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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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NATAL: O EMMANUEL

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       Há já alguns anos, o meu bom e ilustre amigo, o eurodeputado Paulo Rangel, e eu tivemos uma conversa muito agradável para mim sobre (imagine-se) Deus e a tentativa de dizê-lo e nos relacionarmos com Ele. Dela resultou um texto de Paulo Rangel, com o significativo título “Deus é Aquele que está”. Numa longa entrevista recente a Inês Maria Meneses, voltou ao tema, confessando a sua fé no Deus de Jesus, o Emmanuel, o “Deus connosco”. Para ele, Deus é “Aquele que está”, Deus não é “esse ser distante e estático” construído a partir da ontologia grega, o Deus que é, “mas antes o ser próximo e interactivo que está e estará connosco, Aquele que acompanha, Aquele que não abandona. Deus é Aquele que está, o Emmanuel.”

      Concordando plenamente com o amigo Paulo Rangel, volto, já em pleno Natal, ao tema, essencial nesta data. De facto, corre-se permanentemente o perigo de esquecer o determinante, já não referindo sequer a ameaça de se ficar amarrado a um consumismo devorador e à concorrência dos presentes: tenho de dar isto e aquilo de presente, para não ficar mal; não posso esquecer este, esta, e aquele, aquela, porque no ano passado também deram…  É preciso parar e reflectir, em primeiro lugar, para se não ficar encerrado em dogmas, quando a fé cristã se dirige a uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus que Jesus revelou como Pai e poderemos e deveremos também dizer como Mãe, com todas as consequências que daí derivam para a existência.

       O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes para Deus?

      Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.

     No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em marcha”.

     O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber, vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital...”.

     A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de todos, mensagem que mudou a História. Bom Natal!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de dezembro de 2022

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Abraão e Moisés - afirmam hoje muitos conceituados investigadores - não terão tido, provavelmente, existência histórica, mas o que eles simbolizam e nos dizem da aventura da humanidade é indestrutível património nosso. Como Homero, que não sabemos quem foi, nem quantos eram...etc. Até a existência de Maomé não parece - dizem os especialistas - estar definitivamente comprovada. Mas o islão está aí e a umma diariamente o invoca como profeta de Alá. A realidade histórica de Jesus Cristo é aceite pela maioria dos historiadores hodiernos, mas tal não impede que haja ainda crentes adeptos de teses que negam a incarnação (Jesus é apenas Deus, sem condição humana, teoria aliás vinda da antiguidade cristã, e com alguma popularidade pelo correr dos tempos), tal como conheço incréus que defendem, cientificamente, a historicidade de Jesus de Nazaré. As teses propriamente "mitistas" - que encaram a pessoa de Jesus como mais uma representação de mitos antigos, de origem egípcia ou assírio-babilónica - surgem apenas na viragem do século XVIII para o XIX.  Por outro lado, muitas outras lendas e narrativas existem, desde as do Santo Graal a tantas outras, mais ou menos fantasiosas e romanceadas do que a desse cálice, relacionadas com hagiografias e muitas relíquias. [A mais rebuscada quiçá seja a que diz que o Graal é Maria Madalena, acolhedora do sangue de Jesus que transmitiria à prole de ambos...]  No século XIX, o romantismo apropriou-se de muitas delas, inventou outras, atirou-se à construção de histórias perfumadas de passado, na literatura como na ópera.  

  

  Voltando às Escrituras e à Tradição, um pouco ao que te disse já sobre textos canónicos e apócrifos, traduzo-te passos do brilhante ensaio de frei Yves Congar, no seu La Tradition et les Traditions, para depois nos debruçarmos sobre gnósticos e místicos. Esse teólogo e historiador dominicano mostra como o verbo grego paradidonai - em latim tradere - se pode aplicar à transmissão de escritos: o substantivo "tradição" rapidamente designou um ensinamento transmitido oralmente, distinto da Escritura. E todavia, o seu conteúdo era relativo à Escritura...   ... Essa tradição da Igreja é, em si mesma, oral. Se os apóstolos não nos tivessem deixado qualquer escrito, seria necessário e suficiente seguir a ordo traditionis por eles entregue àqueles a quem confiavam as comunidades. De facto, existem escritos apostólicos, porque os apóstolos pregaram primeiro o Evangelho, «depois, por vontade de Deus, transmitiram-no-lo nas Escrituras, para que se tornasse na base e coluna da nossa fé» (Sto. Ireneu). Existe também uma parte não escrita da tradição dos apóstolos...   ...Na perspetiva dos fiéis dos séculos II e III, pouco importava que a transmissão fosse puramente oral, desde que se verificasse a única relação que contava, a única que era uma garantia de autenticidade: as Igrejas receberam-na dos apóstolos, os apóstolos de Cristo, Cristo de «Deus». Congar, aliás, já lembrara a doutrina de Santo Ireneu: «A verdadeira gnose é o ensinamento dos apóstolos, plano antigo da Igreja à dimensão do universo, e marca do Corpo de Cristo que consiste na cadeia de sucessão pela qual os bispos puseram a Igreja em cada lugar: a explicação mais completa das Escrituras que até nós chegou, sem alteração, acrescentamento ou subtracção»... Assim, penso eu, se deve colocar a aprovação canónica dos textos circulantes que a Igreja reteve: na tradição apostólica e no debate e acordo conciliar. Não é ditadura. Diz frei Yves Congar, citando um trecho dos Atos dos Apóstolos (8, 30-31): «Compreendes o que lês?» pergunta Filipe ao eunuco da Candácia. «E como poderia, se ninguém me guia?» Os guias são os apóstolos que, discípulos do Mestre, também receberam o seu Espírito, e aos quais ele abriu o sentido das Escrituras (Lucas, 24, 45). Jesus dissera que os apóstolos espalhariam a fé começando por Jerusalém. A Igreja antiga, sabemo-lo, concebia-se a si mesma como a realidade dessa invasão do mundo a partir da nascente apostólica.

 

 

   Em próxima carta voltaremos, por Jerusalém, aos Templários.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira