Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
As duas principais fantasias que alimentamos acerca daquilo que com probabilidade nunca nos acontecerá são, por ordem, ser omnipotente e ser invisível. Uma fantasia não é necessariamente uma coisa irracional. Pode haver método na loucura, e pode haver boas razões para preferir certas espécies de loucura.
Do ponto de vista da racionalidade das escolhas, faz mais sentido querer ser omnipotente que querer ser invisível. A uma pessoa omnipotente não está vedado o acesso às doses mais elevadas de saúde, dinheiro e amor; e terá outros benefícios marginais apreciáveis como a locomoção no espaço, o acesso irrestrito ao chocolate, e o dom da ubiquidade; ainda mais importante, pode durar para sempre, e durar para sempre como pessoa omnipotente. E, claro está, pode ser invisível.
Parece então que a escolha entre estas duas formas de loucura é ela própria uma escolha louca. A ninguém no seu perfeito juízo ocorreria escolher ser invisível quando se pode ser invisível e muito mais coisas escolhendo simplesmente ser-se omnipotente. Qual pode então ser a justificação para querer ser-se apenas invisível?
Ocorrem-me várias razões, que talvez estejam ligadas. Uma pessoa omnipotente tem constantemente de querer fazer coisas e tomar decisões. Terá acesso irrestrito a chocolate, mas tem de querer ter acesso irrestrito a chocolate, e por isso de decidir querer ter acesso irrestrito a chocolate (mesmo que tudo se passe à velocidade da luz). Há o risco de essa constante agonia de decisões confundir o próprio e provocar consequências no mundo: fará chuva ou sol por nenhuma razão particular, e montanhas de chocolate mudarão de sítio ao arrepio das mais elementares leis da física. Como se observou há muito tempo, onde há efeitos contraditórios não pode haver exactamente omnipotência (e por essa razão Deus não pode causar efeitos contraditórios). Finalmente, uma pessoa omnipotente, por causa dos efeitos da sua omnipotência, tenderá a passar a sua vida, que no entanto pode ser eterna, como a maior parte das outras pessoas: a mostrar constantemente aos outros que existe. Mesmo que possa querer ser invisível, e por isso ser invisível, será sempre invisível de uma maneira muito visível. Não é então realmente omnipotente.
Pelo contrário, uma pessoa apenas invisível não tem que querer ser nada; as suas decisões são as normais; nenhuma montanha muda de lugar; e ninguém repara nela. Pode ter uma vida com quase todas as limitações do costume. É verdade que algumas pessoas invisíveis se introduzem em quartos de terceiros e, liberalmente à noite, em lojas de doces. Mas essas são características operacionais da imaginação humana, que não eximem quem as tem ao sentimento da culpa ou à indigestão comum. Uma pessoa invisível é simplesmente uma dessas raras pessoas que não passa a sua vida a lembrar aos outros que é uma pessoa.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
A superioridade da democracia é muitas vezes atribuída ao papel que a discussão, a participação generalizada dos interessados e o confronto de opiniões têm nela. A emoção das grandes decisões e das grandes opiniões dá-lhe muitas vezes o aspecto de um jogo divertido e interessante; e tem ainda por cima a vantagem de, ao contrário do futebol dos Aztecas, não requerer o uso de cabeças humanas. Esta ideia geral sobre a superioridade da democracia coexiste porém com uma noção generalizada, mais sombria, sobre o pouco que se pode esperar de uma discussão e o pouco que as opiniões mudam por causa do confronto de opiniões; e com a noção aparentemente oposta mas porventura ainda mais sombria de que se a participação dos interessados nas decisões fosse total os resultados seriam os melhores para todos.
Pelo contrário, uma vantagem não negligenciável da democracia parece-me antes ser a de não exigir a discussão permanente, a participação generalizada dos interessados, ou o confronto de opiniões; e de os substituir pelo voto periódico. O processo tem inúmeras virtudes. Uma das principais é a de, pelo facto de, salvo em regimes mais duvidosos, o voto não ser obrigatório, as pessoas terem a possibilidade de não votar. E essa é a principal diferença entre a democracia e as variadas formas de tirania: a participação dos interessados nas decisões não é requerida; a falta de interesse não é punida; e ninguém é excluído por não mostrar as virtudes cívicas relevantes. A baixa afluência às urnas lembra-me países que admiro e enche-me quase sempre de alegria – e a alta afluência lembra-me países que não admiro, e enche-me quase sempre de preocupação.
Esta ideia de democracia supõe uma ideia particular de política e de governação. Por exemplo, contraria a ideia de que a política e a governação sejam uma forma de entretenimento, de manipulação, ou dependam demasiado do amor dos governados; diminui a importância que nela têm os grandes desígnios, as epopeias públicas e, sobretudo, as frases memoráveis. Chama, pelo contrário, a atenção para o papel de uma série de actividades baças e, apresso-me acrescentar, completamente legais: decisões técnicas, com certeza, mas também mudanças imperceptíveis em leis e soluções baseadas em compromissos; dilemas que são vividos sem fingir que se conhece a solução, e que são expressos por memorandos de prosa detestável; alterações de opinião sobre assuntos que só quatro seres humanos alguma vez perceberam; momentos de improvisação, segredos e ignorância; e muitas horas passadas cortesmente a falar com pessoas com quem nunca por livre escolha se beberia um café. A isto tudo um autor chamou “governação sem graça.” “A falta de graça”, como ele observou, “deve ser o nosso lema”.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
Em “Na aula de trabalhos femininos”, de autor anónimo, descreve-se uma discussão entre duas alunas e uma professora. A primeira aluna, “muito tímida e modesta,” gosta de arroz-doce e sabe fazer arroz doce. A segunda, Albertina, gárrula e imodesta, exprime predilecção por ovos moles. A professora interrompe-a: “E também sabes fazê-los?” “Albertina ouviu, ficou embaraçada, e disse que ainda não sabia muito bem.” A professora conclui secamente: “Pois é bom saberes.”
A professora manifesta uma opinião muito comum. Segundo essa opinião, gostar de uma coisa que não se sabe fazer é uma forma reprovável de gostar dessa coisa; e por isso é bom saber fazer as coisas de que se gosta. Exemplos de actividades reprováveis são: gostar da natureza e não gostar de sair de casa; gostar de violino e não saber tocar violino; gostar de romances e não ter a menor ideia de como se escrevem; gostar de política e não ter qualquer intenção de abraçar a carreira; e comer ovos moles feitos por terceiros. No meu caso sou culpado de cinco destes seis erros.
É verdade que numerosos progressos sociais e tecnológicos erradicaram o risco de não se conseguir fazer aquilo de que se gosta. Uma certa familiaridade com o violino pode ser conseguida sem dificuldade em cursos de doze lições, mesmo em cidades pequenas. No caso dos romances há sinais de que nem sequer são precisas lições. Ao contrário de Albertina, é assim concebível que se venha a chegar a uma situação em que as pessoas passem a gostar apenas das coisas que sabem fazer.
O princípio de Albertina faz apelo a emoções, sentimentos ou qualidades em vias de extinção. Entre estes conta-se a admiração por coisas que não sabemos fazer, por causa de não as sabermos fazer; e a admiração por pessoas que sabem fazer aquilo de que nunca seremos capazes. O princípio não equivale apenas à ideia de que há pessoas diferentes de nós, que na maior parte dos casos só é invocada para sugerir que ser diferente é indiferente. Equivale a outra ideia, muito menos comum: a de que muito possivelmente haverá pessoas melhores que nós.
Não é verdade que todos os consumidores passivos de ovos moles se limitem, como insinua a professora, a viver à custa de quem os faz. Afinal de contas não admiramos aqueles à custa de quem vivemos por causa de nos deixarem viver à sua custa. A admiração e o respeito por quem é capaz de fazer certas coisas só podem ser suscitados em quem percebe que existe uma diferença importante entre aquilo que se admira e aquilo de que se é capaz. Perceber essa diferença é perceber que o mundo não começa nem acaba em nós. O princípio de Albertina parece-me por isso um princípio moral importante.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia