Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM

Minha Princesa de Além:

 

   Passámos juntos os teus quase seis anos derradeiros, tempos simultaneamente difíceis e estranhamente gratificantes, antes do teu salto para a outra margem. O teu voo final, cuja ocorrência ia parecendo cada vez mais iminente e fatal, era por isso tão previsível como imprevisível, pois o nosso sentimento - essa persistência no ser a que também chamamos alma - sempre fortalece a crença íntima num qualquer milagre. E eu, que fiquei por cá, de pés na terra, esgotado pela luta, desiludido da esperança, não dei logo por mim, quedei-me perplexo, robô talvez, ao qual fosse faltando a bateria. Escrevi recentemente a um amigo um bilhete breve, que quiçá nos ajude a me perceber melhor. Diz assim:

   J'essaye de me refaire une jeunesse... Mas é difícil, sobretudo porque estes últimos anos - e alguns meses mais - mudaram tanto a minha circunstância que o próprio íntimo de mim se tornou um estrangeiro. Nem sei se mudei também ou não - muito, pouco ou nada - mas reconheço-me mal, sinto-me um peregrino deambulatório, sem percurso orientado. Afinal, é facto que as balizas que me guiavam dia após dia já hoje me estão fora do alcance da vista,dos braços que com ansiedade abro e estendo  Invisíveis, insensíveis, desenganam-me o pensarsentir, fogem-me, talvez, do coração cansado...

   Terei de renascer, de ser outro eu em mim.
   E vou tentando.

   Ao fim de quase cinquenta e seis anos de vida comum, mais de meio século de coabitação em partes tão diferentes deste nosso mundo, torna-se impossível pensarsentirmo-nos indivíduos apenas, na medida em que, afinal, a nossa circunstância, por muito que lhe tivessem mudado os tempos e os modos, foi robustecendo, em cada um de nós a fundamental referência a uma comunhão. Muitas vezes te escrevi, Princesa de mim, que a morte de um amigo, de alguém muito próximo é sempre necessariamente, pouco ou muito, a nossa. Assim nos vamos, os que cá continuamos, paulatinamente morrendo. Recordo os desabafos de Michel de Montaigne aquando da morte do seu amigo de La Boétie, ou a revolta do Duque de Gandia pela morte da Imperatriz Isabel de Portugal, revolta que o virou jesuíta e fez santo canonizado (São Francisco Borja): nunca mais darei ao tempo a minha vida, nunca mais servirei senhor que possa morrer, como canta Sophia... E nessa sua versão de uma meditação do Duque de Gandia, a poeta intui o carácter secreto da nossa perplexidade perante a morte: amei-te em verdade e transparência, e já nem sequer me resta a tua ausência... Na verdade, a própria ausência é temporal, e também ela se vá embora com a morte que a leva para o reino da eternidade que ainda não atingimos e nem sequer conseguimos bem imaginar. 

   E é essa ausência da mesma ausência que me leva agora a pensar nessa ressurreição de mim, do meu ser corporal com o seu peso de tanto pensarsentir, ainda sempre tão limitado, como graça estranha ao mundo dos nossos horizontes, mas bênção profética a libertar-nos desse absurdo fatal que seria a ausência da própria ausência do amor possível, negação desse impulso inicial que nos trouxe vida e a alimenta.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

Clássico 29.jpg

 

«ENSAIOS» DE MICHEL DE MONTAIGNE (XXIX)

 

Na célebre Torre de Montaigne, quando subimos à sala onde o pensador escrevia, olhando os campos de Bordéus, há uma pergunta fundamental, a que Michel Eyquem, Senhor de Montaigne (1533-1592), procurou responder, ao longo da vida: “Que sais-je?”. É essa a pergunta a que não podemos fugir – e que tem de estar presente em toda a nossa vida. Se quisermos simplificar, podemos dizer que Montaigne foi um dos escritores que inaugurou a modernidade do pensamento, ao refletir na primeira pessoa, como “eu”.

Francis Bacon (1561-1626) seguiu-lhe as passadas, e pode dizer-se que consolidou o “ensaísmo”, criado por Montaigne. António Sérgio, Sílvio Lima e Eduardo Lourenço seguem esse caminho fecundo, no caso português. E, falando de Bordéus, temos de lembrar, num rico roteiro intelectual, Charles de Secondat, Senhor de Montesquieu (1689-1755), autêntico criador da democracia moderna. Edgar Morin não se tem cansado de recordar a afirmação de Montaigne de que mais vale uma cabeça bem feita do que uma cabeça bem cheia, por isso o mestre bordalês criticou a educação livresca e formalista, propondo uma educação orientada para a experiência e para a ação (o “saber de experiências feito” que Duarte Pacheco Pereira defendeu ainda no século XV). Mais do que uma instrução livresca, importaria ligar as pessoas à vida vivida e aos seus assuntos urgentes, sem prejuízo da compreensão do tempo e da reflexão, bases do sentido crítico. A educação visa o julgamento crítico, a atenção e o cuidado.

Pelo lado da Mãe, Montaigne descendia de judeus portugueses. O latim foi quase a sua língua materna, uma vez que seu Pai lhe deu como tutor um alemão que apenas falava latim com o discípulo – e que despertou no jovem um espírito vigilante, atento e metódico, aberto à novidade. Estudou no célebre Colégio de Guienne, cujo diretor foi André de Gouveia. Formou-se em Direito e foi magistrado em Périgueux e Bordéus, onde se tornou amigo de Étienne de La Boétie (1530-1563), o autor do “Discurso sobre a Servição Voluntária”. É inesquecível o que Montaigne disse de seu amigo, quando ele morreu: “parce que c’était lui, parce que c’était moi”… E pode dizer-se que o conhecimento que temos da obra de La Boétie, deve-se ao empenhamento de Montaigne na sua divulgação. Viajou pela Suíça, Alemanha e Itália durante dois anos (1580-1581) e elaborou um diário de viagem, publicado no século XVIII. Apesar de dividir o seu tempo entre a administração da herança de seu pai, o desempenho de funções públicas na Câmara de Bordéus e a procura de condições de paz para os conflitos religiosos, nunca abandonou a reflexão pessoal, que constitui um testemunho fundamental para a compreensão do seu tempo.

Os “Ensaios” abrangem três volumes, os dois primeiros publicados em 1580 e 1588, compreendendo este o terceiro volume. Em 1595, publica-se uma edição póstuma destes três livros com novos acrescentos. São autorretratos introspetivos de um homem, mais do que de um filósofo. É a singularidade que Montaigne procura. É assim um pensador sobre a humanidade, sobre a sua diversidade e complexidade – seguindo o curso livre do seu pensamento e das circunstâncias que o rodeiam. Nota-se a sua formação clássica e o conhecimento das condições reais da vida política e económica. As máximas e reflexões dos autores clássicos vão-no ajudando na reflexão e na compreensão de si próprio e dos outros. Sem cair no relativismo, mas compreendendo a importância da subjetividade, Montaigne, através do ensaísmo, não assume um sistema, mas um método, segundo o qual a verdade absoluta deixa de estar ao alcance do homem, sendo doravante, possível tão-somente uma verdade por aproximações. O ensaio significa exatamente a possibilidade de considerar o sentido ético, o carácter e a dignidade como intimamente ligados à ligação entre a singularidade e o sentido comunitário. E Montaigne considera que o mundo inteiro está em constante movimento, mesmo quando há permanência, que significa a suspensão momentânea do movimento. E assim o próprio conceito de “ser” traduz-se na inconstância e numa pluralidade de estados e comportamentos. A sucessão dos ciclos, a falta de continuidade, as dúvidas de coerência, correspondem, assim, à própria complexidade humana.

 

 Agostinho de Morais

 

 

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - I

 

Minha Princesa de mim:

 

    Entre os escritos demasiados e múltiplos que fui guardando - e ocasionalmente destruindo - vão sempre ficando uns rascunhos e alguns textos arquivados daquele meu projeto, em português, de uma "História Dual da Igreja Católica" (de que já te falei) e dum livro, já acabado, em francês: Éloge de la Jouissance. Tem este duas partes: Les Menus Plaisirs e La Grandeur de la Joie. A primeira estende-se por três capítulos (Les Innocents; Les Malicieux; Les Inesperés), em que vou "moralizando" acontecimentos e feitos da vida quotidiana, desde conversas e tertúlias de amigos, almoços e vinhos bem saboreados, feitiços namoradeiros, aos prazeres do campo e do mar, da leitura, das artes e da música, ou desde momentos de gozada malícia ou gratuito humor às surpresas que nos oferecem gestos próprios ou alheios de generosidade e de carinho humano. Já a parte segunda, talvez um pouco mística, contempla a alegria como trindade: La Joie de vivre la Vie, dans l´Amour et la Mort.     

 

   Finalmente, um apêndice discorre sobre a lembrança e o esquecimento: La Joie du Souvenir et l´Artifice de l´Oubli.  Muito do que ali está dito em francês já terá sido escrito no português familiar e chão das cartas que, por tantos anos, te fui escrevendo. Não direi que esta, agora, seja o último segredo ao ouvido da tua leitura, mas faz certamente parte das minhas derradeiras confidências, alimentadas por pedaços do meu pensarsentir, colhidos no tal acervo de escritos meus que te nomeio acima, sem sequer nele aí os localizar, pois, muito provavelmente, logo de seguida irei destruir os respetivos textos originais. O que doravante te vou enviando poderá, assim, ser ou não novidade para ti, mas nada terá de construído. Apenas será um último aceno de memórias ou lembranças que apenas vou revendo porque delas me despeço. Dizendo-lhes, como os antigos no fim de um auto teatral: acta est fabula!


   Longe de mim qualquer intento de recordar ou registar algo para quaisquer galerias, antes pelo contrário pretendo apenas  -  sempre guardadas as evidentes distâncias intelectuais, e não só - emular o retrato de Michel de Montaigne, que Stefan Zweig pinta assim: Poucos homens se bateram com mais dedicação e empenho para preservar o seu eu mais íntimo, a sua essência, de qualquer mistura, de qualquer atentado vindo da espuma perturbadora e malévola da agitação dos tempos, e poucos terão conseguido salvar do tempo, e para sempre, o que eles viveram, o seu eu mais profundo. 

 

   Montaigne travou tal combate para salvaguardar a sua liberdade interior, e esse terá sido, talvez, o mais consciente e tenaz jamais travado por um espírito humano, sem ter em si nada de patético nem de heroico.

 

   Seria violência a Montaigne força-lo a pertencer ao grupo de poetas e pensadores que verbalmente combateram pela «liberdade da Humanidade». Ele nada tem dos discursos inflamados nem das explosões de Schiller ou Lord Byron, nem tão pouco da causticidade de Voltaire. Fá-lo-ia sorrir a ideia de querer transferir para outros seres humanos, e ainda mais para as massas, algo de tão pessoal como a liberdade interior. Detestou, com toda a alma, os reformadores profissionais do mundo, os teóricos, os mercadores de ideologias. Já sabia bem demais quanto custa o aturado trabalho de manter consigo, em si mesmo, a independência interior...

 

   ... Assim, não tem Montaigne uma biografia. Não se confronta seja com quem for, nunca se destacou, pois nunca quis contar com audiências nem aplausos.

 

   Eu tampouco, sem escamotear esse abismo que me separa dos merecimentos de Michel de Montaigne, que não tenho, nem sequer sonhei ter. A minha única obsessão, e contínua perseguição interior do dom da vida, foi a busca da independência da minha inquirição, como modo de ir percorrendo e discorrendo o tempo que me foi dado, no ato de um esforço alegre, na liberdade de filho de Deus. Sou visceralmente alérgico a vendilhões de dogmas e a gurus de tudo o que as culturas gripadas vendem como sendo política, económica, social, literária ou culturalmente correto. Por outro lado, fui sempre tentado a considerar que não é necessariamente necessário (pleonasmo voluntário e significante) ser-se muito inteligente, nem erudito, nem eloquente, para se ser culto ou, muito simplesmente, um pensador dedicado à procura de entendimento das coisas (pormenores de tudo) e, muito humanamente, de mim, de mim e da minha circunstância, de mim como o de mim que sou eu, de mim como o eu que cada um dos outros, enquanto ele mesmo, também é, em tudo o que a condição humana nos faz comuns. Também aí busco a inabalável raiz da minha fé católica: nessa comunhão com Aquele que é tudo em todos. Eis a grandeza, a raiz mística da Alegria.

 

   Muitas vezes te falei da fidelidade como coluna vertebral da pessoa moral, mas também te referi sempre que ela não é, não pode nem deve ser, um facto consumado: o ecossistema do ser moral não é um tempo parado, estagnado, como se a vida, movimento divino, pudesse parar. O que, por paradoxal que pareça, tampouco significa que o tempo moral seja uma continuidade, já que, como escreve Laure Barillas, interpretando o seu mestre Vladimir Jankélévitch, ele tem uma temporalidade própria, a do Súbito e da conversão: O tempo da moral só pode ser o da descontinuidade, feita de instantes que se opõem à mediação olvidável da duração. Afirma o próprio Jankélévitch no seu Le Pardon (Éditions Montaigne, 1967): A vida moral não é um processo, mas um drama, um drama pontuado por decisões custosas, O progresso moral só avança pelo propositado esforço de uma decisão intermitente e espasmódica e na tensão dum incansável recomeço; o querer, incessantemente querendo e voltando a querer, em caso algum conta com a inércia do movimento adquirido, nem nunca vive das rendas do mérito acumulado. E é assim que o progresso moral recomeça sempre do zero. Não há outra continuidade ética além dessa esgotante continuação do reimpulso e da retoma; o progresso moral é, portanto, mais laboriosamente continuado do que espontaneamente contínuo, assemelha-se mais a recriar do que a crescer.

 

   Neste contexto ganha o seu sentido aquela expressão do mesmo filósofo no seu Traité des Vertus (Flammarion, 1983-86): O que está feito está por fazer. E assim entendemos como, no tempo descontínuo da moral, tudo fica sempre por fazer, por ser retomado: Ce qui est humain ce n´est pas l´oubli mais la mémoire, la vigilance et la fidélité (em La Presse Nouvelle Hebdomadaire, 15 de junho de 1979).

 

   Tenho trazido comigo, como regra de oração e de vida, que manter-me humano e procurar ser mais cristão passa, necessariamente, pela identidade da minha memória, da minha vigília, da minha fidelidade a ser.

 

   Noutras cartas, Princesa de mim, talvez te traga reflexões, no tempo atual, sobre a diferença entre crime e pecado, esquecimento e perdão. E sobre a face dogmática e canónica da igreja clerical, dessa que lamentavelmente teima em permanecer como poderio temporal - ao ponto de até pretender que Jesus Cristo assim como tal a instituiu - e vai fechando os olhos e os ouvidos aos ensinamentos e profecias do Evangelho do Mestre. E, ainda infelizmente, reforçando a razão desse conceito de pecado (que tantas vezes te tenho referido): O pecado é a paixão dos nossos limites. Tal clerical instituição ganharia em reconhecer-se naquela máxima de Antoine de Saint-Exupéry que nos ensina que o ser humano se conhece pela medida do obstáculo que supera. A tal questão voltaremos, minha Princesa de mim. Até lá, deixa-me só, uma vez mais, recordar o "meu" Ortega, que tanto me fez refletir no ser e na circunstância (eu sou eu e a minha circunstância), para te dizer (ideia central da minha "História Dual da Igreja") que a igreja clerical, o instituto canónico e os seus funcionários, é a igreja circunstancial, que se foi arranjando com tempos e modos da história... A Igreja Católica, a assembleia universal dos fiéis que, na sua múltipla diversidade, constituem o corpo místico de Cristo - essa, sim, é a Igreja mesmo. E talvez tenha chegado a hora dos senhores clérigos começarem a pensar na Igreja, não como sua empresa ou seu estado político, algo que simplesmente dirijam ou em que "sacramentalmente" mandem, mas como povo em si mesmo sacerdotal. O grande desafio à Igreja hodierna é procurar pôr direito o muito que tem arrastado às avessas. Já agora, lembrados de Francisco de Assis, que viveu com tão grande alegria o exemplo evangélico de Jesus, que nunca quis fundar um organismo hierárquico, nem mostrou qualquer condescendência pelos que pretendiam ter primazia no Reino de Deus...

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Michel de Montaigne (capa do livro de Stefan Zweig)

 


     Minha Princesa de mim:
 

   Michel de Montaigne começa assim o capítulo II do livro III ( Du Repentir) dos seus Essais: Outros formam o homem, eu recito-o e represento um em particular, bem mal formado; o qual, se tivesse de o moldar de novo, eu faria mesmo bem diferente do que é; mas já está feito. Ora os traços da minha pintura não se extraviam, ainda que se mudem e diversifiquem. O mundo não passa de um baloiço perene. Nele, todas as coisas baloiçam sem cessar, a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egipto. De balanço público e do delas. Mesmo a constância mais não é do que um balouçar mais lânguido. Não consigo segurar o meu objeto: lá vai ele, turvo e vacilante, de natural embriaguez. Apanho-o nesse momento, tal como está, no instante em que trato dele. Não pinto o ser, pinto a passagem; não a passagem de uma a outra idade ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas dia a dia, minuto a minuto.  Tenho de ajustar a minha história a cada hora. Poderia entretanto mudar, não só de fortuna, mas também de intenção: é um rol de diversos e mutáveis acidentes, e de imaginações irresolutas, por vezes até contrárias. Ou porque eu seja outro eu-mesmo, ou porque agarre nos assuntos por outras circunstâncias e considerações. Tanto é assim, que bem me contradigo na aventura, mas, como dizia Demades, de modo algum contradigo a verdade. Se a minha alma pudesse ter pé, não me ensaiaria, resolver-me-ia: ela está sempre em aprendizagem, e em prova... Penso, Princesa de mim, que este trecho diz bem o porquê do título da obra: Ensaios. E diz muito sobre o que eu chamaria realismo crítico de Montaigne, em vez de ceticismo ou relativismo. Já te disse como pensossinto que interrogar não é afirmar a dúvida como princípio, meio e fim, condição fatal do conhecimento; antes, pelo contrário, é acreditar e querer que a visão seja possível. Mas só a cegueira não vê que todo o mundo é composto de mudança, que tudo é relativo, posto que nada vemos nem conhecemos sem ser em relação. As nossas próprias categorias mentais básicas - o tempo e o espaço - são relatividade. Eis a nossa humana condição: só conhecemos de perspetiva, jamais possuímos o fruto da árvore da sabedoria. A verdade ontológica só a Deus pertence, e de Deus-mesmo nada sabemos ainda; por isso tantas vezes me repito o dito de São Paulo aos hebreus: a fé é a substância das coisas que devemos esperar. E gosto de pensarsentir que a fé é a íntima revelação da esperança, que se transmite pelo amor, nossa única certeza aquém e além da morte. Com a idade - quero dizer com o envelhecimento de um corpo que vai perdendo capacidades, alertas e amenidades - faço por me entender melhor, isto é, tenho menos respostas e mais interrogações, quiçá pela imensa paz de pensarsentir este poder de perguntar sem inúteis insistências, pois me vou aproximando da luz que fui perseguindo. Da surpresa final. E surpresa será, finalmente, mais para mim, talvez, do que para tantos outros que vejo, à minha volta, em luta - ora dolorosa, ora inconsciente - com o esquecimento ou a estranheza de tudo. Esses já terão passado pelo purgatório, ou vão atravessando essa inquietação do incógnito, onde já nem dogmas são referências, porque tudo parece mentira.

 

   É certo que, com a velhice, vamos mirrando, ficando mais pequeninos. Assim como o filho pródigo, minha Princesa de mim, quando regressa à casa de seu pai. Acabamos, afinal, por ser mais humildes. Já não agitamos, com soberba, verdades nossas, tampouco insistimos em impô-las. Percebemos que só o quanto tanto que soubemos amar terá dado algum sentido às nossas vidas, e que Deus exalta os humildes só por darem sem reclamar. O reconhecimento de mim, pensossinto, Princesa, só poderá ser isso mesmo, essa descoberta de uma qualquer misteriosa capacidade de dádiva do que sou, tenho e posso, sem pretensões. Aceitar-me é a forma inicial da humildade. Gosto de reler este passo de Montaigne, que traduzo: Quanto a mim, posso desejar, em geral, ser outro; posso condenar e desgostar-me da minha forma universal, e suplicar a Deus que me reforme inteiramente e dê desculpa à minha natural fraqueza. Mas a tanto não posso chamar arrependimento, nem sequer, parece-me, desgosto por não ser nem Anjo nem Catão. Os meus atos são regulados e conformes ao que sou, e à minha condição. Não consigo melhor; e o arrependimento não toca propriamente as coisas que não dependem da nossa fortaleza: talvez o lamento o faça. Imagino infinitas naturezas mais altas e disciplinadas do que a minha; mas todavia não corrijo as minhas faculdades, posto que, nem o meu braço, nem o meu espírito, se tornarão mais vigorosos só por eu conceber outro que o seja. Se imaginá-lo, e desejar um comportamento mais nobre do que o nosso, produzisse o arrependimento do nosso agir, teríamos de nos arrepender das nossas mais inocentes ações... Chegado à idade da pequenez, que, no final da vida, é o momento da última conversão - esse abandono do filho pródigo ao Pai - lembro-me de que a Boa Nova nos fala de misericórdia e não de sacrifício, e de que tudo o que Jesus disse à mulher adúltera foi, tão só: também eu não te condeno, vai e não voltes a pecar...
 

     Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira