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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 12 a 28 de agosto de 2022

 

Torga, discípulo de Cervantes e de Unamuno, definiu Portugal como um ponto de encontro entre a vontade, o mar e a insatisfação. A leitura da sua obra permite entendermo-nos nas nossas contradições e nos nossos anseios.

 

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CADINHO DE VÁRIAS INFLUÊNCIAS

Portugal é um país difícil de entender. O cadinho de várias influências apresenta-nos elementos contraditórios. Mas há fatores que são permanentes e definem uma identidade que começa no querer, continua na omnipresença do mar e pressupõe uma luta constante. Lembremo-nos da saga dos poveiros, com o negro do luto das viúvas e dos órfãos nas praias atlânticas ou do combate contra a adversidade do meio em Trás-os-Montes, no Douro ou no Alentejo. Eduardo Lourenço e José Mattoso lembram que “uma das descobertas mais simples e irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espetaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos”. Isto significa, porém, que dependemos da nossa responsabilidade, do nosso querer e do saber pensar e fazer. Assim chegámos aqui. Precisamos uns dos outros. E temos de saber planear o futuro, partindo do presente, e avaliar os resultados que somos capazes de obter. Sempre que preparámos o futuro, ganhámos. Ao Deus dará perdemos e agravámos o nosso atraso, que não é uma fatalidade. O mérito não é um mito, só funciona quando resulta do reconhecimento das diferenças e da dignidade de cada um. Miguel Torga foi tantas vezes duro na sua apreciação de quem somos. Sabia do que falava e que nada se consegue de ânimo leve ou de ilusão. O desencanto assalta-nos tantas vezes, e o lirismo poético é apimentado com o picaresco e o maldizer.

 

O MUNDO CONTRADITÓRIO

Desejamos coisas contraditórias. E assim, se temos vícios devemos combatê-los, em vez de cultivar utopias enganadoras e esperanças vãs. Considerando-nos ou os melhores ou os piores, não nos safamos. Relendo o “Portugal” de Miguel Torga, surpreendemo-nos quando nos fala do Algarve, onde o conheci e cuja memória guardo num lugar especial. Disse ele, depois de nos descrever quem somos e onde estamos, sem ilusões: «O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. As coisas de Trás-os-Montes tocam-me muito no cerne para eu poder esquecer a solidariedade que devo a quem sofre e a quem sua. E isto repete-se com maior ou menor força no resto de Portugal. Mas, passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril». Não, não há contradição nesta bela página, que temos de ler em estreita ligação a tudo o resto. O que Torga nos diz, é exatamente que temos de ser quem somos. E no caso algarvio, compreender que não é de sol e praia que se trata, mas de entender a cultura como capacidade de construir e usufruir, de amar a liberdade e de ligá-la à entreajuda, à compreensão da diversidade das raízes e ao desenvolvimento humano. E José Mattoso definiu o ponto que permite entender a paradoxal visão de Torga: «o fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos ‘justos’ que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem, e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela ‘justiça’».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

MIGUEL TORGA: UM TEMPO QUE NÃO ACABA


Um dia, há sempre um dia em que nos chega a hora de uma iluminação. Assim me chegou o conhecer Torga o grande Torga pelos seus poemas, pelo que eu por eles intuía e via e já sulcava.


Via as serras, os trabalhadores da empa, os ciclos da natureza, o quanto o amor se podia fazer por cachos de uvas. Aprendia. Aprendia que não estava só no socalco da minha ativa espera.


Perguntava-me muito pelas transcendências e não sei se a interrogação, no fundo, não era apenas o adiar de uma certeza que eu tinha.


Encontrava na leitura de Torga um abrir de segredos intocáveis. O Miura condenado a divertir a multidão entregava o pescoço de toiro vencido ao alívio de um gume. Ou a Terra, única mãe de ventre quente, ao legítimo fruto que fazia sair dos seios feitos arvore.


Miguel Torga o poeta, o romancista, o ensaísta, enfim o escritor e o médico já dissera:


Hinos aos deuses, não.
Os homens é que merecem
Que se lhes cante a virtude.
Bichos que cavam no chão,
Atuam como parecem,
Sem um disfarce que os mude.


In Nihil Sibi


O humanismo sentido por Torga pela obra magnífica do homem, pelo trabalho humano exposto à miséria e à doença, à condição de não ser fácil ser virtuoso, nem criador de vida, e, ainda assim um humano constrói paisagem, molda o meio, semeia penedos face à morte e malgrado o limite do homem ser bicho, este homem tão limitado pelo limite, anseia a descoberta de caminhos para chegar às coisas belas e possíveis.


Assim o senti e ainda sinto Miguel Torga, nesta poderosa acepção do perceber.


Como dele disse Mourão Ferreira, Torga vivia na intimidade das forças elementares e para as celebrar aceitava a constante luta numa rebeldia ao que o queria asfixiar.


Fui a Coimbra e visitei-o. Não sei se visitei o seu monasticismo votado à autenticidade sublime da poesia ou de uma escrita, ou a sua fidelidade à medicina: ou se visitei a visita e tão só me era tanto.


Régio e a medicina? Nemésio? Perguntei.


«Teresa, eu barafusto muito com a medicina. De Régio a Nemésio é todo um dia. Tento entender-me.»


Nada acrescentei, mas recordei-me de uns poemas dele – sabia muitos de cor mas envergonhei-me de lho dizer naquela altura.


E ele já escrevera:


A começar por mim – meu principal motivo
De insatisfação (…)
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar.


E mais além, noutra página de um livro de Coimbra de 1956continuou:


(…) casou-nos o mito
(…) tu com sementes nos pés
(…) sei que não és mentira nem és lenda
Perder-te nada é – perde-se tudo.


No comboio que me trouxe de volta a Lisboa justifiquei cada palavra das quase nenhumas que trocámos. Voltei a agradecer-lhe o ter podido conhecê-lo. Na minha mão o beijo que nela deixou. Então recarreguei a inocência daquela ida e recordei a joaninha que ambos olhámos, olhando-nos, e afinal foi o único momento em que lhe disse «não nos deu para colecionarmos burros». E o Torga sorriu largamente com o perto e a distância de Piódão que então eu não conhecia. E desejou:


«Que alguém te ame muito é o que eu quero!»


Parei o carro há dois anos atrás, num miradouro no regresso de Piódão, e fui ler o que estava escrito numa pedra no alto da Serra do Açor onde faltava o ar por tão nítida a aldeia, e era isto:


Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo. Já o fiz das outras imagens da sua configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário.
Miguel Torga

 

Teresa Bracinha Vieira

 

Obs: Solicitou-se a reposição deste texto publicado em 2012 neste blogue.

UM ESTUDO SOBRE MIGUEL TORGA

 

Temos presente uma Fotobiografia da autoria de Clara Rocha sobre Miguel Torga. Para além da análise global deste estudo, enriquecido, como a designação indica, por centenas de fotografias e reproduções de documentos, importa assinalar a comemoração foto-literária dos 25 anos da morte do escritor. E vale a pena recordar que se trata concretamente de um estudo sobre Adolfo Rocha, nome civil, nascido em 1907 e falecido em 1995.

 

Torga foi e é efetivamente um grande nome da literatura e da cultura portuguesa. Mas será oportuno constar que essa indiscutível e indiscutida genialidade do autor, não fica a dever-se à criação dramatúrgica, independentemente da qualidade literária e de certo modo cénica das poucas peças que escreveu e que, em pelo menos dois casos, reformulou: “Mar” (1941-1958), “Terra Firme” (1941-1947), “Sinfonia” (1947) e “O Paraíso” (1949).

 

E é interessante desde logo referir, como o livro de Clara Rocha oportunamente destaca, que essa primeira versão do “Mar” foi representada em Londres em 1950, no King's College, por iniciativa de Ruben Andersen Leitão – Ruben A:  foi Ruben quem encenou o espetáculo e fez uma adaptação para a BBC, diz-nos o livro de Clara Rocha, que contém fotografias e reproduz uma crítica, no jornal “The Stage”.

 

E precisamente: num artigo que publiquei em 1965 no então relevante Jornal de Letras e Artes, e que é citado na Bibliografia Passiva (Seletiva) deste estudo, tive ensejo de referir a qualidade de “Mar”, peça que, como na altura escrevi e agora transcrevo, guarda alguns dos mais puros momentos do teatro português contemporâneo. O lirismo admirável da linguagem, o equilíbrio do diálogo, ou a claridade essencial de psicologias e condutas, tudo isto de sobremaneira marca e destaca de forma ineludível esta peça.

 

E mais acrescentei no artigo que a peça sintetiza a força primacial desta tragédia de pescadores: o combate travado contra o fascínio e obcecação do oceano, que aqui nos surge força viva e consciente, a dominar e enlouquecer os homens, a arrastá-los para uma morte fatal. O mar, nesta peça, é ser dotado de inteligência e vontade própria, é destino irresistível dos pescadores, é inimigo imenso, forte e arguto, que se teme mas se deseja, e sempre acaba por vencer.

 

O artigo valoriza o “Mar” em relação às restantes peças de Miguel Torga, aliás todas elas descritas e analisadas.

 

E acrescento que, na História do Teatro Português, que publiquei em 2001 e aqui tenho citado, realço a qualidade desta peça, mas saliento a força telúrica que também surge na “Terra Firme”, salientando aí que ambas as peças mergulham em forças naturais, telúricas e quase panteístas, no meio geográfico e etnográfico e sobretudo psicológico que os títulos sinalizam.

 

O livro de Clara Rocha representa um estudo notável sobre a pessoa e a obra vasta e global de Adolfo Rocha – Miguel Torga.

 

E não se pode questionar a relevância de Miguel Torga.

 

DUARTE IVO CRUZ

AO CORRER DA PENA

 

Miguel Torga, pseudónimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, em homenagem a Miguel de Cervantes, Miguel de Molinos e a Miguel de Unamuno, bem como a um arbusto, de nome torga, que nasce entre as inóspitas pedras da terra onde nasceu, S. Martinho de Anta, em 1907, vindo a falecer em 1995, a 17 de janeiro, em Coimbra onde exerceru a sua profissão na especialidade de otorrinolaringologia.

 

Na sua extensa obra literária dividida entre poesia, teatro e o romance, destaca-se um pessoalíssimo Diário, em prosa e verso, com dezasseis volumes publicados e onde se encontra de tudo: crítica social, polémica, esboços de contos, reflexões de moralista e muito frequentemente textos da mais elevada poesia.

 

É notório, ao lermos a sua obra, que o seu fundamento impregna uma religiosidade ou melhor dizendo uma espiritualidade visto que não se vislumbra uma obrigação inadiável, sentindo-se por alguns momentos uma inspiração fora de qualquer confissão religiosa.

 

A escrita de Miguel Torga poderá dizer-se “se situa nela própria”, excluindo a participação de qualquer Ser Supremo. Todavia, nota-se na realidade, uma capacidade subjetiva para recerber as “impressões e capacidade do sentir”.

 

Na sua espiritualidade observa-se uma postura hierática. O problema fundamental na sua construção literária não é Deus mas o Homem na relação com o “Deus Supremo” onde simultaneamente se cruzam.

 

No seu poema Legado, o homem é um produto da busca escatológica: “O que eu espero, não vem./Mas ficas tu, leitor, encarregado/De receber o sonho./Abre-lhe os braços como se chegasse/O teu pai, do Brasil,/ A tua mãe, do céu,/ O teu melhor amigo, da cadeia./(...)Não lhe perguntes por que tardou tanto/ E não chegou a tempo de me ver./Uns têm a sina de sonhar a vida,/ Outros de a colher.”

 

A espiritualidade em Torga, divide-se entre S. Martinho de Anta (a terra que o criou) e a sua vida. Isto nota-se no poema Prece: (...) “Sou sete palmos de lama:/ Sete palmos de excremento/Da terra mãe que me chama.(...) Senhor, acaba comigo/ Antes do dia marcado.”

 

Nota-se neste, um grito de revolta, de angústia e a sua crença. Miguel Torga procura dentro de si próprio uma liberdade que se prende à terra que confere o poder de lhe conceder os momentos de inspiração. O autor não ignora que a terra se encontra plasmada na sua obra tem o valor maior de que quanto maior é a sua angústia, revolta e inspiração, será sempre maior a liberdade para a qual ele não encontra uma liberdade possível: “Livre não sou, que nem a própria vida/ Mo consente./ Mas a minha aguerrida/ Teimosia/ É quebrar dia a dia/ um grilhão da corrente./ Livre não sou, mas quero a liberdade./ Trago-a dentro de mim como um destino. (...)

 

M.T. sente em Deus um poder absoluto que limita a ação humana e, por isso, ele próprio busca, no mais fundo de si, a liberdade. Pode com algum rigor dizer-se que não acredita na existência  de Deus embora a sinta.

 

Pelo conjunto dos poemas retirados do seu Diário, alerta-nos para a presença de o homem ser um deus absoluto da própria terra, ser a causadora da angústia e teimosia ditando deus para o ser humano uma penitência para a eternidade. Trabalha de forma árdua tentando indireta mas subjetivamente substituir-se a Deus.

 

E que espiritualidade é esta que aproxima Deus dos homens e não os homens a Deus?

 

Carlos Rosa