar o nome artístico haigō ou haikai. Bashō era Sōbō. Em 1662 foi publicado o seu primeiro poema. Em 1664 dois de seus hokku foram impressos numa compilação e em 1665 Bashō e Yoshitada compuseram um renku de cem versos, bastante conhecido. A morte súbita de Yoshitada em 1666 encerrou a vida pacífica de Bashō como pajem. Nenhum registo restou sobre essa época, mas acredita-se que Bashō desistiu da possibilidade de adquirir o estatuto de samurai e saiu de casa. Os biógrafos têm falado da possibilidade de um romance entre Basho e uma miko xintoísta chamada Jutei, o que é pouco provável. As referências a Bashō sobre esse tempo são vagas. "Ao mesmo tempo eu cobicei um posto oficial e a posse de terra". Viveu, porém, indeciso quanto a tornar-se um poeta em exclusivo. De acordo com seu próprio testemunho, "as alternativas digladiavam-se em minha mente e tornaram a minha vida agitada". A sua indecisão pode ter sido influenciada pelo estatuto então relativamente baixo de renga e haikai no renga e pelo facto de se tratatrem mais de atividades sociais do que sérios esforços artísticos. Os seus poemas continuaram a ser publicados em antologias em 1667, 1669 e 1671 e publicou a sua própria compilação com outros autores da escola Teitoku, Seashell Game em 1672. Por volta da primavera do mesmo ano ele se mudou para Edo (Tóquio) para continuar seu estudo da poesia. Nos círculos da moda literária de Nihonbashi, a poesia de Bashō foi reconhecida por seu estilo simples e natural. Em 1674 entrou no círculo íntimo da profissão haikai, recebendo ensinamentos secretos de Kitamura Kigin (1624-1705). Apesar de seu sucesso, Bashō cresceu insatisfeito e solitário e começou a praticar a meditação Zen, o que não parece ter acalmado a sua mente. No inverno de 1682 houve um incendio na sua cabana e pouco depois, no início de 1683, sua mãe morreu. Em seguida, viajou para Yamura para ficar com um amigo. No inverno de 1683, os seus discípulos deram-lhe uma segunda cabana em Edo, mas as angústias continuaram. Em 1684 seu discípulo Takarai Kikaku publicou uma compilação dele e de outros poetas. Mais tarde naquele ano, deixou Edo para a primeira de quatro grandes peregrinações. É dessa época (1685) seu haikai mais célebre, No antigo lago, e também o seu livro mais famoso, Sendas de Oku. Na sua última viagem, Bashō adoeceu em Osaka, antes de chegar ao destino (Kiushu), e encontrou a morte no dia 28 de novembro de 1694.
Em texto breve e claro, Claude Lévi-Strauss fala de algo que disse no Japão e a que chama apprivoiser l'étrangeté, encabeçando a sua reflexão por uma citação de Platão: Porque o mais contrário é o maior amigo do que lhe é mais contrário... Poderia também ter citado alguém mais seu coevo, como o jornalista correspondente de guerra Robert Guillain, que teve esta afirmação famosa: Le Japon est le pays où le contraire est vrai...
E, referindo-se à descoberta da cultura japonesa pelo Ocidente, logo aponta o jesuíta português Luís Froes como pioneiro, no século XVI, desse exercício de comparação simétrica de pessoas, usos e costumes que, em meados do século XIX, levou o mesmo Ocidente a ganhar o sentimento de se redescobrir nas formas de sensibilidade estética e poética que o Japão lhe propunha. Esta frase, aliás, resume o teor do prefácio que o célebre antropólogo francês (nascido em 1908, em Bruxelas) escreveu para a edição francesa de Européens et Japonais. Traité sur les contradictions et différences de moeurs, que, em português, foi escrito pelo padre Luís Froes em 1585 e, apesar de praticamente ignorado na sua pátria, e sua própria língua, foi, muito mais tarde, traduzido e publicado em França pela Chandeigne (1998 e 2005).
Noutro texto seu, e noutra charla nipónica, Lévi-Strauss fala de Sengai (1750-1837), calígrafo, pintor e poeta, monge zen que costumava ir beber à fonte dos haikai de mestre Basho. O trecho que seguidamente para ti traduzo vale bem a leitura que fizeres, pelo muito que nos desvenda da íntima relação - para não dizer natureza comum - da poesia, caligrafia e pintura japonesas. Escuta bem:
A arte de Sengai, reconhecia André Malraux, deixa perplexo o espectador ocidental: «Nenhuma outra arte extremo-oriental, prosseguia ele, está tão longe da nossa, nem de nós.»
Cada vez que se nos revela o sentido das legendas inscritas por Sengai à margem das suas pinturas, compreendemos um pouco melhor as razões de tal mal entendido. Pois que, pelo seu significado e o seu grafismo, as palavras têm tanta importância quanto o assunto, já que desses curtos textos, muitas vezes em forma de poemas, com as suas citações implícitas e as suas alusões maliciosas, os seus subentendidos, apenas obtemos das obras uma perceção mutilada.
Mas, em certo sentido, isso é válido para toda a pintura extremo-oriental, indissociável da caligrafia, e não tão somente porque esta tem sempre cabimento naquela. Cada coisa representada - árvore, rochedo, curso de água, casa, senda, monte - para além da sua aparência sensível, recebe um significado filosófico de como o pintor a representa e situa num conjunto organizado.
Mesmo se nos ativermos apenas à caligrafia, é claro que, apesar de todos os esforços dos tradutores, o essencial da poesia dos haikai - tais como os de Basho, de quem Sengai se sentia próximo, fica fora do nosso alcance. Tanto quanto o sentido literal, único acessível, contam a escolha de um caracter em vez de qualquer outro, o estilo da escrita (os manuais enumeram pelo menos cinco) e a disposição do texto sobre a folha...
Já noutras cartas para ti, ou ainda em textos vários que escrevi sobre as minhas descobertas e insistentes interrogações acerca da cultura japonesa, abordei temas relacionados com a tradução literária ou as imitações e tentativas de adoção de géneros e modos literários próprios de outras culturas e línguas. Tais aventuras são sempre empresas de risco e incógnitos sucessos à partida. Exigem aos seus fautores, antes de mais, um refletido esforço de escuta e humildade, Com o tempo todo que lhe for necessário. E, depois, a serenidade de uma partilha, só pelo gosto dela.
O poeta, nosso contemporâneo, Mutsuo Takahashi editou em 2003 uma curiosa antologia de haiku - que, aliás, considera a chave poética do Japão - cuja maior qualidade, a meu ver, reside, precisamente, na achega a uma poética e estética, que nos proporciona, não só através das suas magníficas traduções para inglês, como pelas fotografias que a ilustram, e através das quais Hakudo Inue tenta desvendar-nos alguma visão mais intimista dos poemas japoneses. Essa também é facilitada pelo facto da edição ser bilingue (japonês-inglês), nesta publicação da P-I-E Books (Tokyo, 2003). O prefácio escrito pelo antologista e tradutor é, além disso, breve, conciso e claro, muito informativo e esclarecedor. Vem, a talho da fouce desta carta, traduzir-te eu os seguintes trechos desse texto de apresentação:
...O haiku de cinco-sete-cinco sílabas, todavia, nem sempre foi uma forma independente. Começou enquanto primeiro verso, chamado hokku, de uma espécie de poesia engrenada, chamada renga e haikai no renga (ou renga em estilo popular). [Abro aqui um parêntese, Princesa, para te dizer que ouso pensar no "hokku" nipónico como equivalente ao nosso mote em desafios poéticos]. Tais poemas engrenados eram colaborativamente escritos por vários poetas que lhes iam alternativamente adicionando versos de sete-sete ou cinco-sete-cinco sílabas. Há pouco mais de cem anos, Shiki [Masaoka Shiki, 1867-1902, poeta, inventor do neologismo "haiku"] , decidiu separar o hokku do renga e do haikai no renga, assim nascendo então o haiku.
Havia uma conexão entre o hokku e os versos seguintes, quecomeçava com o segundo verso (wakiku ou "verso de suporte"). Apesar disso, o hokku permanecia semiautónomo. Aquilo a que hoje chamamos haiku, de Basho ou de Buson, são os seus semiautónomos hokku, vistos como poemas independentes.
[Permite-me aqui, Princesa de mim, abrir mais um parêntese, chamando a atenção para a pertinência desta observação, já que tem sido generalizada a ideia de que haiku (para o qual, aliás, se inventou o plural, inexistente em japonês, de "haikus") é uma forma poética, ou género literário independente desde a sua origem. E é bem notória a tendência de se identificar tal mal entendido com, por exemplo, a obra escrita de Munefusa Matsuo (mais conhecido por Basho), esquecendo que dois terços da mesma está em prosa, sendo os versos destacados comentários, quiçá mais intimistas, ao próprio relato dos textos prosaicos. Aliás, tal facto nada tem de novo: já em literatura japonesa muito antiga - e no próprio Conto de Genji - o recurso a interlúdios poéticos é patente, retratando bem a unidade japonesa e budista das artes da escrita, da caligrafia e da ilustração plástica. Talvez, mesmo mais do que qualquer outra em todo o mundo e história, a literatura japonesa seja integral e profundamente emocional, registo possível do pensarsentir do ser humano. Quiçá por motivos próximos dos que levam a língua japonesa a tanto se alimentar de onomatopeias. Ocorre-me, neste preciso instante da escrita desta carta, voltar a citar-te um passo do Zen and Japanese Culture do professor Daisetz Suzuki (Princeton University Press, 1970), a que já muitas vezes me referi em escritos vários: Está certo dizer-se que a mente oriental é intuitiva, enquanto a mente ocidental é lógica e discursiva. Uma mente intuitiva tem certamente as suas fraquezas, mas o seu ponto forte surge quando trata de coisas mais fundamentais na vida, isto é, coisas relativas à religião, à arte, à metafísica. E foi o Zen que especialmente estabeleceu esse facto: o satori. A ideia de que a verdade última da vida e das coisas deve geralmente ser intuitiva e não conceptualmente apanhada, e de que tal apreensão intuitiva é o fundamento, não só da filosofia, mas de todas as outras atividades culturais - eis aquilo com que a forma Zen do budismo mais contribuiu para a cultura do apreço artístico entre o povo japonês.]
Retomarei o fio desta meada em carta próxima, ou talvez aproveite a oportunidade para iniciar já com a presente uma nova série de escritos meus sobre o Japão, à qual, depois de Fomos em Busca do Japão e de Um Itinerário de Muitos Olhares, talvez ponha o título de Em Rebusca do Japão. Até lá. Mas, a fechar a presente, deixa-me traduzir-te as primeiras linhas de um "Diário de Viagem" de Matsuo Basho, intitulado Nozarashi kiko, e que é o primeiro apresentado, já em 1988, por René Sieffert na sua versão francesa Bashô -Journaux de voyage, publicada pelas Publications Orientalistes de France. A minha versão portuguesa foi feita directamente da francesa de Sieffert, com recurso esporádico e "tant bien que mal" ao texto original japonês, e o apoio do meu querido Dicionário Universal Japonês-Português do nosso jesuíta e contemporâneo padre Jaime Cepeda Coelho, velho e querido amigo. O pequeno trecho que se segue, a meu ver, diz muito sobre o espírito, a obra e o universo do grande Basho:
Partindo para uma viagem de mil léguas, sem me embaraçar com provisões para o caminho, «sob a lua da terceira vigília entrei no inquestionável», poderia dizer esse Ancião: ao seu cajado me apoiei, na era Jokyo, no ano do Primogénito da Árvore e do Rato [1684], pela oitava lua do outono, quando deixei o meu casebre desconjunto, ao pé do rio, e um vento frio soprava.
Embranqueçam os meus ossos penetra-me o vento o corpo até ao coração
Passados dez outonos o nome de pátria designa Edo doravante
No dia em que atravessei as barreiras, caía chuva e os montes todos desapareciam por entre as nuvens.
Nevoeiro e bruma dissimulam o Fuji encanto deste dia
O pai de Matsuo Bashô era um samurai de pobres recursos numa altura em que o Japão era dominado pelos shoguns Tokugawa. Em 1672 começa Matsuo Bashô a impor-se como poeta em Edo (Tóquio). Os seus haiku têm uma dimensão rara de qualidade até aos dias de hoje.
Homem profundamente solitário aceita a construção de uma cabana que um discípulo ergue para ele e no primeiro inverno oferecem-lhe uma bananeira decorativa (Bashô, em japonês).
Depois de um incêndio que lhe destrói a cabana, ele parte errante para um mundo que percorre como viajante
«Estou só e escrevo para minha alegria»
Por vezes fazia-se acompanhar de um cuco, por uma borboleta, ou mesmo por um discípulo.
Vem Bashô a falecer em 1694 e sobre a sua sepultura, os seus discípulos plantaram uma bananeira.
Ainda hoje se menciona que o haiku é o resultado de uma lenta depuração que a poesia japonesa aceita ao longo dos tempos. Mas foi sobretudo Bashô que a construiu no seu estatuto mais cristalino.
Li que cada haiku deve ter um tom dominante, no qual se devem reunir a frugalidade, o isolamento e o mistério. O haiku deve surgir como um momento único na eternidade
Para o entendimento de um poema assim, devemos nós, os ocidentais despirmo-nos de transfigurações no sobrevém das horas da escrita e da leitura e absorver um haiku qual brisa ligeira que sacudiu as asas de uma libelinha.
Jorge Sousa Braga na organização da antologia de Bashô a que me refiro “O Gosto Solitário do orvalho” (chancela da Assírio e Alvim) segue o critério das antologias de haikus (no Japão e no Ocidente): o ciclo das estações, e refere
O texto sobre a bananeira decorativa transcrevi-o (…) como se Bashô se tivesse resolvido despir perante os seus leitores. Porque um poeta – e um poeta tão próximo da natureza como este – serve-se sempre nu.
E eis Matsuo Bashô
Primavera Debaixo de uma cerejeira tudo é servido decorado com flores
Flores de cerejeira no céu escuro E entre elas a melancolia quase a florir
Verão Silêncio: as cigarras escutam o canto das rochas
Sensação de vazio Ao despedir-me colhi uma espiga de trigo
Outono No outono nos separamos como as duas conchas de uma ostra
Outono – Empoleirado num ramo seco um corvo
Inverno Através da racha na lareira o gato vai ter com a amada
Deixem-me caminhar até que tropece e desapareça na neve
Também assim nesta estética de palavras, este homem antiquíssimo comanda um útero para melhor vigiar o mundo e o influir. Porque o verdadeiro poder se exerce na discrição e comunica-se sussurrando mensagens de uns para os outros. A vontade do dizer de Matsuo Bashô recebe e envia sinais com força de mandato e nós só o entendemos se desligados para sempre. E tendo os homens como gente atenta, anfóricos, cor de malva convocados, ao tempo das asas desenvoltas, e entendidos do porquê.
Cada ser, julgamos, está para além das somas e transborda do que lhe é conferido. É desse excesso que temos que nos despir para receber a cabana, a bananeira, a eterna viagem que para ser eterna não se consente em estados intermédios.
Esta manhã, cedinho ainda, pareceram-me mais silenciosos os melros que me alegram o despertar. Fui à varanda do quarto e avistei um gato que manhosamente rondava o espaço onde os pássaros soem saltitar, a bicarem minhocas, sementes e uns pedacinhos de pão que, todos os fins de tarde, ali deixamos para o dejejum de suas excelências. Como gato não voa, melro esperto pousa mais alto, depois de piar alarme geral e, caladinho, aguarda. Andam por aí, soltos, uns gatos poderosos, que servem a desratização de terrenos da quinta com elevado e eficaz profissionalismo. Um deles, de lindo pelo preto, simpatizou comigo e, uma vez por outra, vem bater-me à porta para, ao cair da tarde, eu lhe levar uma malga de leite. Não lhe conheço calendário litúrgico, mas deve ser em datas festivas, ou simplesmente dia de jantar fora.
Saí de casa há pouco. Assim que me viram, logo os melros acorreram e voltaram ao saltitar da sua restauração. E os gatos lá foram, pachorrentos, para longe da minha vista, enrolar-se em qualquer cantinho acolhedor, ao calor do abençoado sol da manhã amiga. Os pássaros já se habituaram à minha companhia, vou-me passeando, chego junto da "minha" cerejeira do Japão. Os botões, e muitas folhas, começaram a rebentar, três deles já desabrocharam em tímidas flores brancas, a árvore começa a cantar. Anuncia o "meu" hanami bombarralense. Recordo os piqueniques nipónicos, a fraterna alegria de festejar a primavera, com a mãe natureza, os irmãos humanos, os deuses todos, essa ação de graças pelo efémero da flor, tão belo como o da vida, pois morre depressa mas certamente voltará a nascer...
Sabias tu, Princesa, que as flores que os japoneses mais admiram e amam são precisamente as que mais cedo murcham ou os ventos mais depressa levam? Já te tenho falado do despojamento, da assimetria, do silêncio, como valores estéticos na cultura do Império do Sol Nascente. Talvez possa dizer-te que todos têm uma essência de humildade, como assim também a contemplação do efémero - pois a efemeridade embeleza a beleza, esta é irmã do passarinho que Murasaki solta no Conto do Genji: a posse encerra, a liberdade voa - ou a visão agradecida do sol que, pela manhã, acolhemos. A tradição dos hanami (hana=flor, mi=visão, hanami=ver as flores) vem do início do século IX, da corte do imperador Saga em Heiankyo (Kyoto), que, pela primavera, juntava os cortesãos debaixo das cerejeiras em flor (sakura).
O amor da beleza que passa, e as graças que a Deus damos pela vida que morre e vive sempre, são marca indelével da espiritualidade japonesa. Por paradoxal que pareça, a duração do belo não se encontra na visão imediata, descobre-se na contemplação do que é invisível para os olhos. Tal como não podemos circunscrever - nem sequer o vemos - o espaço do espírito: ele é infinito, como a tamanha liberdade que Deus connosco partilha. Deixo-te com a minha versão portuguesa de um haiku de Matsuo Basho (1644-94):
Começo esta carta por curta tradução de Matsuo Basho (1604-1654), poeta japonês que bem conheces:
meses e dias são
perpétuos passageiros
e viajantes os anos
que se encadeiam
Somos prisioneiros do tempo. Dessa cadeia que nos amarra e arrasta, num qualquer movimento, seja roda circular ou progressão escatológica. Esta manhã, em visita à minha cerejeira do Japão, que continua a florir em tão lindos dias, murmurei outro haiku do Basho que, se bem me lembro, nos diz algo como "todos os anos, as flores que caem ao chão vão sustentar a cerejeira"... O que hoje penso ser apenas aparente - a contradição entre tempo escatológico e tempo circular - será quiçá tão só a diferença do modo da vivência que qualquer de nós possa ter da circunstância de um momento. Em si própria, a circunstância do tempo é a intemporalidade. O tempo mais não é do que um conceito, categoria mental por que construímos a duração. E esta mais não é do que o que vamos conseguindo apreender, isto é, o que vai preenchendo o nosso alcance. O tempo define-se pela nossa presente limitação. A realidade, como o universo, é o infinito, não tem tempo. Nem espaço. Como Deus. "Criador inefável ! "- assim, todas as manhãs, ao começar as aulas, no colégio, os meus colegas e eu nos dirigíamos, rezando, ao invisível, intocável, inapreensível, pedindo-lhe luz...
Hoje, em Domingo de Ramos, ao ouvir outra prece "Deus, meu Deus, porque me abandonaste?", lembro-me dessa oração infantil, e pensossinto que todos fomos abandonados ao nosso tempo de cada um, talvez perdidos no infinito que ainda não alcançamos. Mas a Páscoa é um convite a transpor o tempo que nos circunscreve. Além da desolação de tão incompreensível desgraça e mortandade, à nossa volta, talvez a esperança nos dê a coragem de acreditar. O sustento da vida é a infinita renovação. Talvez por isso me lembre tanto do Bolero de Ravel, quando me ocorre o destino do tempo na intemporalidade... O final dessa peça musical é um inesperado apocalipse. Nenhum de nós conhece o dia nem a hora da revelação, cada um, todavia, saberá como entregar-se.
Nesta Páscoa, chamo a nós, Princesa, esse princípio da filosofia africana ubuntu: Existo porque existimos. Evocando uma declaração de Nelson Mandela: Essa ideia tão africana de que só somos humanos graças à humanidade de outrem, contribuiu fortemente para o nosso desejo universal de um mundo melhor. Não sou "eu", sozinho, quem se pode descobrir- "me eu mesmo", mas somente "nós juntos" que poderemos aprender a conhecer e apreciar respeitosamente "os outros" e "nós mesmos". Aqui entre nós, pergunto, quantas vezes pensamossentimos que o convite pascal é um apelo à ressurreição de todos?