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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MAIS OUTRA CARTA A JOSÉ SARAMAGO

 

Meu Caro José:


...e o padre Francisco Gonçalves, como lhe competia, respondeu, Todo o saber está em Deus, Assim é, respondeu o Voador, mas o saber de Deus é como um rio de água que vai correndo para o mar, é Deus a fonte, os homens o oceano, não valia a pena ter criado tanto universo se não fosse para ser assim, e a nós parece-nos impossível poder alguém dormir depois de ter dito ou  ouvido dizer coisas destas.


   
Ao escrever estas poucas linhas, mais do que as suas personagens, estaria o próprio autor inquieto. Você mesmo o confessa, meu caro José, ter-lhe-á sido difícil conciliar o sono depois de as ter pensado e redigido... A mente humana é muito sensível, por isso gosto de dizer que a expressão pensossinto me parece mais realista e acertada, e ainda mais conforme à inquietação que nos percorre e, por vezes, nos faz tremer, mesmo quando não tememos. Da ignorância diremos que é noite do espírito, escuridão, não temos medo necessariamente do que ela esconde, receamos, sim, a nossa própria incapacidade de desenhar as coisas e de, tão temerariamente quanto possível, as nomearmos. Noutro passo do seu Memorial, o José Saramago também se interroga sobre o significado de só Deus, o Sem Nome, saber o nome de tudo e todos, deixando-nos a nós, humanos, o labirinto que vamos semeando de invenções. Não ficou escrito assim, nem por esta ordem, mas assim veio habitar o meu pensarsentir.


   Aliás, a resposta do padre Francisco Gonçalves acima transcrita resulta de interpelação feita pelo padre Bartolomeu Lourenço, como significativamente o José conta no Memorial : Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal, padre Francisco Gonçalves, isto dissera o padre Bartolomeu Lourenço antes de recolher ao seu quarto...


   
Tenho para comigo que a nossa humana inquietação brota duma qualquer mista consciência de perplexidade (ou, talvez, humilhação revolta) e de curiosidade (pertinaz, teimosa, ousada) - e, ao pensá-la assim, estou sentindo outra iluminação, um encanto novo no conto genético da tentação do fruto proibido da árvore do conhecimento. Será esse o paradoxo da condição humana, ou descoberta da nossa contingência na própria ânsia do cumprimento de uma promessa inicial e fundadora da nossa própria humanidade? Terão Adão e Eva errado por desejarem conhecer a verdade? Tal desejo não seria, afinal, já parte própria deles mesmo? Ou serão os erros cometidos condição necessária do conhecimento do bem e do mal?


   
No Memorial, eis o que diz padre Bartolomeu a Domenico Scarlatti: ... é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente que conhecer os erros. E praticá-los, não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro...


... Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta.


 
Ou talvez fosse só Pilatos cético, pois Jesus, Deus que era, não só se manteve calado durante todo o processo, como quiçá entendia que não chegara a hora de revelar um vislumbre sequer da verdade ontológica que só a Deus pertence... A cada um de nós cabe a tarefa de procurar a verdade possível de encontrar, e só o amor posto nesse trabalho nos trará o perdão que o ter-se amado consegue. E bem diz, meu caro Saramago: Procura cada qual, por seu próprio caminho, a graça,  seja ela o que for, uma simples paisagem com algum céu por cima, uma hora do dia ou da noite, duas árvores, três se forem as de Rembrandt, um murmúrio, sem sabermos se com isto se fecha o caminho ou finalmente se abre, e para onde, para outra paisagem, ou hora, ou árvore, ou murmúrio, veja-se este padre que anda a tirar de si um Deus e a pôr outro, mal sabendo que proveito haverá na troca, e, se proveito houver, quem dele finalmente aproveitará, veja-se este músico que outra música que esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos, para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada Nona...


   
Ao Deus sem nome - e talvez por isso mesmo - deram os humanos muitos nomes. Ao Deus desconhecido inventaram histórias e preceitos, de forma a torná-lo por vários gostos reconhecível. Mas há um - cujo nome está acima de qualquer nome - que nos envia o seu Primogénito a ensinar-nos o Santo Nome: PAI. E nós assim dizemos: Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu nome... Veja bem, meu caro José Saramago, como, por este caminho, me vou despindo de orfandade, e pensossinto que religiosa ou religioso é todo o ser humano que, dia a dia, sai de si para ir em busca do Pai...


Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 25.04.21 neste blogue.

E OUTRA AINDA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José Saramago:


   ...meu pai mal pode andar, acho que  lhe estão a nascer raízes nos pés, ou é o coração à procura de terra para descansar... diz Baltasar Sete Sóis, no Memorial do Convento,  quando, sob o efeito da saudade do desaparecido padre Bartolomeu e duns púcaros de vinho a mais, a sua mente oscila entre o aparente disparate de tal pensamento - que, todavia lhe inspira, a si, meu caro Saramago, essa frase que imagina a morte tão humana e tão bonita - e a confusão que as ideias sobre Deus geram em cabeças fragilizadas. Cito: ...Deus não tem a mão esquerda porque é à sua direita que senta os seus eleitos, e uma vez que os condenados vão para o inferno, à esquerda de Deus não vem a ficar ninguém, ora, se não fica lá ninguém, para que quereria Deus a mão esquerda, se a mão esquerda não serve, quer dizer que não existe, a minha mão serve porque não existe, é só a diferença, Talvez à esquerda de Deus esteja outro deus, talvez Deus esteja sentado à direita doutro deus, talvez Deus seja só um eleito doutro deus, talvez sejamos todos deuses sentados, donde é que estas coisas me vêm à cabeça é que eu não sei, disse Manuel Milho, e Baltasar rematou, Então sou eu o último da fila, à minha esquerda é que não se pode sentar ninguém, comigo acaba-se o mundo, donde vêm tais coisas à cabeça destes rústicos, analfabetos todos, menos João Anes, que tem algumas letras, é que nós não sabemos.


   
Venho saboreando a sua frase, tão humana e tão bonita: meu pai mal pode andar, acho que lhe estão a nascer raízes nos pés, ou é o coração à procura de terra para descansar.  Tantas vezes eu mesmo propriamente me sinto assim... tantas quantas me surpreendo a pensarsentir que um homem é árvore, nascida para crescer, dar sombra e fruto, e morrer de pé, num abraço ao chão que lhe sustentou a vida. Depois do abate, poderão queimar-me para dar calor e luz ainda, sem pretensões, apenas porque, para tal, possa ter algum préstimo. Nada me pertenceu ou pertence, só eu pertenci e pertencerei sempre a esse devir de que Deus é dono, e a que chamamos vida por vir, universo inteiro. 


   Nem aos filhos de Zebedeu Jesus garantiu lugares de privilégio no Reino do Pai, nem Baltasar sabe se, sentado no último lugar da fila, será ele o primeiro a cair pela esquerda, ou quando o mundo for acabar. Da mão esquerda de Deus, da sua utilidade e desígnios, tanto nada sabem os sábios humanos (incluindo os que se enaltecem de títulos sacerdotais) como João Anes ou qualquer dos seus analfabetos companheiros etilizados. Por mim, apenas ouso tentar adivinhar que, com mão esquerda ou sem ela, Deus terá decidido que o seu segredo só pode ser guardado no coração de cada humano de boa vontade.


    E ainda arrisco dizer que o José Saramago não discordará totalmente de mim, sobretudo se lhe ocorrer que, por me encontrar ainda do lado de cá da contemplação do mistério da vida e da morte, nesta idade e condição, também poderei sentir-me como quando era menino pequenino e carente de tudo, impotente ansiando por que uma inefável ternura tenha misericórdia de mim.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

MAIS OUTRA CARTA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José:


...e o padre Francisco Gonçalves, como lhe competia, respondeu, Todo o saber está em Deus, Assim é, respondeu o Voador, mas o saber de Deus é como um rio de água que vai correndo para o mar, é Deus a fonte, os homens o oceano, não valia a pena ter criado tanto universo se não fosse para ser assim, e a nós parece-nos impossível poder alguém dormir depois de ter dito ou  ouvido dizer coisas destas.


   
Ao escrever estas poucas linhas, mais do que as suas personagens, estaria o próprio autor inquieto. Você mesmo o confessa, meu caro José, ter-lhe-á sido difícil conciliar o sono depois de as ter pensado e redigido... A mente humana é muito sensível, por isso gosto de dizer que a expressão pensossinto me parece mais realista e acertada, e ainda mais conforme à inquietação que nos percorre e, por vezes, nos faz tremer, mesmo quando não tememos. Da ignorância diremos que é noite do espírito, escuridão, não temos medo necessariamente do que ela esconde, receamos, sim, a nossa própria incapacidade de desenhar as coisas e de, tão temerariamente quanto possível, as nomearmos. Noutro passo do seu Memorial, o José Saramago também se interroga sobre o significado de só Deus, o Sem Nome, saber o nome de tudo e todos, deixando-nos a nós, humanos, o labirinto que vamos semeando de invenções. Não ficou escrito assim, nem por esta ordem, mas assim veio habitar o meu pensarsentir.


   Aliás, a resposta do padre Francisco Gonçalves acima transcrita resulta de interpelação feita pelo padre Bartolomeu Lourenço, como significativamente o José conta no Memorial : Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isto para sabermos que homem era nem que água corria, a água que correu no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal, padre Francisco Gonçalves, isto dissera o padre Bartolomeu Lourenço antes de recolher ao seu quarto...


   
Tenho para comigo que a nossa humana inquietação brota duma qualquer mista consciência de perplexidade (ou, talvez, humilhação revolta) e de curiosidade (pertinaz, teimosa, ousada) - e, ao pensá-la assim, estou sentindo outra iluminação, um encanto novo no conto genético da tentação do fruto proibido da árvore do conhecimento. Será esse o paradoxo da condição humana, ou descoberta da nossa contingência na própria ânsia do cumprimento de uma promessa inicial e fundadora da nossa própria humanidade? Terão Adão e Eva errado por desejarem conhecer a verdade? Tal desejo não seria, afinal, já parte própria deles mesmo? Ou serão os erros cometidos condição necessária do conhecimento do bem e do mal?


   
No Memorial, eis o que diz padre Bartolomeu a Domenico Scarlatti: ... é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente que conhecer os erros. E praticá-los, não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro...


... Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta.


 
Ou talvez fosse só Pilatos cético, pois Jesus, Deus que era, não só se manteve calado durante todo o processo, como quiçá entendia que não chegara a hora de revelar um vislumbre sequer da verdade ontológica que só a Deus pertence... A cada um de nós cabe a tarefa de procurar a verdade possível de encontrar, e só o amor posto nesse trabalho nos trará o perdão que o ter-se amado consegue. E bem diz, meu caro Saramago: Procura cada qual, por seu próprio caminho, a graça,  seja ela o que for, uma simples paisagem com algum céu por cima, uma hora do dia ou da noite, duas árvores, três se forem as de Rembrandt, um murmúrio, sem sabermos se com isto se fecha o caminho ou finalmente se abre, e para onde, para outra paisagem, ou hora, ou árvore, ou murmúrio, veja-se este padre que anda a tirar de si um Deus e a pôr outro, mal sabendo que proveito haverá na troca, e, se proveito houver, quem dele finalmente aproveitará, veja-se este músico que outra música que esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos, para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada Nona...


   
Ao Deus sem nome - e talvez por isso mesmo - deram os humanos muitos nomes. Ao Deus desconhecido inventaram histórias e preceitos, de forma a torná-lo por vários gostos reconhecível. Mas há um - cujo nome está acima de qualquer nome - que nos envia o seu Primogénito a ensinar-nos o Santo Nome: PAI. E nós assim dizemos: Pai nosso, que estás no Céu, santificado seja o teu nome... Veja bem, meu caro José Saramago, como, por este caminho, me vou despindo de orfandade, e pensossinto que religiosa ou religioso é todo o ser humano que, dia a dia, sai de si para ir em busca do Pai...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTA NOVA A JOSÉ SARAMAGO


Meu Caro José Saramago:


   Nas minhas Cartas a José Saramago, todas publicadas, há uns anos (2013/14), no blogue do Centro Nacional de Cultura, nunca me debrucei sobre o Memorial do Convento, obra que sempre me falou menos do que outros escritos seus, com que dialoguei naqueles tempos... Dias atrás, todavia, resolvi pegar nesse livro de 1982, em edição donde não se apagara ainda a dedicatória do autor a Isabel da Nóbrega: À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova. Bonito dito, quase bíblico, deveria ter sido guardado pela mesma verdade que tão sinceramente o inspirou.


   Mas deixo o desabafo sozinho, ou talvez não. Acompanho-o de uma mais longa citação do próprio romance, quando o padre Bartolomeu Lourenço, em trabalhos de passarola, diz ao mutilado soldado Baltasar, conhecido pelo cognome de Sete-Sóis:


   «...maneta é Deus, e fez o universo».


   Baltasar recuou assustado, persignou-se rapidamente, como que para não dar tempo ao diabo de concluir as suas obras, Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mão esquerda. 


   
Se estivesse agora a escrever-lhe, José Saramago, mais uma das minhas cartas intemporais (se fossem suas, seriam póstumas), dir-lhe-ia que, de Deus, nada sabemos, nem de direita, nem de esquerda. Todavia, por muitas e variadas imagens do Inferno que o engenho humano construa, nenhuma me parece tão verosímil como esta: à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, o nada, a ausência. Isso mesmo: o Inferno é a ausência de Deus. Tão somente bastante. É evidente que outras representações, como as de sofrimento eterno ou de infinita tortura, tantas vezes resultantes de uma intenção de castigo vindicativo, nascem de visões antropomórficas do ser divino: os humanos - uns mais, outros menos - são propensos a gostar do espetáculo, ainda que só imaginário, do padecer alheio. Vá lá a gente perceber porquê, somos tentados a ser assim, até a própria Igreja - Santa Madre Igreja - consentiu e fomentou o Santo Ofício, a Santa Inquisição, o Santo Temor de Deus, do Rex Tremendae Majestatis, Senhor absoluto do Dies Irae. Parte importante da pedagogia cristã e do que se entende por Magistério da Igreja se fez incutindo o medo, o horror às profundas do Inferno, este surgindo como lugar de sevícias infligidas aos humanos pecadores por diabos a soldo do Deus castigador... A abundante iconografia é esclarecedora da insistência sadomasoquista nas misérias diabólicas do Inferno.


   Ora, com exceção de alguns poucos episódios (como a expulsão dos vendilhões do templo), os evangelhos não recorrem ao castigo como indispensável coadjutor da conduta moral, antes apelam à vocação libertadora da conversão para abrir a via de ultrapassagem do pecado - pecado que é a nossa teimosa paixão de nos confinarmos nos nossos próprios limites - e nos levar à descoberta da vida nova. Vai em paz e não voltes a pecar. Curiosamente, os pecados referidos, tais são conforme a lei mosaica, Jesus não cria qualquer catálogo de pecados novos (como a igreja clerical mais tarde o fará, remoendo sobretudo, e misoginamente, práticas sexuais), apenas ensina que o bem e o mal se cozinham no pensarsentir dos seres humanos, e é de cada um de nós que, bem ou mal, têm voz de saída. O único mandamento novo é o do amor fraterno, para que a nossa alegria seja completa. E quando nos chama a atenção para a escuta dos sinais dos tempos, e de Deus, conta a parábola do rico que desprezava o pobre Lázaro em vida, e que ,depois de morto, sufocado de sede no Inferno, pediu autorização para poder avisar seu irmão de que não deveria proceder como ele próprio, pois correria risco de castigo grande... É-lhe negado tal alívio : quem não escuta em vida a voz de Deus, nas vozes tantas que a vida nos traz, não saberá arrepender-se depois de morto. Nosso é só o tempo desta vida.  


   Ao afirmá-lo ocorre-me outro passo do Memorial, páginas adiante do já citado: Não é verdade que a mão esquerda não faça falta. Se Deus pode viver sem ela, é porque é Deus, um homem precisa das duas mãos, uma mão lava a outra, as duas lavam o rosto... Leio-o metaforicamente, Saramago toca aí em algo que as nossas ânsias de representação antropomórfica de Deus - teimamos em recriá-Lo à nossa imagem e semelhança - nos escondem: o Deus Vivo, não tem morte nem qualquer limitação, é simplesmente o Quem é, o Ser por si, alheio ao espaço e ao tempo. Nós, pelo contrário, somos contingentes, medimos o espaço que nos é alocado, contamos a vida e o tempo, organizamos a nossa mente e suas visões (é isso a cultura), moralizamos e legiferamos também, para podermos contar e julgar os atos. Agitamo-nos muito, condenamos ou "canonizamos", com feroz sofreguidão, sob o chicote da impaciente pressa do tempo. Esquecemos Deus, para quem um dia é igual a mil, e mais ainda nos esquecemos de que nada sabemos dele, nem da sua presença no coração de cada um de nós, cujo íntimo só Ele conhece. Estar à mão esquerda de Deus, poderá ser uma queda no esquecimento ou na nulidade, mas também significar que o Rex Tremendae Majestatis se esqueceu do castigo, pelo menos desde o dia em que o descobrimos na pessoa incarnada do Filho que nos ensinou como tudo é perdoado aos que muito amarem. Deus não tem mão esquerda. Mas nós temos inquietação. Nem o José, enquanto por cá andou, a conseguiu sempre disfarçar.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

30 BOAS RAZÕES PARA PORTUGAL

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(XXVIII) MAFRA E JOSÉ SARAMAGO

 

Prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa, José Saramago (1922-2010) tornou-se uma referência essencial dos estudiosos e cultores das literaturas da nossa língua comum, encontrando na sua obra razões fortes para desejarem conhecer melhor Portugal.

«Memorial do Convento» foi publicado em 1982 e constituiu um sucesso literário, pelo tratamento do tema, pela vivacidade e ritmo da escrita, pelo domínio da língua portuguesa. É o retrato do rei D. João V e da sua magnificência, num tempo dominado pela riqueza do ouro do Brasil no reino, numa rica convergência de elementos contraditórios, bem evidenciados na complexidade das personagens escolhidas. Para Saramago a personagem fundamental, em torno da qual tudo se desenvolve, é o magnífico Convento de Mafra (com órgãos únicos no mundo, carrilhões insuperáveis, livraria extraordinária, património invejável). «Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento de Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido»...

A riqueza do ouro, transportado em arcas, contrasta com os vários operários anónimos que contribuem para a magnífica construção. E entre eles, está Baltasar Mateus, que tem a alcunha de “Sete-Sóis” porque vive atraído pela luz, tendo perdido a mão esquerda na guerra da sucessão de Espanha. Baltazar ama Blimunda Jesus, chamada de “Sete-Luas”, porque consegue ver no escuro e por dentro das pessoas. Esta, ao ter esta capacidade, consegue recolher as vontades de cada um, como nuvens abertas ou nuvens fechadas. Os dois conhecem um clérigo visionário, o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, “o voador”, marcado pelo espírito científico e pela heterodoxia religiosa, que inicia a construção de um aparelho voador, a Passarola, com o objetivo de subir em direção ao Sol, em lugares a que só Cristo e os santos tinham chegado. A concretização deste sonho torna-se uma obsessão e leva-o a viajar primeiro para a Holanda, em busca do segredo, que permitiria a Passarola voar, e depois para Coimbra, onde se doutorou. É ele, aliás, quem realiza o batismo e a comunhão de Sete-Luas e Sete-Sóis: «o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou: Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um». Após um dos voos da Passarola, Bartolomeu foge para Espanha, perseguido pela Inquisição, enquanto Blimunda e Baltasar tratam de esconder o aparelho entre os arbustos da serra e de fazer a sua manutenção. Não podemos esquecer a figura do músico Domenico Scarlatti que, a convite do Padre Bartolomeu, participa no projeto da Passarola, como testemunha silenciosa. Então une-se a ciência e a arte, como reveladoras de um espírito de inovação e de abertura ao progresso. Scarlatti instala secretamente o seu cravo na Quinta do Duque de Aveiro, onde toca a sua música e inspira a construção da Passarola, símbolo dos novos tempos das luzes. E quando Blimunda fica com a estranha doença do esgotamento na recolha das vontades, a arte do músico provoca uma cura completa. Um dia, Baltasar ficou preso à passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que a impediam de se elevar nos céus rebentaram, tendo sido levado pelos ares. A aeronave então despenha-se e Baltasar é capturado pela Inquisição, acusado de bruxaria. Blimunda recolhe, no epílogo do romance, a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à fogueira. E quem é Baltazar? Um homem simples, rudimentar, resignado, terno e fiel, que ama Blimunda, a qual compensa a mão que lhe falta, mas que lhe permite compreender para além do que vê, aceitando o que a vida lhe oferece. E no final é Blimunda quem sobrevive, ela que aprendera tudo o que sabia ainda no seio de sua mãe, onde estivera de olhos abertos.

Se o Memorial é referência essencial, importa lembrar a sombra de Fernando Pessoa e de Ricardo Reis, médico e latinista, nascido em 19 de setembro de 1887. É um homem solitário, que gosta de almoçar em pequenos restaurantes. E pede aos empregados que ponham o lugar à sua frente para um companheiro imaginário. E imagina histórias sobre hóspedes que frequentam o hotel. Cria familiaridade com o gerente, Senhor Salvador, e com Pimenta que lhe carrega as malas, mas também com Lídia, a empregada que lhe limpa o quarto, onde lhe serve o pequeno-almoço. Mas não deixa de chamar a atenção da polícia política, que se interroga sobre a verdadeira razão da sua vinda do Brasil. As notícias que lê todos os dias nos jornais desenham uma pátria pacífica, um oásis num mundo agitado. É “onde o mar acaba e a terra principia, chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias” … Reis chega no dia 29 de dezembro de 1935. Os periódicos, em geral, pintam um retrato idílico do país em que Salazar faz o seu caminho. No fim do interrogatório, a que não escapa, na PVDE sente à saída da António Maria Cardoso um fedor a cebola que exalava Victor, o inevitável informador. E o certo é que noutros momentos esse cheiro característico rondava por perto. Ricardo Reis encontra-se com País que deixara anos antes por fidelidade às suas ideias monárquicas… Mas, com Fernando Pessoa, com a revolta dos marinheiros de setembro de 1936 em fundo, vai desvanecer-se no alto de Santa Catarina sem que alguém desse por isso… “O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui onde o mar se acabou e a terra espera”...

GOM

 


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TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

Memorial do Convento.jpg

 

"MEMORIAL DO CONVENTO" de JOSÉ SARAMAGO (XXII)

 

«Memorial do Convento» de José Saramago (1922-2010) foi publicado em 1982 e constituiu um grande sucesso literário, pelo tratamento do tema, pela vivacidade e ritmo da escrita, pelo domínio da língua portuguesa.

É o retrato do rei D. João V e da sua magnificência, num tempo dominado pela riqueza do ouro do Brasil no reino, numa rica convergência de elementos contraditórios, bem evidenciados na complexidade das personagens escolhidas.

Se para Victor Hugo o protagonista de “Notre-Dame de Paris” foi a própria catedral, também para Saramago a personagem fundamental, em torno da qual tudo se desenvolve o romance, é o Convento de Mafra. «Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento de Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido»...

A riqueza do ouro, transportado em arcas, contrasta com os vários operários anónimos que contribuem para a magnífica construção. E entre eles, está Baltasar Mateus, que tem a alcunha de “Sete-Sóis” porque vive atraído pela luz, tendo perdido a mão esquerda na guerra da sucessão de Espanha. Baltazar ama Blimunda Jesus, chamada de “Sete-Luas”, porque consegue ver no escuro e por dentro das pessoas. Esta, ao ter esta capacidade, consegue recolher as vontades de cada um, como nuvens abertas ou nuvens fechadas. Os dois conhecem um clérigo visionário, o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, “o voador”, marcado pelo espírito científico e pela heterodoxia religiosa, que inicia a construção de um aparelho voador, a Passarola, com o objetivo de subir em direção ao Sol, em lugares a que só Cristo e os santos tinham chegado. A concretização deste sonho torna-se uma obsessão e leva-o a viajar primeiro para a Holanda, em busca do segredo, que permitiria a Passarola voar, e depois para Coimbra, onde se doutorou. É ele, aliás, quem realiza o batismo e a comunhão de Sete-Luas e Sete-Sóis: «o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro, e declarou: Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um». Após um dos voos da Passarola, Bartolomeu foge para Espanha, perseguido pela Inquisição, enquanto Blimunda e Baltasar tratam de esconder o aparelho entre os arbustos da serra e de fazer a sua manutenção.

Não podemos esquecer a figura do grande músico Domenico Scarlatti que, a convite do Padre Bartolomeu, participa no projeto da Passarola, como testemunha silenciosa. Então une-se a ciência e a arte, como reveladoras de um espírito de inovação, de respeito e de abertura ao progresso. Scarlatti instala secretamente o seu cravo na Quinta do Duque de Aveiro, onde toca a sua música e inspira a construção da Passarola, símbolo da modernidade e dos novos tempos das luzes. E quando Blimunda fica com a estranha doença do esgotamento na recolha das vontades, a arte do músico provoca uma cura completa. Um dia, Baltasar ficou preso à passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que a impediam de se elevar nos céus rebentaram, tendo sido levado pelos ares. A aeronave então despenha-se e Baltasar é capturado pela Inquisição, acusado de bruxaria. Blimunda recolhe, no epílogo do romance, a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à fogueira.

E quem é Baltazar? Um homem simples, rudimentar, resignado, terno e fiel, que ama Blimunda, a qual compensa a mão que lhe falta, mas que lhe permite compreender para além do que vê, aceitando o que a vida lhe oferece. E no final é Blimunda quem sobrevive, ela que aprendera tudo o que sabia ainda no seio de sua mãe, onde estivera de olhos abertos.

 

Agostinho de Morais