Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Estátua de Pêro Escobar no Padrão dos Descobrimentos, foto de Luís Pavão
4. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (II)
1. Prosseguindo viagem eis-me junto ao “Memorial da descoberta/achamento da ilha de S. Tomé a 21 de dezembro de 1470 pelos navegadores portugueses Pêro Escobar e João de Santarém”, onde fica o cruzeiro ou padrão dos descobrimentos, no local do primeiro desembarque.
O acesso é mau, agravado pela ausência da ponte, que ruiu e caiu, forçando os veículos a atravessar a água da ribeira, quando podem e consoante a época do ano, o que foi possível, no meu caso. A degradação é geral, incluindo o monumento, um edifício inativado, mesas e bancos ao ar livre a fazer lembrar tempos idos de melhor preservação.
Degradado, mas não destruído, é um património que merece ser cuidado e reabilitado, quiçá através de obras de conservação e manutenção com a ajuda de parcerias público-privadas portuguesas e do Estado são-tomense.
Apesar da deterioração, há um sossego, uma tranquilidade, uma beleza colorida pela vegetação banhada pelas águas de uma pequena praia à beira mar, que nos “alheamos” da desolação e idealizamos um turismo histórico e cultural reinventado e descomplexado.
2. De seguida, paragem na roça Diogo Vaz, uma das mais antigas, fundada em 1895, localizada num pequeno promontório elevado em relação à cota do mar e organizada sob um eixo perpendicular à costa, ladeado por terreiros em socalcos enquadrados por sanzalas e edifícios de apoio, com a casa principal (escritórios e casa do médico) no extremo oposto, com visibilidade para o mar e todo o eixo da fazenda.
Mantendo a tipologia-base em avenida, sendo a primeira estrutura do género, possibilitou aperfeiçoar e testar o modelo de roça-avenida, para a posterior construção da Rio do Ouro.
Tendo passado por várias fases de construção, reabilitação e modernização, notório na conservação dos edifícios mais emblemáticos, é um dos exemplos de sucesso, de produtividade e rendimento, entre as roças de São Tomé. Prova-o a floresta de cacaueiros de variedades nativas e não endémicas, o chocolate de qualidade que produz, já consagrado como marca, exportado e premiado internacionalmente, que comercializa numa loja elegante na marginal da capital da ilha.
3. A viagem prossegue até ao túnel de Santa Catarina, percorrendo uma estrada que é tida como a mais bonita da ilha, pelo que ouvi e li, o que pude presumir pelos reflexos solares, de tons levemente dourados e prateados, refletidos na água da praia e por entre palmeiras posicionadas uma atrás das outras, vergadas pelo vento, entre a estrada e a beira mar. Naquela hora, com a despedida solar, foi um dos momentos paisagísticos mais deslumbrantes e emocionantes que vivi em São Tomé.
Tudo a apelar a fotografias e vídeos, em vários ângulos, formatos e posições, o que é corroborado com a chegada ao túnel verdejante de Santa Catarina, escavado na rocha, onde a beleza da natureza, com a ajuda humana, predomina.
Não foi fácil chegar, dado o péssimo estado de conservação da estrada na zona de Neves, capital do distrito de Lembá, com enormes buracos, aberturas e desníveis do piso, agudizados pela queda de uma chuva forte e repentina, que deu oportunidade a porcos, cães e toda a gama de animais à solta fazerem bebedouro das covas e fendas rodoviárias, embaraçando o trânsito numa povoação desorganizada, compacta e populosa.
Mais perplexo fiquei quando me apercebi estar ali instalada a fábrica da icónica cerveja Rosema, a única do país, e os depósitos de abastecimento de combustível, tornando incompreensível a degradação que acabara de ver. Respondeu-me, quem me acompanhava, que os camiões de transporte pesado de combustível danificam permanentemente as vias por onde passam, não sendo compensada, em contrapartida, a população local com as melhorias a que devia ter direito.
O dia findava e havia que regressar ao ponto de partida, o que fizemos voltando por Guadalupe, capital do distrito de Lobata.
Deparei-me com uma cidade limpa, organizada, boa estrada de pavimento novo, passeios para peões, sinalética adequada, o que facilitou, e muito, a chegada à Cidade de São Tomé, dado o bom estado de todo o percurso. Enfim, uma surpresa, por contraste com o desleixo de Neves.
Perguntei, a mim mesmo: porquê esta disparidade, se ambas as cidades são capitais de distrito, urbes com indústria, embora Neves seja mais populosa? Não sei a resposta. Mas de uma observação atenta tive a intuitiva impressão de que em Guadalupe há habitações de qualidade acima da média, por oposição a Neves (muitas delas barracas).
Também em Guadalupe, ao passar pela igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, perguntei ao guia se havia em São Tomé algum santo ou santa de origem negra, como Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil. A resposta foi negativa, pelo que sugeri, a ser assim, que podem importar o culto do Brasil. Ou ter santos nativos e negros de São Tomé e do Príncipe, O que faz sentido, pois só têm santos brancos. Ambos, bem-dispostos, rimos. Algum tempo depois, fim de mais um dia.
1. A primeira paragem do dia foi no extremo sul da baía de Ana Chaves, na cidade de São Tomé, onde fica o forte de São Sebastião, erguido pelos portugueses, em 1575, diante do qual, no seu perímetro exterior, ao ar livre, estão as estátuas monumentais dos navegadores lusos João de Santarém e Pêro Escobar e do povoador João de Paiva. Retiradas de praças e jardins, após a independência, não foram, até agora, destruídas nem vandalizadas, sendo preservadas como património e memória histórica (o que é de louvar), como que parte ou a continuação do Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no interior da fortaleza.
A alva representação monumental dos homenageados, reforçada pelo obelisco que os acompanha, sinaliza-se à distância, contrastando com a discrição do tributo aí prestado ao líder anticolonial santomense Amador.
O espólio do museu faz a retrospetiva possível da história e cultura que evoca, através de documentos artísticos e históricos, fotografias, esculturas, pinturas, recolha de objetos e reconstituição da vida diária nas plantações de cacau e café, departamentos públicos, residências estatais e eclesiásticas, desde a época colonial à atual, exemplificando-o a vida nas roças e o texto do hino nacional, subscrito por Alda Espírito Santo. De destacar também a capela do santo padroeiro, baluartes, farol, terraços e vista para o ilhéu das cabras.
2. A CACAU (Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias) é um caso pioneiro no panorama cultural de São Tomé, como o é João Carlos Silva a inovar e a caminhar por caminhos nunca antes caminhados. Seja na inovação e reinvenção da cozinha tradicional e de autor na roça de São João, na Fábrica das Artes e Cidadania Ativa (FACA), no autocarro Tata, uma biblioteca móvel levando livros e cultura a toda a ilha (como outrora a da Gulbenkian), sem esquecer a CACAU, o seu mentor mostra-nos que há algo de belo em ter uma missão, haja querer e perseverança para o tentar realizar.
Na CACAU há um museu, galeria de exposições, auditório, palco de espetáculos e eventos, espaço de dança, livraria, bar, restaurante, produção e venda de artesanato, tendo como objetivo principal promover a arte e a cultura. É também um centro polivalente de vocação aberta e transversal no que toca à educação, formação artística, empreendedorismo, aprendizagem, informação e animação turística, incluindo mostras permanentes e temporárias de pinturas e tradições culturais, com uma detalhada retrospetiva histórica, económica, social e cultural do país, dos primórdios à atualidade, não esquecendo o tchiloli, que persiste.
Se a arte é essencial para construir cidadania, também é possível transformar São Tomé e Príncipe num entreposto cultural, com novos voos, parcerias bilaterais ou multilaterais e com o beneplácito do Estado local e de pessoas visionárias como João Carlos Silva.
3. Se as roças foram o ordenador territorial do país e ainda são um polo central do seu desenvolvimento, ir a São Tomé sem ter uma noção da sua importância no passado, no presente e das suas potencialidades futuras é indesculpável.
Após uma breve paragem na roça da Bela Vista, onde a casa principal é o edifício mais interessante do conjunto construído (seguido do hospital), e de uma visita à aprazível e discreta cascata Rio de Ouro, paramos na roça Agostinho Neto (antigamente chamada Rio de Ouro).
É a maior e a mais emblemática pela sua dimensão e imponência arquitetónica em São Tomé e Príncipe, apesar do abandono e degradação a que está votada, organizando-se através de uma larga, longa e pavimentada avenida central, dominada pelo impactante hospital (de influência déco), na extremidade mais elevada, e ladeada pelo conjunto das sanzalas com terreiros privados, das casas dos feitores, encarregados, trabalhadores e pessoal dos escritórios, hoje ocupadas e habitadas por população local.
É desolador constatar o desleixo e deterioração a que chegou um hospital que outrora funcionou com duas grandes alas, masculina e feminina, para doentes, consultório médico, enfermarias e farmácia, tendo ao lado uma capela.
No extremo oposto ao hospital, ficava a casa do proprietário, antiga casa principal, substituída agora por um pavilhão de festas, museu ou algo similar. No espaço onde houve um jardim botânico, zoológico e um pavilhão de chá, há flora e vegetação à solta, onde sobressai uma planta conhecida por “não me toques”, a qual se fecha e dorme quando é tocada. Dizem os locais fazer lembrar a antiga proibição aos santomenses de tocarem nas mulheres portuguesas.
Dentro das três grandes tipologias das roças, correspondia ao modelo da roça-avenida, mais complexa e organizada, em redor da espinha-dorsal constituída por uma alameda, situando-se nela, em tempos, o mais avançado sistema ferroviário do arquipélago, fazendo a ligação com o porto em Fernão Dias.
Era uma espécie de joia da coroa das roças de São Tomé. Foi na Rio do Ouro que pernoitou, em 1907, o Príncipe Luís Filipe, filho do rei D. Carlos, aquando da sua visita à colónia.
Mesmo desaproveitada e exposta ao descuido, é uma permanente atração turística, organizada de modo a condicionar uma visita guiada, com a obrigação de deixar um contributo para ajuda da comunidade, que nos recebe bem.
E se é verdade que se as roças não estivessem localizadas em zonas interiores e remotas de São Tomé, o país não se teria desenvolvido tanto do ponto de vista viário, ferroviário e portuário, o mesmo releva, agora, em termos turísticos.
4. Seguimos para a Lagoa Azul, antecipando uma paragem no topo da estrada, observando as águas azul-turquesa de um dos melhores locais de mergulho da ilha, com uma grande variedade de corais, a haver boa visibilidade.
Junto à lagoa, somos abordados por jovens santomenses que expõem, para venda, artesanato local, que assim passam os dias, segundo apurei.
Havia que satisfazer um pedido, de alguém muito especial e em trabalho de voluntariado: saber da situação do embondeiro, por ela eleito como seu, o qual, neste entretanto, desapareceu por arrastamento para a água, por destapamento das raízes com a erosão da terra onde assentava. Era de grande porte, segundo testemunho do guia, confirmado por quem o escolheu. Afinal, a lagoa, na sua idílica beleza de águas azul-turquesa ou verde-esmeralda, consoante a disposição da luz, também tem os seus caprichos.
Almoço no Mucumbli, num refúgio que é um hino à natureza, como que a compensar o dissabor que acabáramos de ter.
Diminuto venho, por diminutivo te trato. É bonito, creio, este jeito português de engrandecer o amor por uma qualquer forma de regresso ao pequenino de nós. Ainda há pouco, no terraço, o Alberto cantava, naquela voz de tenor, de timbre tão sonoro e claro que, sabemos, só pode sair da garganta do coração: "Era ainda pequenina, acabada de nascer, inda mal abria os olhos, já era para te ver..."Ocorreu-me ainda (vê lá tu!) que até o grande amor do presépio no Natal português tem muito a ver com o gosto carinhoso do que é pequeno e nos chama a debruçar o coração. Amar o que é grande poderá ser vã cobiça, querer o que é pequeno não é já desejo, é só ternura. É como a dádiva de Cristo, o "anti-narciso": só nos outros me amo, nunca em mim. E todos somos breves, como as "sakura" na primavera todos os anos ensaiada. Permanece a lembrança, não a da nossa cabecita que se vai degenerando, mas essoutra que a luz dos infinitos astros regista, e no coração de Deus já se conhecia... Recolhi-me agora, não jantarei, vai-se escondendo o sol que tão amigo foi da nossa tarde. Fui à missa das 10 horas com a tua irmã, o Alberto também, mas ficou lá atrás, sempre em pé, exceto na consagração - que é quando tira do bolso do casaco um lenço impecavelmente branco que, desdobrado no chão, lhe serve de genufletório. Para nós, católicos da Europa do norte (que partilhamos com "protestantes"), duas coisas há difíceis de entender: por um lado, a devoção pietista, um sentimento religioso mais próximo do anseio do que da teologia; por outro, um anticlericalismo latente, desconfiado. Não quero falar-te nisso agora, tive um domingo feliz, entre amigos e família. Fez-se hábito cá desta casa, sobretudo no Verão, dispensarem-se os criados aos domingos... A tua irmã já não se assusta, e deixa o Alberto entretido com os amigos: cozinham e servem-nos em mesa posta no terraço. Depois, o Nobre, que é médico, e o Videira, advogado, pegam na guitarra e na viola, para umas variações ao sabor de lembranças de estudantes e, sobretudo, do gosto familiar de estarem juntos e sempre beirões. O Alberto, que nunca fuma, acende um havano, prova uma aguardente velha..."esta ainda é das que o meu Pai fazia!" Quando agarra no saxofone, ensaia a combinação de umas notas, entra nas variações que as cordas vêm tocando, mas logo todos passam das harmonias de Coimbra para melodias de Lisboa, a que o sax empresta voz... Interrompe-se, recomeça-se, fuma-se entretanto, e recorda-se muito... Até que o Alberto larga o saxofone e aclara a voz, com um gole da "velhíssima"... E ouvimos, no silêncio do domingo campestre, na tarde tépida, no calor amigo de uma refeição partilhada e "toda feita por nós", fados e baladas do Bettencourt e do Menano, cantigas da Beira, tão cheias de montanha e de Mãe, tão sentidas da saudade inicial das nossas vidas... Chegam, mais tarde, umas novidades: lembranças do Alberto, que dá, no saxofone, umas notas para os outros, nas cordas, dedilharem um acompanhamento... Lembra-se de tudo, ninguém sabe donde lhe vem a inspiração, será sempre do gosto da poesia... Hoje, trouxe-nos um vilancico do século XVI, de Juan de Timoneda, cujo mote glosou, em jeito "renascenço-malandrista", mas cheio de graça e ternura: «Pues el tiempo seme passa / Madre mía, en buena fé, / «sola yo no dormiré. / Madre, ya sé quién me ama / Y quien servirme desea, / que no soy tuerta ni fea / ni mala para en la cama... / Qué me falta para dama? // No soy negra ni mulata / para no tener amores, / mochacha como las flores, / hermosa como la plata. / Duerma sola la beata, / que tiene causa porqué: / sola yo no dormiré!». Mas,logo a seguir,mudou de tom e ritmo e contrapôs,a Juan de Timoneda,um coevo, frei Luís de Léon: «Qué descansada vida / la del que huye el mundanal ruido, / y sigue la escondida / senda por donde han ido / los pocos sabios que en el mundo han sido!». É assim o nosso Alberto: ponto e contraponto, sempre contrapondo, nunca desgostando. Um gosto de conviver com as almas deste e de outros mundos, no mistério de uma ternura que foge, como os rios que regam... Escrevo-te com muitas reticências ... Quando estou com o Alberto, mesmo em memória, estou sempre à espera de um milagre que não vi mas sei que está ali. Falar com ele é sentir alguém que se entrega e espreita sem esperança de retorno, mas tão só pelo gosto de poder escutar um qualquer eco a que chamamos vida... E há ainda essa argúcia com que, ao retirar-me, me interrogou, citando um passo da "Citadelle" do Saint-Éxupéry: «Je me disais donc: "L’essentiel est que demeure quelque part ce dont on a vécu. Et les coutumes. Et la fête de famille. Et la maison des souvenirs. L’essentiel est de vivre pour le retour..." Et je me sentais menacé dans ma substance même par la fragilité des pôles lointains dont je dépendais. Je risquais de connaître un désert véritable,et commençais de comprendre un mystère qui m´avais longtemps intrigué... Tem razão: é essencial que num sítio qualquer permaneça aquilo de que vivemos. É meia-noite, tenho a janela aberta. Ouço um murmúrio de passos discretos, no terraço. E, num sussurro, a voz do Alberto que chama: "Rosinho, Rosinho, estás a dormir? Acorda, Rosinho, acorda!" E, logo depois, um rumor musical, uma música de dança: ruuu...ruuu...ruuu... E o Alberto a pedir: "Dança, Rosinho, dança!" Assomo à janela. Duma das casitas de pombos, postas por cima das gaiolas abertas aos pássaros livres, um pombo robusto, de papo inchado, sai para a "varanda", anda em roda e ruuu...ruuu...ruuu!!!" É longa esta carta de Camilo Maria que, na manhã seguinte a continua: falando de Eça de Queiroz e de Gogol, de Tintin e outras leituras do Alberto que, insone, as interrompia para ir, a meio da noite, servir-se de escabeche de pescada ou torresmos, à silenciosa cozinha!
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 13.09.13 neste blogue.
Em texto anterior, referimos o livro de memórias de Emílio Rui Vilar, recentemente publicado, denominado “Varia II - Memoriae”. E tivemos então ensejo de evocar algumas ligações ao teatro como criatividade literária e como arte de espetáculo. Hoje, precisamente, damos conta de textos também evocativos do CITAC - Centro de Estudos de Teatro da Academia de Coimbra, a que Vilar presidiu.
Ora, o que sobretudo nos interessou foi o relacionamento entre a criação do CITAC e a renovação empreendida, a nível cultural e profissional, por diversíssimas individualidades e entidades, de uma forma ou de outra ligadas à atividade teatral. E nesse aspeto, o que aqui nos propomos evocar é a ligação a projetos e atividades de expressão teatral, citadas no livro e que marcaram a cultura e a sociedade portuguesa, durante décadas. Vale pois a pena estas breves referências.
Sobretudo, evocamos o texto publicado em 2006 para comemorar os 50 anos do CITAC. Pois, para além do âmbito direto da análise em si, faz-se um conjunto de referências a iniciativas de estudo e produção teatral ligadas aos meios estudantis, mas sobretudo, a evocação da personalidades que marcaram, na época, o teatro português, fossem ou não aqui nascidos e prosseguissem ou não carreiras e ações de expressão teatral.
Nesse aspeto, tem o maior interesse a evocação de iniciativas que na época estabeleceram a ligação do teatro estudantil e universitário com a própria cultura teatral subjacente, mas também com o profissionalismo que, mesmo em Portugal, ia marcando a cultura e a sociedade...
Muito concretamente, o CITAC constitui pois o grande tema de dois textos, o primeiro datado de 1961, o segundo datado de 2006. E é então de referir que Emílio Rui Vilar presidia ao CITAC em 1961 e nessas funções inaugurou o III Ciclo de Teatro.
E mais relevante, será então o outro texto evocativo dos 50 anos do CITAC, o qual “nasce”, diz-nos o texto, em 26 de fevereiro de 1956, data de aprovação dos estatutos pela Associação Académica de Coimbra. Em 1961, Vilar era presidente da Direção.
Mas mais relevante ainda, será o outro texto evocativo do CITAC, este referente ao cinquentenário celebrado pois em 2006. E aí, Vilar evoca especificamente algumas iniciativas de teatro estudantil, como designadamente o TEUC – Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra ou o CAIT - Círculo Académico de Iniciação Teatral. Mas o que agora mais nos importa é sobretudo referir como nessas décadas o meio teatral português se ia afirmando, através de grupos estudantis ou profissionais, sem dúvida, mas sobretudo pela criatividade dramatúrgica que nessa época foi de facto relevante e que Vilar evoca com objetividade. E nesse aspeto, são referidas atividades de relevo cultural em diversos países.
Mas o que aqui ainda mais nos interessa é sobretudo evocar a estreia de textos de autores portugueses mas também o relacionamento com o teatro que na altura era feito pelas companhias profissionais e pelas companhias de estudantes. Desde logo, segundo texto evocativo do CITAC no livro de Paulo Quintela, evoque-se designadamente um Circulo Académico de Iniciação teatral – CAIT, formado por alunos do Liceu D. João III!... desse não temos grande notícia.
Mas Vilar evoca autores e teatrólogos que, enfrentando óbvias dificuldades, desenvolveram o teatro em Portugal. Mesmo quando as origens dessa renovação também se ligam a meios culturais e teatrais bem mais desenvolvidos. E nesse aspeto, são citados por exemplo o Teatro-Estúdio do Salitre de Gino Saviotti, o Círculo de Cultura Teatral e o Teatro Experimental do Porto de António Pedro. E mais tem havido, e mais haverá a dizer...
Assinala-se, neste artigo, o recente livro de Emílio Rui Vilar intitulado abrangentemente e significativamente “Varia II – 2012-2019 – Memoreae”, assim mesmo: e desde já refere que este título, no seu envolvimento clássico e de expressão latina, sintetiza e consubstancia a vasta abordagem de memórias, com uma temática que tem, além de tudo o mais, a própria variada atividade cultural/curricular do autor e a relevância que assume, pela intervenção, insista-se como autor/criador, e pelas funções desempenhadas como escritor e como dirigente de tantas entidades, todas relevantes e algumas delas primordiais na cultura e na intervenção da sociedade portuguesa.
E desde já se insista novamente que se trata então de um segundo volume de Memórias, englobando por intervenção diretiva, por colaboração destacada ou por acompanhamento também direto, todo um longo e decisivo período de atividade cultural a nível nacional, mas não só, a internacionalização é fator relevante, na análise direta/curricular, mas também na seletividade em si mesma dos temas.
E desse modo, justifica-se esta sucessiva referência por artigos diversos e muito variados no temário: ou não estivéssemos a analisar, como já se disse, um segundo volume da atividade curricular que cobre neste livro o período, já referido, de 2012-2019, mas que vem, no plano profissional direto, de 1958.
Nesse ano, recorda-se no livro, Emílio Rui Vilar, estudante na Universidade de Coimbra, surge como fundador do Círculo de Artes Plásticas da Academia de Coimbra (CITAC) e em 1960 como presidente do CITAC – Centro de Estudos de Teatro da Academia de Coimbra. Já tenho tido ocasião de referir a relevância que, durante anos, esta estrutura cultural/estudantil alcançou e manteve na cultura teatral portuguesa.
O livro traz-nos pois numerosas citações e transcrições de textos acerca do CITAC: e delas podemos expandir a análise para a arte e o espetáculo teatral em si mesmo, na abrangência complexa que o estruturam: texto, representação, comunicação com o público e sentimento/ideologia inerentes, o que abrange todos os estilos, conteúdos e formas da arte teatral.
Assim, em 1961, Emílio Rui Vilar define o palco como “esse pedaço de chão iluminado, cujas origens se perdem na penumbra do tempo, nascido talvez duma clareira de floresta quando o homem procurava, em passos de magia animista, os seus primeiros deuses e as suas primeiras verdades”. (cit. pág. 468).
Ora, independentemente do estilo subjacente, o que ressalta de facto é o origem histórica e cultural desta expressão das artes do espetáculo, desde logo envolvendo o respetivo conteúdo humanístico.
E a conciliação com a própria expressão de espetáculo, e não apenas de situação literária, surge logo a seguir: “E drama é, no mais puro significado da palavra, ação, aquilo que se passa na cena. Do palco e drama é feita a arte do teatro”.
E daqui se conclui então, entre outras características, “a elementar obrigação que nasce para o teatro de ser instrumento de educação e de a circunstancialidade em que ele vive não só o permitir, como fomentar de forma saudável”...
E o livro prossegue com mais referências ao teatro em geral, e ao CITAC em particular.
E quanto a esses, poderemos em mais artigos, novamente evocar esta iniciativa nas suas dimensões específicas sobretudo de teatro de expressão didática e de ligação universitária. E descentralizadora.
Adília Lopes acaba de publicar «Estar em Casa» (Assírio e Alvim, 2018), o terceiro volume de um conjunto autobiográfico, em que se integram «Manhã» (2015) e «Bandolim» (2016), numa série em que a originalidade e a imaginação da autora continuam a afirmar-se plenamente.
UMA CAPA FEITA DE MEMÓRIAS A capa de «Estar em Casa» é muito atraente e representa os brinquedos da infância da poetisa dispostos em cima de uma mesa em sua casa na José Estevão. De facto, a casa está muito presente não só neste livro, mas também nos volumes que o antecederam – e em toda a prolífera obra precedente. A casa é o refúgio, a proteção e a defesa. Com um finíssimo sentido de humor, inconfundível, lemos impressões aparentemente espontâneas e simples, mas profundamente pensadas, palavra por palavra… Adília Lopes tem insistido em dizer que o fascínio que sente pela obra de Sophia de Mello Breyner é exatamente originado pela busca permanente da palavra certa. E a verdade é que, ao longo da obra poética da autora, sentimos essa permanente exigência, em que a imaginação e a lucidez se ligam intimamente num objetivo determinado e exigente em que o non-sense surge de um modo cuidado como ilustração e compreensão da realidade. Ver o mundo às avessas é, assim, procurar vê-lo melhor. Como no casaco de malha, quando parecia faltar-lhe uma casa para o botão… De facto, estava mal abotoado… E lembramo-nos do gosto que José Blanc de Portugal (figura marcante da cultura, que foi tão próximo da nossa autora) tinha pelos «Disparates do Mundo» de Chesterton, que magistralmente traduziu, fácil é de fazer um paralelo com a preocupação que Adília tem em apresentar a realidade sob um ponto de vista atípico e aparentemente cómico ou até chocante, para que se compreenda melhor a singularidade do que nos procura dizer. Sobre essa marca muito especial, lembramo-nos do que disse Paula Rego, quando tomou contacto com a escrita e as recordações de Adília Lopes: «fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotetoras. Adília Lopes é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes». Não é demais dar ênfase ao extraordinário paralelismo, com as distâncias necessárias e as especificidades próprias, entre as duas, Paula e Adília.
VERSO E REVERSO DE UMA MESMA REALIDADE Não devemos esquecer o que um dia disse a autora: «Adília Lopes é água no estado gasoso e Maria José a mesma água em estado sólido». Não se trata de duas facetas diferentes de uma rica e complexa personalidade, de uma transbordante criatividade – mas de verso e reverso de uma mesma realidade, que não esconde as raízes familiares e a determinação em encontrar um caminho próprio, que a levou, naturalmente a migrar da Física para a Literatura e Linguística, numa ilustração evidente sobre as fronteiras ténues que ligam as Humanidades. Mas ficou a paixão da matemática e o sincero gosto pelo rigor científico e pela busca da incerteza. Como diria Pascoaes trata-se de se debruçar da «velhinha janela» para saber ouvir «a voz das cousas». Nunca Adília / Maria José deixou de ter uma atração especial pela Física, como antecâmara natural para uma boa compreensão do mundo da vida. E voltando a José Blanc de Portugal, nele encontramos essa ligação íntima entre o espírito científico (do geógrafo) e a paixão literária, a demonstrar que as humanidades são abrangentes, não albergando duas (ou várias) culturas distantes e separadas. «A literatura continua a ser para mim uma coisa muito séria». A água é a mesma esteja no estado gasoso ou no estado sólido. Daí a importância do conselho de Sebastião e Silva para a “utilização do Compêndio de Matemática” - «adotar um critério de escolha que elimine exercícios supérfluos e exercícios estapafúrdios». E que significa isso? Exatamente, compreender que o real quotidiano é bem mais simples e suscetível de clareza do que julgamos à primeira vista… «Gosto muito de comparações. Escrevo muitas vezes a palavra como. Como gosto muito de comer até tem mais graça». Assim mesmo – como se fosse tudo óbvio. Fernando Pessoa diz: «Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates». E Cristina Campo diz que «não tem mal nenhum uma pessoa repetir-se» Tudo depende de as ideias valerem a pena. E o que é «ser sempre criança»? É fazer da memória uma atenção permanente. «Memória / puzzle». É não esquecer. É pôr os brinquedos na mesa redonda para falarem. E é compreender a magia do escorrega – uma bela comparação para pensar e escrever.
UM MUNDO DE COMPARAÇÕES Em maré de comparações, estamos diante de um mundo inesgotável. É esse o mundo em que Adília habita, com prazer genuíno, mas também com incomodidade. «Ao fim da tarde, depois de os amigos se terem ido embora, a sombra do bule fez-me ver como sou feliz às vezes». E na casa habitam os espíritos, as lembranças, os desejos, as perplexidades – tudo. Proust encontra-se com Cesário, Agustina vai ter com Sophia, Verlaine desencontra-se com Rimbaud. Os brinquedos falam sobre a mesa. «Escrevo / esgravato / com o bico da caneta / o caderno…». No caso de «Estar em Casa» temos de entender que com ele os outros dois livros autobiográficos fazem um conjunto só. O seu valor é do conjunto, das memórias, das dúvidas, das descobertas. «Manhã» e «Bandolim» anunciam «Estar em Casa» - e os três livros ler-se-ão naturalmente em conjunto. «Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar». Se virmos bem há um fio de Ariadne que liga tudo. «Cismar tagarelar». E um médico disse que «a novidade estimula» ou ainda que «a capacidade de esquecimento das pessoas é muito grande»… Isto a propósito da senhora que era pobre e não tinha dinheiro para comprar bibelots. Por isso tinha um baú, donde ia fazendo circular os poucos bibelots que tinha, para dar a impressão de que eram muitos e novos. «Não é bom ser pobre mas é bom ter imaginação». E se agora não encontramos as «caras baratas», vislumbramos a pata firme de Lu, uma gata omnipresente que chegava aos seus dias do fim. «Acho que só os animais são capazes de amar assim tanto. Eu não sou capaz». Maria José / Adília continua a dar-nos o retrato da vida. E diz-nos ser verdade que as flores baloiçam no ar!...
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença