Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Falo de espíritos bem vivos. Os falantes distribuem-se principalmente por uma área de 550 quilómetros quadrados, conhecida como Terra de Miranda, formada pelo concelho de Miranda do Douro e as freguesias de Angueira e Vilar Seco no concelho de Vimioso. Também se deve incluir o território de Caçarelhos. A língua mirandesa é o nome oficial que recebe o asturo-leonês persistente em território português. O mirandês tem três subdialetos (central ou normal, setentrional ou raiano, meridional ou sendinês), dispondo de um dicionário, gramática e ortografia próprios; os seus falantes são em maior parte bilíngues ou multilingues. O mirandês é, desde 1999, a segunda língua oficial de Portugal. A preservação da língua mirandesa deve-se à geografia e ao isolamento das Terras de Miranda, sede episcopal. Os rios e as cordilheiras são fatores cruciais para a criação de uma "fronteira linguística". O rio Sabor isolou a área da influência da língua portuguesa. Outro fator foi a proximidade de Espanha, com o comércio centrado no turismo espanhol. A cidade recebe espanhóis do antigo Reino de Leão, que muitas vezes falam asturiano. Assim, o mirandês chegou aos nossos dias, defendido também pelos espanhóis de fala asturiana. Havia muitos anos que o mirandês não era falado no coração da comarca, Miranda do Douro, mas, nos últimos anos, a deslocação das pessoas das aldeias para a cidade trouxe o mirandês de volta. As aldeias preservaram melhor a língua antiga. São naturais os entraves, como se nota em "Lição de Mirandês: You falo como bós i bós nun falais como you" de Manuela Barros Ferreira, onde é evidente a natural fragilidade da língua mirandesa face ao português. Não se fala o mirandês quando os alunos estão em situações formais, como por exemplo na relação com o professor. Então a língua portuguesa prevalece. A língua mirandesa é reservada para contextos familiares, do quotidiano ou mesmo de extrema intimidade.
Eis o exemplo de uma frase em mirandês com a respetiva tradução em português, num texto de Amadeu Ferreira, um dos grandes divulgadores da língua mirandesa. «Muitas lhénguas ténen proua de ls sous pergaminos antigos, de la lhiteratura screbida hai cientos d'anhos i de scritores hai muito afamados, hoije bandeiras dessas lhénguas. Mas outras hai que nun puoden tener proua de nada desso, cumo ye l causo de la lhéngua mirandesa». E eis a versão portuguesa. «Muitas línguas têm orgulho dos seus pergaminhos antigos, da literatura escrita há centenas de anos e de escritores muito famosos, hoje bandeiras dessas línguas. Mas há outras que não podem ter orgulho de nada disso, como é o caso da língua mirandesa».
Apresentamos ainda o texto do projeto lei de reconhecimento dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa, apresentado em setembro de 1998 pelo deputado Júlio Meirinhos aprovado pelo Parlamento e com expressão constitucional. «La Lhéngua Mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i capechana, nun yê de onte, detrasdonte ou trasdontonte mas cunta cun uito séclos de eijistência. Sien se subreponer a la "lhéngua fidalga i grabe" l Pertués, yê tan nobre cumo eilha ou outra qualquiêra. Hoije recebiu bida nuôba.
Saliu de l absedo i de l cenceinho an que bibiu tantos anhos. Deixou de s'acrucar, znudou-se de la bargonha, ampimponou-se para, assi, poder bolar, strebolar i çcampar l probenir. Agarrou l ranhadeiro para abibar l lhume d l'alma i l sangre dun cuôrpo bien sano. Chena de proua, abriu la puôrta de la sue priêça de casa, puso fincones ne l sou ser, saliu pa las ourriêtas i preinadas. Lhibre, cumo l reoxenhor i la chelubrina, yá puôde cantar, yá se puôde afirmar. A la par de l Pertués, a partir de hoije, yê lhuç de Miranda, lhuç de Pertual», Lei nº 7/99 de 29 de janeiro
Depois de José Leite de Vasconcelos, Amadeu Ferreira(1950-2015, Sendim, Miranda do Douro) foi o grande estudioso e divulgador do mirandês nos últimos anos, sendo jurista, escritor e tradutor de uma vasta obra em português e em mirandês, em nome próprio e com os pseudónimos de Francisco Niebro, Marcus Miranda e Fonso Roixo.
Traduziu para a língua mirandesa obras como Os Quatro Evangelhos, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, Mensagem, de Fernando Pessoa, e obras de Horácio, Vergílio e Catulo, bem como dois volumes de Astérix entre muitos outros. Foi colaborador, sobretudo em mirandês, de diversos meios de comunicação social, nomeadamente do Jornal Nordeste, do Mensageiro de Bragança, do Diário de Trás-os-Montes, do Público e da rádio Mirandum FM. Publicou mais de três mil textos, quase exclusivamente literários, em blogues como Fuontes de l Aire, Cumo Quien Bai de Camino e Froles Mirandesas e CNC. Autor de obras científicas e literárias, em poesia e em prosa. Entre muitas outras, publicou, nas áreas das Ciências Jurídicas e Direito dos Valores Mobiliários; em poesia, Cebadeiros; e em prosa, Cuntas de Tiu Jouquin.
Há ainda os Pauliteiros de Miranda, praticantes da dança guerreira céltica, característica destas Terras, designada de dança dos paus, representativa de momentos históricos locais, acompanhada com os sons da gaita-de-foles, caixa e bombo, com a particularidade de ser dançada por oito homens (mais recentemente também por mulheres) que vestem saia bordada e camisa de linho, um colete de pardo, botas de cabedal, meias de lã e chapéu enfeitado com flores e finalmente por dois paus (palos) com os quais os dançadores fazem uma série de diferentes passos e movimentos coordenados. E neste folhetim de fantasmas, a propósito do Mirandês, invoco um texto de Orlando Ribeiro sobre o seu Mestre José Leite de Vasconcelos, que antevia com «os olhos do espírito de que se apagam lentamente os últimos fulgores». «Num pedestal de tosco granito», vislumbrava «não uma figura enroupada no traje académico, mas um velho meão mas desempenado, de cabeça coberta e barba intonsa, de chapéu de viagem, abordado ao bastão de jornada, mostrando aos novos – ele, eterno caminheiro – os rumos científicos da “boa Terra Lusitana”, de que esclareceu as origens nas pedras incompletas, na língua como expressão da vida coletiva, na multiplicidade dos textos e dos falares rústicos, sobre o pedaço de terra que nos coube neste fim da Europa, onde o povo, considerado no conjunto das classes da Nação, afirmou o seu direito de ser livre, de pensar e sentir a seu modo e a seu jeito e até contribuir, com as luzes de Espíritos de que o Mestre foi o mais poderoso e operoso para o progresso geral do conhecimento humano. Só assim a lenda de José Leite de Vasconcelos se consagrará na História, a que há mais de um século ofereceu as primícias do seu pensamento».
Hoje damos um salto a Miranda do Douro. É uma fronteira mágica, que vem de Alcanizes (1297) e que se forma de povos e de um encontro de duas línguas. José Leite de Vasconcelos, mestre dos mestres, dizia em 1882, para admiração de alguns: “Não é o Português a única língua usada em Portugal”. De que falava o erudito? Da língua mirandesa, cuja origem remonta ao período em que as Asturias e Leão desenvolveram no seu território um conjunto significativo de romances linguísticos, distintos de outros como o galaico-português ou o castelhano. A esse romance deu a tradição a designação de leonês, ainda que rigorosamente se deva designar como asturo-leonês, que ganhou importância em razão da Reconquista cristã. É certo que essas variedades do romance foram limitadas na sua influência uma vez que a língua usada pelos tabeliães e na documentação oficial era o latim. Só os idiomas correspondentes ao exercício de um poder forte e efetivo (como no futuro reino de Leão e Castela ou em Portugal) estabeleceram normas unificadoras. Mesmo assim é possível encontrar testemunhos escritos desse grupo linguístico asturo-leonês. A perda de influência política do hoje Principado das Astúrias e do antigo reino de Leão levou à absorção pelo Reino de Castela, a partir do século XIII (1230), da identidade linguística asturo-leonesa, que no entanto manteve vestígios, como no caso do mirandês, como variedade do leonês ocidental.
Quais as razões para a persistência mirandesa? O facto do nordeste transmontano estar fora do convento romano de Bracara Augusta, mas em Asturica Augusta; a pertença da Terra de Miranda à diocese de Astorga (até ao século XII); a não pertença da região de Bragança ao condado de Portugale; a colonização leonesa nesta região, como se vê nas Inquirições de D. Afonso III, mercê da ação dos mosteiros de Santa Maria de Moruela, S. Martinho de Castanheda, de Castro de Avelãs e dos Templarios de Alcanizes; a ligação leonesa a Miranda; e o isolamento da região, muito mais ligada económica e administrativamente a Leão e Castela.
Para ilustração do que dizemos, transcrevemos o texto que o deputado Júlio Meirinhos apresentou em 1998 na Assembleia da República para justificar a decisão de reconhecer os direitos linguísticos do mirandês: «La Lhéngua Mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i capechana, nun yé de onte, detrasdonte ou trasdontonte mas cunta com uito séclos de ejistência. Sien se subreponer a la ‘lhéngua fidalga i grabe’ l Pertués, yê tan nobre cumo eilha ou outra qualquiêra. Hoije recebiu bida nuôba. Saliu de l absedo i de l cenceinho na que bibiu tantos anhos. Deixou de s’acrucar, znudou-se de la bargonha, ampimponou-se para, assi, poder bolar, strebolar i çcampar l probenir. Agarrou l ranhadeiro para abibar l lhume de l’alma i l sangre dun cuôrpo bien sano. Chena de proua, abriu la puôrta de la sue priêça de casa, puso fincones ne l sou ser, saliu pa las ourriêtas i preinadas. Lhibre, cumo l reoxenhor i la chelubrina, yá puôde cantar, yá se puôde afirmar. A la par de l Perués, a partir de hoije, yê lhuç de Miranda, lhuç de Pertual.»
À língua mirandesa corresponde uma cultura bem característica. Por exemplo, a dança dos Pauliteiros vem das raízes indo-europeias da dança das espadas, mas também devemos lembrar as danças paralelas e de roda, que encontramos noutras zonas europeias onde se faz sentir o fundo céltico, além das “cantigas de segada e demais rimances”, sem esquecer as cantigas dos ciclos da lã, do linho e das mondas, as cantigas de ronda; os jogos de roda e os cânticos religiosos das mais importantes festividades (como Natal, Reis, Carnaval e Páscoa). E não podemos esquecer o teatro, com os populares “colóquios”, ao ar livre, em dias de festa, de inspiração religiosa e profana.
Em memória de Amadeu Ferreira (1950-2015), grande jurista, escritor e estudioso do mirandês, que chegou a manter uma muito apreciada crónica nessa língua no Centro Nacional de Cultura (partilhada com o jornal Público), juntamos uma série de provérbios mirandeses. Pode dizer-se que sem o entusiamo de Amadeu Ferreira e a sua determinação não teria sido possível consagrar o mirandês como língua oficial da República Portuguesa. Naturalmente que há um desafio muito exigente que tem de ser assumido e assegurado, já que sem a aprendizagem e o culto do mirandês, o idioma será mais um à beira de extinção. Eis por que consideramos esta questão como da maior relevância para a afirmação e perenidade da cultura portuguesa.
E eis os provérbios, que compreendemos tão bem, e que muito chegados nos são!
“A quien pineira i amassa / nun le fura la fogaça”.
“Las forfalhicas de l cerron / pa la tarde buônas son”.
“Mais bale um paixarico na mano / que dous a bolar”.
“Pan i bino, / anda camino”.
“Quien cuônta un cuônto / acrescénta un puônto”.
“Cesteiro que fai un ciesto / fai un ciênto, / Dando-le berga i tiêmpo”.
“Malo háia qien mal de mi diç: / Malo háia quien me lo chega al nariç”.
“Nun te fies na perro que nun lhadra, / Nin na home que nun fala”.
Antre primos i armanos / Nun metas las manos.”
“Filho sós, / Pai serás, / Cumo fazires, / Assim acharás”.
Numa homenagem a José Ruy o grande mestre da Banda Desenhada e à memória de Amadeu Ferreira, que tanto deu à causa da língua portuguesa e da língua mirandesa, citamos um texto publicado há pouco no DN…
A MAGIA DA PALAVRA
Fernão de Oliveira, autor da primeira “Gramática da Linguagem Portuguesa” (1536) alertou: “Não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a língua os homens”; e João de Barros, quatro anos depois, afirmou que o português “não perde a força para declarar, mover, deleitar e exortar a parte a que se inclina, seja em qualquer género de escritura”. É a língua o nosso mais importante valor civilizacional. Deve, por isso, ser por todos protegida. E como fazê-lo? Falando-a e escrevendo-a bem. Compreendemos, por isso, Fernando Pessoa, num texto muito referido mas pouco compreendido: “Odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon…”.
Muito se tem dito sobre o tema. Contudo, do que falamos é de um ato de cidadania, mais do que de questão de gramáticos, como está no “Livro do Desassossego”. O fundamental é que saibamos comunicar, que nos façamos entender corretamente, tal como nos ensinaram os melhores cultores do nosso idioma. E tantas vezes esquecemos as nossas próprias condições históricas, bem diferentes do caso da língua inglesa, que não necessitou de regulamento ortográfico, porque, como país da Reforma, o rei Jaime I ordenou que fosse feita a tradução da Bíblia em língua vulgar, obra magna que ficaria concluída em 1611. Hoje, continua a ser essa a matriz do falar e do escrever em inglês, como uma das mais belas obras literárias do idioma, criada para ser lida em voz alta nos templos e compreendida em silêncio por cada um dos seus leitores. A história portuguesa nesse domínio é, como sabemos, assaz diferente. Desde 1911 que o tema se discute, numa longa sucessão de encontros e desencontros. A República propôs-se simplificar, com substituição, por exemplo, dos dígrafos de origem grega (th, ph) por grafemas simples (t, f) ou com a eliminação do y. E Pascoaes não se resignou: «Na palavra lagryma, (…) a forma do y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal». Em 1931, foi assinado um primeiro acordo luso-brasileiro, que não foi aplicado. Em 1945, houve novo tratado, mas o Brasil continuou a aplicar o seu vocabulário de 1943. Em 1973, o governo português aboliu os acentos grave e circunflexo em certos casos; e em 1990 houve o Acordo Ortográfico…
Independentemente de controvérsias, temos de tomar consciência de que se trata de um património cultural partilhado, língua de várias culturas e cultura de várias línguas, que terá mais de 500 milhões de falantes no final do século. Temos de cuidar bem desse valor, para que o português seja bem falado e escrito (com os verbos intervir e haver bem conjugados, com o plural de acordo sem ó aberto), sem o massacre dos pronomes; sem erros escusados de uma novilíngua orwelliana – como resiliência em vez de resistência; implementação em vez de execução ou até implemento; evidência em vez de prova; empoderamento em vez de capacitação. Ler ou ouvir grandes escritores é o melhor caminho – disse-o Filinto Elísio: «Aprendei, estudai; / e os bons autores sabereis ter em crédito e valia. / Eles a língua em seu primor criaram / eles no-la poliram».