Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A parábola dos talentos (Mateus 25, 14-30) é hoje, a meu ver, perigosa: perigosa porque muitas vezes a ouvi comentar de uma maneira que, em vez de impelir os cristãos à conversão, parece confirmá-los no seu atual comportamento entre os outros homens e mulheres, no mundo e na Igreja. Por isso talvez fosse melhor não ler este texto, em vez de o ler mal…
Na verdade esta parábola não é uma exaltação, um aplauso à eficiência, não é uma apologia de quem sabe ganhar lucros, não é um hino à meritocracia, mas é uma verdadeira e autêntica contestação em relação ao cristão que muitas vezes é morno, sem iniciativa, satisfeito por aquilo que faz, receoso operante a mudança exigida pelos novos desafios ou pelas alteradas condições culturais da sociedade.
A parábola não confirma nem o “ativismo pastoral” em que caem muitas comunidades cristãs, muitos “agentes pastorais” que não sabem ler a esterilidade de todo o seu esforço, mas pede à comunidade cristã consciência, responsabilidade, laboriosidade, audácia e sobretudo criatividade. Não é a quantidade do fazer, das obras, nem o ganhar prosélitos que tornam cristã uma comunidade, mas a sua obediência à Palavra do Senhor que a impulsiona para novas fronteiras, para novas praias, estradas não percorridas, ao longo das quais a bússola que orienta o caminho é apenas o Evangelho, unido ao grito dos homens e das mulheres de hoje quando balbuciam: «Queremos ver Jesus!» (João 12, 21).
Leiamos então com inteligência esta parábola, cuja perspetiva, repito-o, não é económica nem financeira; não é um convite ao ativismo, mas à vigilância que permanece na expetativa, não satisfeita com o presente, mas totalmente direcionada para a vinda do Senhor. Ele já não está entre nós, na Terra, é como se tivesse partido em viagem e confiou aos seus servos, aos seus discípulos, uma tarefa: multiplicar os dons por Ele dados a cada um.
Na parábola, a dois servos o Senhor deixou muito, uma quantia substancial – cinco lingotes de prata a um, dois a outro –, para que a façam frutificar; a um terceiro servo deixou um só lingote, que ainda assim não é pouco. Em todos eles depositou a sua confiança sem limites, confiando-lhes os seus bens. Cabe por isso aos servos não trair a grande confiança do proprietário e realizar uma sábia gestão dos bens, que não são seus, mas do dono, que, ao regressar, lhes dará a recompensa. A cada um o proprietário dá em função da sua capacidade, e o seu dom é também uma tarefa: cuidar e fazer frutificar.
Para além da imagem dos talentos, o que é este dom, em definitivo? Segundo Ireneu de Lyon é a vida concedida por Deus a cada pessoa. A vida é um dom que não deve absolutamente ser desperdiçado, ignorado ou dissipado. Infelizmente, temos de o constatar, para alguns a vida não tem valor algum: não a vivem, antes desperdiçam-na e estragam-na ao ponto de fazer dela um estranho enjoo (cf. Konstantinos Kavafis), e assim se deixam viver.
Porém só se vive uma vez, e fazê-lo com consciência e responsabilidade é decisivo para salvar uma vida ou perdê-la. De acordo com outros padres orientais, os talentos são as palavras do Senhor confiadas aos discípulos para que as guardem, decerto, mas sobretudo para que as tornem frutuosas na sua vida, as ponham em prática até as semear copiosamente na terra que é o mundo. De novo é questão de vida, de «escolher a vida» (cf. Deuteronómio 30, 19).
«Após muito tempo» - alusão à demora da parusia, da vinda gloriosa do Senhor (cf. Mateus 24, 48; 25, 5) – «o proprietário regressa e pede contas da confiança por ele colocada nos seus servos, os quais devem mostrara a sua capacidade de ser responsáveis, isto é, capazes de responder à confiança recebida. Eis, portanto, que todos se apresentam diante dele.
Aquele que tinha recebido cinco talentos mostrou-se trabalhador, empreendedor, capaz de arriscar, empenhou-se a fim de que os dons recebidos não fossem diminuídos, desperdiçados ou inutilizados; por isso, quando entrega ao proprietário dez talentos, recebe dele o elogio: «Bem, servo bom e fiel (…) entra na alegria do teu Senhor». Acontece o mesmo para o segundo servo, também ele capaz de duplicar os talentos recebidos. Para estes dois servos a recompensa é proporcionalmente igual, ainda que as somas confiadas tenham sido diferentes, porque ambos agiram segundo as suas capacidades.
Vem por fim aquele que tinha recebido um só talento, e ao estender as mãos manifesta o pensamento que o paralisou: «Desde quando me deste o talento, eu sabia que és um homem duro, exigente, que faz aquilo que quer, e recolhes também onde não semeias». Com estas palavras («pelas tuas palavras te julgo», lê-se no texto paralelo de Lucas 19, 22), o servo confessa que fabricou uma imagem distorcida do senhor, uma imagem plasmada pelo seu medo e pela sua incapacidade de ter confiança no outro: ele considera o proprietário como alguém que lhe mete medo, que pede uma escrupulosa observância daquilo que ordena, que age de maneira arbitrária. Tendo esta imagem em si, optou por não correr riscos: colocou em segurança, debaixo da terra, o dinheiro recebido, e agora restitui-o tal e qual. Assim devolve ao dono aquilo que é seu e não rouba, não peca…
Mas eis que o senhor se encoleriza e lhe responde: “És um servo malvado e preguiçoso. Malvado porque obedeceste à imagem perversa que fizeste do senhor, e assim viveste uma relação de amor servil, de amor ‘restringido’. Por causa disso foste preguiçoso, não foste de confiança, não tiveste nem o coração nem a capacidade de trabalhar segundo a confiança que te concedi. Nem sequer fizeste o esforço de meter o talento no banco, onde teria dado fruto, dando-me juros. Não cuidaste do meu bem a ti confiado”.
Sim, sabemo-lo: é mais fácil enterrar os dons que Deus nos deu, em vez de os partilhar; é mais fácil conservar as posições, os tesouros do passado, do que ir descobrir novos; é mais fácil desconfiar do outro que nos fez o bem em vez de responder conscientemente, na liberdade e por amor. Eis assim o louvor por quem arrisca e a culpabilidade de quem se contenta com aquilo que tem, enclausurando-se no seu “eu mínimo”. Este servo não fez o mal; ainda pior, não fez nada!
Por isso, diante de Deus, no dia do juízo, comparecerão dois géneros de pessoa: quem recebeu e fez frutificar o dom; quem o recebeu e não fez nada. Os servos fiéis entrarão na alegria do Senhor; quem, pelo contrário, foi “bom por nada” será espoliado inclusive dos méritos de que pensava poder orgulhar-se.
Quanto a mim, gostaria que a parábola se concluísse de outra forma: assim seria mais claro o coração do proprietário, enquanto o coração do discípulo seria aquilo que o proprietário deseja. Ouso por isso propor esta conclusão “apócrifa”:
Vem o terceiro servo, a quem o proprietário tinha confiado um só talento, e diz-lhe: “Senhor, eu ganhei um só talento, duplicando o que me deste, mas durante a viagem perdi todo o dinheiro. Sei, todavia, que tu és bom e compreendes a minha desgraça. Não te trago nada, mas sei que és misericordioso”. E o proprietário, para quem mais do que o dinheiro importava que aquele servo tivesse uma imagem verdadeira de si, disse-lhe: “Bem, servo bom e fiel, ainda que nada tenhas, entra também na alegria do teu senhor, porque confiaste em mim”.
Mesmo desta maneira, a parábola seria boa notícia!
Enzo Bianchi In Altrimenti Trad.: Rui Jorge Martins
Que disseram Ramalho e Eça sobre o “Mistério da Estrada de Sintra”?
«O que pensamos hoje (1884) do romance que escrevemos há catorze anos?... Pensamos simplesmente — louvores a Deus! — que ele é execrável; e nenhum de nós, quer como romancista, quer como crítico, deseja, nem ao seu pior inimigo, um livro igual. Porque nele há um pouco de tudo quanto um romancista lhe não deveria pôr e quase tudo quanto um crítico lhe deveria tirar».
E lembravam a seguinte história: «Conta-se que Murat, sendo rei de Nápoles, mandara pendurar na sala do trono o seu antigo chicote de postilhão, e muitas vezes, apontando para o cetro, mostrava depois o açoite, gostando de repetir: Comecei por ali. Esta gloriosa história confirma o nosso parecer, sem com isto querermos dizer que ela se aplique às nossas pessoas. Como trono temos ainda a mesma velha cadeira em que escrevíamos há quinze anos; não temos dossel que nos cubra; e as nossas cabeças, que embranquecem, não se cingem por enquanto de coroa alguma, nem de louros, nem de Nápoles».
Percebemos a necessidade de se demarcarem de um entretenimento. A verdade, porém, é que o folhetim se procurava demarcar do receituário em vigor. Leia-se o termo do enredo. Luísa despede-se do mundo. «Entregando-lhe em seguida o capuz e o manto de casimira em que fora envolvida: — Adeus, meu primo — disse-lhe ela deixando-se beijar na testa — adeus! Peça a Deus que me perdoe, e aos vivos que me esqueçam. Aos primeiros passos que ela deu para lá da porta, esta fechou-se do mesmo modo por que havia sido aberta, sem que ninguém mais fosse visto, tendo mostrado um buraco lôbrego, negro e profundo como a goela de um abismo, e a amante de Rytmel entrou no claustro. Os ferrolhos interiores rangeram sucessivamente nos anéis, expedindo uns sons entrecortados, semelhantes a soluços arrancados de uma garganta de ferro». Depois, o mascarado alto passou parte dessa noite na vila, esperando a mala-posta. E ouviram-se os sinos das carmelitas pedindo caridade. E o conde de W... recebeu em Bruxelas a carta de sua mulher: «Destituo-me voluntariamente da minha posição na sociedade. De todos os direitos que porventura pudesse ter, um só peço que não seja contestado: o direito de acabar. Suplico-lhe que me permita desaparecer, e que acredite na sinceridade da minha gratidão eterna».
E é aqui que este folhetim dá uma volta de 360 graus. Parece estranha uma tão grande guinada. É que, como bem se recordam, tudo começou com uma estranha descoberta: a de que Carlos Fradique Mendes está vivo. Quando muitos pensavam que ele estava riscado do mundo dos vivos, foi descoberto para sua grande irritação a almoçar num pacato restaurante na proximidade do Passeio Público. E eis que o encontramos de novo. Agora, já sabemos que Luísa se encerrou no claustro de um mosteiro, preferindo desvanecer-se a seguir o caminho de Emma ou de Anna. Fradique Mendes, esse, partiu para uma quinta dos subúrbios de Lisboa para escrever, «debaixo das árvores e de bruços na relva», um livro em colaboração, com o qual prometeu o extermínio a pontapés de todos os trambolhos a que as escolas literárias dominantes têm querido sujeitar as invioláveis liberdades do espírito. «Presenciar as profundas comoções romanescas da vida é como ter assistido a um grande naufrágio: sente-se então a necessidade consoladora das coisas pacíficas: então mais que nunca se reconhece que o ser humano só pode ter a felicidade no dever cumprido».
E fica apenas por saber qual a pergunta mistério deste folhetim?
Deixámos a Condessa e Rytmel apaixonados. Há uma ponta de loucura nessa relação. Propositadamente Ramalho e Eça demarcam-se das soluções tradicionais quanto às heroínas de folhetim.
Luísa não faz parte do rol tradicional de quem se deixa arrastar pela força do destino. Luísa tem a sua vontade e afronta os limites. Ensaia uma fuga romântica, num iate. A solução é afastada por demasiado previsível e terrivelmente incerta. Receosa de perder o controlo da situação Luísa vive atormentada pelo ciúme. Será que o capitão a considera como um estratagema passageiro?
Num momento tremendo de vertigem e de loucura, a condessa, insegura e angustiada, para tentar ver os papéis de Rytmel, ministra ao amante uma dose de ópio, que se revela excessiva. E o capitão perde a consciência e morre inesperadamente de overdose. Luísa fica desesperada, mas pondera uma saída racional de modo a camuflar o homicídio. Conta, por isso com a ajuda dos amigos, a quem explica em pormenor por escrito a complexa história, num racional, longo e inexorável exame de consciência. É essa a estrutura fundamental do romance, desenvolvido através de uma sucessão de cartas, dos dois autores, de formações e perspetivas diferentes.
Ramalho Ortigão segue mais de perto a solução tradicional dos folhetins românticos. Eça de Queiroz, leitor de Zola e da escola realista, procura libertar-se do método. E assim deparamo-nos no mesmo texto com duas perspetivas que demonstram como a geração de 1870 (e estamos em 1870) soube assumir uma especial originalidade, libertando-se de uma perspetiva de escola. E há uma armadilha lançada ao leitor desprevenido: parte-se do exagero caricatural do género folhetinesco, procurando introduzir a novidade realista-naturalista. Não vamos discutir a eficácia ou o sucesso. Mais tarde os dois escritores considerarão que a obra ficou aquém do desejável, mas hoje podemos fazer a autópsia, percebendo as hesitações e contradições da geração, através dos dois autores mais distantes entre si. Contudo, ambos estão deslumbrados pela condessa loura e voluntariosa, que não obedece ao modelo da adúltera dos folhetins sentimentais, aproximando-se de Bovary (1856) ou de Karenina (1875-77).
Luísa torna-se um paradigma especial, que se perde nas aventuras que foram engendradas com perda evidente da coerência romanesca. Eça e Ramalho reconhecerão que o carácter folhetinesco levou a uma perda de força, originalidade e autenticidade do romance. No entanto, sobressai a originalidade de Luísa, que é um exemplo premonitório que contrasta com a outra Luísa, a de Basílio. "Os seus olhos eram de um azul profundo como o da água do Mediterrâneo. Havia neles bastante império para poder domar o peito mais rebelde; e havia bastante meiguice e mistério, para que a alma fizesse o estranho sonho de se afogar naqueles olhos. (…) Os seus movimentos tinham aquela ondulação musical, que se imagina do nadar das sereias. De resto, simples e espirituosa".
Estamos perante a aparência romântica servida em tom severamente crítico e satírico. E a confissão de Luísa pressupõe os ecos modernos: "Eu já não sou alguém. Não existo, não tenho individualidade. Não sou uma mulher viva, com nervos, com defeitos, com pudor. Sou um caso, um acontecimento, uma espécie de exemplo. Não sou uma mulher, sou um romance". A sua lucidez autocrítica não condiz com a fragilidade de caráter, típica da lógica dos folhetins vulgares. E o epílogo aproxima-se.
Como ficou dito em crónicas anteriores, o Sagrado é o referente último de todas as religiões, o mistério da realidade na sua ultimidade. É o Sagrado ou o Mistério pura e simplesmente. É o Inominável, pois transcende sempre tudo quanto se possa pensar ou dizer dele. Nenhuma religião o possui nem mesmo as religiões todas juntas.
Na experiência do Sagrado, fonte de sentido último, salvação e felicidade, o Homem está sempre em presença de algo outro e superior, “o tremendo e fascinante”, o Absoluto, inabarcável, inacessível e inefável.
Esta superioridade do Sagrado manifesta-se em níveis diferentes: o ontológico – infinita riqueza de ser –, o axiológico – realidade sumamente valiosa. Assim, comporta “uma ruptura de nível que aponta para a plenitude de ser e realidade por excelência” (J. Sahagún Lucas).
Sendo o Inominável, procurou-se, ao longo da História, nomeá-lo. Numa obra recente, Después de Dios..., o teólogo José Ignacio González Faus apresentou várias tentativas, com muitos nomes. Os Upanishades referem-se a ele como “O Incondicionado”; as filosofias mais racionalistas designam-no como “O Absoluto”; Santo Tomás de Aquino disse que o seu melhor nome é precisamente “O Inominável”; Tierno Galván, “a partir do seu agnosticismo despreocupado pelo tema”, designa-o por vezes como “O Fundamento”; Karl Rahner, o maior teólogo católico do século XX, fala dele precisamente como “O Mistério”; Rudolf Otto, autor da obra famosa “Das Heilige”, fala dele precisamente como “O Santo”, “O Sagrado”; Platão referia-se a ele como “a ideia do Bem”, mas é necessário notar que Platão chama ideia à verdadeira realidade, contraposta às sombras, sendo assim o Sagrado o Sumo Bem; Aristóteles designou-o como “O Motor Imóvel”, com o sentido de que, no meio de todas as mudanças, é necessário algum “ponto de referência firme”; mesmo o famoso tetragrama hebraico YHVH, letras impronunciáveis, não é um nome próprio, mas “uma resposta evasiva a Moisés”: “sou o que serei”: confia e irás vendo; o Novo Testamento conclui, que “Deus é Amor”, que não é uma definição, pois não diz “Deus é O Amor”. O místico João da Cruz referiu-se-lhe como “a música calada que enamora”.
Que concluir? Deus é “esse Mistério indizível que nos envolve. Neste sentido, à pessoa que se sente ou se julga ‘muito religiosa’ é preciso pedir-lhe que renuncie um pouco a Deus, não para negá-lo, mas para deixar Deus ser Deus. Frequentemente, os que mais falam de Deus são os que de modo pior acreditam nEle.” É também neste contexto que deve entender-se o que uma vez ouvi a Jacques Lacan: “Os teólogos não acreditam em Deus, porque falam dele.” Talvez mais decisivo do que falar de Deus seja falar com Deus.
De qualquer forma, ao longo da História e sempre, o Sagrado, na medida em que o Homem precisa de nomeá-lo de alguma maneira, foi sendo apresentado de múltiplas formas e em várias configurações, desde o politeísmo ao monismo, passando pelo dualismo, o deísmo, o monoteísmo..., como veremos em próximas crónicas.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 23 FEV 2020