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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

  

De 15 a 21 de maio de 2023


Em Yuste, foi entregue na passada semana o Prémio Europeu Carlos V. Recordamos aqui o marido da Imperatriz Isabel de Portugal, filha de D. Manuel I e a tradição bem portuguesa do Dia da Espiga, que invoca a Cultura da Paz e a salvaguarda do meio ambiente e da proteção da Natureza.



A quinta-feira de Ascensão é, em Portugal, como aliás na Europa, um dia de grandes e antigas tradições. Se entre nós a data deixou de corresponder a um feriado, por troca com a festividade do Corpo de Deus, o certo é que grande parte dos feriados municipais tem essa invocação. No mundo rural havia mesmo o uso muito antigo de subir a um monte, como sinal de dedicação espiritual, de exigência pessoal e de homenagem à Ascensão aos céus do Senhor Jesus, quarenta dias depois da Páscoa e dez dias antes do Pentecostes. Mantém-se, porém, a tradição de feitura de um ramo que assinala o Dia da Espiga, que pode variar de região para região, mas tem a sua base definida. Em regra, é constituído da seguinte forma, por seis elementos: por uma Espiga de trigo, que corresponde ao desejo de fartura de pão; por Malmequeres, que simbolizam a abundância; por Papoilas que representam o amor e a vida; por um ramo de Oliveira pelo anseio de bom azeite e pelo apelo à paz; por um ramo de Videira, que almeja um bom vinho e muita alegria; e o Alecrim ou Rosmaninho que se ligam ao desejo de saúde e força. Diz-se que o ramo da Espiga deve ser guardado em casa, junto da porta de entrada, como sinal de bom augúrio, “não devendo ser perturbado na sua quietude, e apenas sendo substituído no ano seguinte por outro ramo de igual composição, mas mais viçoso”.


NATUREZA, DIGNIDADE E CULTURA DA PAZ
Esta simbologia, invoca três fatores de grande relevância e atualidade: o equilíbrio entre a humanidade e a natureza, a dignidade da pessoa humana como centro da vida comunitária e uma cultura de paz como base fundamental do aperfeiçoamento humano. Sendo a sociedade imperfeita, cabe-nos um esforço determinado no sentido da perfetibilidade. Pela experiência, pela aprendizagem, pela atenção e pelo cuidado, trata-se de usar o gradualismo como modo fazer da sociedade um lugar de diálogo e de emancipação. Esta ideia leva-nos à recente declaração do Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, ao receber o Prémio Europeu Carlos V, que afirmou não ser a guerra coisa do passado, já que as divisões persistem e crescem, enquanto estamos a queimar a única casa comum. “Há famílias obrigadas a fugir de guerras ou de eventos climáticos extremos, numa escala não vista há décadas”. Urge compreender que “a paz é ilusória e a invasão da Ucrânia está a causar sofrimento e degradação do país e do povo”. Daí ser tempo de reinventar o multilateralismo, sem renunciar a uma identidade aberta – “em lugar das balas, devemos recorrer aos arsenais diplomáticos”.


As negociações, a mediação, a conciliação e a arbitragem têm de ser exaustivamente consideradas, a fim de se resolverem pacificamente os conflitos.   “O discurso de ódio, a polarização, o racismo e a xenofobia espalham-se à velocidade de um clique e perante o crescimento destes movimentos, é necessário defender a humanidade e rejeitar o discurso que explora as diferenças e mina a coesão territorial”. A pandemia expôs “fraturas chocantes” e, num olhar para a atualidade, as diferenças entre ricos e pobres e a crise do custo de vida estão a empurrar milhões para a pobreza. É urgente, assim, construir um mundo mais justo, mais inclusivo e digno que não deixe para trás ninguém. “Não pode haver paz duradoura sem solidariedade. Não há coesão social sem direitos humanos. Não há justiça sem igualdade”. De facto, importa articular as preocupações ligadas à paz na Europa e no mundo com a defesa e salvaguarda do meio ambiente e, no entanto, “uma ganância grotesca está a punir as pessoas mais pobres e vulneráveis, enquanto destrói a nossa única casa”.


A circunstância atual obriga a uma reflexão muito séria e determinada que permita integrar os grandes desafios humanos perante os quais nos encontramos. A guerra às portas da Europa é a ponta de um vulcão em atividade descontrolada. A situação da Ucrânia apresenta um perigoso impasse caracterizado pela persistência de uma perigosa destruição mútua. Desde o Médio Oriente ao Sudão, verifica-se a incapacidade de regulação por via diplomática. Contudo, além da força do ódio, prevalece o egoísmo suicida da sociedade do consumo e do desperdício, que afeta gravemente a sustentabilidade humana e ambiental. Algumas vozes, porém, reivindicando soluções imediatas e totais, apenas contribuem para arrastar os problemas e para justificar adiamentos dando espaço a quantos recusam solidariedade em relação às gerações futuras. Em lugar de medidas urgentes para garantir a justiça distributiva e preservar a equidade entre gerações persiste a ideia de que não vale a pena contrariar uma suposta fatalidade quanto à destruição do nosso planeta único…


Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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  De 14 a 20 de junho de 2021

 

Este domingo foi inaugurado o Parque Gonçalo Ribeiro Telles na Praça de Espanha. Tratou-se de uma justíssima homenagem. Mas para sermos fiéis ao sócio honorário e fundador do Centro Nacional de Cultura temos de continuar o seu combate sem tréguas. E recordamos o documentário “Em Nome da Terra” da autoria de Rita Saldanha e do nosso saudoso amigo Miguel Ferraz (2010).

 

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HOMEM CRIADOR DE BELEZA

“O homem desempenha na modelação da paisagem um papel muito importante; pode ser considerado, neste aspeto, como um autêntico criador de beleza”. (Cidade Nova, 1956, IV série, 4). Esta citação pioneira é emblemática de um percurso riquíssimo e exigente – que nos deixa uma herança que temos de respeitar e prosseguir. Gonçalo Ribeiro Telles é uma referência da sociedade portuguesa pela ligação que sempre soube estabelecer entre a cidadania e o exercício apaixonado da sua profissão de arquiteto paisagista, discípulo de Francisco Caldeira Cabral – com quem escreveu o fundamental “A Árvore em Portugal”, defesa intransigente das culturas tradicionais. Nunca o vimos indiferente em relação a qualquer tema relevante que pudesse ser discutido em qualquer momento. Eduardo Lourenço chamou-se “Jardineiro de Deus”. Tinha toda a razão. Quando a defesa do meio ambiente e da qualidade de vida era ainda algo muito distante e quase exótico relativamente às preocupações imediatas, por muito que o tema começasse a ser discutido no início dos anos setenta com crescente projeção comunicacional, a verdade é que desde sempre, a partir das origens do Centro Nacional de Cultura, nos anos quarenta e cinquenta, e da revista “Cidade Nova”, Gonçalo Ribeiro Telles pôs a tónica na dignidade da pessoa humana inserida numa natureza respeitada e equilibrada. Daí que não seja estranho que o encontremos, e a muitos dos seus amigos mais chegados, como Henrique Barrilaro Ruas, João Camossa Saldanha, Luís Coimbra ou Augusto Ferreira do Amaral em movimentos alargados na defesa da liberdade e da democracia. Dir-se-ia que é natural essa ligação e esse caminho de abertura e de inconformismo. Liberdade e tradição estão intimamente ligados ao magistério deste homem singular para quem o amor à terra e à História era algo tão natural como o ato de respirar. No entanto, para Gonçalo Ribeiro Telles a tradição não se confundia com o que se repete ou com qualquer inércia que se impõe contra o dever de completar e enriquecer pelo valor humano a herança recebida das gerações que nos antecederam. Tradição é traditio, isto é, a capacidade de transmitir generosamente e em movimento o que cada geração herda e cria. Mas a traditio é, por essência, dinâmica – daí o movimento de dar e receber, enquanto a revolutio é o regresso ao mesmo ponto de partida, num movimento circular. O seu empenhamento monárquico deve-se a esta conceção genuína baseada na tradição. A pessoa e a comunidade são elementos cruciais – como o património cultural, material, imaterial, natural, paisagístico, até às tecnologias novas e à criação contemporânea. Patres e múnus, o dever de preservar a herança dos nossos pais, eis o que tem de ser lembrado. Assim, Gonçalo Ribeiro Telles sempre se manifestou como um espírito livre para quem o mais importante são as pessoas e não os regimes formais. Daí o seu comunalismo de base – e a sua capacidade para debater e refletir com todos.

 

PÔR A DIGNIDADE HUMANA EM PRIMEIRO LUGAR

A economia existe para as pessoas. As culturas tradicionais devem ser preservadas e protegidas – uma vez que correspondem àquilo que o tempo testou através do exemplo e da experiência. Veja-se como a preservação do património tem de seguir os métodos e os materiais tradicionais. A sociedade constrói-se pela confluência fecunda entre a singularidade das pessoas e o bem comum. A obra da autoria do Arquiteto Fernando Santos Pessoa dá-nos o percurso humano do homem, cidadão atento, disponível, generoso, capaz de fazer do diálogo entre as pessoas e a natureza algo de vivo e perene. Nada lhe era indiferente, e com que entusiasmo o víamos abraçar as causas que realmente valem a pena. Na cidade bateu-se pelos corredores verdes, pelas hortas urbanas, por um urbanismo que pusesse as pessoas em primeiro lugar. No campo, compreendendo Portugal como um rico continente em miniatura, como Orlando Ribeiro ensinou, pugnou sempre pelo respeito do que nos foi legado desde tempos imemoriais. E invoco especialmente o muito que o Centro Nacional de Cultura lhe deve. Gonçalo Ribeiro Telles é o elo que nos liga à primeira geração do CNC, fundado por António José Seabra, Afonso Botelho e Gastão da Cunha Ferreira, num tempo em que Almada Negreiros e Fernando Amado articularam cultura e teatro, conferências e debates, convívio e reflexão. Depois, foi o momento de Sophia de Mello Breyner, de Francisco de Sousa Tavares, de António Alçada Baptista – até à presença luminosa de Helena Vaz da Silva... Gonçalo foi uma presença permanente e ativa no CNC, nunca deixando que a cultura fosse de mera circunstância. E foi assim que a cultura no CNC se tornou ciente de que a criatividade e a ecologia andam a par, como uma ética pública de liberdade e responsabilidade, de cidadania e de respeito da dignidade humana.

 

UM PERCURSO DE GRANDE COERÊNCIA

Com António Viana Barreto foi o autor do projeto dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, galardoado pelo Prémio Valmor de 1975. Um dia, disse, aliás, que a sua ambição para Portugal era que se tornasse uma espécie de Gulbenkian. Não por acaso, foi o Coro da Gulbenkian que acompanhou as cerimónias religiosas de despedida de Ribeiro Telles no Mosteiro dos Jerónimos. Em 1913 foi galardoado com o Prémio Geoffrey Jellicoe, o “Nobel” da Arquitetura Paisagística. Consciente da importância da cidadania ativa, teve uma participação política corajosa que determinou a consideração como persona non grata do antigo regime, com consequências gravosas. Apoiou Humberto Delgado, com Luís Almeida Braga, Rolão Preto e Vieira de Almeida, também monárquicos; subscreveu em 1959 e 1965 três importantes documentos de católicos em denúncia da ausência de liberdade, da censura, e da repressão; participou ao lado de Mário Soares, Sophia e Francisco de Sousa Tavares em 1969 na CEUD; interveio no Congresso da Oposição Democrática; fundou o PPM e foi membro dos governos provisórios da democracia, foi um dos líderes da Aliança Democrática com Francisco Sá Carneiro e Diogo Freitas do Amaral, foi vereador independente nas listas do Partido Socialista no Município de Lisboa e fundou o Movimento Partido da Terra (1993). O corredor verde de Lisboa, a ele se deve, e o Parque da Nova Praça de Espanha tem já o seu nome; Lisboa Capital Verde da Europa teve-o como inspirador. Muito devemos a Gonçalo Ribeiro Telles – por isso é com legítimo orgulho que o lembramos como mestre da liberdade, da dignidade e do humanismo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença