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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

LEAL SOUVENIR


1.  Por que é que se volta repetidamente a certos lugares que, de viso próprio, nunca escolheríamos? Por que é que se malogram sucessivamente visitas a outros certos lugares, tanto e há tanto tempo desejadas? São duas perguntas sem resposta ou com a mesma resposta que não obtemos quando nos perguntamos o que nos leva a encontrar sucessivamente quem não buscámos nem buscamos ou a desencontrar, com a mesma irregularidade, aquela ou aquele que procurávamos e procuramos. Os acasos têm as costas largas e eu sou daqueles que nunca acreditou na dimensão delas. O que tem que ser tem muita força e raramente se acha força que a contrarie. Lembrei-me disso, em Rimini. Como julgo que já expliquei aqui uma vez (com a idade, a gente repete-se) Rimini nunca foi cidade que eu buscasse. Ora (cf. Público, 8 de novembro de 2002, "Fellini de Rimini") por duas vezes em dois anos seguidos me achei nessa cidade, por obra e graça do mesmo Fellini, cuja obra nunca foi da minha graça. Basta o Templo Malatestiano para obrigar alguém como eu a visitar essa cidade? Basta. O elefante e a rosa. Alberti e Piero. O galgo branco e o galgo negro. A imaculada conceição do Renascimento, necessitas, commoditas, voluptas. Mas não eram coisas minhas, antes de as ver, e eu raramente vejo o que antes não era já meu. Só agora sei que um dia seria. E só agora sei que quando "voei" de Alberti para Bramante e do Templo de Sigismondo para as cúpulas de Santa Maria delle Grazie (é mesmo Grazie, caríssimo Manoel de Oliveira) fiz o "raccord" mais perfeito que se pode fazer entre os cumes do renascimento arquitetónico italiano. Mas não é do Tempietto que hoje vou falar, pois que até a repetição tem limites. Desta vez, embora tenha ganho muito do meu tempo entre o galgo negro de Piero e os rabinhos redondos dos mil "putti" de Isotta degli Atti, os meus passos levaram-me para o museuzinho da cidade, onde eu sabia que podia ver um Bellini que antes muito vira (uma Pietá com anjo cor de rosa). E eis que, de súbito, nessa sala, se me atravessa uma estátua de Santa Catarina (a de Alexandria, não a de Sena) datada de 1410 e atribuída ao "Mestre da Anunciação Dreicer" que não sei quem foi, mas, me soube a Dreyer. É uma estátua de pedra branca com vestígios de policromia. Não é muito alta (1 metro e 30) mas, como a colocaram em cima de um plínio de 40 cm, a cabeça dela ficou quase à altura da minha. Veste um longo manto de pregas que a cobre inteiramente do pescoço aos pés (nenhuma carne visível) e usa uma cabeleira de anjo muito encaracolada. Mas o que me hipnotizou foi o sorriso, um sorriso inenarrável, sossegadissimamente meigo e sossegadissimamente desafiante. Tão desafiante era que, aproveitando o facto de estar sozinho na sala, me aproximei para lá de todos os critérios aconselhados pela mais benevolente segurança. Os olhos da estátua são daqueles que olham frontalmente quem frontalmente os olha a eles. Um dos olhos é cego ou ficou cego de tanto ver. O outro, pelo contrário, olha todo, olha tudo. Assim, quase "cheek-to-cheek", fiquei colado a ela. Ninguém nos interrompeu. Numa vasta sala, solitária e gelada, o meu vulto e o vulto dela, ficaram de corpo-aberto, benzedeiros e videntes, como se diz dos corpos onde entrou um espírito, que dentro dele fala. Como Quinto Fábio Pictor quando foi a Delfos consultar o oráculo e inquirir dos meios mais adequados para alcançar favores divinos. Hawthorne, que como ninguém sabia destas coisas (ele me deu ou dará o título "Proféticas Imagens") falou de experiência semelhante em "The Marble Faun". Sinais de alma que, no mundo, só algumas mulheres têm. E algumas estátuas e alguns quadros. Como a minha - a de Bronzino - Lucrezia Panciatichi, que há seis décadas me vela e me desvela, "Amour Dure-Dure Amour", Madonna do Futuro, Madonna do Passado, como, antes de mim, para Henry James já fora. Como Milly Theale reencontrada.

 

2.  A fotografia, desde os tempos imemoriais em que eu brincava com retratos avoengos de Mniz Martinez, com moradas na Rua de Serpa Pinto n.º 66 e no Largo da Abegoria 4 ou da Helios Photos, com moradas na Avenida da Liberdade 158 ou na Rua de S. José 209 A; a pintura, desde os tempos mais memorizáveis em que abri as Janelas Verdes; tinham-me dado visões semelhantes. A pedra ou o mármore, jamais. A tal ponto que essa estátua dreyeriana (não é gralha) se me sobrepôs à "morbidezza e diligenza" (Vasari o disse, que raramente se enganou) dos vários Malatesta que estão aos pés de S. Vincenzo Ferreri, na pala com o nome do Santo, que é a obra máxima exposta no museu. Ghirlandajo a pintou em 1493, quase cem anos depois de esculpida a Catarina, e, muito mais impressivos do que os Santos adorados (além do "protagonista", os inseparáveis São Sebastião e São Roque) são os adoradores: Pandolfo IV Malatesta, que foi o último senhor de Rimini (tão fraco guerreiro como bom negociante, pois que por duas vezes vendeu a cidade que não conseguiu defender) a mãe, Elisabetta Aldobrandini, a mulher, Violante Bentivoglio e o irmão Carlo. Todos eles, luxuosissimamente vestidos e com a raça imaginável pelos apelidos, não sendo retratos autónomos (figurantes ajoelhados da cena supostamente sacra), em pouco espaço, se volvem para a expressão ideal a que só a "alta immaginazione" pode aceder. Ninguém olha ninguém. Ou seja, não se olham uns aos outros nem olham os santos. Mas é da perna, fugazmente nua, do pestífero São Roque, que desce a carne que os torna tão palpáveis e frementes. Pensei na implausibilidade (para não dizer impossibilidade) de um nariz como o de Pandolfo, a começar quase no meio da testa e a seguir retilíneo quase até à boca, um nariz quase tão soberbo como o do Medicis de Botticelli ou o do Montefeltro de Piero. Na noite desse mesmo dia, jantei com uma italiana que tinha um nariz quase igual. Em Itália nunca se sabe se é a natureza que copia a arte ou se é a arte que copia a natureza. Provavelmente, nem uma nem outra coisa. Os retratos são a mais imaginosa das nossas memórias, ou as mais perduráveis imaginações nossas.

 

3.  Não estou a dizer nada que não tenha sido dito e redito. Só que nos esquecemos de o lembrar. "Nothing, in the whole circle of human vanities, takes stronger hold of the imagination than this affair of having a portrait painted. Yet why should it be so? The looking glass, the polished globes of the andirons, the mirror-like water, and all others reflecting surfaces, continually present us with portraits, or rather ghosts of ourselves, which we glance at, and straightway forget them. But we forget them only because they vanish. It is the idea of duration - of earthy immortality - that gives such a mysterious interest to our own portraits" ("Dentre todas as mundanais vaidades, nada tem mais forte poder sobre a imaginação do que esta coisa de possuir um retrato pintado. Porquê? Porque é que isso acontece? Os espelhos, as vítreas placas das salamandras, a água e todas as superfícies refletoras continuamente nos oferecem retratos, ou, melhor dito, espectros de nós próprios que olhamos de relance e imediatamente esquecemos. Mas só os esquecemos porque desaparecem. É a ideia da permanência - da imortalidade terrena - que confere tão misterioso interesse aos nossos próprios retratos"). Perdi tempo e espaço a citar o texto de Hawthorne (outra vez Hawthorne) no original inglês e na aproximativa tradução portuguesa? Não, não perdi. Ganhei-o. Porque a repetição - como a permanência - estimula a memória e com ela a imaginação. Aprende-se isso no cinema ou com o cinema. Um dos primeiros teóricos dele - Giambattista della Porta - escreveu em 1602 (quase trezentos anos antes dos comboios de Lumière) que "a memória mais não é do que uma pintura inteira, guardada nessa mesa animada a que chamamos cérebro". Ars riminiscendi. Não julgo preciso explicar-vos quem nos ensinou que tudo o que fazemos não é mais do que lembrarmo-nos. E lembro-me do nariz de Pandolfo, do "azul profundo, quase noturno" de Bellini, da cor maléfica "do sumo de papoula" da Lucrezia de Bronzino, do galgo negro nascido das costas do galgo branco de Piero. E lembro-me mais e mais do sorriso evanescente e do olhar húmido da Santa Catarina, única imagem que aqui vos deixo, sabendo que não a vereis como eu a vi, "tremendo com todo o corpo" como Plutarco disse que Cassandro tremeu ao ver a imagem de Alexandre, tempo depois de Alexandre morto. 
Uma última imagem? No retrato de Van Eyck, dito de Timoteos, que hoje está na National Gallery em Londres, lê-se a inscrição "Leal Souvenir". Penso que tudo quanto disse sobre a imagem, a memória e a imaginação, pode caber nessa expressão. E penso - parecendo que não - que tudo quanto vos confiei foram recordações leais. Não mais, não menos.


João Bénard da Costa
in Público, 21 de novembro de 2003

PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XXXI. UMA CHAVE INESPERADA, OU TALVEZ NÃO!

 

É João Abel Manta quem nos ajuda a fechar este folhetim de folhetins, que propositadamente fez um sobrevoo exaustivo sobre as várias leituras (e tantas ficaram por fazer) que a lusitana língua tem para nos dar do lado de cá do Atlântico. É Fernando Pessoa, qual Hamlet, a fazer a pergunta enigmática que esta série encerra. E devemos alguns esclarecimentos.

Antes do mais, porquê este título esotérico de “Pedras no meio do caminho”?
De facto, é Carlos Drummond de Andrade o inspirador desta fórmula, pelo poema que bem conhecemos.

   No meio do caminho tinha uma pedra
   tinha uma pedra no meio do caminho
   tinha uma pedra 

   no meio do caminho tinha uma pedra.

   Nunca me esquecerei desse acontecimento
   na vida de minhas retinas tão fatigadas.
   Nunca me esquecerei que no meio do caminho
   tinha uma pedra
   tinha uma pedra no meio do caminho
   no meio do caminho tinha uma pedra.

Parece estranho, mas não é. Os nossos leitores sabem que, ao longo do tempo – a memória e o património cultural representam-se metaforicamente, como quis Rabelais, entre pedras mortas e pedras vivas – e as pedras vivas são as pessoas. Não há cultura sem memória, sem interrogação, sem enigma. Monumentos, habitações, documentos, crónicas, idiomas, tradições, natureza, paisagem, técnicas, instrumentos, comunicação, criatividade. E foi assim que ao longo das semanas lidámos com fantasmas, propositadamente, com os seus caprichosos espíritos que, em vez de terem desaparecido, se mantêm presentes e vivos de diversas maneiras – pelo que escreveram e disseram, pelo que viveram e legaram. E do princípio ao fim lidámos com Carlos Fradique Mendes, heterónimo exclusivo de uma geração, símbolo heterogéneo, surgido na absurda história da Estrada de Sintra, filho de Eça e Ramalho, espécie de pirata cultor de um pensamento mefistofélico; depois Antero e Jaime Batalha Reis inventam-no como um poeta singular e marginal – e, por fim, Eça de Queiroz, liberto do pendor romântico da Ramalhal figura, deu-lhe nervo e espírito, com autonomia, como verdadeiro símbolo de uma geração maior. Não por acaso, demos dois exemplos de folhetins romanescos. As “Viagens” de Garrett renovaram a literatura (como fez Almada Negreiros em “Nome Guerra”) e o “Mistério da Estrada de Sintra”, sem ser obra genial, é o anúncio em parte (a de Eça) do naturalismo e depois do simbolismo. E voltamos a Fradique, que é muito mais do que filho de uma escola, representa a transição que nos conduz de Afonso e Carlos da Maia até Jacinto e Gonçalo Mendes Ramires – da Regeneração à Renascença Portuguesa, de 1870 a 1915 e ao “Orpheu”. Tivemos um Romantismo muito longo, libertado com Antero, Cesário e Pessanha de uma escola decaída de elogio mútuo, enterrada no Bom Senso e Bom Gosto e nas Conferências do Largo da Abegoaria.

 

Como podem compreender, o folhetim é caricatural e trágico. Poderíamos ter ido mais adiante. Chegámos aos Barbelas e aí pudemos ver quem somos na dimensão plural da história, mas poderíamos ter falado ainda de Agustina e da sua “Sibila”, de Quina e Germa e do mesmo ano emblemático: “Há uma data na varanda desta sala que lembra a época em que a casa se construiu. Um incêndio por alturas de 1870, reduziu a ruínas toda a estrutura primitiva”. Que data estranha esta, recorrente, tantas vezes encontrada.

Reunidos numa sala ampla, Jaime Ramos interroga comigo os suspeitos e protagonistas: todos fantasmas, Fradique, Justino Antunes, Conselheiro Torres, Coronel Segismundo, Conselheiro Acácio, Luísa do “Primo Basílio”, o inefável Pacheco, Zé Povinho, Joãozinho das Perdizes, o Bispo de  Viseu, Calisto Elói de Barbuda, Corto Maltese, Sandokan, Gastão de Sequeira, Fernão Mendes Pinto, António José da Silva, o Vaqueiro do Auto da Visitação, Frei Dinis, Carlos e Joaninha, o conde de Abranhos, Camilo Castelo Branco, Antunes e Judite, Jaime Ramos, Luísa, a condessa de W., Garrett (ele mesmo) com Duarte Guedes, Amália, Josefina e José Félix, D. Raymundo de Barbela, o cavaleiro e a bela Madeleine, Pessoa como Hamlet, e (à ultima da hora) Quina e Germa… uma algazarra.

Duas horas de interrogatório. Jaime Ramos é sistemático. E o veredicto é duro. «Todos, mas todos sem exceção, são culpados”. A condessa de W., ainda pretendeu assumir, ela só, todas as culpas. Mas Ramos pô-la à prova com o detetor de mentiras. A culpa dela era a mesma de todos os outros… um pequeno golpe para cada um. O que estava em causa era a culpa para manter, pura e impura, a lusitana língua e, como no “Crime do Expresso do Oriente”, a culpa era de todos, todos, próximos ou distantes!

Houve broaá, e pronto, a cortina desceu apressadamente, para paz de todos. Um compasso de espera e houve palmas…      

 

Agostinho de Morais

 

Pedras.jpg>> Pedras no meio do caminho no Facebook

DEUS E OS VENCIDOS

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A razão iluminista tinha como desígnio a reconciliação e emancipação plena do Homem. Mas, de facto, sem esquecer evidentemente conquistas irrecusáveis, como, por exemplo, as Declarações dos direitos humanos nas suas várias gerações, deparamos com duas guerras mundiais e as suas muitas dezenas de milhões de mortos, o comunismo mundial e também os seus milhões e milhões de vítimas, deparamos com Auschwitz e o Goulag, o fosso cada vez mais fundo entre a riqueza e a miséria, a Natureza ferida, a desorientação e o vazio de sentido...

E, desgraçadamente, sabemos que o número das vítimas não cessará de aumentar, de tal modo que frequentemente a História nos aparece, como temia Walter Benjamin, à maneira de um montão de ruínas que não deixa de crescer. Mas, mesmo que fosse possível realizar no futuro uma sociedade totalmente emancipada e reconciliada, nem assim, desde que iluminada pela memória, a razão poderia dar-se por satisfeita, pois continuariam a ouvir-se os gritos das vítimas inocentes, cujos direitos estão pendentes, pois não prescrevem.

O teólogo Johann Baptist Metz não se cansou de repetir, com razão, que só conhecia uma categoria universal por excelência: a memoria passionis, isto é, a memória do sofrimento. Se a História não há-de ser pura e simplesmente a história dos vencedores, se a esperança tem de incluir a todos, quem dará razão aos vencidos?

A autoridade do sofrimento dos humilhados, dos destroçados, de todos aqueles e aquelas a quem foi negada qualquer possibilidade é ineliminável. Trata-se de uma autoridade que nada nem ninguém pode apagar, a não ser que o sofrimento não passe de uma função ou preço a pagar para o triunfo de uma totalidade impessoal. Mas precisamente o sofrimento, que é sempre o meu sofrimento, o teu sofrimento, como a morte é sempre a minha morte, a tua morte, é que nos individualiza, dando-nos a consciência de sermos únicos, de tal modo que nenhum ser humano pode ser dissolvido ou subsumido numa totalidade anónima, seja ela a espécie, a história, uma classe, o Estado, a evolução... O sofrimento revela o outro na sua alteridade, que nos interpela sem limites.

Assim, se as vítimas têm razão - a razão dos vencidos, como escreveu o filósofo Reyes Mate -, com direitos vigentes que devem ser reconhecidos, não se poderá deixar de colocar a questão de Deus, um Deus que as recorde uma a uma, pelo nome, chamando-as à  plenitude da Sua vida. "Essa é a pergunta da filosofia", dizia Max Horkheimer, da Escola Crítica de Frankfurt. Mas é claro que para essa pergunta só a fé e a teologia têm resposta. Ele próprio o reconheceu, ansiando pelo “totalmente Outro”.

Se a História do mundo tem uma orientação, ela só pode ser a liberdade. Ser Homem, ser livre e ser digno identificam-se. Com razão, I. Kant não se cansou de repetir que o respeito que devo aos outros ou que os outros podem exigir de mim é o reconhecimento de uma dignidade, isto é, de um valor que não tem preço. O que tem preço pode ser trocado: é meio. O Homem não tem preço, mas dignidade, porque é fim em si mesmo.

Quando nos interrogamos sobre o fundamento da dignidade do Homem, encontramo-lo no seu ser pessoa. Pela liberdade, a pessoa está aberta ao Infinito. Se se reflectir até à raiz, concluir-se-á que o fundamento último dos direitos humanos é nesse estar referido estrutural do Homem ao Infinito que reside: nessa relação constitutiva à questão do Infinito, à questão de Deus precisamente enquanto questão (independentemente da resposta, positiva ou negativa, que se lhe dê), o Homem aparece como fim e já não como simples meio.

O Homem é senhor de si, autopossui-se, e é capaz de entregar-se generosamente a si próprio a alguém e por alguém. A Humanidade faz a experiência de si como história de libertação para mais humanidade, portanto, para mais liberdade. O Homem indigna-se desde o mais profundo de si contra a indignidade, revolta-se contra toda a violação arbitrária e impune da justiça e do direito, e é capaz de dar a vida pela dignidade da humanidade em si próprio e nos outros seres humanos.

Houve muitos homens e mulheres que, ao longo da História, livremente, morreram por essa dignidade. Mas mesmo que tivesse havido apenas um a fazê-lo, seria inevitável perguntar: o que é isso que vale mais do que a vida física?

Precisamente aqui, nesta experiência-limite, deparamos com o intolerável: como é que pode ser moralmente admissível que quem é sumamente digno, pois se entrega até ao sacrifício de si pela dignidade, morra, desapareça e apodreça, vencido para sempre? Por isso, neste acto de suma dignidade, encontramos um dos lugares em que a questão de Deus enquanto questão é irrenunciável e irrecusável.

A experiência do Deus bíblico surge essencialmente da experiência do intolerável de as vítimas inocentes serem entregues para sempre à injustiça. O Deus bíblico é definitivamente um Deus moral: é o Deus que não esquece os vencidos.

Por isso, a História não é um continuum, onde a razão estaria permanentemente do lado dos vencedores. A História está aberta ao salto último da meta-história, à Palavra definitiva que só Deus pode pronunciar, Palavra que ressuscita os mortos e reconhece para sempre às vítimas os seus direitos. Sem esse reconhecimento definitivo da dignidade de todos, bem e mal, justiça e injustiça, honra e cinismo, verdade e mentira, dignidade e indignidade, tudo é igual, pois, como escreveu Bernhard Welte, tudo seria para nada, já que irá ser engolido pelo nada para sempre.

 

 Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 de fevereiro de 2022

CULTURA COMO MEMÓRIA E LIBERDADE

 

Dedicamos hoje sentidamente o texto publicado na quinta-feira no “Público” sobre as Jornadas Europeias do Património a dois amigos que nos deixaram e que não esquecemos:

 

Isabel Wolffensperger, grande amiga do CNC, irmã da nossa querida Helena Vaz da Silva, que não podemos esquecer na sua generosidade e entrega às nossas causas comuns;

 

E Manuel Luís Carvalho Costa, que desde muito jovem acompanhou os combates da primeira geração do Centro Nacional de Cultura, dos tempos da “Cidade Nova”, e cuja coragem ficou bem evidente até aos últimos dias.

A.M.

 

«“Artes, Património, Lazer” é o tema das Jornadas Europeias do Património deste ano. Trata-se de pôr a tónica no património cultural como realidade complexa e viva, que tem a ver com a cidadania e com a vida das pessoas, que não podem eximir-se à responsabilidade de cuidar do que recebemos das gerações que nos antecederam. E se tanto se fala de sustentabilidade e da prioridade à defesa do meio ambiente, temos de dar especial atenção ao cuidar da memória e do património histórico, não como realidades do passado, mas como deveres do presente. A 11 de setembro, na Fundação Calouste Gulbenkian em Paris, numa iniciativa com o Instituto Jacques Delors / Notre Europe, foi possível refletirmos sobre a importância do Património Cultural, com Serge Lasvignes (presidente do Centro Pompidou), Marie Gravari-Barbas (da Universidade de Paris-I, Panthéon, Sorbonne), Astrid Brandt-Grau (diretora do Ministério da Cultura de França), David Madec (administrador do Panthéon de Paris) e Sandro Gozi, (antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus de Itália), com a moderação do jornalista François Beaudonnet. O tema foi “Património Europeu – a Preservar ou a Explorar?”, e muito mais do que uma reflexão técnica, tivemos um debate político europeu. De facto, sem compreensão dos valores culturais, limitamo-nos a cair em simplificações perigosas. O património cultural não é um tema do passado, envolve uma dinâmica e a compreensão da complexidade. Não podemos, assim, falar de uma identidade europeia uniformizadora. Temos de tratar de diferenças e complementaridades e de uma hierarquia de princípios e valores. Património cultural envolve o que é material e construído, o que é imaterial e tem a ver com tradições e vivências, o que diz respeito à natureza e também às paisagens (lembremo-nos da qualidade nas cidades ou dos jardins históricos), bem como o que se reporta às ciências e tecnologias e à emergência do digital, além da importância da criação contemporânea. Não há debate político europeu sem preservação da memória.

 

A perigosa fragmentação europeia, a que assistimos, resulta da incompreensão em relação à memória, à história política e à sociedade. O medo do outro e do diferente, a ilusão económica, o egoísmo, a prevalência do curto prazo, a desatenção relativamente às potencialidades da sociedade e da cidadania (designadamente ao papel das fundações e de um conceito alargado e justo de filantropia) encontram raízes fundas na desvalorização do património e da memória. Num importante texto de Thierry Chopin, publicado por Notre Europe sobre “As Artes, o Espírito Europeu e a Liberdade”, é posta a tónica na importância de pensar as identidades europeias como realidades abertas, centradas na liberdade e numa cultura crítica e de paz. Como entre nós tem sido salientado por Emílio Rui Vilar, temos de voltar a olhar a alegoria do bom governo de Lorenzetti no Palazzo Pubblico de Siena, na qual a Paz, a Concórdia e a Segurança, se opõem à Guerra, à Divisão e ao Medo. Os ideais de cidadania e de autonomia republicana obrigam a que haja condições na vida das instituições e na mediação no seio dos espaços públicos, para que a memória histórica seja um fator de enriquecimento cívico, em termos de liberdade, de sentido critico, de participação, de representação e de responsabilidade dos cidadãos. O Bom Governo favorece o bem comum como bem de todos e garantia de liberdade dos cidadãos. Eis por que razão a defesa e salvaguarda do património cultural e dos direitos e deveres que lhe são inerentes não é um tema do passado, mas sim um caminho de defesa dos valores comuns através do reconhecimento da memória, como fator dinâmico e criador. Liberdade, individualidade e sociedade articulam-se com as legitimidades do voto e do exercício, em que a justiça social seja marca de humanidade e respeito mútuo. Preservar ou Explorar? Do que se trata é de criar e considerar o que tem valor, preservando-o no sentido da proteção, explorando-o na aceção da criação de valor ao serviço de todos. «Artes, Património, Lazer» significa um apelo a que a cultura, como a educação e a ciência, sejam fatores de enriquecimento da democracia – juntando a criação artística e a importância das chamadas “artes liberais”, como reconhecimento da experiência e da aprendizagem, como deveres de proteção da herança e da memória e como consideração do lazer, enquanto disponibilidade de espírito e de favorecimento da liberdade».

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 17 a 23 de setembro de 2018

 

Retábulo das Matérias - 1956-2013” (INCM, 2018) de Pedro Tamen, na coleção Plural, permite a revisitação da obra de um grande poeta, compreendendo a importância e o significado de um percurso ricamente singular.

 

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ARTE DA MEMÓRIA

 

Teria sido Simónides de Cós (séc. V, a. C.) o primeiro cultor da Arte da Memória. Ele disse ser preferível a arte de esquecer que a de lembrar. E hoje quando se fala tanto da memória informática na parafernália dos computadores, é bom voltar a esse entendimento, segundo o qual a sabedoria se faz sempre de lembrança e de esquecimento, para que não se confunda com ressentimento e favoreça a experiência e a aprendizagem. Por isso, ao sair do campo de concentração Joseph Rovan disse que esqueceria a cara dos carcereiros, mas lembraria sempre que importava combater a barbárie, pelo respeito e não pela vingança, pela dignidade e não pela violência. Memória Indescritível de Pedro Tamen (2000) ilustra bem esse cuidado especial com a memória, e essa relação paradoxal entre viver e reviver. A epígrafe de Sá de Miranda é significativa dessa contradição fecunda, que alimenta a existência. “Alma, que fica por fazer desde hoje / na vida mais, se a vã minha esperança, / que sempre sigo, que me sempre foge / já quanto a vista alcança, a não alcança”. E o poeta procura esclarecer essa relação necessariamente imperfeita e contraditória. De facto, não há memória que se complete a si mesma – ela será sempre, por isso, indescritível: “Deixar correr o tempo sem memória/ entre memoriais de tudo quanto houve/ valendo-me assim do que os outros lembram/ para nada lembrar”. É, no fundo e sempre, a complexa relação com o tempo, que tanto perturbava o bispo de Hipona, que está em causa - a tripla dimensão do presente, articulando o agora, o passado e o devir, numa observação atenta e inesperada. “Por sobre o ombro (dói!) lobrigo/ tantas confusas coisas, falo delas./.../o peso, o contrapeso, a palavra que digo. Sufoco o medo a medo, e olho a esteira/ remudo e quedo, sentado na cadeira”. Daí a invocação de Sá de Miranda, que nos remete ainda para o célebre poema: “Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim”. Com a memória é também essa perplexidade que se manifesta, entre o alcançar e não alcançar o que a alma diz.

 

 

LUCIDEZ CRÍTICA

 

Com uma lucidez crítica premonitória, e ainda numa fase precoce da produção poética do autor, António Ramos Rosa afirmou: “Vejo na poesia de Pedro Tamen uma das mais sérias tentativas para dar à atividade poética aquele sentido do sagrado, sem o qual não se pode atingir a verdadeira dimensão interior. Violentamente dramático, quase sempre, este poeta restabelece a circulação entre o humano e o elementar infundindo à linguagem poética uma energia e expressividade que superam a mera agressividade do bizarro, tantas vezes esterilmente ofensiva em alguns poetas surrealistas” (in Poesia Liberdade Livre, Ulmeiro, 1968). E o certo é que o tempo veio a confirmar este carácter sagrado e dramático – e um modo especial de lidar com as palavras, sem esquecer a ironia, a dúvida, a incerteza e a compreensão da realidade através do seu avesso. É verdade que o tempo trouxe muitas mudanças, mas Ramos Rosa não se enganou na linha fundamental revelada já nessa altura pelo poeta. Estamos perante um percurso coerente e seguro, de quem sempre aliou a ação e a reflexão: “Formado em direito e solidão, / às escuras te busco enquanto a chuva brilha. / É verdade que olhas, é verdade que dizes. / Que todos temos medo e água pura” (como disse em Escrito de Memória, 1973).

 

 

PRESENÇA DA PALAVRA

 

Na relação com as palavras, importa lembrar que, além de poeta seguro e talentoso, com indiscutíveis provas dadas, Pedro Tamen é um tradutor excecional, com larguíssima experiência com notáveis resultados. Além das traduções de final de sessenta, sob o pseudónimo M. Rodrigues Martins, temos um rol notável, desde Tomás Kêmpis (com Isabel Bénard da Costa) até Gustave Flaubert, Marcel Proust, Georges Perec, Pascal Quignard, Javier Marias ou Michel Houellebecq. Homem de cultura, Pedro Tamen tem um percurso ligado ao que António Alçada Baptista designou como a “Aventura da Moraes”. Vindo da revista “Anteu – cadernos de cultura” (1954), passaria pelo jornal “Encontro” da JUC, onde seria chefe de redação (1955-1957), dirigiu o Centro Cultural de Cinema (CCC) e publicou o primeiro livro Poema para todos os dias (1956). Terminado o curso de Direito, é incorporado no Exército uma primeira vez (1957), mas o ano de 1958 vai significar uma mudança – que se prende aos sobressaltos causados pela candidatura presidencial do General Humberto Delgado, pelo memorando do Bispo do Porto a Salazar, que levaria o prelado ao exílio, e ao início do pontificado de João XXIII. António Alçada Baptista transforma a Livraria Morais da Rua da Assunção num centro de renovação política e religiosa. Pedro Tamen entrou como seu sócio, aos quais se juntou uma equipa constituída por João Bénard da Costa, Nuno Bragança, Luís de Sousa Costa, Helena e Alberto Vaz da Silva, E lança o Círculo da Poesia, com o inesquecível símbolo solar de José Escada, onde publica O Sangue, a Água e o Vinho. Anima as coleções Circulo do Humanismo Cristão e “O Tempo e o Modo” (que dará título à revista em 1963). Segundo António Alçada, havia a “poderosa força da inércia” e a “frágil força da mudança” e um grupo de jovens propunha-se agitar as águas no pensamento e na ação. Pedro Tamen formula o programa – simples e claro: “a ação começa na consciência. A consciência, pela ação, insere-se no tempo. Assim, a consciência atenta e virtuosa procurará o modo de influir no tempo. Por isso, se a consciência for atenta e virtuosa, assim será o tempo e o modo”. A Morais afirma-se como pioneira na reflexão dos grandes temas do Concílio Vaticano II e a revista concretiza-se em 29 de janeiro de 1963 – António Alçada Baptista era o proprietário e diretor, João Bénard da Costa, chefe de redação, Pedro Tamen, editor, além da participação ativa de Nuno Bragança, Alberto Vaz da Silva e Mário Murteira. Não era, porém, uma revista de católicos. Haveria de seguir os passos de Emmanuel Mounier, que fizera em 1932 da revista “Esprit” um lugar de abertura e diálogo com não católicos. Era preciso abrir espaços, havia outros católicos de um setor mais técnico, como Adérito Sedas Nunes e Alfredo de Sousa, mas havia também jovens estudantes da greve de 1962, como Jorge Sampaio, Jorge Santos, Manuel de Lucena e José Medeiros Ferreira, e havia ainda oposicionistas clássicos como Mário Soares e Francisco Salgado Zenha… Sobre a abertura aos não católicos, João Bénard recorda: “um de nós sugeriu que se rezasse uma Avé Maria para que o espírito nos iluminasse”. E a votação fez-se – cinco votos a favor, dois contra e a abertura foi decidida!

 

Como editor, como poeta, como escritor, como intelectual ativo, Pedro Tamen é uma personalidade das mais marcantes do nosso tempo. Os critérios que usou desde o “Círculo da Poesia” até à Gulbenkian, demonstram bem como pôde rodear-se dos melhores, num momento rico da nossa criação cultural. O seu talento foi um natural complemento da qualidade de escolha. Usando a expressão de Ruy Belo sobre a geração dos “vencidos do catolicismo”, a verdade é que estes, como os ancestrais de 1870, não foram vencidos no largo prazo, sendo símbolos vivos do que podemos designar como a “paixão crítica”. Quando foi inventada a expressão “vencidos da vida”, havia um misto de ironia e de revolta. Contra a ideia de fatalismo do insucesso ou do atraso, foi o sentido crítico que venceu nas duas gerações – a da “Vida Nova” e de “O Tempo e o Modo” com a dureza da denúncia e a aventura das propostas audaciosas.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins