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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS


De 12 a 18 de agosto de 2024


Angel Marcos de Dios é autor de “Unamuno – Textos Fundamentais sobre Portugal”, conjunto de reflexões fundamentais para a compreensão da importância da nossa cultura.


UM ENCONTRO NATURAL
“Que terá este Portugal – penso – para assim me atrair? Que terá esta terra, por fora curta e branda, por dentro atormentada e trágica? Não sei; mas quanto mais volto, mais desejo voltar. Cheguei a acreditar que estes extremos ocidentais deram-se as mãos aos extremos orientais, como a Índia, e chegaram ao triste cerne da sabedoria, à compreensão do carácter vão de todo o esforço, parecendo prevalecer a lúgubre sabedoria do Eclesiastes”. Era Miguel de Unamuno quem o afirmava, como um dos mais entusiastas do encontro ibérico. Como diz o meu amigo Angel Marcos de Dios, o maior lusófilo espanhol de todos os tempos, permite-nos compreender as nossas diferenças e complementaridades (Cf. Unamuno – Textos Fundamentales sobre Portugal – Luso-Española de Ediciones, 2016). A língua, a história, a cultura…, paralelamente, encaminham-nos no sentido de um destino comum. E assim, o salmantino diz que desde que começou a estudar o português – a linguagem, e sobretudo, desde de que começou a viajar por Portugal interessou-lhe a ligação cultural mútua de ambos os povos, o castelhano e o português. E dava dois exemplos, o da História da Civilização Ibérica de Oliveira Martins, que Menendez y Pelayo enaltecia como de leitura obrigatória para os espanhóis e a obra de D. Francisco Manuel de Melo sobre a guerra da Catalunha, enquanto clássico em castelhano e clássico em português como demonstração de um destino de convergências, deixando claro que as diferenças e as preocupações comuns servem para caracterizar as virtualidades de uma vocação de humanismo universalista.


“Para conhecer uma pátria, um povo, disse ainda Unamuno, não basta conhecer a sua alma – ou o que designamos como sua alma – o que fazem e dizem os seus homens; é mester conhecer também o seu corpo, o seu solo, a sua terra”. A paisagem é fundamental para compreender a essência de uma cultura. E lembramos com entusiasmo os dias passados nas faldas do Marão com o amigo Teixeira de Pascoaes. “Passei em sua casa, em casa de seus pais e irmãos, toda a bondade e carinho hospitaleiros, dos dias mais aprazíveis, mais gratos e mais fecundos da minha vida, saí dali cheio de gratidão e de gozo e nada ainda lhe disse (…). Mas quero que saiba, que saibam pais e família, que saibam todas as pessoas que me fizeram gostar da paz e encanto desse lugar que não fez passar em vão o reflexo das águas do Tâmega no meu coração”. Aliás, confirmaria tudo isto a Maragall – “Aonde anseio regressar depressa é a Portugal. Que dias passei em Amarante! Lugar delicioso!” Só estas palavras dizem tudo.


OBRA DE AMOR E DE CULTURA
“É uma obra de amor e de cultura fazer que Portugal e Espanha se conheçam mutuamente. Porque conhecer-se é amar-se. O conhecimento engendra amor e o amor conhecimento. São no fundo uma só e a mesma coisa vista por fora e por dentro” – diz noutra carta a Pascoaes. As amizades com Guerra Junqueiro e Manuel Laranjeira são fundamentais para compreendermos Unamuno. É uma atitude pessimista que prevalece, mas o Cristo português de Junqueiro é mais expressivo do que o castelhano, estando disponível para se juntar à festa, em lugar de manter a atitude de sofrimento, do mesmo modo o mestre de Salamanca se admira pela multiplicação em Portugal de nichos invocando as almas do purgatório. Há, assim, uma solidariedade entre tempos e gerações diferentes. É o paradoxo do português que permite a permanente coexistência da bela dimensão lírica e da história trágico-marítima, tudo isto sem esquecer o carácter contraditório e mofeiro do escárnio e maldizer. E então no mundo literário, Camilo Castelo Branco surge autenticamente ibérico: Falando do romancista de “Amor de Perdição”, Unamuno confessava que Junqueiro dizia que a alma tormentosa e apaixonada do romancista era mais espanhola que portuguesa, e que muitas vezes se assemelha o cariz fúnebre de Quevedo. Nele o romance parecia a novela de paixão amorosa das mais intensas e profundas que se tinham produzido na Península em livros representativos da alma ibérica.


QUE SOLIDARIEDADE?
Por outro lado, e regressando a Pascoaes, dizia com um misto de ironia: “Depois de Cervantes, é o seu génio o que tem mais força de expressão ibérica e mais poder de absorção. Se houvesse muitos escritores de Espanha com idênticas qualidades seria tal coisa um perigo para a nossa independência”. O S. Paulo de Teixeira de Pascoaes é um exemplo especial. Nas diferenças, há pontos de convergência. E uma lista de génios em diálogo surge com naturalidade a alimentar o Sentimento Trágico da Vida – Antero, Herculano, Junqueiro, soror Mariana, João de Deus, D. Sebastião, por contraponto a Dom Quixote, Santa Teresa ou Goya, este ungido por Dostoievski. E pode dizer-se que ninguém melhor define a essência do património cultural do que Unamuno: “Quando para os vivos apenas se construíram cabanas de palha ou de terra, que as intempéries destruíram, já se levantavam túmulos aos mortos, e a pedra encontrou emprego nos sepulcros, antes de servir nas habitações dos vivos. As casa dos mortos – as dos mortos e não as dos vivos – venceram os séculos pela sua solidez; não as estalagens, mas as moradas permanentes”.


Por um momento, lembramo-nos do gabinete de Miguel de Unamuno na Universidade de Salamanca e recordamos os dias agitados do fim da sua vida, ameaçado pelo grito tremendo: “Abajo la Inteligencia! Viva la Muerte!”. E silenciosamente numa fila discreta de fotografias, como heróis num altar, encontramos seis portugueses, entre a expressão estoica e a proclamação da vida e da sabedoria, da poesia e da história: Herculano, Oliveira Martins, Antero de Quental, João de Deus, Camilo Castelo Branco e Soares dos Reis. E Angel Marcos de Dios, como cidadão de pensamento: recorda-nos o que o mestre deixou dito na pedra: porque a Europa necessita da dimensão moral ibérica, plural, legitimada pela liberdade, pela vontade, pela justiça, pela dignidade e pela democracia. “Muitas coisas e as mais íntimas da minha Espanha não cabe compreendê-las – nem consenti-las – se não se conhece Portugal, que está unido ao resto da Península Ibérica em parte pelos seus espinhaços rugosos, mas sobretudo pelos grandes rios que enlaçam ambos os países atravessando-os”.


Guilherme d'Oliveira Martins

A VIDA DOS LIVROS

  
De 5 a 11 de fevereiro de 2024


Miguel de Unamuno foi porventura o pensador espanhol que mais intensamente procurou compreender a cultura portuguesa. O texto que se segue demonstra isso mesmo.

 


QUE SÉCULO DE OURO?
«Sem negar o valor de alguns dos clássicos portugueses, devo dizer que, em meu entender, a literatura portuguesa, que merece ler-se, data do século passado, do período romântico, da época de Almeida Garrett e de Herculano. E creio que a sua verdadeira idade de ouro é a atual». Assim se exprime Unamuno sobre a literatura portuguesa, em texto datado de Salamanca, de março de 1907. De que falava o pensador? Naturalmente, das repercussões poderosas na geração de 1870, de que falámos há dias, não escondendo profunda admiração pelos seus protagonistas – Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão. Os três primeiros já não faziam parte do número dos vivos quando o mestre escreveu, mas os dois últimos ainda estavam presentes. E o mestre salmantino invoca uma célebre conversa com Guerra Junqueiro: «O Cristo espanhol, dizia-me uma vez Guerra Junqueiro, está sempre no seu papel trágico: nunca baixa da cruz, onde, cadavérico, estende os seus braços e alarga as suas pernas cobertas de sangue; o Cristo português anda por costas e prados e montanhas, com a gente do povo, diverte-se com eles, merenda, e de vez em quando por pouco, para desempenhar o seu papel, regressa à cruz. (…) Aqui há o culto da morte; só que em vez de ser trágico, como em Espanha, é elegíaco e triste»… E ao dizer isto, o mestre sente encantamento. É verdade que não deixa de reconhecer, por comparação, as virtudes da literatura catalã, mas nas letras portuguesas vê um sinal da originalidade e o selo de uma identidade viva. E considera João de Deus o mais português dos nossos líricos do momento, corroborando Junqueiro esta consideração sentida. Mas Antero de Quental é outra coisa – comparável aos maiores na filosofia e na sensibilidade poética. «Em Espanha não temos nada que se assemelhe. Campoamor é a seu lado um falsificador do ceticismo. Quental foi uma das almas mais atormentadas pela sede de infinito e pela fome de eternidade. Há sonetos seus que viverão enquanto viva a memória das gentes, porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas dos homens atormentados pelo olhar da esfinge». António Nobre apresenta o tom de um desespero resignado ou de resignação desesperada, que aparece noutros passos da literatura portuguesa.


CHORAR AMARGO, RIR BURLESCO
Quer o chorar amargo, quer o rir burlesco fazem parte da mesma atitude. E vem à baila Eça de Queiroz e as suas implacáveis sátiras que são tão dolorosas e exprimem queixume, como a mais triste das elegias. Os exemplos são significativos – A Ilustre Casa da Ramires e A Cidade e as Serras, mas também a corrosiva e supercrítica Correspondência de Fradique Mendes. Compreenda-se que é o autor do Sentimento Trágico da Vida a falar, apaixonado pelo caráter complexo do português. Há uma identidade construída num cadinho com ingredientes inesgotáveis. Mas Camilo Castelo Branco, com “alma tormentosa e apaixonada”, teria sido mais espanhol que português, com sinais de Quevedo. E Ramalho fala de proximidade com a dinastia dos Amadises e dos Palmeirins, numa participação evidente nas raízes do génio peninsular. E Oliveira Martins – o mais artista e penetrante dos historiadores - na História da Civilização Ibérica faz a análise desse génio, ilustrando-o com acontecimentos e com a demonstração das evidentes diferenças e complementaridades. Mas, para que não restem dúvidas, fica ainda para Unamuno a visão profética da língua portuguesa (e das línguas ibéricas) nas novas culturas da América do Sul, com evidentes e imprevisíveis potencialidades. Mas o pessimismo português impressiona o autor de Agonia do Cristianismo – que sobre Oliveira Martins diz que “o português é constitucionalmente pessimista”. O regicídio de 1908 deixa-o atónito, procurando compreender tão violenta expressão da ira do manso. «Neste povo doce, pacífico, sofrido e resignado, mas cheio de paixão por dentro, os crimes de sangue são raros, muito raros, raríssimos; mas entre os que ocorrem costuma havê-los muito mais atrozes e violentos que aqui em Espanha, onde por desgraça são mais frequentes tais crimes do que ali». Na literatura há manifestações contraditórias – para Herculano, a quem faltaria veia de artista, a literatura era uma missão e não um diletantismo, contudo para Garrett as coisas seriam diferentes já que usou a arte para descobrir o fundo do palpitar das entranhas portuguesas. “Que ouviu? Um coro de aflições tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança vaga, etérea na imaginação de uma jovem tísica e no desvario de um escudeiro sebastianista”. Eça cultivou a arte por ser estrangeirado…


ACREDITAR OU NÃO… 
Miguel de Unamuno julga ver nestes diversos sinais que “estes elegíacos pessimistas não acreditavam na pátria”. E lê as últimas páginas de Portugal Contemporâneo. "Submissos até quando se rebelam”. O país dormiria e sonhava – seria dado despertar ainda a tempo? Parece haver contradição entre considerar uma idade de ouro literária e artística e verificar a persistência de uma passividade endémica. Mas é na superação dessa contradição que os homens da Geração de 1870 e da Vida Nova vão poder encontrar forças para superar o atraso. “Não foi por acaso que Herculano falou do plácido sepulcro rodeado de esperança?”. E Unamuno recorda então o culto muito português das almas do Purgatório, lembrando-nos do mar como um enorme lugar de naufrágios e de mortes. Não por acaso, a nossa criação literária alia o lirismo e a história trágico-marítima. E invoca a figura do “Desterrado” de Soares dos Reis, como um autêntico símbolo, daquilo que o escritor não sabe explicar sobre o que o atraía Portugal. “Que terá esta terra, por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Eu não sei; mas quanto mais lá vou, mais desejo voltar. (…) Parece que por ali pousa a lúgubre sabedoria do Eclesiastes. Num povo triste, tristíssimo, as pessoas divertem-se, sem dúvida, mas divertem-se como se dissessem: comamos e bebamos, que amanhã morreremos”. Marcado pela morte do amigo Manuel Laranjeira e recordando o fim trágico de Antero, de Camilo e de Soares dos Reis, Miguel de Unamuno fala de um país suicida. “Este é um povo não só sentimental, mas também apaixonado, ou melhor dito, antes apaixonado do que sentimental. A paixão trá-lo à vida, e a mesma paixão leva-o à morte”… Cultor de paradoxos, o pensador espanhol não ilude a contradição, agravada pelas circunstâncias – o século de ouro é ditado pela forte consciência existencial e crítica. E a inércia do vulgo é contrariada pela determinação do mundo das ideias, tornando a ação arte, a arte vontade e a vontade determinação...


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

TRINTA CLÁSSICOS DAS LETRAS

Miguel de Unamuno.jpg

 

“O SENTIMENTO TRÁGICO DA VIDA” DE MIGUEL DE UNAMUNO (XXIV)

 

“Del Sentimento Trágico de la Vida en los hombres y en los pueblos” de Miguel de Unamuno (1864-1936) é uma obra-prima do pensamento europeu. A obra foi terminada em 1912 e foi recebida com muitas incompreensões. Hoje apresenta toda a sua força e pujança, ao lado das de Marco Aurélio, Kierkegaard ou Antero de Quental, na interrogação sobre a existência humana.

Não será a consciência uma enfermidade? – pergunta o autor. E qual o ponto de partida pessoal e afetivo de toda a filosofia e de toda a religião? Afinal, não podemos conceber-nos como não existência. Daí a sede de imortalidade inerente à existência pessoal, como pulsão vital dificilmente racionalizável. Assim se entendem as limitações da teologia, incapaz, muitas vezes, de responder às interrogações essenciais. O que une a fé do carvoeiro à de Teresa de Ávila? A cada passo os diversos racionalismos procuram respostas demonstráveis, para as angústias vitais, mas as soluções depressa se transformam em dissoluções.

Demonstram-se os limites? Justificam-se? Paradoxalmente, sendo limites, deixam sempre campo para o que não pode demonstrar-se. Hume ou Kant disseram-no com meridiana clareza. Leia-se o “Parménides” de Platão – “cada um existe e não existe, ele e o outro existem e não existem, aparecem e não aparecem em relação a si mesmos e uns em relação aos outros”. E Miguel de Unamuno acrescenta: “Todo o vital é irracional, e todo o racional é antivital, porque a razão é essencialmente cética”. O racional é relacional e a razão limita-se tantas vezes a relacionar elementos irracionais…

Sente-se intensamente o passo laborioso do pensador, interrogando-se, jogando com os elementos disponíveis, em busca da verdade, como realidade fugidia e contraditória. E encontra o amor, a dor e a compaixão - amor filho do engano e pai do desengano, consolo no desconsolo, único remédio contra a morte… E sente-se no amor que a carne tem espírito. “Queremos não só salvar-nos, mas salvar o mundo do nada. E para isto Deus. Tal é a sua finalidade sentida”. A fé inicial é informe, vaga, caótica, potencial. É a esperança que a orienta - “se a fé é a substância da esperança, esta é por sua vez a forma da fé”. O Deus cordial leva-nos à vida, à dor e à compaixão - e à caridade como impulso para libertar o próximo da dor. Aí está o cerne da espiritualidade. Escândalo, agonia (no sentido grego de luta) e loucura - “e é loucura grande querer penetrar no mistério além-túmulo; loucura querer sobrepor as nossas imaginações, cheias de contradição íntima, por cima do que uma sã razão nos dita”. E o salmantino cita o nosso Antero: “Disse um homem de Estado inglês (…), que era também por certo um perspicaz observador e um filósofo, Horácio Walpole, que a vida é uma tragédia para os que sentem e uma comédia para os que pensam. Pois bem: se temos de acabar tragicamente, nós, portugueses, que sentimos, talvez prefiramos esse destino terrível, mas nobre, ao outro que nos está reservado, e num futuro não muito remoto, a Inglaterra que pensa e calcula, porventura tenha o destino de acabar miserável e comicamente”. E a personagem de Quixote, símbolo da humanidade contraditória, vem à baila – “a ciência não dá a D. Quixote o que este lhe pede. ‘Que não lhe peça isso – dir-se-á; que não se resigne, que aceite a vida e a verdade como são’. Mas ele não as aceita, e pede sinais, sobre que faz Sancho, que está a seu lado. E não é que D. Quixote não compreenda quem assim lhe fala, ele que procura resignar-se e aceitar a vida e a verdade racionais. Não; as suas necessidades efetivas são maiores. Pedantearia? Quem sabe!...” E assim continuamos a clamar no deserto, segundo o sentimento trágico da vida…

Unamuno sentiu-o na pele à beira da morte, como ressentimento trágico, no paraninfo de Salamanca, a 12 de outubro de 1936, perante o grito de Millán Astray “Abajo la Inteligencia!; Viva la muerte!”. “Às vezes ficar calado equivale a mentir, porque o silêncio pode interpretar-se como aquiescência (…) Este é o templo da inteligência. E eu sou o sumo-sacerdote. Estais a profanar o seu recinto sagrado. Vencereis, porque vos sobra a força bruta. Mas não convencereis. Para convencer há que persuadir. E para persuadir seria necessário algo que vos falta: razão e direito na luta. Parece-me inútil pedir-vos que penseis na Espanha…”

 

Agostinho de Morais

 

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

 

14. SUICÍDIO E PESSIMISMO NACIONAL EM MANUEL LARANJEIRA (III)  

 

Suicídios célebres foram usados por Laranjeira para interpretar o país e o seu pessimismo. Em 1889, Soares dos Reis; em 1890, Camilo de Castelo Branco; em 1891, Antero de Quental.

 

Embora no primeiro artigo de Pessimismo Nacional os não tenha como um sintoma de condenação da raça portuguesa, em missiva a Miguel de Unamuno, de 28.10.1908, é mais apocalíptico, ao escrever:    

 

“Amigo: 
Não imagina o prazer que senti ao saber que V., espírito superior, andava a compor um livro sobre as coisas da minha terra, desta minha tão desgraçada terra de Portugal.  Desgraçada - é a palavra.
   

 

O pessimismo suicida de Antero de Quental, de Soares dos Reis, de Camilo, mesmo do próprio Alexandre Herculano (que se suicidou pelo isolamento como os monges) não são flores negras e artificiais de decadentismo literário. Essas estranhas figuras de trágica desesperação irrompem espontaneamente, como árvores envenenadas, do seio da Terra Portuguesa. São nossas: são portuguesas: pagaram por todos: expiaram as desgraças de todos nós. Dir-se-ia que foi toda uma raça que se suicidou.

 

Em Portugal chegou-se a este princípio de filosofia desesperada - o suicídio é um recurso nobre, é uma espécie de redenção moral. Neste malfadado país, tudo o que é nobre suicida-se; tudo o que é canalha triunfa”[1]         

 

Laranjeira suicidar-se-ia em 22.02.1912.

 

Ter-se-á tratado duma consequência natural do rumo que a vida portuguesa tinha tomado e da inviabilidade de mudá-lo?     

 

Centrando-nos em Laranjeira, o seu pensamento é duma leitura decadentista de apatia, desânimo, azedume, morbidez, falsa felicidade, tédio, angústia temporal e inquietação metafísica, mundo de engano e fuga em busca da “terra prometida”, deísmo e panteísmo, aceitação do suicídio como decisão pessoal e libertadora.

 

Nada era excêntrico, nem originariamente português, a Europa atravessava uma densa crise de pessimismo, o tédio dos tempos. E Laranjeira era conhecedor das ideias de Durkheim, Schopenhauer, Nordau, Hartman, Nietzche e Darwin.

 

Há aqui um pessimismo importado do exterior, adaptado internamente.

 

De alguns países tidos como mais vanguardistas e civilizados, onde também houve suicidas célebres: Gerard de Nerval (1855), Van Gogh (1890), Tchaikovski (1893), Angel Ganivet (1898), Otto Weininger (1903), Ludwig Boltzmann (1906), Paul Lafargue (1911), Kitty Melrose (1912), Peyo Yanorov (1914), Jack London (1916). E para quem queira reforçar com Mário de Sá Carneiro (1916), Florbela Espanca (1930), ou outro/s, um pretenso pendor suicida português, podem citar-se Kostas Kariotakis, Charlotte Mew (1928), Dora Carrington, George Eastman, Hart Crane, Santos-Dumont (1932), Alfonsina Storni (1938), Virginia Woolf (1941), Hemingway (1961). 

 

Inventário a que acresce Rousseau, Tolstoi ou Kafka, que se “suicidaram” pela fuga ou solidão, por analogia com o “suicídio de isolamento” (ou exílio mental) de Herculano na sugestão de Laranjeira.

 

Se assim é, não visualizamos o intrínseco pendor para a tão fadada desgraça suicidária que carateriza a nossa raça, em que teve contributo decisivo Manuel Laranjeira, influenciando Unamuno com a publicação de Portugal Povo de Suicidas, não obstante na geração do escritor espanhol ter havido um suicídio célebre, o de Ganivet, em paralelo e por confronto com a do seu parceiro português, cuja vítima foi o próprio amigo de Espinho.   

 

Excluída a hipótese do suicídio ser diretamente proporcional ao maior ou menor grau de desenvolvimento dos povos, porquê este desespero suicidário de Laranjeira? 

 

Para Jorge de Sena, morreu ou suicidou-se de indigestão do seu “moi haissable”[2], realçando uma sua face: “Em Espinho, no Verão, o desporto que incansavelmente praticava, pela praia, casino, teatro e cinema, era o flirt. Entre Maio de 1908 e Março de 1909, Laranjeira deitou as suas vistas sobre 18 mulheres, antigas amantes, prostitutas, possíveis amantes. Teve então como companheira uma “criatura do povo”, com quem passeava em público para escandalizar as classes médias. Não queria que as suas relações amorosas fossem mais que a satisfação da “carne indisciplinada”. Mas eram. (…) - “e essa alegria assusta-me”.[3]     

 

Teve dois filhos, à data ilegítimos, de relações com uma criada e uma “criatura do povo”, ambos morrendo cedo. De figura desalinhada, abusava do café e tabaco, tinha insónias e passava noites a escrever, após boémias e tertúlias, frequentando os “ex-libris” da vila. Não surpreende ser, para muitos, de um egoísmo mortal, exercendo a Medicina sem grande vocação, não se libertando do estado de espírito melancólico via ocupação quotidiana. Outros apelidavam-no de “médico dos pobres”, salientando uma vertente solidária. A sua vida foi ainda um convívio perene com a ameaça da morte, pelo rol de doenças e perturbações de que sofria, de modo ocasional ou crónico: sífilis, tísica, ataxia, asmas e febres, doença hepática, neurose, histeria, neurastenia, psicastenia, crises nervosas, um sentidor maior que um pensador.

 

Amargurado pelos seus males físicos e fealdade, tendo a vida como uma comédia cruel e dolorosa numa visão naturalista aplicada à sua vivência, conjugada com a apologia da morte voluntária, defendida por Nietszche, que o influenciou, a sua opção final indicia um suicídio egoístico causado por uma insuficiência de integração na sociedade, em que a doença e o decadentismo grandemente importado foram determinantes, e nem sequer a tão ansiada República o salvou, suicidando-se quase 17 meses após a sua implantação, anulando-lhe qualquer perspetiva messiânica. 

 

Conclui-se ser premente combater uma tendência para ir buscar sistematicamente o que nos apouca, criando estereótipos caricatos, perspetivas redutoras que tombam por confronto com o Outro, sabido que no tempo dos “Vencidos da Vida” nos visitou uma estrangeira, a princesa Rattazzi, que se cruzou com outros portugueses e escreveu que “Les portugais sont toujours gais”[4], decerto menos cultos, mas que tinham de si próprios uma imagem mais segura e alegre.  

  

19.02.2019   
Joaquim Miguel de Morgado Patrício
   

 

 

[1] Obra cit., pp. 5 e 6, incluindo duas cartas de Laranjeira a Miguel de Unamuno sobre o mesmo tema. 
[2] Em O Poeta é um Fingidor, Colecção Ensaios, Lisboa., Edições Ática, 1960, p. 126.
[3] Rui Ramos, Portugal Naturalista, p. 319, VI Volume da História de Portugal, direção de José Mattoso, Círculo de Leitoras, 1994. 
[4] Maria Rattazzi, Portugal de Relance, Antígona, Lisboa, 1997.

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 20 a 26 de novembro de 2017.

 

«Por Tierras de Portugal y de España» de Miguel de Unamuno (1911) é uma obra fundamental, uma vez que permite, através de uma visão de fora sobre Portugal, compreender melhor a nossa realidade ontem e hoje.

 

QUE SÉCULO DE OURO?
«Sem negar o valor de alguns dos clássicos portugueses, devo dizer que, em meu entender, a literatura portuguesa, que merece ler-se, data do século passado, do período romântico, da época de Almeida Garrett e de Herculano. E creio que a sua verdadeira idade de ouro é a atual». Assim se exprime Unamuno sobre a literatura portuguesa, em texto datado de Salamanca, de março de 1907. De que fala o pensador? Naturalmente, das repercussões poderosas na geração de 1870, não escondendo profunda admiração pelos seus protagonistas – Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão. Os três primeiros já não faziam parte do número dos vivos, mas os dois últimos ainda estavam presentes. E o mestre salmantino invoca uma célebre conversa com Junqueiro: «O Cristo espanhol, dizia-me uma vez Guerra Junqueiro, está sempre no seu papel trágico: nunca baixa da cruz, onde, cadavérico, estende os seus braços e alarga as suas pernas cobertas de sangue; o Cristo português anda por costas e prados e montanhas, com a gente do povo, diverte-se com eles, merenda, e de vez em quando por pouco, para desempenhar o seu papel, regressa à cruz. (…) Aqui há o culto da morte; só que em vez de ser trágico, como em Espanha, é elegíaco e triste»… E ao dizer isto, o mestre sente encantamento. É verdade que não deixa de reconhecer, por comparação, as virtudes da literatura catalã, mas nas letras portuguesas vê um sinal da originalidade e o selo de uma identidade viva. E considera João de Deus o mais português dos nossos líricos do momento, corroborando Junqueiro esta consideração sentida. Mas Antero de Quental é outra coisa – comparável aos maiores na filosofia e na sensibilidade poética. «Em Espanha não temos nada que se assemelhe. Campoamor é a seu lado um falsificador do ceticismo. Quental foi uma das almas mais atormentadas pela sede de infinito e pela fome de eternidade. Há sonetos seus que viverão enquanto viva a memória das gentes, porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas dos homens atormentados pelo olhar da esfinge». António Nobre apresenta o tom de um desespero resignado ou de resignação desesperada, que aparece noutros passos da literatura portuguesa.

 

CHORAR AMARGO, RIR BURLESCO
Quer o chorar amargo, quer o rir burlesco fazem parte da mesma atitude. E vem à baila Eça de Queiroz e as suas implacáveis sátiras que são tão dolorosas e exprimem queixume, como a mais triste das elegias. Os exemplos são significativos – A Ilustre Casa da Ramires e A Cidade e as Serras, mas também a corrosiva e supercrítica Correspondência de Fradique Mendes. Compreenda-se que é o autor do Sentimento Trágico da Vida a falar, apaixonado pelo caráter complexo do português. Há uma identidade construída num cadinho com ingredientes inesgotáveis. Mas Camilo Castelo Branco, com “alma tormentosa e apaixonada”, teria sido mais espanhol que português, com sinais de Quevedo. E Ramalho fala de proximidade com a dinastia dos Amadises e dos Palmeirins, numa participação evidente nas raízes do génio peninsular. E Oliveira Martins – o mais artista e penetrante dos historiadores - na História da Civilização Ibérica faz a análise desse génio, ilustrando-o com acontecimentos e com a demonstração das evidentes diferenças e complementaridades. Mas, para que não restem dúvidas, fica ainda para Unamuno a visão profética da língua portuguesa (e das línguas ibéricas) nas novas culturas da América do Sul, com evidentes e imprevisíveis potencialidades. Mas o pessimismo português impressiona o autor de Agonia do Cristianismo – que sobre Oliveira Martins diz que “o português é constitucionalmente pessimista”. O regicídio de 1908 deixa-o atónito, procurando compreender tão violenta expressão da ira do manso. «Neste povo doce, pacífico, sofrido e resignado, mas cheio de paixão por dentro, os crimes de sangue são raros, muito raros, raríssimos; mas entre os que ocorrem costuma havê-los muito mais atrozes e violentos que aqui em Espanha, onde por desgraça são mais frequentes tais crimes do que ali». Na literatura há manifestações contraditórias – para Herculano, a quem faltaria veia de artista, a literatura era uma missão e não um diletantismo, contudo para Garrett as coisas seriam diferentes já que usou a arte para descobrir o fundo do palpitar das entranhas portuguesas. “Que ouviu? Um coro de aflições tristes, uma resignação heroicamente passiva, uma esperança vaga, etérea na imaginação de uma jovem tísica e no desvario de um escudeiro sebastianista”. Eça cultivou a arte por ser estrangeirado…

 

ACREDITAR OU NÃO…
Miguel de Unamuno julga ver nestes diversos sinais que “estes elegíacos pessimistas não acreditavam na pátria”. E lê as últimas páginas de Portugal Contemporâneo. "Submissos até quando se rebelam”. O país dormiria e sonhava – seria dado despertar ainda a tempo? Parece haver contradição entre considerar uma idade de ouro literária e artística e verificar a persistência de uma passividade endémica. Mas é na superação dessa contradição que os homens da Geração de 1870 e da Vida Nova vão poder encontrar forças para superar o atraso. “Não foi por acaso que Herculano falou do plácido sepulcro rodeado de esperança?”. E Unamuno recorda então o culto muito português das almas do Purgatório, lembrando-nos do mar como um enorme lugar de naufrágios e de mortes. Não por acaso, a nossa criação literária alia o lirismo e a história trágico-marítima. E invoca a figura do “Desterrado” de Soares dos Reis, como um autêntico símbolo, daquilo que o escritor não sabe explicar sobre o que o atraía Portugal. “Que terá esta terra, por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Eu não sei; mas quanto mais lá vou, mais desejo voltar. (…) Parece que por ali pousa a lúgubre sabedoria do Eclesiastes. Num povo triste, tristíssimo, as pessoas divertem-se, sem dúvida, mas divertem-se como se dissessem: comamos e bebamos, que amanhã morreremos”. Marcado pela morte do amigo Manuel Laranjeira e recordando o fim trágico de Antero, de Camilo e de Soares dos Reis, Miguel de Unamuno fala de um país suicida. “Este é um povo não só sentimental, mas também apaixonado, ou melhor dito, antes apaixonado do que sentimental. A paixão trá-lo à vida, e a mesma paixão leva-o à morte”… Cultor de paradoxos, o pensador espanhol não ilude a contradição, agravada pelas circunstâncias – o século de ouro é ditado pela forte consciência existencial e crítica. E a inércia do vulgo é contrariada pela determinação do mundo das ideias, tornando a ação arte, a arte vontade e a vontade determinação…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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